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A moral da dívida pública

The moral of public debt

RESUMO

Este artigo trata da dimensão moral da dívida pública e seu referencial teórico é a economia constitucional. Argumenta-se que a principal razão para a existência de qualquer vínculo moral entre dívida pública e ética é a transferência de custos para as gerações futuras. Em primeiro lugar, o artigo explora a análise da dívida pública de James Buchanan. Em segundo lugar, é descrito no artigo o ponto de vista neoclássico sobre o assunto. O principal objetivo aqui é estabelecer, partindo do ponto de vista positivo e passando por um normativo, o papel de uma análise deontológica do ônus da dívida. Depois disso, faço a ligação entre instituições, esquemas de incentivos e dívida.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida pública; estrutura da dívida pública; economia constitucional; escolha pública; economia política

ABSTRACT

his paper deals with the moral dimension of the public debt and its theoretical reference is constitutional economics. It is argued that the main reason to the existence of any moral link between public debt and ethics is the transference of costs to future generations. Firstly, the article explores James Buchanan’s public debt analysis. Secondly, is described in the paper the neoclassical point of view about the matter. The main purpose here is to establish, starting from the positive point of view and passing through-out a normative one, the role of a deontological analysis of the debt burden. After this, I make the linkage between institutions, incentives’ schemes and debt.

KEYWORDS:
Public debt; public debt structure; constitutional economics; public choice; political economy

The attractiveness of financing spending by debt issue to the elected politicians should be obvious. Borrowing allows spending to be made that will yield immediate political payoffs without the incurring of any immediate political cost.

James Buchanan, The Deficit and American Democracy, 1984

1. INTRODUÇÃO

Alguns economistas, como Buchanan (1984BUCHANAN, J.M. (1984). The Deficit and American Democracy. Memphis, P.K. Steidman Foundation., 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.), têm afirmado que o problema da dívida pública não é somente econômico stricto sensu. Na verdade, por detrás da dívida pública, ocultam-se duas dimensões que lhe são constitutivas, a política e a moral.

Do ponto de vista da economia política da dívida, a questão que se coloca e que os economistas neoclássicos e sua teoria positiva consideram, é o fato das escolhas que geram endividamento público não serem feitas por um governo benevolente, maximizador do bem-estar social, governo este que quando “erra” (por exemplo, no caso de um endividamento explosivo) é “irracional” ou “incompetente”. A bem da verdade, a escolha pública somente se coloca enquanto tal no nome; todas as escolhas dentro do Estado são, em última instância, privadas, tomadas por agentes self-seeking, que agem de acordo com interesses rent-seeking privados ou de terceiros.1 1 Ver, a respeito desta visão de agente econômico, Silva (1996). Ações rent-seeking podem ser definidas, seguindo Rowley, Tollison & Tullock (1988), como aquelas implementadas por indivíduos ou grupos de interesse e pressão no sentido de redirecionar uma política pública (ou o orçamento público) de tal forma a obter, direta ou indiretamente, alguma transferência de renda. Exemplos clássicos são as políticas de preço sustentado na agricultura, quotas e tarifas no comércio e realocações de verbas orçamentárias ano-a-ano na elaboração do orçamento e na sua execução. Por outro lado, o problema do endividamento permanente ou do financiamento dos gastos governamentais por meio de déficits crônicos, pode ser encarado como uma questão moral; ele reflete alguma falha moral. A moralidade das ações individuais e públicas exige autocontrole. Déficits públicos crônicos indicam falta de disciplina e são, portanto, indicadores de ausência de controle. O acúmulo de déficits (ou a dívida pública) é, portanto, imoral.

Mas o problema da moral da dívida pública está representado principalmente no que se refere à possível transferência de gravames para gerações futuras, na ausência de herança de ativos e de altruísmo intergerações na economia. A tese da neutralidade da dívida, portanto, perde qualquer sentido prático se houver, pelo menos, egoísmo intergerações.

O problema moral implícito à dívida pública remete, portanto, ao estudo da natureza dos processos de escolha que a geram. Se o Estado não é um maximizador da função de bem-estar social, mas simplesmente um conjunto de facções que se organizam politicamente para tomar as decisões ditas públicas, faz-se mister a interpretação da dívida e dos seus aspectos morais dentro de alguma perspectiva em economia política.

O objetivo deste artigo é interpretar a natureza moral da dívida pública partindo da visão estabelecida pela economia constitucional. Inicialmente mostrarei, por meio de uma breve exposição da crítica de Buchanan à revolução keynesiana, como o economista americano estabelece a ligação entre evolução cultural, institucional e constitucional e o controle sobre a geração de dívida pública. Em segundo lugar, discutirei os aspectos morais da dívida pública vis-à-vis alguns tradicionais resultados advindos da teoria positiva da dívida.

Em terceiro lugar, mostrarei a relação existente entre regras constitucionais, sistemas de incentivo e endividamento público para, por fim, sugerir a necessidade de uma agenda de pesquisa para o Brasil no campo da economia política da dívida pública e da crise fiscal do Estado.

2. A CRÍTICA AO KEYNESIANISMO

A análise normativa da dívida pública foi desenvolvida principalmente por modernos economistas políticos como James Buchanan e Gordon Tullock. No caso do primeiro, grande parte de seu trabalho intelectual esteve ligado ao estudo do comportamento econômico e suas ligações com a constituições, instituições, regras e preceitos morais (ver, por exemplo, Buchanan, 1987BUCHANAN, J.M. (1987). Economics: Between Predictive Science and Moral Philosophy. College Station, Texas A&M University Press.: 67-80, e Buchanan, 1991BUCHANAN, J.M. (1991). The Economics and the Ethics of Constitutional Order. Ann Arbor, University of Michigan Press.: 179-93). Com o único objetivo de elucidar o ponto de vista de Buchanan, farei uma breve exposição de sua crítica ao keynesianismo.

Buchanan (1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986., 1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986., 1986cBUCHANAN, J.M. (1986c). “Debt, demos, and the welfare State.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986., 1978BUCHANAN, J.M., WAGNER, R.E. & BURTON, J. (1978). “The consequences of Mr. Keynes.” In BUCHANAN, J.A. Constitutional Economics. Oxford, Basil Blackwell.) e Buchanan & Wagner (1977BUCHANAN, J.M. & WAGNER, R.E. (1977). Democracy in Deficit. San Diego, Academic Press.) desfecham uma ácida avaliação do que veio a ser denominado pelos economistas citados como revolução keynesiana ou simplesmente, keynesianismo.2 2 É importante observar que o termo keynesiano encerra para Buchanan e Wagner muito mais uma corrente ideológica do que tão somente acadêmica stricto sensu. Os keynesianismo, deste ponto de vista, constitui uma visão de mundo que legitima a existência de déficits e da dívida pública em detrimento de regras constitucionais e infraconstitucionais de conduta fiscal rígida que deveriam ser adotadas pelo governo. Ver Buchanan (1978: 92-5).

O fundamento dessa crítica está na avaliação que eles fazem acerca da forma como os economistas em geral, neoclássicos (e novos clássicos) e, principalmente, keynesianos, analisam o problema da dívida pública. Buchanan (1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.) sustenta que esses economistas não consideram (i) o aspecto moral da dívida pública e (ii) a importância das instituições ou dos sistemas de incentivo na explicação do comportamento do Estado, vale dizer, dos agentes públicos que representam seus interesses ou interesses rent-seeking de agentes privados.

O aumento da dívida pública em níveis que geram instabilidade financeira ou um financiamento crônico de consumo do governo via déficit teriam sua origem, nas modernas economias ocidentais nos anos 60 e 70, na corrosão de um arranjo institucional e moral existente desde o final do século passado (Buchanan, 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 189). Para explicar esta desintegração das regras de conduta Buchanan recorre a dois conceitos hayekianos fundamentais, quais sejam: comunidade moral e ordem moral.

