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O “fordismo” na acepção regulacionista

“Fordism” in the regulatory perspective

RESUMO

Parte da análise da mudança contemporânea, o “fordismo” empresta seu nome a um conjunto de debates desafiadores, essenciais e controversos sobre a natureza do capitalismo do século XX. Ao destacar suas ambiguidades, este breve artigo visa delinear o valor heurístico do “fordismo” como conceito teórico.

PALAVRAS-CHAVE:
Fordismo; Escola da Regulação; história do pensamento econômico

ABSTRACT

Part of the analysis of contemporary change, “Fordism” lends its name to a set of challenging, essential, and controversial debates over the nature of 20th century capitalism. By highlighting its ambiguities, this short article aims to outline the heuristic value of “Fordism” as a theoretical concept.

KEYWORDS:
Fordism; Regulation school; history of economic thought

No vigésimo aniversário da Teoria da Regulação, este pequeno artigo discute o valor heurístico da expressão “fordismo”. Foi em Paris, há exatos vinte anos, que essa ideia começou a adquirir uma aura conceitual. Até então, fordismo era uma noção usada apenas para descrever uma fase avançada da racionalização do trabalho industrial, ou, no máximo, para evocar uma etapa superior do taylorismo. Mesmo em Gramsci (1934GRAMSCI, Antonio (1934) “Americanisme et fordisme”. In Gramsci dans le texte. Paris, Editions Sociales, 1975, pp. 689-706.) a ênfase estava mais no rendimento fabril do operário do que em seu modo de consumo.1 1 “Le fameux ‘haut salaire’ ( ... ) est l’instrument qui sert à sélectionner une main-d’oeuvre adaptée au systeme de production et de travail, et à la mantenir stable. Mais le haut salaire est un instrument à double tranchant: il faut que le travailleur dépense ‘rationellement’ son salaire plus élevé, afin de maintenir, de rénover et, si possible, daccroitre son efficience musculaire et nerveuse, et non pour la détruire ou l’amoindrir” (Gramsci, 1934, p. 700).

A tese de Michel Aglietta, publicada em 1976, fez com que a ideia de fordismo se tornasse uma das fundações da Teoria da Regulação2 2 O artigo de C. Palloix sobre o fordismo/neofordismo também é de 1976, mas sua influência foi ínfima se comparada à do livro de Aglietta. e contaminasse, em seguida, diversas vertentes da Economia Política.3 3 A expressão fordismo vem sendo muito usada também por diversas tendências neoschumpeterianas, institucionalistas e marxistas. Tem sido usada em tão larga escala nos debates sobre as tendências atuais do capitalismo, que até pode parecer um capricho querer discutir seu significado. Mas um exame do uso ambíguo que se faz dessa expressão pode ajudar a realçar tanto as fragilidades quanto o potencial da abordagem regulacionista.

1. A COMPREENSÃO ATUAL

Em recente coletânea sobre o assunto, o entendimento regulacionista do termo “fordismo” é enaltecido por ser usado para sintetizar um “macrossistema” de “acumulação intensiva” com “regulação monopolista”, característico das economias centrais nas décadas de 50 e 60. Segundo Ash Amin (que editou e prefaciou essa coletânea), o forte da abordagem regulacionista não é o emprego do termo fordismo em outros níveis de análise, como, por exemplo: a) enquanto processo de trabalho característico da produção de massa em linhas de montagem (paradigma industrial); b) como círculo virtuoso de crescimento impulsionado pela transferência de parte dos ganhos de produtividade aos salários (regime de acumulação); c) enquanto padrão institucional da coesão sistêmica obtida nos “gloriosos” 1948-1973 ( modo de regulação); e d) o tipo de sociabilização desses mesmos anos dourados (mode of societalization, Vergesellscha.ftungsmodi).4 4 “The passing age, with his heyday in the 1950s and 1960s, has been named ‘Fordism’, a term coined to reflect loosely the pioneering mass production methods and rules of management applied by Henry Ford in his car factories in America during the 1920s and 1930s. Fordism is summarized as the age of intensive accumulation ‘with ‘monopolistic regulation ‘of the economy. Although the term is applied at separate levels of analysis (industrial paradigm, regime of accumulation, mode of regulation, mode of societalization), it is its usage to synthesize a macrosystem which makes the regulation approach most interesting and distinctive from the two other theories of transition” (Amin, 1994b, p. 9). [NB: As outras duas teorias são: a neoschumpeteriana e a da “especialização flexível”. Grifos meus, JEV]

