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PIOLIN PARA ALÉM DO MODERNISMO: MODERNIDADE NAS DÉ CADAS DE 1920-19301 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. As imagens das Balas Piolin são do acervo pessoal de Cristiane Framartino Bezerra, escritora de Ribeirão Preto, que autorizou digitalizá-las. As imagens das histórias em quadrinhos do Piolin são do acervo da Hemeroteca Digital Brasileira. Esse artigo é oriundo de discussões iniciadas em minha tese de doutorado, (SANTANA, Camila Jansen de Mello de. Um piá na urbe: fragmentos de modernização e urbanização nas fgurinhas das Balas Zéquinha (1929-1948). Tese (Doutorado em História)-Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. A pesquisa foi orientada pela professora Dr. Rosane Kaminski. A elaboração da tese contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES, bolsas de pesquisa (Processo 03/2015 a 06/2019: 1498947). Agradeço imensamente a leitura atenta e sugestões extremamente pertinentes que os avaliadores fzeram do texto original; à leitura da Bruna Alves Lopes, que enriqueceu o texto na sua primeira versão e ao Sérgio de Carvalho, que muito gentilmente compartilhou sua tese para inspiração, consulta e referência.

PIOLIN BEYOND MODERNISM: MODERNITY FROM THE 1920S TO 1930S

Resumo

Partindo do anseio modernista por um elemento-síntese da identidade nacional, discutiremos não apenas a eleição do Palhaço Piolin como modelo de brasilidade, mas também como o personagem conseguiu ultrapassar as expectativas dos modernistas, para tornar-se porta-voz da identidade popular e de grupos marginalizados. Utilizando discursos dos modernistas, embalagens das Balas Piolin e histórias em quadrinhos do personagem publicadas na edição infantil de A Gazeta, apontaremos os caminhos pelos quais Piolin tornou-se, nas décadas de 1920 e 1930, símbolo dos modernistas e da modernidade, que marcava a vida cotidiana das cidades brasileiras com inúmeras inovações, como novas técnicas e tecnologias, que permitiram aos populares verem e serem vistos, saindo das margens e circulando, como produto cultural, pelos diferentes segmentos da sociedade.

Palavras-chave
Palhaço Piolin; Modernidade; Modernismo; Balas Piolin; Desventuras do palhaço Piolin

Abstract

From the modernist search for an element that synthesizes national identity, we will discuss the choice of Palhaço Piolin as a representative of Brazilian culture and how the character managed to surpass modernists’ expectations and became a popular identity and marginalized groups spokesperson. Using modernist speech, Piolin candies wrapping papers, and comic strips published in the children’s edition of the newspaper A Gazeta, we point out the journey Piolin became, in the 1920s and 1930s, a modernist and modernity symbol. This period determined Brazilian cities’ daily life with countless innovations, such as new techniques and technologies, allowing the ordinary population to see and be seen as a cultural product, leaving the margins of society and circulating through different segments.

Keywords
Palhaço Piolin ; modernity; Modernism; Piolin candies; Desventuras do palhaço Piolin

O Centenário da Semana de Arte Moderna, comemorado neste ano de 2022, leva à refexão sobre a construção da identidade brasileira. Há cem anos, em fevereiro de 1922, em São Paulo, um seleto grupo de artistas e intelectuais, liderado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menoti Del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfati, ansiava por pensar quais elementos eram representativos do Brasil, destacando a identidade nacional perante modelos e experiências internacionais.

Dentre as diferentes formas de representação surgidas, emerge, como ponto sintetizador do significado de brasilidade e identidade nacional, escolhido pelos modernistas, o palhaço Piolin.

O debate a respeito de um elemento-sujeito-síntese do Brasil, está presente em alguns periódicos da primeira década do século XX. O tema “d’A representação caricatural do Brasil”, marcou uma série de publicações na revista Fon-Fon a partir de fevereiro de 1908 (SILVA, 1990, [1990] p. 20SILVA, Marcos Antonio da. Caricata República: Zé Povo e o Brasil. Editora Marco Zero: São Paulo, 1990 [1990]. e seguintes), pois a imagem do indígena como representante da nação já não satisfazia alguns dos caricaturistas daquele periódico. Após debate que se estendeu por alguns números da publicação, a ilustração escolhida para representar a nação e o popular, foi o personagem Zé Povo.

A escolha de Zé Povo para representar a população brasileira, em substituição ao indígena é elemento a ser problematizado. A construção identitária, nacional ou não, é um processo construído na oposição entre eu ou nós, e o outro, conforme aponta Sandra Pesavento, “em suma, a construção do nós identitário pressupõe a existência do outro. O outro é a concretização da diferença, contraposto como alteridade à identidade que se anuncia” (PESAVENTO, 2001 [2001], p. 10PESAVENTO. Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001 [2001].). A autora destaca que a noção de identidade é construída através de uma relação de contraste, de oposição, em que se sobressai aquilo em que se é diferente daquele no qual não nos enxergamos. Nesta direção, o debate ocorrido entre os caricaturistas da revista ilustrada Fon-Fon, questionando a capacidade da população autóctone representar a população brasileira, significa que o indígena se tornara o outro, com o qual esses caricaturistas não se identificavam e não identificavam o Brasil e sua população.

Se debruçar sobre diferentes documentos que trazem à tona os pensamentos, propostas, questionamentos dos modernistas significa buscar, entre diferentes fontes, críticas, periódicos e afins, o que esses artistas e intelectuais acreditavam ser a identidade brasileira ideal. Nosso objetivo, neste artigo, é analisar a modernidade e o modernismo brasileiros a partir da fgura do Palhaço Piolin, utilizando, para tal, depoimentos do artista, publicações dos modernistas sobre o Piolin, as fgurinhas das Balas Piolin e as histórias em quadrinhos protagonizadas pelo personagem.

Do indígena ao Piolin

A representação do Brasil através do indígena correspondia a um discurso ufanista de exaltação da natureza e belezas tropicais brasileiras em oposição a nações que não dispunham do clima tropical e dos ecossistemas que formam o imaginário a respeito do Brasil. A literatura indigenista marcou o século XIX brasileiro, período em que havia movimentos e narrativas sobre a construção de uma identidade nacional, período do Brasil Império, no qual se tornava necessário distanciar o Brasil da antiga metrópole. Nesse contexto, exaltar a exuberância da natureza e clima brasileiros, em oposição ao clima ameno do velho continente, foi elemento importante (SCHWARCZ, 1998 [1998], p. 49-61SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nasce um império nos trópicos. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [1998]. p. 49-61.).

No início do século XX, no entanto, com o regime republicano vigente e com o Brasil buscando inserir-se no processo de modernização e urbanização que marcavam as principais nações europeias, temos o indígena como elemento autóctone que não correspondia mais à representação de nação moderna, urbanizada e desenvolvida que se desejava criar.