A comunidade moral é um conjunto pequeno e geralmente biológico de indivíduos onde há uma aceitação tácita das regras de sobrevivência. A comunidade moral geralmente está associada à família, embora seja extensível uma pequena comunidade. A ligação é biológica porque os indivíduos (i) possuem em geral algum laço de parentesco e (ii) a sobrevivência dos indivíduos está ligada diretamente à sobrevivência do grupo. As regras de conduta são aceitas por tradição e estão, na comunidade moral, intrinsecamente ligadas à sobrevivência; a comunidade moral traduz, neste sentido, uma espécie de herança tribal, ainda existente nas sociedades modernas (Buchanan, 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 190). As famílias possuem regras de conduta no sentido de disciplinarem-se no trabalho e nas finanças domésticas de tal forma a evitar problemas futuros. Na comunidade moral, as regras de parcimônia e prudência fiscal tenderiam a prevalecer devido ao imediato imperativo da sobrevivência biológica. Ademais, há, neste tipo de grupo, uma identificação cognitiva direta entre atos e as responsabilidades que lhe estão associadas. A dívida feita por um pai de família, a princípio, vai ser paga pela família e os agentes que participam dessa comunidade moral sabem disso e identificam na dívida um resultado de suas ações, um custo no caso, que foi gerado pela mesma ou pelo “chefe da casa”.

A ordem moral é constituída pelo conjunto de comunidades morais. Na ordem moral, as pessoas compartilham de códigos normalmente aceitos que possibilitam, por seu turno, a interação produtiva entre os agentes que pertencem a diferentes comunidades morais. As normas, valores e instituições que regem a ordem moral seriam resultado de um longo processo de evolução cultural e não estariam diretamente ligadas à sobrevivência biológica stricto sensu.

A sociedade e o mercado são, em suma, o resultado da interação complexa de indivíduos que estão inseridos dentro de comunidades morais. Esta interação é regulada por normas morais e, posto isto, para se compreender a razão do surgimento e da legitimação de dívidas públicas explosivas faz-se mister entender o que pode alterar um conjunto de instituições pertencentes à ordem moral.3 3 Sobre o evolucionismo Hayekiano e sua influência sobre Buchanan e outros economistas, ver Vanberg (1994: 60-106). Nesta referência encontra-se uma excelente descrição dos conceitos comunidade moral e ordem moral. Por exemplo, para Buchanan (1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 191) o keynesianismo teria deteriorado normas de disciplina fiscal na ordem moral acidental.

As chamadas regras morais vitorianas de conduta fiscal teriam sido resultado de um longo processo de evolução cultural ou “[...] o comportamento que mostra respeito pelo estoque de capital de uma nação, como uma unidade, é (ou foi) um produto de evolução cultural [...]” (Buchanan, 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 191).

A moralidade fiscal vitoriana não teria sido derivada biológica ou racionalmente: ela surgiu de um longo processo de aprendizado.4 4 Sobre a emergência de instituições que garantiriam disciplina fiscal na Inglaterra ver Silva (1995a, pp. 19-26 e 1995b: 87) e Webber & Wilddavsky (1986). Entretanto, sua fragilidade se manifestou diante do advento do keynesianismo; “[...] Keynes pode ser visto como um revolucionário bem-sucedido que destruiu os preceitos vitorianos.”(Buchanan, 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 192). Na mesma referência, Buchanan sustenta que, a despeito do fato de ao seu tempo (anos de crise pós-1929) as políticas keynesianas serem até mesmo eficientes, não se pode deixar de atribuir ao keynesianismo a responsabilidade por ter deslocado um arranjo moral fundamental para o funcionamento do governo e da economia. O keynesianismo teria falhado por não perceber que as regras permanentes de prudência fiscal e monetária eram necessárias para colocar a propensão ao comportamento instintivo perdulário sob controle. Estes instintos “[...] podem emergir com força suficiente para encobrir a racionalidade derivada pelo argumento [pelo argumento oriundo da teoria econômica sobre os efeitos negativos do excessivo endividamento público]” (Buchanan, 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 192).

Os códigos morais culturalmente gerados, tais como os preceitos morais vitorianos, teriam sido vulneráveis à revolução keynesiana. Se, de um lado, os instintos dentro da comunidade moral são comandados biologicamente e representam uma restrição ao comportamento não-frugal, por outro, os valores pertencentes à ordem moral são muito mais frágeis, já que não estão diretamente ligadas a fatores biológicos. A revolução keynesiana, na medida em que rompe com o código vitoriano e que oferece uma teoria legitimadora de déficits crônicos, contribui de forma decisiva para a aceitação da dívida pública como normal.

A defesa do patrimônio pessoal e familiar, do ponto de vista de Buchanan, possui raízes biológicas, isto é, a sobrevivência impõe a necessidade de autocontrole financeiro (Buchanan, 1986aBUCHANAN, J.M. (1986a). “The moral dimension of debt financing.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 191-4). Por outro lado, o descontrole do gasto público ocorre devido ao rompimento de um código pertencente a uma ordem moral. Logo, o que sustenta a frugalidade dentro da família e do próprio indivíduo é qualitativamente diferente daquilo que fundamenta a frugalidade fiscal do governo.5 5 A relação entre comportamento econômico e biológico-instintivo tem sido objeto de estudo de muitos economistas. Existe alguma evidência que corrobora esta visão de Buchanan sobre a natureza específica implícita à rigidez das regras, normas e valores na comunidade moral; ver a este respeito Hirshleifer (1987: 169-93).

Posto isso, pode-se afirmar que a dívida pública é, então, essencialmente diferente da dívida privada? Somente se pode falar em prudência na comunidade moral?

Buchanan acredita que não e afirma que “[não] existem diferenças essenciais nos preceitos para prudência fiscal aplicáveis à família e à nação.” (Buchanan, 1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 195). O problema é que a revolução keynesiana revogou as normas de prudência pública, estas sim qualitativamente diferentes das normas biologicamente determinadas da comunidade moral: ela minou qualquer base para um argumento intelectual-científico para a manutenção da disciplina fiscal (Buchanan, 1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 195-6).

3. A NATUREZA DA DÍVIDA PÚBLICA

Para Buchanan, a dívida pública tem a mesma essência da privada e, neste sentido, a prudência recomendada para o endividamento privado é extensível à esfera pública. Existe uma lógica elementar inerente ao processo permanente de endividamento. O contrato inerente à dívida constitui uma obrigação a ser quitada mais tarde; isto é, a dívida é um contrato em que uma pessoa física ou jurídica promete o pagamento de um montante de bens e serviços que serão comprados antecipadamente. Se o contrato foi feito para a compra de bens de consumo, isto é, bens que não gerarão nenhum fluxo de renda futuro, ocorrerá uma redução, no momento do fechamento do contrato, do valor presente dos ativos do devedor. A dívida, neste nível analítico, é equivalente à depreciação ex ante de um dado montante do valor do capital.

A racionalidade da dívida pública é a mesma. Se à dívida pública correspondem, do outro lado do razonete, gastos com consumo, não haverá no futuro, acréscimo no ativo nacional que equipare o acréscimo da dívida. Segundo Buchanan (1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986., 1986cBUCHANAN, J.M. (1986c). “Debt, demos, and the welfare State.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.), mesmo se a dívida pública possui alguma legitimidade, por atender às demandas da sociedade, deve-se considerar o valor presente da mesma. Isto é, ao incorrer em um débito, o governo compromete o futuro e, em fazendo isso, deve levar apreciar a conveniência econômica de tal contratação e os aspectos éticos implícitos à mesma. Por exemplo, uma dívida à qual corresponda um gasto com consumo supérfluo poderia não ser justificável do ponto de vista moral.

Se à dívida pública correspondem gastos com consumo; então há uma redução no presente do “capital público”. Mas o que vem a ser capital público?

O capital público é todo o ativo que pertence formalmente ao governo, mas que na realidade é de todos os indivíduos que compõem a ordem moral ou sociedade. Neste sentido, Buchanan (1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 198, 200, 201) sugere que seria mais adequado denominar o capital público de fundo público. Os ativos devem gerar, enquanto capital, um fluxo de renda futuro ou pode ser acrescido por meio da poupança governamental. Como norma de prudência fiscal, portanto, somente se deve enquadrar um gasto público como investimento em capital público se, e somente se, existe a possibilidade de se medir o fluxo de renda líquido de obrigações passíveis de serem criadas no futuro (Buchanan, 1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 201-3 e Buchanan, 1986cBUCHANAN, J.M. (1986c). “Debt, demos, and the welfare State.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 210-21).

Logo, da mesma forma que o capital público pertence a todos os indivíduos que compõem a sociedade, a dívida pública é também da sociedade; não existe algo que possamos denominar por dívida do governo, a rigor. A dívida pública é nossa, do público em geral; “[...] afinal, fazemo-la para nós mesmos”. (Buchanan, 1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 201).