Ou seja, dessa perspectiva, o fordismo não é um conceito teórico, e sim uma maneira de caracterizar o “modo de vida total” do último auge cíclico do capitalismo (Harvey, 1989HARVEY, David (1989) A condição pós-moderna. São Paulo, Ed. Loyola., p. 131). É na descrição analítica desse auge que são usados os dois conceitos básicos (unânimes) dos regulacionistas: “regime de acumulação” e “modo de regulação”.5 5 O conjunto de regularidades que assegura a progressão geral e relativamente coerente da acumulação do capital (isto é, que permite desfazer ou diluir no tempo as distorções e desequilíbrios gerados em permanência pelo próprio processo) constitui o “regime de acumulação” (Boyer, 1986, p. 46). “Modo de regulação” é o conjunto de procedimentos e comportamentos, individuais e coletivos, que permite: a) reproduzir as relações sociais fundamentais por meio de formas institucionais historicamente determinadas; b) sustentar e “pilotar” o regime de acumulação em vigor; e) garantir a compatibilidade dinâmica de um conjunto de decisões descentralizadas, sem que seja necessário que os atores econômicos assimilem os princípios de ajuste do conjunto do sistema (Boyer, 1986, pp. 54-55). Um regime de acumulação “descreve a estabilização, por um longo período, da alocação do produto líquido entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a transformação tanto das condições de produção como das condições de reprodução dos assalariados”. Um sistema particular de acumulação pode existir porque “seu esquema de reprodução é coerente”. O problema, no entanto, é fazer os comportamentos de todo tipo de indivíduos - capitalistas, trabalhadores, funcionários públicos, financistas e todas as outras espécies de agentes político-econômicos - assumirem alguma modalidade de configuração que mantenha o regime de acumulação funcionando. Tem de haver, portanto, “uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, etc. que garantam a unidade do processo, isto é, consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução. Esse corpo de regras e processos sociais interiorizados tem o nome de modo de regulação” (Lipietz,1986, p. 19, apud Harvey, 1989). Dependendo do autor, essa dupla vem acompanhada de conceitos complementares como “paradigma industrial”, “modo de sociabilização” ou “modo de desenvolvimento”.6 6 “Paradigma industrial” é o padrão de organização da produção, incluindo tecnologia, administração, divisão de tarefas, relações de trabalho e de salário. “Modo de sociabilização” é o conjunto de compromissos políticos, alianças sociais e processos hegemônicos de dominação presentes no sistema de integração e coesão social que garante a estabilização de uma determinada via de desenvolvimento. “Modo de desenvolvimento” é a expressão mais geral da combinação entre o paradigma industrial, o regime de acumulação e o modo de regulação (Amin, 1994b, p. 8).

Não deixa de ser estranha a escolha do termo fordismo para simbolizar tanta coisa, por mais pioneira que possa ter sido a experiência empresarial de Henry Ford. O nome de Keynes, por exemplo, é tanto ou mais representativo do fenômeno que se procura realçar - como indica, aliás, a seguinte reflexão de um dos principais expoentes atuais da teoria da regulação:

Ford e Keynes haviam percebido que a aceleração dos ganhos de produtividade provocada pela revolução taylorista levaria a uma gigantesca crise de superprodução se não encontrasse contrapartida em uma revolução paralela do lado da demanda. ( ... ) Mas Ford e Keynes pregavam no deserto. ( ... ) Os temores de Ford, de Keynes ... e dos sindicatos diante do conservantismo liberal dos Hoover, Lloyd George ou Lavai encontraram por isso, na Grande Depressão dos anos 30, naquela gigantesca crise de superprodução, uma trágica confirmação. (Lipietz, 1989LIPIETZ, Alain (1989) Audácia: uma alternativa para o século XXI. São Paulo, Ed. Nobel, 1991., pp. 30-31)

E também não há como comparar Ford ou Keynes a fenômenos políticos como o “Welfare State” ou a social-democracia, quando se pretende caracterizar a coesão sistêmica do capitalismo em seus anos mais dourados. Foram estas as principais formas institucionais do compromisso que acabou permitindo a redistribuição dos ganhos de produtividade aos assalariados. A nível internacional, foram as instituições criadas nos acordos de Bretton Woods que regularam a expansão dos anos 50 e 60. De resto, os mecanismos reguladores conheceram graus diferentes de desenvolvimento, segundo os países, como enfatiza o próprio Lipietz:

Por exemplo, depois da guerra e do período Roosevelt, os Estados Unidos sofreram um nítido retrocesso, com a Guerra Fria e o macarthismo. Mesmo as reformas de Kennedy e de Johnson (que foram depois o alvo de Reagan) não chegaram a fornecer ao povo americano uma previdência social equivalente à da Europa do norte. Quanto à França, só chegou à consumação do fordismo nos acordos de Grenelle, em junho de 1968. Acordos que encerravam os “acontecimentos de maio” - que podem ser vistos como o primeiro grande movimento de massa antifordista! (Lipietz, 1989LIPIETZ, Alain (1989) Audácia: uma alternativa para o século XXI. São Paulo, Ed. Nobel, 1991., p. 34)

Não é evidente, portanto, porque os regulacionistas utilizam uma metáfora tão diminuta para se referir a algo tão amplo como o “modo de vida total” da Idade de Ouro. Talvez alguma pista possa ser encontrada numa volta à origem da teoria da regulação.

2. A PEDRA ANGULAR

Em Aglietta (1976AGLIETTA, Michel (1976) Régulation et crises du capitalisme; L’ expérience des Etats-Unis. Paris, Calmann-Lévy. Tese de doutoramento, Universidade de Paris 1, out. 1974., p. 96), o fordismo é um novo estágio da regulação do capitalismo. Nesse estágio, a classe capitalista procura gerir a reprodução da força de trabalho assalariada por uma estreita articulação entre as relações de produção e as relações mercantis pelas quais os assalariados compram seus meios de consumo. O fordismo é, então, uma articulação entre processo de produção e modo de consumo, constituindo a produção de massa, que, por sua vez, é o conteúdo da universalização do assalariamento.

O fordismo é o conjunto das condições sociais que caracterizam o regime de acumulação intensiva (Aglietta, 1976AGLIETTA, Michel (1976) Régulation et crises du capitalisme; L’ expérience des Etats-Unis. Paris, Calmann-Lévy. Tese de doutoramento, Universidade de Paris 1, out. 1974., p. 132). Enquanto o capitalismo transforma o processo de trabalho sem remodelar o modo de consumo, o regime de acumulação é extensivo. O novo estágio do capitalismo é atingido quando a acumulação não apenas transforma o processo de trabalho, mas, sobretudo, transforma o processo de reprodução da força de trabalho (Aglietta, 1976AGLIETTA, Michel (1976) Régulation et crises du capitalisme; L’ expérience des Etats-Unis. Paris, Calmann-Lévy. Tese de doutoramento, Universidade de Paris 1, out. 1974., p. 60).

O critério de periodização dos estágios históricos do capitalismo baseia-se no conteúdo da mais-valia relativa. No primeiro estágio há transformação do processo de trabalho sem mudança profunda das condições de existência dos assalariados. No segundo, há rápida e concomitante mudança do processo de trabalho e das condições de existência dos assalariados (Aglietta, 1976AGLIETTA, Michel (1976) Régulation et crises du capitalisme; L’ expérience des Etats-Unis. Paris, Calmann-Lévy. Tese de doutoramento, Universidade de Paris 1, out. 1974., p. 18).

Ou seja, para o fundador da Teoria da Regulação, enquanto predominava a mais-valia absoluta, o regime de acumulação era extensivo. Quando essa acumulação passou a se dar essencialmente pela redução do valor da força de trabalho - isto é, pela redução do tempo de trabalho socialmente necessário - tanto a produção quanto o consumo foram massificados e o regime tornou-se intensivo. É o conjunto das condições sociais desse estágio da regulação do capitalismo que ele inseriu no conceito de fordismo.

Diversas críticas a esse esquema analítico de Aglietta foram publicadas nos últimos cinco anos.7 7 Brenner & Glick (1991); Page & Walker (1991); Sayer & Walker (1992); Goodman & Watts (1994); Page & Walker, (1995); Sayer, (1995); Walker (1995). Uma delas refere-se à real prevalência, nos Estados Unidos, até a terceira década do século XX, de um regime de acumulação extensivo. Segundo Page & Walker (1995PAGE, Brian & WALKER, Richard (1995) “Staple Lessons: Agriculture, Resource Industrialization and Economic Geography”. Paper Presented at the Harol Innis Symposium, University of Toronto, Sept. 24, 1994 (Draft of Feb., 1995)., p. 9), o fenômeno que os regulacionistas entendem por acumulação intensiva é muito mais antigo do que a experiência de Henry Ford. Data, segundo eles, da fase que se seguiu à Guerra Civil.