Ao mesmo tempo em que a primeira constituição republicana garantia formalmente a igualdade política, a noção de raça não só se constituía mas também legitimava uma prática de manutenção de desigualdades. [...]

Os descendentes de africanos, num primeiro momento, e as classes trabalhadoras, maciçamente integradas por imigrantes, num segundo momento, ao lado de todos os que não tinham meios de subsistência e desempenhavam as tarefas menos qualificadas, sobrevivendo em empregos temporários ou na execução de biscates, constituíam presença incômoda nos centros urbanos. Com a República, à medida que se ampliava a preocupação com a questão Quem somos nós?, ampliava-se também a exigência da resposta a uma outra interrogação: Quem são os outros? As respostas formuladas a essas perguntas foram sendo esboçadas nos livros didáticos, nos romances e nas crônicas da época, nos jornais, nos relatos e nos textos de avaliação do regime republicano. (NUNES, 2000 [2000], p. 400NUNES, Clarice. (Des)encantos da modernidade pedagógica. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (org.). 500 anos de educação no Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000 [2000], p. 606.)

Nesta direção, a representação do indígena na literatura passa, da Iracema, de José de Alencar, em 1865, para Macunaíma, de Mário de Andrade, em 1928.

Figura 1
(Iracema)

Figura 2
(Macunaíma)

Mário de Andrade, assim como os demais participantes do Movimento Modernista, ansiava buscar a verdadeira identidade nacional. Sobre esta busca, destacamos a fala de Ruben George Oliven, que afirma que para formar a identidade de uma nação é necessário “uma cultura que lhe dê suporte, o que por sua vez implica intelectuais que ajudem a formulá-la”, e continua:

o movimento modernista, por um lado, significa a atualização do Brasil em relação aos movimentos culturais e artísticos que ocorrem no exterior. Por outro, implica também buscar nossas raízes nacionais, valorizando o que haveria de mais autêntico no Brasil. (OLIVEN, 2010 [2010], p. 418OLIVEN, Ruben George. Cultura e Identidade Nacional e Regional. In: MARTINS Carlos Benedito e DUARTE, Luiz Fernando Dias (org.). Horizontes das Ciências Sociais - Antropologia. 1ª ed. São Paulo: Discurso Editorial Bacarolla, 2010 [2010], v. 1, p. 407-430.).

Ruben Oliven afirma que os intelectuais do Movimento Modernista objetivavam formular uma cultura nacional, valorizando o que fosse mais autêntico do país, afm de inserir o Brasil no contexto de modernização cultural e artística internacional. Como resultado dessas mudanças técnicas e tecnológicas, e da maior inserção do Brasil no mercado global de consumo, a visão romantizada dos grupos nativos brasileiros, associada à fgura de Iracema, transforma-se numa crítica dos hábitos e práticas cotidianos e tradicionais dessa população tão diversa. Desta forma, por não possuírem hábitos associados ao sistema capitalista e comportamentos e práticas que eram entendidos como civilizados, os indígenas passam a ser vistos como preguiçosos, sem caráter e com um traço sexual exacerbado, tornando-se assim, Macunaíma. Se o índio não correspondia como representação da nação, outros elementos foram buscados: o negro e o caipira.

O negro, trazido à força para o país devido ao sistema escravista, foi representado nas artes do período através de obras como A Negra, de Tarsila do Amaral, datada de 1923. Mesclando técnicas modernas de representação visual, como o cubismo, com referências visuais da tropicalidade e cultura brasileiras, a obra, segundo depoimento da própria artista

é fruto das histórias contadas pelas mucamas da fazenda em sua infância. [Nestas histórias] falavam de coisas que impressionaram a menina Tarsila, como o caso das escravas dedicadas a trabalhar nas plantações de café, e que impedidas de suspender o trabalho, amarravam pedrinhas nos bicos dos seios, para que estes, desta forma alongados, pudessem ser colocados por sobre os ombros, a fim de poder amamentar seus filhos, que carregavam as costas.

Figura 3
(A Negra)

Elemento importante na constituição da população e sociedade brasileiras, a presença negra foi registrada em diferentes linguagens artísticas do período, contudo, remetiam a uma história de violência, exploração e, principalmente, a um grupo social que era invisível para parcela da população, pois ainda muito associados à escravidão, na qual esses sujeitos não eram tidos como iguais. Nesta direção, apesar de haver, na obra de modernistas, a representação da população negra, a elite paulista não se identificava com a fgura negra para elegê-la como representante da identidade nacional.

Se o indígena e o negro não eram, segundo os modernistas, elementos representativos da identidade brasileira, outra opção possível seria o caipira. O modo de vida caipira foi imortalizado através dos quadros de Almeida Júnior, que ainda em fins do século XIX, registrou o cotidiano caboclo, com obras como Caipira picando fumo (1893), Cozinha Caipira (1895) e Amolação Interrompida (1894).

Figuras 4 e 5
(Amolação Interrompida e Caipira Picando Fumo)

O habitante do ambiente rural brasileiro esteve também presente na obra de Monteiro Lobato, personificado na fgura do Jeca Tatu. Este personagem trazia uma série de características criticadas por Lobato: preguiçoso, simbolizando o atraso, a miséria, sintetizado pelo autor em sua obra Urupês:

A Verdade nua manda dizer que entre as raçaz de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha em beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! (LOBATO, 1918 [1918], p. 277-292LOBATO, José Bento Renato de Monteiro. Urupês. Obras Completas, 1. São Paulo: Brasiliense, 1918 [1918], p. 277-292.)

Enquanto em Almeida Júnior, o registro da vida caipira resistiu até mesmo aos seus estudos em Paris, onde teve contato com as propostas artísticas de uma das sociedades símbolo de modernidade, alguns anos mais tarde, já num contexto diferente, encontramos Monteiro Lobato identificando o caboclo com o atraso, a apatia e a ausência de civilização. O sucesso da crítica de Monteiro Lobato aos caipiras e a repercussão de sua síntese no personagem Jeca Tatu, demonstram que, para a população brasileira que era letrada e vivia nos centros urbanos, o que engloba os modernistas, o caipira realmente não era elemento com o qual essa população se identificasse.