Encobrir esta lógica fundamental da dívida pública foi, para Buchanan (1986bBUCHANAN, J.M. (1986b). “Public debt and capital formation.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 195-6), o pior legado da revolução keynesiana.

4. A AVALIAÇÃO DAS PROPOSIÇÕES DE BUCHANAN

A teoria positiva da dívida pública não corrobora alguns dos argumentos expostos acima e que se referem à reconstrução do argumento de Buchanan sobre o tema. A análise de uma política de tributação e de endividamento públicos demanda considerações mais sofisticadas sobre hipóteses de alocação intergeração e intertemporal. Por exemplo, numa economia sem altruísmo e com elevado estoque de capital per capita, um aumento da dívida pública pode aumentar o bem-estar (Diamond, 1965DIAMOND, P.A. (1965). “National debt in a neoclassical growth model.” Journal of Political Economy, 55., Atkinson & Sandmo, 1980ATKINSON, A.B. & SANDMO, A. (1980). “Welfare implications of the taxation of savings.” Economic Journal, 90. e Park, 1991PARK, N.H. (1991). “Steady state solutions of optimal taxes mixes in an overlapping generations model.” Journal of Public Economics, 46.). A despeito de tal fato, a essência da crítica de Buchanan é, no meu entender, valiosa.

Comecemos pela análise da equivalência ricardiana. Na realidade, a equivalência ricardiana ou a tese da neutralidade da dívida pública requer a hipótese de existência de algum altruísmo intergerações ou pelo menos algumas pressuposições a respeito da probabilidade de vida das gerações, crescimento populacional, um mercado de seguro de vida para evitar heranças não-intencionais e a existência de herança (Blanchard, 1985BLANCHARD, O.J. (1985). “Debt, deficits and finite horizons”. Journal of Political Economy, 93.).

O conceito de neutralidade da dívida pública (equivalência ricardiana ou equivalência Barro-Ricardo) estabelece que o lado real da economia não é afetado pela decisão do governo em aumentar receita via endividamento público ou por meio do aumento dos impostos. A criação de dívida implica que o consumo pode aumentar hoje, porém amanhã ele deverá ser reduzido, pois existirão obrigações a ser pagas. O valor presente das obrigações futuras reduz no presente o valor da riqueza exatamente no mesmo montante do pagamento de impostos que poderia ser feito no presente para financiar gastos no presente. Como a riqueza é igual nos dois casos, o equilíbrio da economia também é o mesmo.

Barro (1974BARRO, R.J. (1974). “Are government bonds net wealth?” Journal of Political Economy, 82.) supõe uma economia com todos os consumidores iguais e na qual o governo distribui o passivo da dívida de forma igualitária entre todos eles. Isto é, cada qual recebe um número igual de obrigações do governo. Considere-se a situação de um consumidor representativo em que:

W 1 = W 0 + B - V P I (1)

W1 é o estoque de riqueza depois de recebidos as obrigações da dívida, W 0 é a riqueza do consumidor antes do recebimento das obrigações, B é valor das obrigações e VPI é o valor descontado dos impostos que deverão ser elevados para o pagamento da dívida. Como sobre a dívida incidem juros, o valor presente dos impostos a serem pagos é exatamente igual ao valor da dívida, imputando-se a taxa de juros6 6 Considere-se também as hipóteses segundo as quais os juros serão pagos no período 1 e que os consumidores continuam vivos. :

V P I = ( 1 + r ) D . ( 1 + r ) - 1 = D (2)

Logo,

W 1 = W 0 (3)

Não há nenhum efeito da dívida sobre a riqueza, dado que os consumidores não encaram os títulos do governo como riqueza. Generalizando o argumento acima, suponha a hipótese de horizonte infinito; da mesma forma, a dívida continua neutra.

V P I = 0 r D E - r t d t (4)

Isto é, o valor descontado dos impostos que serão elevados para pagar a dívida é igual ao valor descontado do fluxo contínuo de juros pagos (VPI = D). Atente-se ao fato de se supor que os consumidores continuam sendo os mesmos. Isto quer dizer que eles percebem que a dívida não representa riqueza e que, portanto, B-VPI = O; aqueles que fazem a dívida pagam por ela. Entretanto, numa economia de gerações sobrepostas, o resultado é algo distinto. Se existe transferência da dívida entre gerações, a geração no período 1 poderá ter que financiar a dívida feita pela geração anterior, no período 0. Neste caso, há um aumento da riqueza da geração anterior e uma diminuição da riqueza da geração posterior. Tudo se passa como se, na equação (1)B fosse maior que VPI (B > VPI).

Para que a neutralidade funcione, é necessário estabelecer algum elo entre as gerações; neste caso, o elo mais óbvio é o altruísmo e a possibilidade, então, de existência de herança na economia, o que implicaria a transferência não somente de passivos, mas também de ativos entre gerações. Sob determinadas condições, associadas a esta hipótese, pode se sustentar a neutralidade da dívida (ver Barro, 1974BARRO, R.J. (1974). “Are government bonds net wealth?” Journal of Political Economy, 82., Carmichael, 1982CARMICHAEL, J. (1982). “On Barro ‘s theorem on debt neutrality: the irrelevance of net wealth.” American Economic Review, 72.).

A relevância empírica da equivalência ricardiana é discutível e, do ponto de vista prático, tal resultado mostra-se irrelevante (Ver Fedstein, 1976FELDSTEIN, M.S. (1976). “Perceived wealth in bonds and social security: a comment.” Journal of Political Economy, 84. e Buchanan, 1976BUCHANAN, J.M. (1976). “Barro on the ricardian equivalence theorem.” Journal of Political Economy, 84.). No entanto, o aspecto mais importante da análise positiva da neutralidade da dívida é o fato que se as hipóteses que a sustentam não prevalecem, a dívida pública pode significar um custo para as gerações futuras e riqueza líquida para as gerações presentes (isto é, uma transferência de renda intergerações). É neste caso que o problema da moral da dívida aflora.

Os aspectos morais deontológicos7 7 É importante definir-se aqui em que sentido estou usando o termo “moral”. A rigor, existem duas tradições em filosofia moral nas quais se distinguem dois tipos de julgamento ético, a saber, a consequencialista e a deontológica. Na deontologia define-se a prioridade do correto sobre o bom; no consequencialismo há a prioridade do bom sobre o correto. As teorias consequencialistas julgam ações políticas, por exemplo, a partir de suas consequências. Logo, uma política econômica será julgada, deste ponto de vista, em termos da avaliação de suas consequências. A visão deontológica implica o oposto. Isto é, uma política econômica deve ser julgada de acordo com seu caráter de correção ou não-correção e não somente por suas consequências. Por exemplo, para Nozick (1974), uma política redistributiva que agrida o direito de um cidadão é imoral. Entretanto, a distinção entre consequencialismo e deontologia nem sempre é muito fácil. Na verdade, a maior parte das teorias morais mistura os dois critérios. Aqui adotarei uma visão deontológica calcada em Rawls (1972: 284-98). Nesta referência, Rawls detalha o problema da justiça e da avaliação moral num mundo com gerações futuras. É desejável, por ser bom, que a geração presente transfira ativos para as gerações seguintes. Por outro lado, é indesejável que as gerações presentes transfiram passivos para frente, pois isto redunda na imposição de gravames no futuro. implícitos à contratação de uma dívida pública são os seguintes: (i) a dívida pública representa uma escolha feita por uma geração e que possui impacto sobre o bem-estar das gerações futuras; (ii) à dívida corresponde uma escolha feita por terceiros (i.e., a geração presente escolhe pelas gerações que surgirão no futuro). Analisarei cada aspecto separadamente.

O impacto da dívida pública sobre o bem-estar da geração presente e futura depende, é claro, do tipo de gasto que é realizado a partir da emissão de títulos do governo. Caso à dívida corresponda investimento e, portanto, um fluxo futuro de renda, o impacto sobre o bem-estar é distinto daquele que surgiria de uma dívida gerada para consumo improdutivo. Investimentos do governo podem, dependendo da relação entre taxa de juros e taxa de crescimento, aumentar o estoque de capital de steady state e, em consequência, as gerações futuras poderão até mesmo desfrutar de maior consumo. Neste sentido, se à dívida não corresponde uma queda do bem-estar das gerações futuras, ela não representa, portanto, um problema moral. A transferência de benefícios para o futuro, caso se parta de uma racionalidade hedonista, é um bem, não um mal.