Uma segunda crítica refere-se diretamente à caracterização do regime de acumulação posterior ao início do século XX (intensivo) por meio da parábola do fordismo. Trata-se, segundo Page & Walker, de uma visão muito inadequada do processo de mudança técnica e organizacional na indústria. E a principal investida realmente teórica dos autores contra o regulacionismo aparece na terceira crítica, quando opõem uma ênfase na “mudança técnica” à ênfase regulacionista nas “instituições”.

Ou seja, Page & Walker apontam diversas incongruências na utilização da história dos Estados Unidos para construir os conceitos de regimes de acumulação “extensivo” e “intensivo”, destacando a precariedade da noção de fordismo e enfatizando a inadequação dessa teoria para uma interpretação do desenvolvimento econômico daquele país. Mas estas críticas não atingem o cerne da abordagem regulacionista. Quando finalmente abordam os conceitos básicos dos regulacionistas - “regime de acumulação” e “modo de regulação” - não vão muito além de uma preferência pela “mudança técnica” em vez das “instituições”. E confirmam de duas maneiras um certo desdém pela dimensão macroeconômica. Primeiro, ao afirmarem que a preocupação com a compatibilização da produção e do consumo é apenas “neoclássica” ou “keynesiana”. Segundo, ao minimizarem a relevância dos “modos de regulação”. Estas duas características das críticas de Page & Walker estão ainda mais claras nos textos de Walker (1995) e Sayer & Walker (1995SAYER, Andrew (1995) Radical Political Economy: A Critique, Oxford: Basil Blackwell). E no capítulo 5 do livro The New Social Economy (Sayer & Walker, 1992SAYER, Andrew & WALKER, Richard (1992) The New Social Economy: ReWorking the Division of Labor. Oxford, Basil Blackwell.), intitulado “Beyond Fordism and Flexibility”, a completa separação entre “a produção” e “o resto” fica bem explícita.

É perfeitamente aceitável que se faça esse “corte” entre “a produção” e “o resto” para aprofundar a análise. Mas não se pode tomar essas críticas à noção de fordismo como se fossem uma crítica muito rigorosa à Teoria da Regulação. Principalmente porque a noção de fordismo é menos importante que os conceitos básicos. Particularmente o de “modo de regulação”, que, afinal, não chega a interessar esses críticos.

3. ALTERNATIVAS

Se a ideia de fordismo não é boa para caracterizar o regime de acumulação da fase mais recente do capitalismo (intensiva), e, muito menos, os trinta anos de gloriosa acumulação do capitalismo americano, torna-se necessário, então, reexaminar a natureza do regime de acumulação que predominou na segunda metade deste século, bem como do modo de regulação vigente na “idade de ouro”. Só assim será possível discutir se as mudanças ocorridas nos últimos 25 anos de marasmo econômico permitem identificar a emergência de um novo modo de regulação (ou até, quem sabe, uma transição a um novo regime de acumulação).

É comum afirmar-se que a longa onda de prosperidade do pós-guerra foi seguida, a partir dos anos 1970, por um período de “crise”. Entre inúmeros exemplos, pode-se considerar as análises de pós-marxistas que não usam a terminologia dos regulacionistas, mas chegam a conclusões bem similares (ou convergentes). Por exemplo, a abordagem norte-americana das “estruturas sociais da acumulação” (“SSA approach”; Weisscopf, 1991),8 8 “Frorn the end of World War II up to the early 1970s the world capitalist economy experienced a period of rapid economic growth and capital accumulation which was unprecedented in scope. This long-wave boom - sometimes labelled the postwar ‘golden age’ of world capitalism - was followed by a period of generalized economic crisis extending into the early 1980s. Whether this crisis is continuing up to the present time or, alternatively, a new period of boom began in the 1980s, remains a matter of some controversy. What is clear, however, is that - partly as a consequence of the economic crisis in the 1970s - the institutional structure of the capitalist mode of production has undergone some important changes in recent years” (Weisskopf, 1991, p. 75, grifos meus, JEV). que foi, aliás, incluída na ampla revisão dos regulacionistas feita por Jessop (1990JESSOP, Bob (1990) “Regulation theories in retrospect and prospect”. Economy and Society, vol. 19, nº 2, mai., pp. 153-216.).