Figura 6
(Jec a Tatu)

Se nem o indígena, nem o negro, nem o caipira são capazes de sintetizar um sentimento identitário nacional, que elemento seria capaz de fazê-lo? Esse questionamento, presente no debate ocorrido na revista Fon-Fon em 1908, permaneceu em evidência nos anos seguintes, tomando corpo com o movimento modernista. Se, como afirmou Ruben Oliven, o que compõe a identidade nacional é a construção de uma cultura, que por sua vez é produto construído por uma elite, retomamos o texto de Oliven para recuperar uma citação de Dundes, na qual o autor afirma que

o povo é um segmento atrasado e analfabeto da população dos quais os elitistas têm vergonha. Por outro lado, o povo representa os remanescentes glorificados e romantizados de um patrimônio nacional que é algo para intelectuais zelosos celebrarem. A mesma situação se repete na maioria dos países. Os intelectuais estavam tanto embaraçados como orgulhosos de seu povo e seu folclore. A inferioridade gera a superioridade! (DUNDES, apud OLIVEN, p. 413)

Considerando o exposto, a intelectualidade brasileira das décadas iniciais do século XX, ao buscar sintetizar uma nova identidade nacional, condizente com o papel que se ansiava para o país naquele contexto de intensas transformações, terá, no povo e no folclore brasileiros, os elementos a serem utilizados na construção dessa cultura e identidade nacionais. Esse povo, que era múltiplo, não seria, por quaisquer escolhas que fossem feitas, representado em sua totalidade, pois como já exposto, as populações negras, indígenas e caipiras estariam à margem da identidade nacional buscada pelas elites brasileiras. A busca por um denominador comum é, portanto, resultado de intensas seleções, que silenciam populações diversas, aqueles que, por quem está enunciando a noção identitária, é visto como o outro. Para os cartunistas que realizaram o debate nas páginas da revista ilustrada Fon-Fon, este elemento comum resultou na escolha de Zé Povo.

Zé Povo, apesar de ser o elemento visual escolhido pela revista Fon-Fon e demais veículos ilustrados nacionais, para representar a nação brasileira, possui características de um discurso normativo identificado com a fgura de um homem de meia-idade, com pele branca e heterossexual. Desta forma, é importante resgatar a ideia de que a identidade é construída através da noção de oposição, ou seja, construo minha identidade ao perceber e reconhecer aqueles elementos com os quais eu não me identifico. Nesta direção, a escolha de Zé Povo pelos caricaturistas da revista Fon-Fon e outros periódicos, demonstra que, para esses artistas, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual, o sujeito que não trabalhava, os ricos e poderosos, são elementos, ou invisíveis, porque sem importância, ou inalcançáveis e, portanto, personagens com os quais os caricaturistas e importante parcela da população brasileira não era capaz de se identificar. Zé Povo era o eu, o nós, enquanto todos os demais grupos sociais, por motivações diferentes, eram os outros.

Se para os cartunistas de diferentes periódicos brasileiros da época, a fgura do Zé Povo mostrou-se ideal para representar uma identidade brasileira real, a busca por um denominador comum, um representante brasileiro, um personagem ou representação que conseguisse captar e incorporar uma identidade nacional, que englobasse necessariamente o povo, o popular, levou a primeira geração de modernistas a encontrarem seu elemento sintetizador no palhaço Piolin. Segundo informações da crônica de Maria B. Keller Rosa, intitulada Adeus, Piolim! e publicada na revista Cruzeiro do Sul, em ocasião do falecimento de seu intérprete, Abelardo Pinto,

No pensamento modernista, para chegar ao universalismo, a nossa arte e a nossa literatura deveriam atingir primeiramente o nacionalismo. E isso, segundo Mário de Andrade, só se conseguiria se os nossos artistas e escritores pesquisassem primeira e profundamente o nosso folclore, e procurassem analisar e compreender as fguras representativas da arte e da cultura popular, tanto rural como urbana. A partir daí, trabalhando com essa matéria-prima, é que seria possível aos intelectuais criar algo verdadeiramente nosso. Seria fundamental, portanto, para estes o conhecimento da psicologia do povo.

À procura das diversas facetas do “homem brasileiro”, os modernistas perceberam em Piolim um material dos melhores. Ele representava, com sua graça autêntica, seus trejeitos inteligentes, o espírito urbano brasileiro (ou pelo menos paulista) em 1926. (Estado de S. Paulo, 09/09/1973. Caderno 2, p. 4)

Piolin era, portanto, para os modernistas d’A Semana de Arte Moderna, a matéria-prima ideal para compreenderem as tradições, hábitos e práticas culturais e sociais populares, permitindo assim, que esses intelectuais construíssem algo que consideraram realmente brasileiro, amparando “a fome modernista por um personagem urbano e cosmopolita capaz de guardar em sua expressão corporal a alma brasileira” (SOUSA Júnior, 2010 [2010], p. 9SOUSA JÚNIOR, Walter. As farsas de Piolin: entre o grotesco e a contemporaneidade. In: Repertório Teatro e Dança, UFBA, v. 15, n 2, julho 2010, p. 74-82. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/article/view/5214>, Acesso em 12/03/2022. doi: https://doi.org/10.9771/r.v0i15.5214.
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). Assemelhando-se à fala de Ruben Oliven, anteriormente citada, a crônica de Maria B. Keller Rosa propõe que a identidade nacional é resultado da construção elitista a partir de elementos folclóricos e populares. Piolin era, portanto, o elemento que servia de ponte, de diálogo, entre a cultura popular, em parte estranha aos modernistas e a cultura intelectual e elitista, representada por eles. Nesta mesma direção, Arruda Dantas sintetiza o pensamento de Telê Porto Ancona Lopez a respeito desse encontro entre os modernistas e Piolin, ao resgatar dois trechos de autoria de Lopez publicados n’O Estado de S. Paulo:

era um privilégio para os artistas e componentes do movimento modernista de São Paulo, conviverem com Piolin, pois “aprendem humorismo e estudam psicologia do brasileiro”, e “nessa convivência estava ao mesmo tempo implícita a absorção da criação artística popular, sem que nisso houvesse um conformismo com o nível cultural do povo, insatisfatório e limitado. Como resultado, temos uma transferência, para a esfera erudita, dos seus valores, para que, transformados, possam agir e refetir sobre a nação. (O Estado de S. Paulo, 26/04/1969, p. 24)

Percebe-se, no trecho acima, que o processo pelo qual Piolin tornar-se-ia elemento sintetizador da brasilidade, envolvia transpor seu discurso, de um nível cultural insatisfatório e limitado, porque popular, para a linguagem artística elitista. Os modernistas teriam de “traduzir” para as elites o discurso de Piolin, seu humor e suas práticas. Essa tradução proposta pelos modernistas surge da necessidade oriunda do desconhecimento desses artistas a respeito da cultura popular brasileira. Variada, representativa de diferentes grupos culturais e sociais, a cultura brasileira era vasta e vivida cotidianamente pela população que, mergulhada nela, não sentia necessidade de registrá-la, conhecê-la, sintetizá-la, mas apenas vivê-la. Os modernistas que ansiavam por sintetizar a brasilidade viviam, portanto, um dilema: como entender uma cultura que eles não viviam, pois era estranha às elites paulistas. É a eleição de Piolin como elemento popular que representava uma brasilidade múltipla e ideal, que solucionava, aos olhos desses artistas, o problema por eles colocado.