Esse argumento pode ser falacioso. Na verdade, do ponto de vista dinâmico, uma dívida pública pode entrar numa trajetória Ponzi, tornando-se explosiva. O problema moral volta a ser colocado. No caso de uma trajetória explosiva da dívida, as gerações presentes sistematicamente transferem o ônus da dívida para as gerações futuras.

O problema da dívida pública e, principalmente, da dívida explosiva, residiria numa falha de racionalidade trivial, qual seja, a miopia. Do ponto de vista cognitivo, a irrelevância da equivalência ricardiana se revela no fato de que não existe uma diferença entre financiamento via aumento de impostos e contratação de dívida. Todavia, o aumento de impostos representa um custo imediato imposto à geração presente, enquanto a criação de dívida não aparece como custo presente, mas como custo virtual. No caso de uma comunidade moral, como uma família, a dívida privada representa um custo imediato. O horizonte de contratação de dívida neste caso é finito. A dívida pública é, a princípio, feita por um “agente” que possui horizonte infinito, qual seja, o governo.

A distinção hayekiana-buchaniana entre comunidade moral e ordem moral mostra-se aqui extremamente relevante. Na comunidade moral, sobrevivência biológica impõe um horizonte cognitivo muito definido, qual seja: o enforcement da lei e a identificação da dívida com uma unidade homogênea como um indivíduo ou uma família, faz com que ela represente factualmente, aos olhos daqueles que compõem a comunidade moral, um passivo com todos os riscos que se lhe impõem. No caso da ordem moral, calcada em regras e normas não-biológicas, há uma dissonância cognitiva na percepção da dívida pública como uma dívida da coletividade. Buchanan está correto ao afirmar que a dívida pública e a dívida privada possuem a mesma natureza; o problema implícito ao segundo tipo de dívida e que, neste sentido, as diferencia, está na percepção cognitiva da dívida pública enquanto passivo do público em geral. Não existe dívida pública ou dívida do governo, mas sim dívida da sociedade, passivo, gravame social.

Na medida em que as gerações futuras herdam passivo público, emerge a dimensão moral da dívida. A transferência de um mal não é desejável caso se suponha que os indivíduos queiram sempre aumentar seu bem-estar.

Com relação ao segundo tipo de argumento moral, se a dívida é uma escolha feita por terceiros e que possui impacto sobre o bem-estar de terceiros, então a decisão de criação de tal passivo implica também um problema de ordem moral. No entanto, deste ponto de vista, a argumentação é mais frágil. Na comunidade moral típica, a família, os pais tomam decisões pelas gerações futuras, decisões que afetarão o bem-estar das mesmas. Isto é perfeitamente admissível, do ponto de vista moral, dado que as gerações futuras ainda, enquanto jovens ou crianças sem autonomia, não decidem por conta própria.8 8 Ver, sobre comunidade moral e autonomia das crianças, Gruen (1994: 343-4). Logo, isto não encerra nenhuma imoralidade, a princípio.

No entanto, na ordem moral, isto é, na sociedade como um todo, esse argumento dificilmente se aplica. A dívida pública, se ela tem algum impacto negativo sobre o bem-estar das gerações futuras, corresponde a uma “escolha” das gerações presentes que nem sempre refletem algum a priori moral altruísta.

A dívida pública surge de um processo de escolha que, ao contrário do que os economistas neoclássicos insistem em afirmar, não envolve, de fato, decisões entre gerações como se fossem estas modeladas tal como agentes econômicos ordinários. Tampouco é o governo um maximizador da virtual função de bem-estar social que quando gera um processo de endividamento crônico e explosivo é classificado como “irracional”. O cerne do problema moral da dívida pública está na teoria do Estado implícita à análise do processo político feita pela economia constitucional (Silva, 1996SILVA, M.F.G. (1996). “Economia constitucional e public choice.” Relatório de Pesquisa, Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas-EAESP/ FGV-SP).

5. A ECONOMIA POLÍTICA DA DÍVIDA PÚBLICA

Buchanan (1991BUCHANAN, J.M. (1991). The Economics and the Ethics of Constitutional Order. Ann Arbor, University of Michigan Press.: 3-4) e Buchanan & Brennan (1989BUCHANAN, J.M. (1989). “Predictive power and the choice among regimes.” In TOLLISON, R.D. & VANBERG, VJ. (orgs.). Explorations into Constitutional Economics . College Station, Texas A&M University Press.: 4-5) definem economia constitucional (EC) ou economia política constitucional como um ramo específico do Programa de Pesquisa da Escolha Pública (EP). A EC é o estudo da escolha entre conjuntos de regras e leis alternativos que podem gerar resultados econômicos, em termos de eficiência e bem-estar, diferentes.

Seguindo a concepção original de North & Thomas (1973NORTH, D.C. & THOMAS, R.P. (1973). The Rise of the Western World. Cambridge, Cambridge University Press.), Buchanan (1986dBUCHANAN, J.M. (1986d). “The related but distinct ‘sciences’ of economics and political economy.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 31-4) define a constituição e as instituições como as regras do jogo econômico e político, regras que representam restrições ao comportamento dos agentes, tanto na esfera privada como na pública. Estas restrições criam sistemas de incentivo que alteram os payoffs associados às ações dos agentes. Os agentes econômicos são modelados como self-seeking e definidos a priori como caçadores-de-renda.9 9 Por exemplo, uma explicação para o descontrole fiscal dos estados no Brasil dos anos 80 e 90 pode estar na estrutura perversa de incentivos que emerge dentro de nosso pacto constitucional-federativo que impele as unidades da federação a um comportamento perdulário e ao endividamento explosivo de seus bancos estaduais. Ver, também sobre o problema federativo brasileiro, dois importantes trabalhos sobre o tema: Hilbrecht & Rocha (1996) e Hilbrecht (1995).

As teorias da PC e da EC modelam os indivíduos e grupos no mercado político como agentes econômicos ordinários, cujo único objetivo é a busca de riqueza pessoal, de um fluxo garantido de renda, de propinas, de poder ou prestígio. Pode-se afirmar que quaisquer que sejam os motivos particulares do agente público, na sua função objetivo existe um único predicado: maximização da utilidade privada (ver Gwartney & Wagner, 1988GWARTNEY, J. & WAGNER, R. (1988). Public Choice and Constitutional Economics. Greenwich, JAI Press. e Silva 1996SILVA, M.F.G. (1996). “Economia constitucional e public choice.” Relatório de Pesquisa, Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas-EAESP/ FGV-SP).

As teorias econômicas do processo político em geral, e a EC e a EP em particular, têm se preocupado em qualificar o processo ou mercado político, numa democracia constitucional, como intrinsecamente imperfeito. A EP e a EC indicam que existem dois elementos que se colocam por detrás do processo político: (i) a necessidade de oferta de bens públicos em geral quando a internalização de externalidades não se realiza dentro do mercado e a alocação política dos recursos orçamentários do governo (transferências de renda dentro da sociedade e entre os níveis de governo), e (ii) se, por um lado, o processo político tem sua razão de ser calcada na necessidade de corrigir falhas de mercado, por outro, ele mesmo não é perfeito.

Nas democracias constitucionais, os eleitos podem ser encarados como consumidores dos serviços de políticos, que se colocam como ofertantes no processo político. Os eleitores escolhem seus representantes e estes, de acordo com seus programas, criam ou administram agências públicas geridas por burocratas para atender direta e indiretamente às demandas sociais.

No mercado político, os políticos eleitos também usam sua representatividade para legislar, para produzir, oferecer as leis que podem estar ligadas à alocação política dos recursos econômicos escassos. Analogamente à estrutura de uma organização qualquer, o governo nada mais é do que um conjunto de empreendedores inovadores (os políticos do legislativo) e de gerentes que implementam o processo produtivo (os burocratas). Neste sentido, o estudo do estado e do governo está repleto de problemas de agência, tanto do ponto de vista da relação entre os consumidores-eleitores e produtores-políticos, como da relação interna ao governo entre os empreendedores-legisladores e os gerentes-burocratas: no mercado do voto e no mercado interno do governo existem as imperfeições de mercado, como informação assimétrica e controle do(s) principal(is) sobre a ação oculta do(s) agente(s).

