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As migrações “securitárias” no Mediterrâneo

Chamado de Mare Nostrum pelos antigos Romanos, o Mediterrâneo tornou-se, nos últimos anos, um Mare Mortuum, um verdadeiro “cemitério”. Os numerosos corpos de náufragos encalhados nas costas são apenas uma amostra dos milhares e milhares de seres humanos que não conseguiram superar a última fronteira geográfica rumo ao sonho europeu. Ou melhor, rumo à segurança. Com efeito, na grande maioria dos casos trata-se de “migrações securitárias”, ou seja, de pessoas que se deslocam em busca de segurança contra conflitos bélicos, terrorismos, perseguições, calamidades naturais ou insegurança alimentar.

Esses seres humanos em fuga, no entanto, devem superar numerosos obstáculos – fronteiras – para colocar o pé em território europeu e "ganhar" o direito de solicitar refúgio ou tentar obter um visto humanitário. De fato, as “políticas securitárias” da União Europeia caracterizam-se pela multiplicação de fronteiras a fim de dificultar a chegada de pessoas indesejadas que, em muitos casos, não podem ser devolvidas ao país de origem. São as assim chamadas “políticas de vizinhança” ou “externalização das fronteiras”. Tais políticas não visam a redução das migrações forçadas, e sim a redução do número de migrantes forçados que se dirigem para a Europa; não objetivam proteger quem busca refúgio, mas proteger-se dele; não pretendem combater as causas estruturais das migrações forçadas (por exemplo, a colusão com regimes autoritários), mas apenas encurralar seus rumos. Como afirmam Beatriz Padilla e Alejandro Goldberg no primeiro artigo deste volume da REMHU, “es crucial para la reputación de la UE que [los refugiados] no lleguen a su territorio, ya que si respetara la legislación internacional sobre asilo y refugio, debería acoger a quienes cumplen con los requisitos”.

As consequências mais imediatas dessas políticas são evidentes: as travessias dos migrantes se tornam cada vez mais perigosas, sobretudo quando há o envolvimento de atravessadores inescrupulosos. As “migrações securitárias” se transformam, assim, em migrações de escravidão e de morte. Mas isso não parece ser um problema. Na ótica das “políticas securitárias”, o problema é basicamente a chegada de quem busca segurança. Não é por acaso que o sucesso ou o fracasso das políticas migratórias é medido pela redução dos ingressos irregulares (sobretudo dos possíveis solicitantes de refúgio), não pela quantidade de pessoas protegidas ou pela redução do número de migrantes forçados no mundo. Nessa mesma esteira deve ser interpretada também a proliferação de ações penais contra quem é solidário com migrantes em situação irregular: o crime a ser punido não é a morte ou as violações de direitos de quem busca segurança, e sim o favorecimento de sua entrada e estadia no território europeu, ou seja, sua proteção.

Enfim, a lógica subjacente a essas políticas securitárias, alardeadas em nome da defesa dos direitos humanos, é incongruente e constrangedora: busca-se a segurança interna multiplicando a insegurança externa; promovem-se direitos dos “comunitários” mediante a negação dos direitos dos “outros”. Chegou-se ao limite de sequestrar parte dos míseros bens das pessoas em fuga para custear o acolhimento, como ocorreu na Suíça e na Dinamarca.

Com estas afirmações não queremos menosprezar os sérios desafios da chegada à Europa de um número crescente de migrantes e refugiados, sobretudo na Grécia e na Itália. É evidente que esse fenômeno deve ser gerenciado, mas não no sentido de barrar a entrada das pessoas em fuga, e sim de repartir mais equitativamente os processos de acolhimento e, sobretudo, combater os fatores estruturais que geram as migrações forçadas. Vale sempre lembrar as palavras de Marc Augé: “Negare l’umanità ad alcuni significa ucciderla in tutti”, e desta forma não haverá futuro para ninguém.

A esta temática é dedicado o número 51 da revista REMHU. No primeiro artigo, Beatriz Padilla e Alejandro Goldberg, após apresentarem aspectos da política imigratória da União Europeia com suas prioridades e problematicidades, se debruçam sobre a situação de Portugal, apontando os procedimentos de acolhimento dos refugiados e, principalmente, os resultados de uma pesquisa sobre representações sociais de jovens estudantes, nativos e estrangeiros, acerca da questão migratória. Os autores inferem que a desinformação sobre o tema alimenta a discriminação, legitima políticas securitárias e, ao mesmo tempo, promove o marketing do assim chamado “modelo português” de acolhimento.

Bruno Ferreira Costa e Géssica Teles também avaliam o processo de integração de refugiados em Portugal, no contexto mais amplo das políticas da União Europeia. Os autores analisam as políticas portuguesas de integração, realçando o papel da sociedade civil e, sobretudo, a opção pela inserção dos recém-chegados em pequenas vilas. Por outro lado, chamam a atenção sobre o sério desafio do alto índice de saída de refugiados do país e suas possíveis causas. Entre elas, cabe sublinhar a assim chamada “prisão de solidariedade”, ou seja, o paradoxal confinamento dos refugiados em países ou áreas geográficas distintas e distantes de redes familiares ou de amizade.