No entanto, poucos anos mais tarde, uma segunda geração de modernistas já não enxergava em Piolin essa síntese ansiada pelos intelectuais e artistas d’A Semana de Arte Moderna. Quando aventurou-se pelo teatro, em 1931, a performance de Piolin foi duramente criticada por Paulo Emílio Salles Gomes, pois no palco, “Ele é um homem que tem e dá um peso horroroso. É tímido de gestos, humilde, acachapado. Ele tenta sair de seus lineamentos clássicos e é ruim o tempo todo...(...)” (in CALIL e MACHADO, 1986, apud SOUSA JUNIOR, 2010 [2010], p. 10SOUSA JÚNIOR, Walter. As farsas de Piolin: entre o grotesco e a contemporaneidade. In: Repertório Teatro e Dança, UFBA, v. 15, n 2, julho 2010, p. 74-82. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/article/view/5214>, Acesso em 12/03/2022. doi: https://doi.org/10.9771/r.v0i15.5214.
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)

Piolin

Abelardo Pinto nasceu em 1897, em Ribeirão Preto, estado de São Paulo, e como tantos outros artistas circenses, ingressou na labuta artística ainda criança, com sete anos, atuando como contorcionista e num número com bicicletas. A estreia como palhaço acorreu em 1917 quando a principal atração do circo de seu pai, o palhaço Espiga, abandonou o circo de forma inesperada, forçando a paralisação das atividades até que um substituto fosse encontrado. Abelardo, aborrecido pela dependência de toda uma trupe circense em torno de apenas um artista, passou a estudar uma forma de se tornar palhaço, à época, nomeado Careca, e descobrindo um grande talento para a atividade.

Foi em 1918, quando entrou em contato com a trupe dos Irmãos Queirolo, família circense de imigrantes italianos, que Abelardo desenvolveu ainda mais sua capacidade humorística e, quando Chicharrão abandonou o circo indo para o Rio de Janeiro, em 1923, Piolin assumiu o papel de palhaço principal e passou a usar a máscara de palhaço. Chicharrão acusava Piolin de imitá-lo, no entanto, as maquiagens de ambos se diferiam e, conforme alguns críticos, Piolin não fora apenas uma imitação de Chicharrão, mas superou o mestre e assumiu personalidade e brilho próprios, conquistando públicos variados (SOUSA JUNIOR. 2012 [2012], P. 167SOUSA JÚNIOR, Walter. Entre o contemporâneo e o grotesco: Piolin e as comédias de picadeiro encenadas entre 1933 e 1960. Relatório científico de pós-doutorado. Universidade de São Paulo – Escola de Comunicações e Artes. 2012 [2012].)

Em depoimento à imprensa, em 1973, Piolin conta que conheceu os modernistas através, principalmente, de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Em um dia de espetáculo, todos apareceram e gostaram tanto da apresentação que teriam invadido o picadeiro, passando a noite a beber e conversar com Piolin. (DANTAS, 1980 [1980], p. 131DANTAS, Arruda. PIOLIN. São Paulo: Editora Pannartz, 1980 [1980].)

Figuras 7 e 8
(Piolin visto por Di Cavalcanti e Retrato de Piolim)

O entusiasmo dos modernistas persistiu durante anos. Já no ano da Semana de Arte Moderna, 1922, Di Cavalcanti pintava um quadro homenageando Piolin. Em 1927, outro artista, José Maria dos Reis Júnior, enaltecia o artista circense em nova tela. Em 1929, ocorre a homenagem mais inusitada. Os modernistas, representados por Anita Malfati, Galeão Coutinho, Guilherme de Almeida, Menoti Del Picchia, Oswald de Andrade, Jayme Addour da Câmara, Tarsila do Amaral, Raul Bopp, entre outros, em almoço no Mappin Stores, restaurante badalado da época, devorariam Piolin. No almoço, primeiro encontro do Club de Antropofagia, de São Paulo, Piolin foi comido, numa alusão ao antropofagismo manifestado por alguns artistas modernistas.

Piolin Comido ou comidas para Piolin...

Uma aristocrática horda de antropophagos, gulosa de quitutes e de glórias, propõe-se devorar, hoje, no Mappin Stores, o terrível Piolin.

Piolin, uma das mais legítimas e maximas expressões da arte scenica brasileira, vai ser solennemente almoçado, entre discursos e complicados ritos protocolares. São representantes mais

fidalgos do nosso meio social: artistas do maior renome na musica, nas letras, na esculptura, na pintura; jornalistas do maior prestígio político e mundano, que formarão a ala faminta dos devoradores desse mago do picadeiro.

O almoço de hoje é uma consagração. O gênio da comicidade patrícia, cuja arte venceu a difícil selecção popular do picadeiro, vai receber a homenagem de uma elite de espírito, processada em todos os sectores da actividade cultural paulista. É a primeira vez no Brasil que um artista circense atinge um fastígio de glória tão magnifica e alta. É o mérito real, democrático, rebelde, brotando por força do proprio talento no seio ingenuo e seleccionador das multidões, fóra de preconceitos estheticos, de tormentos de escolas, de politicas de achismos artísticos, que surge à for de unanimes applausos.

Deante de tão guindada festa, tendo medo que Piolin estále. Não de orgulho, que Piolin é modesto como um pinto. De satisfação legitima, por sagrar-se no seu talento toda a classe circense, até hontem relegada a uma função subalterna de arte, dando até azo lyrico à creação de operas convencionaes, onde o palhaço apparece como um eterno paria, lívido, vencido, escarnecido, tal qual ainda persistem em definil-o os versos truculentos de Lambary...

Mas mesmo morrendo, Piolin o supremo. Já o vi esticar as canelas varias vezes. Uma creação! Piolin morre com rigorosa sucessão mimica, physiologica, épica, theatral e sentimentalmente há uma gradação de emoções estylizando sua morte no circo. É um arco-íris hilariante e macabro de gestos e de mascaras. Formidavel!

Piolin leva um tiro que lhe desfecha Alcebíades. A sua primeira sensação é physica, traumática. Apalpa-se para reconhecer a ferida. São movimentos rápidos, apavorados de um realismo digno de um Novelli. Depois, convencido de que está são, cria a morte épica. Já é a farsa em todo o seu esplendor de simulação. Sacode-se, toma posições imponentes e trágicas, creando a morte dramatica de “grand-gutgnol”, depois é a convenção scenica: estyliza a morte... Tem algo do cysne romantico de Pawlova, atinge o lyrismo plástico de u’a morte musical e choreographica. Depois é a morte sentimental. Piolin já está em terra. São os ultimos estertores agonicos. São rythmicos, geometricos, absolutamente tocantes e elegantes, mesuras de pavana, cortezias finaes do minueto...