O que Weisscopf chama de “estrutura institucional do modo de produção capitalista” é exatamente o que um regulacionista chamaria de “modo de regulação”. Para ele, a melhor maneira de caracterizar a estrutura institucional da “idade de ouro” é descrevê-la como “welfare state capitalism”. E as mudanças nesse sistema institucional - do “welfare state capitalism” - teriam sido tão significativas que já seria possível afirmar que foi substituído por outro, chamado por Weisscopf de “global market capitalism”.

Esse contraste “welfare state/global market” para caracterizar o que o autor considera a “estrutura institucional” do capitalismo talvez se revele tão precário quanto a oposição “fordismo/pós-fordismo”. Mas já traz uma grande vantagem, simplesmente por deslocar a ênfase para o domínio da relação “Estado/mercado”, em vez da relação “indústria/mercado”. O mesmo contraste também pode ser identificado no universo regulacionista.9 9 Formado por uma dezena de “escolas”: três francesas (Grenoble, Paris, CME), uma holandesa (Amsterdã), uma alemã, uma nórdica, duas ou três americanas (SSA, geógrafos, Piore & Sabel), conforme Jessop (1990); às quais deve ser acrescentada pelo menos uma britânica, na sequência da publicação do número especial de Economy and Society (vol. 24, nº 3, ago., 1995). Apesar de sua diversidade, um dos principais aspectos constantes nas abordagens regulacionistas destacados na revisão feita por Jessop (1990JESSOP, Bob (1990) “Regulation theories in retrospect and prospect”. Economy and Society, vol. 19, nº 2, mai., pp. 153-216.) foi justamente a preocupação com as formas e mecanismos que asseguram a reprodução ampliada do capital enquanto relação social. E, cinco anos depois dessa revisão, o mesmo autor procurou apontar as relações entre a teoria da regulação e a abordagem “governacionista”, isto é, a confluência entre elaborações econômicas do “novo institucionalismo” e elaborações políticas “neo-corporatistas”.10 10 Essa convergência regulacionismo-governacionismo pode ser vista como característica da escola britânica, cujas principais preocupações atuais são sintetizadas na introdução do referido número especial de Economy and Society.

Mas a tendência em determinar a natureza de um modo de regulação mais por sua dimensão política do que por sua base industrial (como ocorre com a noção de “fordismo”), também pode ser encontrada em outras análises. Tanto é que Bruno Théret (1994THÉRET, Bruno (1994) “To Have or To Be: On the Problem of the Interaction between State and Economy and its ‘Solidarist’ Mode of Regulation”. Economy and Society, vol. 23, February, nº 1, pp. 1-46.) chega a rebatizar o modo de regulação da “idade de ouro”, integrando suas três principais dimensões [welfare state-keynesianismo-democracia pluralista] no qualificativo “solidarista”.

Sejam quais forem as denominações, ênfases ou destaques, uma coisa é certa: muitas destas abordagens têm em comum a ideia básica de que o modo de regulação dos trinta gloriosos anos de prosperidade do capitalismo ocidental entrou em evidente processo de reciclagem a partir dos anos 1970. O que varia é a importância relativa atribuída às dimensões mais econômicas (consumo de massa, paradigma tecnológico) ou às dimensões mais políticas (democracia, welfare state).