Outras imperfeições aparecem no mercado político. Downs (1957DOWNS, A (1957). An Economic Theory of Democracy. Nova York, Harper & Row.) analisa o processo de escolha do eleitor no mercado político. Segundo ele, o eleitor, quando decide o voto, tenta analisar qual será o custo e o beneficio privado embutidos na eleição de um determinado candidato; o eleitor tenderá a apoiar aquele político que maximiza o seu retorno pessoal. Este retorno pessoal pode ser medido em termos de oferta de bens públicos, transferências de renda ou qualquer tipo de alocação política de recursos econômicos que já se encontram ou não sob tutela jurídica do governo. Mas a racionalidade do eleitor não é perfeita devido a assimetrias de informação e ao custo de obtê-la. O eleitor percebe que seu voto individual pode ter pouca importância do ponto de vista do processo de escolha coletiva e, desta forma, possui racionalmente pouco incentivo para obter mais informação sobre os candidatos e seus programas de tal forma a fazer uma escolha mais bem informada (o efeito da ignorância racional).

O efeito da ignorância racional explica por que razão muitas pesquisas revelam que os eleitores pouco sabem a respeito dos programas dos partidos e dos políticos em geral. Neste caso, o mercado político mostra-se mais imperfeito, do lado da demanda, do que o mercado de bens e serviços ordinário. O consumidor de produtos em geral possui mais incentivo para procurar informações sobre os bens que deseja adquirir; se ele compra um produto de má qualidade, o custo de oportunidade associado à sua ação de consumo é elevado, dado que ele poderia ter comprado, com um estoque maior de informação coletada e com pouco custo de informação, um produto melhor. Por outro lado, o eleitor sabe que pouco conta seu voto do ponto de vista coletivo. O risco de sua escolha ser inadequada não justifica a dispendiosa busca de informação sobre um político ou partido e, neste sentido, o custo de oportunidade associado a uma escolha inadequada é muito pequeno.

Esta falha inerente ao processo político abre espaço para as atividades ocultas, pouco transparentes, que caracterizam os processos de escolha pública, em especial a atividade rent-seeking, típica dos grupos de interesse. O eleitor se coloca diante do político que foi eleito e recebeu seu voto como um principal com poucas condições de estabelecer algum mecanismo contratual que crie incentivos de tal forma a controlar a ação do agente-legislador.

Com a ignorância racional aparece também a possibilidade de logrolling ou troca de votos dentro do Congresso. Como parte do processo de troca de votos pode surgir a produção de leis clientelísticas ou do tipo pork barrel. Este tipo de ato de legislar implica a criação de leis que trazem benefícios regionais, locais ou pessoais, de acordo com os grupos que o político representa, às custas de recursos do orçamento federal ou central. Vários pacotes de políticas clientelísticas podem ser negociados no Congresso e isso geralmente implica um resultado extremamente ineficiente e irracional do ponto de vista das finanças públicas e do bem-estar.10 10 Existe alguma evidência desta ineficiência causada por negociações do tipo pork barrel nos orçamentos no Brasil a partir de 1989 e principalmente, no chamado “escândalo do orçamento”; ver Silva (1995c). Para os Estados Unidos ver Pear (1990: Al6) e The New York Times, 23 de março de 1986, p. E5. Com relação ao fato de geralmente trocas de voto por políticas clientelísticas gerarem ineficiência e perda de bem-estar, ver Buchanan & Tullock (1962: 265-81)

Esta concepção do processo político e do Estado que eu chamaria de realista, em oposição à idealista, própria à teoria neoclássica das finanças públicas (minha referência aqui é Musgrave & Musgrave, 1973MUSGRAVE, R.A. & MUSGRAVE, P.B. (1973). Public Finance in Theory and Practice. Nova York, MacGraw-Hill.), é complementada por Olson (1965OLSON, M. (1965). The Logic of Collective Action. Cambridge, Harvard University Press.). Segundo esta referência, os políticos e burocratas representam seus interesses dentro do Estado e agentes privados se organizam coletivamente para agir sobre a máquina governamental para conseguir algum tipo de alocação política de recursos econômicos. Estas alocações, geralmente representadas por transferências de renda, são acompanhadas de conflitos entre diversos grupos de interesse que competem entre si para garantir maiores benefícios.

Olson (1982OLSON, M. (1982). The Rise and Decline of Nations. New Haven, Yale University Press.) observa que a competição entre os grupos de interesse pode criar um conflito distributivo agudo dentro do estado. Nos Estados Unidos, por exemplo, esta competição por renda acentuou-se muito com o Welfare State. Tudo leva a crer que também em muitos países em que o controle sobre o orçamento público é frágil, a competição entre estes grupos gerou situações de estagflação e de endividamento público crescente (Olson, idem).

O núcleo do argumento de Olson (1965OLSON, M. (1965). The Logic of Collective Action. Cambridge, Harvard University Press.) pode ser resumido da forma que segue. Os grupos de interesse fazem pressão no sentido de obter bens públicos e transferências em geral. Estes grupos de pressão são separados em três: (i) os privilegiados, (ii) os intermediários e (iii) os latentes. Estes grupos podem ser classificados, em geral, como pequenos, médios e grandes, respectivamente. Um grupo privilegiado possui pelo menos um agente que é beneficiado pelo bem público de tal forma que estaria, se necessário, disposto a oferecê-lo privadamente. Um grupo intermediário é composto por um número tal de membros que cada um pode estar ciente das ações dos outros. De acordo com Olson (idem), a cooperação poderá emergir neste tipo de grupo com o passar do tempo; estabelecer-se-iam as bases para a cooperação e para a organização dentro do grupo. Neste ponto o argumento de Olson aproxima-se da ideia de evolução da cooperação apresentada por Axerold (1984AXELROD, R. (1984). The evolution of cooperation. New York, Basic Books.): através de uma estratégia tit-fortat a ação coletiva surgiria neste grupo.

O outro tipo de grupo, o latente, é composto por um número grande de agentes. Este tipo de grupo não existe enquanto tal, dado que não emerge a cooperação entre os agentes. Isto não quer dizer que num grupo latente não existam interesses em comum. Por exemplo, é evidente que os desempregados em um país possuem interesses em comum; no entanto, suas ações são descoordenadas e difusas. O mesmo pode ser dito a respeito dos consumidores. A possibilidade de emergência de cooperação neste tipo de grupo é remota, pois os custos de transação envolvidos são elevados, dado o número grande de agentes pertencentes o grupo.

Schumpeter (1942SCHUMPETER, J.A. (1942). Capitalism, Socialism, and Democracy. Nova York, Harper and Brothers.) destaca que a democracia representativa se desvia do chamado “interesse público” devido à ação dos grupos de pressão e dos políticos, que agem de acordo com seus fins privados. Olson (1982OLSON, M. (1982). The Rise and Decline of Nations. New Haven, Yale University Press.) pensa da mesma forma. De acordo com ele, há grupos que podem ser denominados por coalizões distributivas. Estes grupos teriam como objetivo a transferência de renda dentro da sociedade feita por meio de políticas públicas como o controle tarifário, subsídios, garantias de preço e outros tipos de desvios implícitos e explícitos. A competição entre estes grupos provocaria a estagnação das economias na medida em que engendraria alocações improdutivas de recursos escassos. A rigor, nos termos estabelecidos em Buchanan, Tollison & Tullock (1980BUCHANAN, J.M., TOLLISON, R. & TULLOCK, G. (orgs.) (1980). Toward a Theory of The Rent-Seeking Society. College Station, Texas A&M University Press.), a atividade destes grupos seria tipicamente rent-seeking.

Do ponto de vista metodológico, os grupos de pressão ou os caçadores-de-renda que competem entre si por políticas redistributivas podem ser modelados como grupos empresariais, sindicatos, funcionários públicos, estados de uma federação, municípios, distritos etc. A visão econômica da política acima apresentada comporta qualquer corte metodológico. É importante notar, no entanto, a ligação entre a ação de grupos de pressão, o orçamento público (elaboração orçamentária e gestão fiscal) e desequilíbrio fiscal crônico (ver Silva, 1995bSILVA, M.F.G. (1995b). “O processo orçamentário no Brasil.” Relatório de Pesquisa, Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas-EAESP/FGV-SP e 1995c).