Mas Piolin não morrerá hoje, nem de alegria nem teatralmente. Começará a viver uma vida maior na admiração do Brasil, apontado nesse almoço-homenagem, como um dos nossos mais sérios e honestos artistas.

Helios

(Correio Paulistano, 27/03/1929, p. 7)

No texto de Helios, pseudônimo de Menoti Del Picchia, encontramos alguns elementos importantes a analisar. A arte circense, até aquele contexto, era vista como “arte subalterna”, portanto, menos relevante em relação às demais formas de expressão, como o teatro, pintura, escultura e literatura. Ainda conforme o autor, o circo era espaço de lazer popular e elitista, lazer construído através de aprendizado geracional, sem que seja permeado por instituições, como escolas e oficinas. Foram os modernistas que iluminaram essa arte circense, resgataram-na, junto com Piolin, das margens da sociedade, ou seja, do domínio popular.

A notícia também nos informa que Piolin é consagrado pela população aos aplausos e tem seu talento reconhecido pelas elites, sendo coroado como um dos maiores artistas brasileiros. Embora esse reconhecimento fosse de longa data, com as apresentações de Piolin contando sempre com público cativo, é a partir dos olhos da elite, que o reconhece enquanto artista, que Piolin é consagrado, depois de anos de convivência com os modernistas, em um almoço no qual uma horda aristocrática de antropófagos anseia por alimentar-se da arte popular representada por este personagem.

Na realidade, a arte circense, da qual Piolin é um dos representantes, pertencia ao universo do lazer há décadas. Se os modernistas estavam “descobrindo” Piolin, ele já era um artista consagrado aos olhos do variado público que comparecia aos seus espetáculos. Piolin, assim como outros palhaços e artistas circenses, não precisaram de um aval das elites para conquistar público cativo, fãs e reconhecimento. O texto de Menoti del Picchia indica que o sucesso de Piolin se dá, principalmente, a partir do momento em que as elites modernistas reconhecem nele um artista, resgatando-o do universo popular e lançando-o ao estrelato. No entanto, é uma visão equivocada, pois parte do princípio de que o público é “ingênuo” e que Piolin seria um “gênio da comicidade patrícia”. Mas a realidade é que Piolin é um cômico popular já reconhecido e consagrado dentre a sua audiência. Faz parte dessa população na qual se inspira para criar peças, esquetes e trejeitos, que nem sempre demonstram ingenuidade em seu conteúdo, como é possível verificar na pesquisa de pós-doutorado de Walter de Sousa Júnior, ou no relatório, também de pós-doutorado, de Eliane Costa, que analisa diferentes peças cômicas, ou farsas de Piolin, nas quais estratégias pouco ingênuas ou referências sexuais são feitas nas apresentações de Abelardo Pinto.

No Manifesto A ntropófago de 1928, descobrimos que para este grupo de artistas e intelectuais “só me interessa o que não é meu. Lei do homem, lei do antropófago” (MANISFESTO Antropófago, 1928, p. 3). Se os antropófagos só se interessam pelo que não é deles, é lógico compreender que Piolin era o outro, porém um outro que gerava interesse, curiosidade, um outro que fornecia ferramentas e possibilidades de diálogo para aproximar, ou possibilitar que a elite tomasse para si uma linguagem popular.

Se, por um lado, era interessante aos modernistas esta aproximação, já que enxergavam em Piolin a reunião das características ideais de brasilidade que procuravam, por outro lado, para Piolin, esse interesse foi bastante vantajoso, pois segundo depoimento do próprio intérprete ao Museu da Imagem e do Som, “fz sucesso rápido devido a eles. Se interessavam por mim e constantemente escreviam crônicas sobre o meu trabalho”. (DANTAS, 1980 [1980], p. 133DANTAS, Arruda. PIOLIN. São Paulo: Editora Pannartz, 1980 [1980].)

A escolha de Piolin pelos modernistas parece acertada para Sérgio de Carvalho, que aponta que a prática subjetiva e mais livre dos gêneros populares, que estaria representada na teatralidade de Piolin, seria uma indicação de novas formas de teatralidade, que representariam mais a realidade brasileira. (CARVALHO, 2002 [2002], p. 95CARVALHO SANTOS, Sérgio Ricardo de. O drama impossível: Teatro modernista de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Tese. Programa de Pós Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Doutorado. São Paulo, 2002. [2002] 234 f.) Ainda segundo o autor:

(...) o palhaço do começo do Século Vinte herda do Pierrot francês uma sina geral, a de ser um trabalhador ou vagabundo inadaptado. Vive a ambígua condição de um pobre diabo desorientado, perplexo, perdido mas vivo em sua possibilidade de reagir. Jean Duvigneaud nota que essa “incapacidade de adaptação parece ser correlata à situação das ‘classes perigosas’: os novos imigrantes urbanos, retirados da vasta zona provinciana em que viviam secularmente, não encontraram ainda a sua via de penetração nos meios grandes da cidade. Em nossos dias, no ambiente dos emigrados europeus ainda não-integrados na sociedade norte-americana, não vimos Chaplin inventar o personagem Carlito?

Essa prototipia de uma criatura inadaptada mas ativa, coisificada mas vivificada, feita de estupidez reveladora e idiotia sábia, movendo-se entre um pragmatismo terra a terra e uma adaptabilidade grotesca, capaz das lágrimas desmedidas e suspiros patéticos, -e que conota em suas contradições uma situação de classe – foi apenas pressentida nos escritos modernistas. Mas nesta refexão estaria, acredito, uma ativação do modelo Piolin, que sinalizava pela primeira vez no teatro brasileiro, em forma complexa, uma possibilidade de representação local da reificação gerada pelo capitalismo moderno, sem sentimentalismo em relação aos humildes. (CARVALHO, 2002 [2002], p. 94CARVALHO SANTOS, Sérgio Ricardo de. O drama impossível: Teatro modernista de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Tese. Programa de Pós Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Doutorado. São Paulo, 2002. [2002] 234 f.)

A escolha de Piolin indica, de acordo com o trecho acima, uma forma de visualização, apenas pressentida nos escritos modernistas, da condição real enfrentada por grupos sociais populares, que se sentiam esmagados no interior da realidade capitalista, na qual a disputa por emprego, os baixos salários, as dificuldades cotidianas, a violência, a marginalidade, enfm, a realidade enfrentada pelas ditas “classes perigosas” era representada. Essas classes perigosas eram, conforme a citação, os novos imigrantes urbanos. Esses imigrantes compunham um mosaico de etnias. No estado de São Paulo, no qual Piolin nasceu, por onde passou em diferentes momentos de sua carreira, e no qual foi “descoberto” pelos modernistas, temos diversas nacionalidades representadas dentre os imigrantes urbanos: italianos, alemães, libaneses, portugueses, japoneses, além dos migrantes internos, que vieram do campo em direção às oportunidades oferecidas pela urbe, como ex-escravos, andarilhos e afins.