4. CONCLUSÃO

É errado identificar a teoria da regulação com as ideias muito em voga sobre o fordismo, sua crise e a chamada transição ao pós-fordismo. Como foi muito bem ressaltado por Jessop (1990JESSOP, Bob (1990) “Regulation theories in retrospect and prospect”. Economy and Society, vol. 19, nº 2, mai., pp. 153-216.), nem todo estudo do fordismo é regulacionista e nem toda abordagem regulacionista se preocupa com o fordismo. Contudo, mesmo em sua acepção regulacionista, a noção de fordismo insere uma inaceitável ambiguidade, que resulta da precária caracterização dos “regimes de acumulação” e dos “modos de regulação” do capitalismo industrial. Quanto aos primeiros, parece um grande avanço a abordagem dos “ciclos sistêmicos” proposta por Giovanni Arrighi (1994ARRIGHI, Giovanni (1994) The Long Twentieth Century. London, Verso. Edição brasileira, O longo século XX. São Paulo, Contraponto/UNESP, 1996.). Além de distinguir, na época industrial, dois ciclos sistêmicos de acumulação - o britânico e o norte-americano -Arrighi aponta para a possibilidade de estarmos na transição para um ciclo “asiático”. Já a caracterização dos “modos de regulação” depende, por definição, de análises concretas da dinâmica institucional de cada uma das nações capitalistas, em cada um desses ciclos sistêmicos. Infelizmente, o uso abusivo da noção de fordismo mais tem atrapalhado do que ajudado no desenvolvimento dessas análises.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    “Le fameux ‘haut salaire’ ( ... ) est l’instrument qui sert à sélectionner une main-d’oeuvre adaptée au systeme de production et de travail, et à la mantenir stable. Mais le haut salaire est un instrument à double tranchant: il faut que le travailleur dépense ‘rationellement’ son salaire plus élevé, afin de maintenir, de rénover et, si possible, daccroitre son efficience musculaire et nerveuse, et non pour la détruire ou l’amoindrir” (Gramsci, 1934GRAMSCI, Antonio (1934) “Americanisme et fordisme”. In Gramsci dans le texte. Paris, Editions Sociales, 1975, pp. 689-706., p. 700).
  • 2
    O artigo de C. PalloixPALLOIX, Christien (1976) “Le procês de travail. Du fordisme au néo-fordisme”. La Pensée, nº 185, fev. sobre o fordismo/neofordismo também é de 1976, mas sua influência foi ínfima se comparada à do livro de Aglietta.
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    A expressão fordismo vem sendo muito usada também por diversas tendências neoschumpeterianas, institucionalistas e marxistas.
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    “The passing age, with his heyday in the 1950s and 1960s, has been named ‘Fordism’, a term coined to reflect loosely the pioneering mass production methods and rules of management applied by Henry Ford in his car factories in America during the 1920s and 1930s. Fordism is summarized as the age of intensive accumulation ‘with ‘monopolistic regulation ‘of the economy. Although the term is applied at separate levels of analysis (industrial paradigm, regime of accumulation, mode of regulation, mode of societalization), it is its usage to synthesize a macrosystem which makes the regulation approach most interesting and distinctive from the two other theories of transition” (Amin, 1994bAMIN, Ash (org.) (1994a) Post-Fordism; A Reader. Oxford, Blackwell., p. 9). [NB: As outras duas teorias são: a neoschumpeteriana e a da “especialização flexível”. Grifos meus, JEV]
  • 5
    O conjunto de regularidades que assegura a progressão geral e relativamente coerente da acumulação do capital (isto é, que permite desfazer ou diluir no tempo as distorções e desequilíbrios gerados em permanência pelo próprio processo) constitui o “regime de acumulação” (Boyer, 1986BOYER, Robert (1986) La théorie de la régulation: une analyse critique. Paris, Éditions La Découverte., p. 46). “Modo de regulação” é o conjunto de procedimentos e comportamentos, individuais e coletivos, que permite: a) reproduzir as relações sociais fundamentais por meio de formas institucionais historicamente determinadas; b) sustentar e “pilotar” o regime de acumulação em vigor; e) garantir a compatibilidade dinâmica de um conjunto de decisões descentralizadas, sem que seja necessário que os atores econômicos assimilem os princípios de ajuste do conjunto do sistema (Boyer, 1986BOYER, Robert (1986) La théorie de la régulation: une analyse critique. Paris, Éditions La Découverte., pp. 54-55). Um regime de acumulação “descreve a estabilização, por um longo período, da alocação do produto líquido entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a transformação tanto das condições de produção como das condições de reprodução dos assalariados”. Um sistema particular de acumulação pode existir porque “seu esquema de reprodução é coerente”. O problema, no entanto, é fazer os comportamentos de todo tipo de