6. A RELAÇÃO ENTRE RENT-SEEKING, DESEQUILÍBRIO FISCAL E INCENTIVOS: UM EXEMPLO SIMPLES

Considere a existência de uma federação composta por dois estados, A e B. Estes dois estados se confrontam com a possibilidade de transferir renda do governo federal para sua direção. O sistema de payoffs que descreve o jogo em questão é o seguinte:


Jogo: Restrição Orçamentária Federal Fraca

Nesta situação, suponha que o poder executivo federal é fraco - por exemplo, ele depende de favores para que deputados estaduais, que demandam legislação pork barrel, apoiem o governo no Congresso. Considere igualmente a hipótese segundo a qual existe algum tipo de mecanismo constitucional-institucional que legitima a transferência de renda dentro da federação (por exemplo, como o fundo de participação dos municípios no Brasil) e que não há controle fiscal; isto é, a restrição orçamentária federal é fraca.

No caso do jogo acima, se o estado A não tenta transferir renda na sua direção e B transfere, ele perde muito nos termos dos payoffs estabelecidos. Aqui se pode afirmar que o governo federal tenderia a satisfazer as demandas clientelísticas de B às expensas de A. Por outro lado, se A transfere renda e B também, o resultado para A continua sendo melhor do que não transferir. O mesmo vale para B. Ambos os estados, se agirem racionalmente, optarão por competir por transferências de renda.

O primeiro aspecto importante que surge deste exemplo simples é que existe um grande incentivo para que os estados tentem competir por transferência de renda (rent-seeking competitivo). Logo, é racional, do ponto de vista individual, a atividade rent-seeking.

Em segundo lugar, o conjunto de payoffs tem implícita a hipótese de que a restrição orçamentária do governo é fraca. Considere-se, por exemplo, a possibilidade de os estados sacarem dinheiro a descoberto de seus orçamentos sabendo que o governo federal cobrirá, de uma forma ou de outra, o excesso de gastos.

Em terceiro lugar, se o governo federal parte, antes da competição rent-seeking entre os estados, de um orçamento equilibrado, depois das transferências terem se realizado ele estará, coeteris paribus, incorrendo em déficit.

Existe uma conexão entre os sistemas de incentivos e as regras do jogo econômico, quais sejam, as instituições e a constituição. O que deve ser discutido, portanto, é a origem, considerando ainda o exemplo simples acima, do sistema de payoffs.11 11 Neste sentido, as instituições, por gerarem sistemas de incentivo, podem indiretamente influenciar a alocação de recursos econômicos em atividades produtivas, criadoras de riqueza, e atividades tipicamente improdutivas, como o rent-seeking. Ver, a este respeito, Krueger (1974), Tollison (1984) e Baumol (1990). Uma determinada estrutura institucional-constitucional impele os estados-agentes a optar, agindo como agentes econômicos racionais, por uma atividade rent-seeking, cujo resultado coletivo pode colocar a economia numa situação sub-ótima.

Isso é muito importante do ponto de vista da análise dos aspectos morais da dívida pública. Os economistas neoclássicos e keynesianos em geral, por supor um policy-maker supra-racional, benevolente e altruísta e, por vezes, agentes em geral (estados, grupos de pressão) com iguais predicados, desconsideram a possibilidade de a economia operar estruturalmente, adaptativamente, aquém de uma situação de ótimo paretiano (ver, por exemplo, Buchanan, 1986cBUCHANAN, J.M. (1986c). “Debt, demos, and the welfare State.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 210-21, e Buchanan, 1986dBUCHANAN, J.M. (1986d). “The related but distinct ‘sciences’ of economics and political economy.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 222-8). A EC e A EP não partem do pressuposto analítico segundo o qual os agentes possuem um comportamento moralmente neutro; pelo contrário, o pressuposto moral-egoístico, e não simplesmente analítico-egoístico, é assumido de pronto no que se refere à função objetivo dos agentes privados e públicos.12 12 Esta discussão exige muito mais espaço do que o disponível aqui e, de qualquer forma, fugiria do objeto principal neste momento. No entanto, para maiores detalhes, sugiro que se veja Buchanan (1975). Note-se também que, por supor um agente econômico, privado ou público, com uma racionalidade rent-seeking, e não somente profit-seeking, a EC e a EP tornam-se mais gerais do que a teoria neoclássica das finanças públicas. Isto é, inclusive os agentes econômicos podem influenciar o processo político no sentido de adquirir direitos de monopólio, subsídios e toda sorte de privilégios que, embora produzam um resultado coletivo indesejado, expressam o resultado de uma ação racional, em que o objetivo do agente é, diante da sanção da lei, maximizar riqueza de qualquer forma, não somente por meio de atividades produtivas, profit-seeking.

Agentes que não são altruístas a priori não necessariamente agirão corretamente (correção moral) com respeito à criação de dívida pública. Portanto, o resultado coletivo de suas ações pode redundar numa imoralidade, no sentido deontológico do conceito.

Mas na ordem moral ou constitucional, a percepção desta imoralidade é diluída diante dos sistemas de incentivo que produzem, em última instância, as ações individuais ou grupais que redundam na criação de gravame futuro. As instituições representam o ambiente que as sociedades criam, consciente ou inconscientemente, para sobreviver; elas são tecnologias sociais.13 13 Este é outro ponto importante que, todavia, foge ao meu objeto. A questão da evolução cultural e econômica (e sua relação com as instituições) vem sendo estudada por economistas e antropólogos. Existem basicamente duas correntes evolucionistas “austríacas”, a Hayekiana e a de Buchanan. Hayek defendia a hipótese segundo a qual o surgimento de determinadas instituições, como o mercado, deu-se por um processo lento, aleatório-experimental e relativamente inconsciente de evolução cultural. O constitucionalismo-contratacionista de Buchanan supõe que, a despeito do fato de determinadas instituições, inclusive o mercado e a democracia, terem sido resultado de um processo descentralizado e lento de evolução cultural, elas podem ser reformadas de forma consistente dentro do processo político. Para Hayek, não existe sentido na reforma constitucional; diante dos alegados efeitos negativos da revolução keynesiana, a posição Hayekiana é cética. Isto é, não existe a possibilidade de reconstrução artificial de valores e normas. Buchanan, por outro lado, considera a possibilidade e a racionalidade da reforma constitucional. Ver, para maiores detalhes sobre este tema, Vamberg (1994: 195-207). Neste sentido instituições inadequadas podem levar até mesmo uma sociedade ao fracasso adaptativo (ver Vamberg, 1994: 11-124). Uma economia com inflação crônica e endividamento crescente pode ser considerada o produto de um insucesso adaptativo devido a um desenho institucional que cria incentivos incompatíveis com resultados coletivos eficientes.

Diante da questão moral da dívida, portanto, somente se coloca a possibilidade da reforma institucional e constitucional. Este é o cerne da moral da dívida pública; este problema ético exige uma escolha constitucional ou escolha entre conjuntos alternativos de regras do jogo econômico e político.

Comentando sobre os alegados efeitos negativos da revolução keynesiana sobre os preceitos morais vitorianos de ordem fiscal, Buchanan afirma que “[...] uma erosão observada das normas de restrição moral pode ser corrigida, pelo menos em parte, pela adoção deliberada e sanção de restrições comportamentais. Se, nas mais variadas atuações que temos como public choosers (como eleitores, membros de partidos políticos, como políticos eleitos ou como burocratas), nós não estamos limitados por nenhuma sanção moral, contra a acelerada destruição de nosso estoque de capital por meio de financiamento deficitário de consumo público, devemos considerar as regras institucionais mais formais dentro das quais tomamos decisões públicas. Não é de forma alguma contraditório ou inconsistente reconhecer que as regras sob as quais nós escolhemos podem não ser ótimas enquanto, ao mesmo tempo, nós agimos dentro destas mesmas regras de acordo com normas racionais de maximização de utilidade. Dada a ausência de restrições morais e as visivelmente ineficazes regras de decisão fiscal, o comportamento racional, por parte dos public choosers assegura o regime de déficits fiscais crescentes e permanentes” (Buchanan, 1986eBUCHANAN, J.M. (1986e). “Economists on the deficit.” In BUCHANAN, J.M. Liberty, Market and State. Nova York, New York University Press, 1986.: 193-4).