Todos esses sujeitos, migrantes internos ou externos, eram frequentemente alvo de estereótipos ou preconceitos, sendo identificados como caipiras que, como vimos anteriormente, não eram vistos – pelos intelectuais, caricaturistas das revistas ilustradas e diferentes grupos que compunham as elites econômicas e sociais – como adequados para representar o Brasil moderno e progressista que se desejava. Também eram identificados como mulatos, negros ou ex-escravos, associados, portanto, com um passado no qual esses sujeitos eram explorados, relacionados a trabalhos manuais, e, por conseguinte, como também visto, inadequados para simbolizar os anseios de desenvolvimento existentes dentre as elites da época. Piolin, por outro lado, representava esses sujeitos todos, mesmo que de forma silenciosa.

Os imigrantes eram diferentes, em grande maioria pobres e apenas uma parcela destes possuía uma ocupação formal. Situação similar era experimentada pelas famílias e artistas circenses, conforme aponta Arruda Dantas, ao afirmar que “a gente de circo era vista com reserva pela população da cidade, a que chegavam; dizia-se que era “gente à-tôa”, de costumes livres, suja e desordeira” (DANTAS, 1980 [1980], p. 69DANTAS, Arruda. PIOLIN. São Paulo: Editora Pannartz, 1980 [1980].).

Portanto, os artistas de circo, para a elite cultural e artística paulista, são o outro: imigrantes ou migrantes internos, sem ocupação formal nem residência fixa, vivem em trânsito e, muitas vezes, vivem com parcos recursos financeiros. Abelardo Pinto representava, de certa forma, toda uma ampla gama da população brasileira que era colocada às margens dos discursos oficiais. O imigrante, o sem posto de trabalho oficial, o negro e mulato, o pobre, o desempregado, era o outro, aquele com quem as elites que criavam os discursos sobre o que era ser brasileiro, ou o que se desejava enquanto população brasileira das primeiras décadas do século XX, não se identificavam.

Apesar de possuírem um modo de vida próprio, constantemente em trânsito, com uma cultura que era muitas vezes oralizada, com o ensino-aprendizagem dos números e pantomimas circenses sendo passados entre gerações pela cultura oral, vivendo em uma estrutura que os circenses nomeiam como circo-família e, muitas vezes, tendo “dificuldades (...) para inserir-se na sociedade sedentária, como no caso das escolas” (SILVA, 2009 [2009]SILVA, Ermínia. O circo era uma escola única e permanente. 2009 [2009]. Disponível em: <https://www.circonteudo.com/o-circo-era-uma-escola-unica-e-permanente-2/>. Acesso em: 27 ago. 2022.
https://www.circonteudo.com/o-circo-era-...
), a família circense vivia e trabalhava o circo diariamente. As crianças aprendiam as técnicas circenses e a montagem e desmontagem de lona e equipamentos a partir dos ensinamentos dos membros do circo-família, e o analfabetismo, segundo Ermínia Silva, era praticamente inexistente, apresentando índices bem menores do que a população não circense, pois

Saber ler e escrever era necessário para lidar com a parte financeira, para escrever os programas dos espetáculos, confeccionar cartazes, “fazer a praça”. Requerer junto às prefeituras a autorização para a entrada do circo na cidade; determinar o preço dos ingressos, dependente de uma verdadeira “pesquisa de mercado”, aonde o circo pretendia se instalar; fazer anúncios e propaganda para publicar nos jornais. (SILVA, 2009 [2009]SILVA, Ermínia. O circo era uma escola única e permanente. 2009 [2009]. Disponível em: <https://www.circonteudo.com/o-circo-era-uma-escola-unica-e-permanente-2/>. Acesso em: 27 ago. 2022.
https://www.circonteudo.com/o-circo-era-...
)

O circo não era apenas um modo de vida, uma família, mas também a casa, ou endereço dos circenses. Portanto, apesar de estarem constantemente em trânsito, os artistas de circo tinham um endereço certo, fixo, o local em que a lona e o circo-família se encontravam. Além disso, apesar de não possuírem um trabalho considerado formal pela população, estes artistas desempenhavam com afinco suas atividades no palco ou fora dele, trabalhando cotidiana e arduamente para que o circo-família mantivesse a estabilidade financeira e o sucesso de público.

Quando a primeira geração de modernistas elegeu Piolin como símbolo do que acreditavam ser uma arte genuinamente brasileira, todos esses elementos situados à margem do discurso das elites sobre cidadania e participação social ganham espaço. Alcântara Machado destaca Piolin como representante do teatro brasileiro:

São Paulo tem visto companhias nacionais de toda sorte. Incontaveis. De todas elas, a única, bem nacional, bem mesmo, é a de Piolim! Ali no Circo Alcebíades! Palavra. Piolim, sim, é brasileiro. Representa Dioguinho, o Tenente Galinha, Piolim sócio do Diabo, e outras cousas assim, que ele chama de pantomimas, deliciosamente ingênuas, estupendas, brasileiras at´ali. (...) Diverte. Revela o Brasil. Improvisa brasileiramente tudo. É tosca, é nossa. É esplêndida. Piolim e Alcebíades são palhaços, o que quiserem, mas são os únicos elementos nacionais com que conta o nosso teatro de prosa. Devem servir de exemplo. Como autores e atores. (CARVALHO, 2002 [2002], p. 87CARVALHO SANTOS, Sérgio Ricardo de. O drama impossível: Teatro modernista de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Tese. Programa de Pós Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Doutorado. São Paulo, 2002. [2002] 234 f.)

Alcântara Machado também destaca que “a cena nacional ainda não conhece o cangaceiro, o imigrante, o grileiro, o político, o ítalo-paulista, o capadócio, o curandeiro, o industrial. Não conhece nada disso E não nos conhece. Não conhece o brasileiro, É pena. Dá dó”. (CARVALHO, 2002, [2002] p. 87CARVALHO SANTOS, Sérgio Ricardo de. O drama impossível: Teatro modernista de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Tese. Programa de Pós Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Doutorado. São Paulo, 2002. [2002] 234 f.) Com Piolin, esses marginalizados surgem como temas de pantomimas, circo, arte.