indivíduos - capitalistas, trabalhadores, funcionários públicos, financistas e todas as outras espécies de agentes político-econômicos - assumirem alguma modalidade de configuração que mantenha o regime de acumulação funcionando. Tem de haver, portanto, “uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, etc. que garantam a unidade do processo, isto é, consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução. Esse corpo de regras e processos sociais interiorizados tem o nome de modo de regulação” (Lipietz,1986LIPIETZ, Alain (1986) “New Tendencies in the International Division of Labour: Regimes of Accumulation and Modes of Regulation”. In Scott, A. & Storper, M. (orgs.) Production, Work, Territory; The Geographical Anatomy of Industrial Capitalism, London (s/ed), apud Harvey (1989)., p. 19, apud Harvey, 1989HARVEY, David (1989) A condição pós-moderna. São Paulo, Ed. Loyola.).
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    “Paradigma industrial” é o padrão de organização da produção, incluindo tecnologia, administração, divisão de tarefas, relações de trabalho e de salário. “Modo de sociabilização” é o conjunto de compromissos políticos, alianças sociais e processos hegemônicos de dominação presentes no sistema de integração e coesão social que garante a estabilização de uma determinada via de desenvolvimento. “Modo de desenvolvimento” é a expressão mais geral da combinação entre o paradigma industrial, o regime de acumulação e o modo de regulação (Amin, 1994bAMIN, Ash (1994b) “Post-Fordism: Models, Fantasies and Phantoms of Transition”. In Amin, Ash, Post-Fordism; A Reader, Oxford, Blackwell, pp. 1-40., p. 8).
  • 7
    Brenner & Glick (1991BRENNER, R. & GLICK, M. (1991) “The Regulation Approach: Theory and History”. New Left Review, 188, July/Aug., pp. 45-119.); Page & Walker (1991PAGE, Brian & WALKER, Richard (1991) “From Settlement to Fordism: The Agro-Industrial Revolution in the American Midwest”. Economic Geography, vol. 67, n°4, pp. 281-314.); Sayer & Walker (1992SAYER, Andrew & WALKER, Richard (1992) The New Social Economy: ReWorking the Division of Labor. Oxford, Basil Blackwell.); Goodman & Watts (1994GOODMAN, David & WATTS, Michael (1994) “Reconfiguring the Rural or Fording the Divide?: Capitalist Restructuring and the Global Agro-Food System”. The Journal of Peasant Studies, vol. 22, nº 1, Oct., pp.1-49.); Page & Walker, (1995PAGE, Brian & WALKER, Richard (1995) “Staple Lessons: Agriculture, Resource Industrialization and Economic Geography”. Paper Presented at the Harol Innis Symposium, University of Toronto, Sept. 24, 1994 (Draft of Feb., 1995).); Sayer, (1995SAYER, Andrew (1995) Radical Political Economy: A Critique, Oxford: Basil Blackwell); Walker (1995WALKER, Richard (1995) “Regulation and Flexible Specialization as Theories of Capitalist Development: Challengers to Marx and Schumpeter?”. In Liggett, Helen & Perry, David C. (orgs.) (1995) Spatial Practices: Critical Explorations in Social/Spatial Theory, Sage Publications, pp.167-208.).
  • 8
    “Frorn the end of World War II up to the early 1970s the world capitalist economy experienced a period of rapid economic growth and capital accumulation which was unprecedented in scope. This long-wave boom - sometimes labelled the postwar ‘golden age’ of world capitalism - was followed by a period of generalized economic crisis extending into the early 1980s. Whether this crisis is continuing up to the present time or, alternatively, a new period of boom began in the 1980s, remains a matter of some controversy. What is clear, however, is that - partly as a consequence of the economic crisis in the 1970s - the institutional structure of the capitalist mode of production has undergone some important changes in recent years” (Weisskopf, 1991WEISSKOPF, Thomas E. (1991) “Marxian Crisis Theory and the Contradictions of Late Twentieth-Century Capitalism”, Rethinking Marxism, vol. 4, nº 4, pp. 70-93., p. 75, grifos meus, JEV).
  • 9
    Formado por uma dezena de “escolas”: três francesas (Grenoble, Paris, CME), uma holandesa (Amsterdã), uma alemã, uma nórdica, duas ou três americanas (SSA, geógrafos, Piore & Sabel), conforme Jessop (1990JESSOP, Bob (1990) “Regulation theories in retrospect and prospect”. Economy and Society, vol. 19, nº 2, mai., pp. 153-216.); às quais deve ser acrescentada pelo menos uma britânica, na sequência da publicação do número especial de Economy and Society (vol. 24, nº 3, ago., 1995).
  • 10
    Essa convergência regulacionismo-governacionismo pode ser vista como característica da escola britânica, cujas principais preocupações atuais são sintetizadas na introdução do referido número especial de Economy and Society.
  • 11
    JEL Classification: B24; P16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1997
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