Se, por exemplo, governadores de estado podem, dentro da lei e respeitando a constituição, endividar de forma explosiva as regiões federativas governadas por eles, suas ações em si mesmas não encerram nenhuma imoralidade. No entanto, a consequência de suas ações implica um problema moral deontológico, pois o endividamento persistente e crescente dos estados traduz-se, como observou-se acima, na transferência de um ônus para as gerações futuras.

A reforma constitucional, portanto, enquanto um processo de escolha de restrições ao comportamento dos agentes públicos e privados (que podem formar grupos de interesse e pressão rent-seeking), é um processo de escolha moral que envolve alguma noção de justiça e injustiça.

7. CONCLUSÃO: UMA AGENDA DE PESQUISA PARA O BRASIL

O objetivo deste artigo foi mostrar que, do ponto de vista normativo, a dívida pública envolve problemas de escolha moral. Dentro de uma abordagem que pode ser definida num sentido amplo como neo-institucionalista e, com mais precisão, como oriunda dos campos da EC e da EP, procurei precisar as ligações entre a dívida pública, sua dimensão moral e as estruturas de incentivos que emergem das instituições. Desta forma, indiquei que o estabelecimento de regras de prudência fiscal exige a mudança não das pessoas, da racionalidade dos agentes públicos ou privados, mas sim das regras do jogo que criam incentivos para o comportamento dos indivíduos e grupos. A escolha entre aparatos institucionais e constitucionais é, portanto, em termos das consequências que encerra, uma escolha moral.

Com os argumentos apresentados neste artigo não quis negar os resultados, nem a importância das teorias e modelos positivos que tratam da dívida pública e de seus impactos. Ao contrário, minha intenção foi alertar para a existência de implicações de natureza moral que emergem da análise da dívida pública e que estes problemas devem ser considerados pelos economistas e pela sociedade. Tampouco pretendi associar todos os problemas de endividamento público ao comportamento rent-seeking, à flacidez das regras fiscais ou a falhas de governo.14 14 Existem situações, é evidente, como choques exógenos e até mesmo erros de política econômica, que podem criar crise fiscal. Por exemplo, este é o caso da crise fiscal do Estado na Áustria e Alemanha no período que sucedeu a Primeira Grande Guerra. No entanto, como observa Schumpeter (1918: 13l), a crise fiscal do estado em geral e, particularmente nos dois países citados no referido período, é uma manifestação de um fenômeno sociológico. A dificuldade de se promover o ajuste fiscal, diante de uma crise de endividamento com perdas e danos de guerra, indicaria a existência de um processo de natureza política por detrás do fenômeno em questão: a negociação interna diante da necessidade do esforço do ajuste fiscal pode não surgir devido ao embate das forças políticas e dos grupos organizados. A existência de resistência ao ajuste fiscal pode, neste sentido, redundar em outros tipos de solução para o problema, como crises prolongadas que redundam em hiperinflações. Historicamente, por exemplo, sabe-se que Alemanha e Áustria mergulharam numa profunda crise nos anos pós-1918. Apenas sugiro aqui que, para algumas situações, e sem dúvida nenhuma uma crise fiscal persistente e estrutural é um exemplo, a análise política da dívida pode ser útil.

Por exemplo, no Brasil já existe há algum tempo um relativo - e alegado - consenso em torno da necessidade de um ajuste fiscal do Estado, em todos os níveis. Entretanto, tal ajuste é sistematicamente postergado, existindo problemas de contenção de gastos e de endividamento em vários estados e municípios, problemas estes que, segundo vários analistas, estão na raiz da crise fiscal do Estado no Brasil (ver, a este respeito, Rezende, 1995REZENDE, F. (1995). “Federalismo fiscal no Brasil.” Revista de Economia Política, 59.; “Half-empty or half-full?”, The Economist, 29/04/1995ECONOMIST, THE (1995), 29 de abril.: 3-14 e The Economist, 20/01/1996ECONOMIST, THE (1996), 20 de janeiro.: 15 e 41-2). Será, diante de tal quadro, o policy maker irracional? Ou o problema está em alguma falha de racionalidade dos políticos e burocratas brasileiros?15 15 O mesmo tipo de fenômeno ocorreu nos Estados Unidos durante os anos 80. Ver, a respeito disto e da tentativa fracassada de reforma institucional-constitucional com a lei Gramm-Rudman-Hollings, Schier (1992).

Como procurei mostrar, num exemplo simples, os incentivos, dada uma tecnologia institucional, podem motivar um comportamento absolutamente racional em nível individual ou de coalizões que redundam em estados de mundo aquém do ótimo paretiano. Logo, o problema não está no sistema de incentivos em si ou na matriz de payoffs como no jogo ilustrado acima, mas sim nas instituições - incluída aí a Constituição.

Portanto, como a dívida pública e a crise fiscal do estado brasileiro, em todas as suas esferas, não são fatos desprezíveis, tanto do ponto de vista econômico stricto sensu, como da economia política, urge a análise dos temas citados de acordo com essa perspectiva reformista. Na academia nacional, há uma carência de estudos em economia política aplicada, que poderiam fornecer subsídios à análise do tema. Com isto, poder-se-ia oferecer insumos para uma reforma constitucional e institucional que garanta um sistema de incentivos tal a institucionalizar, de facto e não apenas de jure, a estabilidade de longo-prazo e a prudência fiscal necessárias para evitar algum tipo de injustiça para com nossos descendentes.

Por exemplo, o próximo passo da pesquisa que originou este artigo é a coleta de algumas evidências empíricas que relacionam desordem fiscal, produção de legislação pork barrel e ineficácia no processo orçamentário no Brasil após a Constituição de 1988.