Piolin, como outros tantos palhaços brasileiros, utilizava como inspiração para suas peças, seus números cômicos, pantomimas e afins, o cotidiano da população, as notícias dos periódicos, o conhecimento vasto, desenvolvido por palhaços anteriores, oriundos de uma tradição circense que dava sustentação, ideias, para diversas representações circenses feitas por ele e seus pares. Os palhaços, artistas que circulavam pelo Brasil e outros países, entravam em contato com público variado, das grandes, médias e pequenas cidades, com a população rural de regiões distintas do país, com artistas que trabalhavam sob outras lonas e outras experiências. A vivência dos artistas circenses com uma gama tão ampla de públicos fornecia material, histórias, personagens que eram transformados em partes do espetáculo circense. Os elementos populares sempre estiveram vivos e marcando presença no circo. Contudo, os artistas circenses também estiveram constantemente em contato com as elites culturais e artísticas que formaram o movimento modernista, seja no vai e vem das cidades, no contato com prestadores de serviços variados, na leitura de romances e periódicos, enfm, na vida cotidiana.

Piolin, era, portanto, o tipo de cultura popular que parcela dos modernistas desejava para identificar toda a população brasileira, sintetizando-a nesse sujeito-elemento. Contudo, a cultura popular brasileira era muito mais do que o trabalho que Piolin apresentava no palco e, certamente, a arte popular era muito mais rica do que aquilo que estava exposto em suas peças. Desta forma, podemos entender a arte e cultura apresentadas por Piolin como uma seleção da cultura e arte popular brasileira feita pela elite modernista paulista, que elegera Piolin e seu trabalho como seus, como elementos populares com os quais essa elite se interessava em dialogar e exaltar, resultando no silenciamento de outras identidades e grupos sociais.

Piolin traz, em seus espetáculos, vivências e experiências da população brasileira, da qual faz parte e a qual conhece através das inúmeras incursões pelo território nacional. Esses personagens vividos por Piolin, e que tanto o inspiravam, eram também referência para inúmeros outros palhaços, principalmente os que encarnavam o tipo Augusto, estilo de palhaçaria desenvolvida por Piolin (SOUSA JÚNIOR, 2012 [2012], p. 35SOUSA JÚNIOR, Walter. Entre o contemporâneo e o grotesco: Piolin e as comédias de picadeiro encenadas entre 1933 e 1960. Relatório científico de pós-doutorado. Universidade de São Paulo – Escola de Comunicações e Artes. 2012 [2012].):

O tipo augusto tomou forma no ambiente circense, numa Europa recém transformada pela revolução industrial. As mudanças econômicas geraram uma nova classe social: o proletariado, formado por homens simples que não encontravam mais seu sustento no campo. Neste contexto, milhares de trabalhadores migraram para as cidades em busca de trabalho pago e, ‘a partir de 1880 o augusto se impôs como estilização da miséria, em meio a um ambiente social que prometia sua erradicação’.

(...)

Adotando um caráter marginal, o augusto dispensa a formalidade e a elegância dos [palhaços] brancos3 3 Em sua pesquisa, Lili Castro aponta que o palhaço de tipo branco é comum na palhaçaria europeia do início do século XIX, principalmente na Inglaterra, França e Itália. Encarnando um tipo de maior autoridade e requinte, esse palhaço aparecia de rosto pintado de branco e trejeitos sofsticados, remetendo à aristocracia da época, e se inspirando nos pierrots, da Commedia dell’Arte. Quando está atuando em dupla, ele mantém o lugar de autoridade, enquanto o outro palhaço, de tipo augusto, torna-se o desajeitado. Para maiores informações, consultar: CASTRO, Lili e BOLOGNESI, M. F. Palhaços. São Paulo: UNESP, 2003 [2003]. tradicionais. É estúpido, desajeitado, indelicado, surpreendente e provocador. Simboliza o mundo infantil, com toda sua anarquia e liberdade. Tem como principal marca visual o nariz vermelho e leva, tradicionalmente, vestimentas exageradas e sapatos desproporcionais. Numa dupla é sempre o mais atrapalhado, apresentando uma inaptidão irrestrita, mesmo na realização das tarefas mais simples. Nos circos tradicionais brasileiros também é chamado excêntrico ou simplesmente palhaço. (CASTRO, 2019 [2019], p. 29-30CASTRO, Lili. Palhaços: multiplicidade, performance e hibridismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2019 [2019].)

Encarnando o estilo de palhaço augusto, Piolin incorpora em seus espetáculos os mais diferentes sujeitos e práticas populares brasileiras, principalmente aqueles personagens que despontam nas cidades que se desenvolviam e que, consequentemente, atraiam população, concentrando oportunidades, mesclando diferentes etnias, identidades e origens.

O circo era, portanto, uma arte e um espaço de sociabilidade democráticos, ao menos é o que indica Menoti Del Picchia, ao afirmar que “o picadeiro é a crítica no palco democrático, isto é, a sagração plebiscitária das mais heterogêneas multidões. A arte teatral brasileira deve surgir daí, desse concurso ou eleição onde vota o soldado, a criança, a cozinheira, o deputado, o escritor, o plutocrata.” (DANTAS, 1980 [1980], p. 139-140DANTAS, Arruda. PIOLIN. São Paulo: Editora Pannartz, 1980 [1980].)

Piolin, assim como outros palhaços, tinha, portanto, uma capacidade de representar diferentes grupos sociais e culturais. Os personagens populares representados nos circos pertenciam ao imaginário da época e permaneciam ativos na memória de quem acompanhava os espetáculos. Da mesma forma, os variados palhaços que incorporavam esses personagens e os traziam à tona nos espetáculos circenses também pertenciam ao imaginário da época. Essa capacidade de representação dos palhaços em geral, e de Piolin, em particular, que agradava ao mesmo tempo as camadas populares que frequentavam o Circo Alcebíades, no qual se apresentava, e as elites, que também ocupavam as frísias do circo ou o homenageavam no almoço do restaurante Mappin, e mesmo o presidente da Província de São Paulo, Washington Luis, que frequentava o circo Alcebíades toda quinta-feira (SOUSA JÚNIOR, 2012 [2012], p. 26SOUSA JÚNIOR, Walter. Entre o contemporâneo e o grotesco: Piolin e as comédias de picadeiro encenadas entre 1933 e 1960. Relatório científico de pós-doutorado. Universidade de São Paulo – Escola de Comunicações e Artes. 2012 [2012]. e 38), fica bastante clara na coleção de fgurinhas das Balas Piolin.

Balas Piolin, modernidade e identidade

Criadas em 1927, por José Antonio Bastos, as Balas Piolin passaram a ser vendidas nos sabores “aniz, abacaxi, limão, laranja e chocolate” (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1927DIÁRIO Oficial da União. 1927. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/2039612/pg-8-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-02-11-1927>. Acesso em: 08 jan. 2016.
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/203...
). As Balas Piolin eram nomeadas e tinham seus invólucros ilustrados em homenagem ao personagem incorporado por Abelardo Pinto.