Um sinal de esperança é representado, sem dúvida, pelos assim chamados corredores humanitários. Conforme o artigo de Paolo Morozzo Della Rocca, e o de Pedro Gois e Giulia Falchi, o objetivo principal desses corredores é permitir o ingresso seguro na União Europeia de solicitantes de refúgio e sua plena inserção no território. Trata-se de uma iniciativa bottom-up, gerenciada por organizações da sociedade civil, sendo o papel do Estado limitado à emissão dos vistos. As entidades promotoras são responsáveis pela organização do projeto, desde a escolha dos beneficiários, passando pela viagem ao país de destino, até a inserção no novo território em redes de “accoglienza diffusa” (acolhimento focado em núcleos familiares e voluntariado). Além de evitar os perigos das travessias e o envolvimento com redes de traficantes, esses corredores mostram que o “cemitério do Mediterrâneo” - usando uma expressão de Papa Francisco - não é inevitável, mas uma consequência de escolhas políticas.

A necessidade desses corredores é corroborada pelo significativo aumento do número de menores não acompanhados (UAMs) que chegam às costas europeias. Giovanni Valtolina e Marina D’Odorico, ao aprofundarem essa temática, apresentam recentes dados estatísticos, apontam elementos da legislação europeia e chamam a atenção sobre a carência de políticas e práticas comuns no interior da União Europeia. O texto, de qualquer forma, revela que, apesar das falhas, a questão dos UAMs já entrou na agenda política da União.

O tema das crianças migrantes entrou de forma contundente na pauta da mídia internacional a partir do afogamento de Aylan Kurdi, a criança síria encontrada morta em uma praia turca. David Ramírez Plascencia reflete sobre a cobertura de dois importantes jornais alemães sobre a questão migratória justamente a partir desse trágico evento. O autor não avalia apenas os editoriais, mas também as reações dos leitores, sublinhando o importante papel exercido pelos meios de comunicação social na formação da opinião pública.

Finalmente, no último artigo do dossiê, Elspeth Guild aborda a relação entre soberania, fronteiras e segurança na União Europeia, focando a reflexão sobre a abolição dos controles nas fronteiras internas a que corresponde um fortalecimento das fronteiras externas, inclusive com o estabelecimento de fronteiras burocráticas que aparecem muito antes das fronteiras geográficas. Assim, a soberania dos Estados, diluída pelas exigências da União Europeia, “está migrando lejos de los límites territoriales del estado y, en cambio, se la puede encontrar operando muy adentro del territorio de otros estados a través de normas de visa, en alta mar y en otros lugares”.

Na Seção Artigos, Jaqueline Ferreira reflete sobre as interações entre voluntários e usuários migrantes em um centro de atendimento médico de uma ONG na França. Mediante uma abordagem etnográfica a autora chama a atenção sobre as tensões, as relações de poder, as expectativas satisfeitas ou frustradas e as estratégias de sobrevivência que caracterizam o encontro entre alteridades assimétricas. Uma temática análoga é abordada também por Lila Aizenberg e Gabriela Maure, que se debruçam sobre as práticas e as representações de agentes da saúde no atendimento a mulheres migrantes bolivianas na cidade de Mendoza, na Argentina. Embora sublinhem a presença de abordagens diferentes, as autoras destacam as tensões entre a conduta de mulheres migrantes e as orientações do sistema biomédico que, com frequência, impõe padrões culturalmente condicionados de doença, risco e, inclusive, sobre a identidade feminina, sem levar em conta as trajetórias biográficas numa perspectiva interseccional. Ambos os artigos, no fundo, refletem sobre dispositivos que, por vezes, tendem a “disciplinar” a alteridade dos migrantes, ainda que numa (sincera) ótica solidária.

Elizangela Chaves Dias reflete sobre a utilização da Bíblia na animação da pastoral da Mobilidade Humana. A reflexão da autora evidencia como o texto bíblico pode e deve ser lido como uma importante ferramenta para promover o compromisso dos agentes de pastoral e, mais em geral, dos membros das comunidades em favor de migrantes e refugiados. Trata-se de uma reflexão importante num contexto em que, não raramente, recorre-se ao sagrado para legitimar violações de direitos.

Finalmente, María Del Carmen Villarreal Villamar aprofunda a relação entre migrações e desenvolvimento, com ênfase nos eixos migratórios menos estudados: Norte-Sul, Sul-Sul e Norte-Norte. O texto manifesta uma clara preocupação em problematizar os tradicionais enfoques, sublinhando a necessidade de aprofundar as numerosas variáveis envolvidas: o contexto, a época, o volume, as características da população, bem como as políticas dos Estados de origem e de recepção.

Na seção Relatos e reflexões, Paulo Inglês apresenta breves notas de campo de uma pesquisa sobre angolanos retornados no país de origem após serem expulsos da República Democrática do Congo. Entre outros aspectos, o autor destaca as tensões e as ambiguidades do espaço de fronteira, bem como a importante contribuição das irmãs missionárias scalabrinianas naquele contexto. A Resenha do livro Rebus immigrazione de Giuseppe Sciortino encerra o número da Revista.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura!

Roberto Marinucci (editor-chefe da REMHU)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017
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