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  • WEBBER, C & WILDDAVSKY, A. (1986). A History of Taxation and Expenditure in the Western World. Nova York, Simon & Schuster.
  • 1
    Ver, a respeito desta visão de agente econômico, Silva (1996SILVA, M.F.G. (1996). “Economia constitucional e public choice.” Relatório de Pesquisa, Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas-EAESP/ FGV-SP). Ações rent-seeking podem ser definidas, seguindo Rowley, Tollison & Tullock (1988ROWLEY, C.K., TOLLISON, R.D. & TULLOCK, G. (1988). The Political Economy of Rent-Seeking. Boston, Kluewer Academic Press.), como aquelas implementadas por indivíduos ou grupos de interesse e pressão no sentido de redirecionar uma política pública (ou o orçamento público) de tal forma a obter, direta ou indiretamente, alguma transferência de renda. Exemplos clássicos são as políticas de preço sustentado na agricultura, quotas e tarifas no comércio e realocações de verbas orçamentárias ano-a-ano na elaboração do orçamento e na sua execução.
  • 2
    É importante observar que o termo keynesiano encerra para Buchanan e Wagner muito mais uma corrente ideológica do que tão somente acadêmica stricto sensu. Os keynesianismo, deste ponto de vista, constitui uma visão de mundo que legitima a existência de déficits e da dívida pública em detrimento de regras constitucionais e infraconstitucionais de conduta fiscal rígida que deveriam ser adotadas pelo governo. Ver Buchanan (1978BUCHANAN, J.M., WAGNER, R.E. & BURTON, J. (1978). “The consequences of Mr. Keynes.” In BUCHANAN, J.A. Constitutional Economics. Oxford, Basil Blackwell.: 92-5).
  • 3
    Sobre o evolucionismo Hayekiano e sua influência sobre Buchanan e outros economistas, ver Vanberg (1994VANBERG, V.J. (1994). Rules and Choice in Economics. Londres, Routledge.: 60-106). Nesta referência encontra-se uma excelente descrição dos conceitos comunidade moral e ordem moral.
  • 4
    Sobre a emergência de instituições que garantiriam disciplina fiscal na Inglaterra ver Silva (1995aSILVA, M.F.G. (1995a). “A economia política da corrupção e o orçamento.” Relatório de Pesquisa, Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas-EAESP/FGV-SP, pp. 19-26 e 1995bSILVA, M.F.G. (1995b). “O processo orçamentário no Brasil.” Relatório de Pesquisa, Núcleo de Pesquisas e Publicações da Fundação Getúlio Vargas-EAESP/FGV-SP: 87) e Webber & Wilddavsky (1986WEBBER, C & WILDDAVSKY, A. (1986). A History of Taxation and Expenditure in the Western World. Nova York, Simon & Schuster.).
  • 5
    A relação entre comportamento econômico e biológico-instintivo tem sido objeto de estudo de muitos economistas. Existe alguma evidência que corrobora esta visão de Buchanan sobre a natureza específica implícita à rigidez das regras, normas e valores na comunidade moral; ver a este respeito Hirshleifer (1987HIRSHLEIFER, J. (1987) Economic Behaviour in Adversity. Chicago, The University of Chicago Press.: 169-93).
  • 6
    Considere-se também as hipóteses segundo as quais os juros serão pagos no período 1 e que os consumidores continuam vivos.
  • 7
    É importante definir-se aqui em que sentido estou usando o termo “moral”. A rigor, existem duas tradições em filosofia moral nas quais se distinguem dois tipos de julgamento ético, a saber, a consequencialista e a deontológica. Na deontologia define-se a prioridade do correto sobre o bom; no consequencialismo há a prioridade do bom sobre o correto. As teorias consequencialistas julgam ações políticas, por exemplo, a partir de suas consequências. Logo, uma política econômica será julgada, deste ponto de vista, em termos da avaliação de suas consequências. A visão deontológica implica o oposto. Isto é, uma política econômica deve ser julgada de acordo com seu caráter de correção ou não-correção e não somente por suas consequências. Por exemplo, para Nozick (1974NOZICK, R. (1974). Anarchy, State, and Utopia. Oxford, Basil Blackwell.), uma política redistributiva que agrida o direito de um cidadão é imoral. Entretanto, a distinção entre consequencialismo e deontologia nem sempre é muito fácil. Na verdade, a maior parte das teorias morais mistura os dois critérios. Aqui adotarei uma visão deontológica calcada em Rawls (1972RAWLS, J. (1972). A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press.: 284-98). Nesta referência, Rawls detalha o problema da justiça e da avaliação moral num mundo com gerações futuras. É desejável, por ser bom, que a geração presente transfira ativos para as gerações seguintes. Por outro lado, é indesejável que as gerações presentes transfiram passivos para frente, pois isto redunda na imposição de gravames no futuro.
  • 8
    Ver, sobre comunidade moral e autonomia das crianças, Gruen (1994GRUEN, L. (1994). “Animals”. In SINGER, P. (org.) A Companion to Ethics. Oxford, Basil Blackwell.: 343-4).
  • 9
    Por exemplo, uma explicação para o descontrole fiscal dos estados no Brasil dos anos 80 e 90 pode estar na estrutura perversa de incentivos que emerge dentro de nosso pacto constitucional-federativo que impele as unidades da federação a um comportamento perdulário e ao endividamento explosivo de seus bancos estaduais. Ver, também sobre o problema federativo brasileiro, dois importantes trabalhos sobre o tema: Hilbrecht & Rocha (1996HILBRECHT, R.O. & ROCHA, F.P. (1996). “Monetary and fiscal policy coordination under federalism: long-rum limits on the Brazilian states deficits.” Manuscrito. FEA-USP.) e Hilbrecht (1995HILBRECHT, R.O. (1995). “A political economy model of monetary policy: decentralized decision-making and competition for seignioriage.” In Anais do XXIII Encontro Nacional da ANPEC, Salvador, Bahia, Brasil.).
  • 10
    Existe alguma evidência desta ineficiência causada por negociações do tipo pork barrel nos orçamentos no Brasil a partir de 1989 e principalmente, no chamado “escândalo do orçamento”; ver Silva (1995c). Para os Estados Unidos ver Pear (1990PEAR, R. (1990). “Behind the dealing on deficit reduction, deals that could swell the deficit.” The New York Times, 22 de outubro.: Al6) e The New York Times, 23 de março de 1986NEW YORK TIMES (1986), 23 de outubro., p. E5. Com relação ao fato de geralmente trocas de voto por políticas clientelísticas gerarem ineficiência e perda de bem-estar, ver Buchanan & Tullock (1962BUCHANAN, J.M. & TULLOCK, G. (1962). The Calculus of The Consent. Ann Arbor, The University of Michigan Press.: 265-81)
  • 11
    Neste sentido, as instituições, por gerarem sistemas de incentivo, podem indiretamente influenciar a alocação de recursos econômicos em atividades produtivas, criadoras de riqueza, e atividades tipicamente improdutivas, como o rent-seeking. Ver, a este respeito, Krueger (1974KRUEGER, A.O. (1974). “The political economy of rent-seeking.” American Economic Review, 64.), Tollison (1984TOLLISON, R.D. (1982). “Rent-seeking.” Kyklos, 35.) e Baumol (1990BAUMOL, W. (1990). “Entrepreneurship: productive, unproductive, and destructive.” Journal of Political Economy, 88.).
  • 12
    Esta discussão exige muito mais espaço do que o disponível aqui e, de qualquer forma, fugiria do objeto principal neste momento. No entanto, para maiores detalhes, sugiro que se veja Buchanan (1975BUCHANAN, J.M. (1975). The limits of liberty: between anarchy and Leviathan. Chicago, The University of Chicago Press.). Note-se também que, por supor um agente econômico, privado ou público, com uma racionalidade rent-seeking, e não somente profit-seeking, a EC e a EP tornam-se mais gerais do que a teoria neoclássica das finanças públicas. Isto é, inclusive os agentes econômicos podem influenciar o processo político no sentido de adquirir direitos de monopólio, subsídios e toda sorte de privilégios que, embora produzam um resultado coletivo indesejado, expressam o resultado de uma ação racional, em que o objetivo do agente é, diante da sanção da lei, maximizar riqueza de qualquer forma, não somente por meio de atividades produtivas, profit-seeking.
  • 13
    Este é outro ponto importante que, todavia, foge ao meu objeto. A questão da evolução cultural e econômica (e sua relação com as instituições) vem sendo estudada por economistas e antropólogos. Existem basicamente duas correntes evolucionistas “austríacas”, a Hayekiana e a de Buchanan. Hayek defendia a hipótese segundo a qual o surgimento de determinadas instituições, como o mercado, deu-se por um processo lento, aleatório-experimental e relativamente inconsciente de evolução cultural. O constitucionalismo-contratacionista de Buchanan supõe que, a despeito do fato de determinadas instituições, inclusive o mercado e a democracia, terem sido resultado de um processo descentralizado e lento de evolução cultural, elas podem ser reformadas de forma consistente dentro do processo político. Para Hayek, não existe sentido na reforma constitucional; diante dos alegados efeitos negativos da revolução keynesiana, a posição Hayekiana é cética. Isto é, não existe a possibilidade de reconstrução artificial de valores e normas. Buchanan, por outro lado, considera a possibilidade e a racionalidade da reforma constitucional. Ver, para maiores detalhes sobre este tema, Vamberg (1994: 195-207).
  • 14
    Existem situações, é evidente, como choques exógenos e até mesmo erros de política econômica, que podem criar crise fiscal. Por exemplo, este é o caso da crise fiscal do Estado na Áustria e Alemanha no período que sucedeu a Primeira Grande Guerra. No entanto, como observa Schumpeter (1918SCHUMPETER, J.A. (1918). “La crisi dello Stato fiscale.” In SCHUMPETER, J.A. Stato e Inflazione. Torino, Boringhieri.: 13l), a crise fiscal do estado em geral e, particularmente nos dois países citados no referido período, é uma manifestação de um fenômeno sociológico. A dificuldade de se promover o ajuste fiscal, diante de uma crise de endividamento com perdas e danos de guerra, indicaria a existência de um processo de natureza política por detrás do fenômeno em questão: a negociação interna diante da necessidade do esforço do ajuste fiscal pode não surgir devido ao embate das forças políticas e dos grupos organizados. A existência de resistência ao ajuste fiscal pode, neste sentido, redundar em outros tipos de solução para o problema, como crises prolongadas que redundam em hiperinflações. Historicamente, por exemplo, sabe-se que Alemanha e Áustria mergulharam numa profunda crise nos anos pós-1918.
  • 15
    O mesmo tipo de fenômeno ocorreu nos Estados Unidos durante os anos 80. Ver, a respeito disto e da tentativa fracassada de reforma institucional-constitucional com a lei Gramm-Rudman-Hollings, Schier (1992SCHIER, S.E. (1992). A Decade of Deficits. Nova York, Suny-State University of New York Press.).
  • 16
    JEL Classification: H63; D72; D73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1998
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