A criação das Balas Piolin, e, principalmente, das suas embalagens, inserem-se num contexto em que a indústria gráfica brasileira se expandia, de maneira consistente, desde fins do século XIX. Essa expansão ocorreu tanto devido aos melhoramentos e avanços técnicos e tecnológicos dos processos de reprodução de textos e imagens, como também devido à diversificação do público que consumia tais impressos, uma vez que estes eram produtos que demandavam consumidores e, portanto, deveriam buscar uma linguagem diversificada, que atingisse um conjunto mais amplo de possíveis leitores (CARDOSO, 2009 [2009], p. 72-73CARDOSO, Rafael (org.). Impresso no Brasil, 1808-1930: Destaques da história gráfica no acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2009 [2009].). A este respeito, temos a fala de Rosane Kaminski:

Como se sabe, a difusão da alfabetização propiciara um boom do público leitor. Junto a esse processo, e devido à ampliação crescente das técnicas de reprodução das imagens, estas se transformaram em mercadoria abundante e barata. Nunca antes existira ou circulara tamanha quantidade de imagens, variando entre ilustrações, gravuras e fotografias. Sua presença nas revistas ilustradas era, ao mesmo tempo, um apelo visual e uma garantia de maior abrangência de público, ainda que semialfabetizado. (KAMINSKI, 2012 [2012], p. 255-256KAMINSKI, Rosane. Gosto Brejeiro: as revistas ilustradas e a formação de juízos estéticos em Curitiba (1900-1920). In: BREPHOL, Marion, CAPRARO, André Mendes e GARRAFONI, Renata (org.). Sentimentos na história: linguagens, práticas, emoções. Curitiba: Ed. UFPR, 2012 [2012].)

A circulação de imagens tornava-se cada vez mais intensa, através da publicidade, das charges nas revistas ilustradas, da invenção e difusão da fotografia, das embalagens de produtos variados e do aperfeiçoamento de técnicas gráficas. O público consumia as imagens, principalmente nas charges de costumes nos periódicos da época, que, ao utilizarem-se do humor, criavam “oportunidades aos habitantes das grandes cidades para verem e serem vistos nos espaços públicos como nas ruas, avenidas, bondes, teatros, salas dos cinematógrafos, pontos de encontro de entretenimentos” (QUELUZ, 2002 [2002], p. 25QUELUZ. Marilda. Traços urbanos: a caricatura em Curitiba no início do século XX. São Paulo: 2002 [2002]. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP.).

Esta interação entre imagem e espectador demanda, como elemento primordial, a memória e o processo de reconhecimento. Segundo Aumont, “reconhecer alguma coisa em uma imagem é identificar, pelo menos em parte, o que nela é v isto com alguma coisa que se vê ou se pode ver no real” (AUMONT, 2012 [1977], p. 82AUMONT. Jacques. A Imagem. Campinas, São Paulo: Papirus, 2012 [1977].). Assim, ao observar uma imagem e nela reconhecer algo, haveria uma maior facilidade de identificação e leitura da informação ali contida. Confirmando a importância dessa função de reconhecimento das imagens, Gombrich afirma que “o familiar será, sempre, o ponto de partida para a representação do desconhecido” (GOMBRICH, 2007 [1959], p. 72GOMBRICH, Ernst Hans. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução: Raul de Sá Barbosa. Revisão da tradução: Mônica Stahel. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007 [1959].).

As ilustrações das embalagens, periódicos, propagandas, charges, permitiam que a população se reconhecesse em diferentes situações cotidianas, inclusive porque, por serem um produto que buscava mercado e, portanto, consumo, essas revistas ilustradas, e também as variadas imagens produzidas em outros suportes, procuraram afirmar acontecimentos e personagens locais (KAMINSKI, 2012 [2012], p. 236KAMINSKI, Rosane. Gosto Brejeiro: as revistas ilustradas e a formação de juízos estéticos em Curitiba (1900-1920). In: BREPHOL, Marion, CAPRARO, André Mendes e GARRAFONI, Renata (org.). Sentimentos na história: linguagens, práticas, emoções. Curitiba: Ed. UFPR, 2012 [2012].).

As fgurinhas do personagem Piolin tinham, por objetivos, proteger, identificar e estimular a venda dos doces envolvidos com estas embalagens. As embalagens eram em formato retangular, aproximadamente 5 x 7 cm, ilustradas com a técnica da litografia e coloridas. Essa técnica, segundo Walter Benjamin, trouxe um impacto muito grande, pois

Esse processo, muito mais preciso, que se diferencia por transpor o desenho sobre a pedra, em vez de entalhá-lo na madeira ou gravá-lo no metal, permitirá às artes gráficas, pela primeira vez, não só reproduzir obras de forma ampla, como elas já faziam, mas trazer todos os dias novas criações ao mercado. Graças à litografia, as artes gráficas puderam ilustrar a vida cotidiana e se situar no mesmo nível da imprensa. (BENJAMIN, 2012 [2012], p. 11BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução Marijane Lisboa. In: CAPISTRANO, Tadeu (org.). Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012 [2012].)

As embalagens ilustradas com o personagem Piolin não eram exceção: elas eram o veículo no qual as balas eram apresentadas aos consumidores e, portanto, deveriam estimular que a população identificasse facilmente o produto e o comprasse. Nesta direção, assim como a bala, o seu invólucro era um produto que seria consumido, mesmo que de maneira muito rápida. As imagens de Piolin deveriam ser um chamariz aos consumidores dos doces, ou mesmo uma parte do produto oferecido a eles.

A coleção de fgurinhas das Balas Piolin era numerosa, ultrapassando a centena de imagens, e traziam o protagonista representado em diferentes situações. Estas situações, além de ilustrarem algumas funções circenses, como o Piolin Palhaço, Piolin Domador e Piolin Acrobata, também traziam outras experiências, em que, por exemplo, o personagem executava atividades cotidianas, como tomar banho ou dormir. Além disso, diferentes grupos sociais também podiam ser identificados, como Piolin Índio, Piolin Caipira, Piolin Apaixonado, Piolin Melindrosa, Piolin com Traje Espanhol e, inclusive, representantes da elite também se viam presentes, como em Piolin Diplomata. Portanto, o personagem palhaço de tipo augusto aparece nas embalagens de balas assumindo uma infinidade de personalidades, como o palhaço mímico que segue os transeuntes nas ruas, imitando seus trejeitos. Essa multiplicidade de ações nas quais Piolin é representado permite que diferentes grupos sociais e sujeitos se identifquem com as situações vividas pelo personagem nas embalagens.

Figura 9
(Algumas identidades representadas nas Balas Piolin)

Nesta amostra de fgurinhas, podemos observar o Caipira, personagem do ambiente rural brasileiro, o Imigrante, em traje espanhol, o Negro, descendente de sujeitos escravizados, não em posição de trabalho, mas de enamoramento, a conversar ou fertar com uma mulher negra à janela de uma residência. Além disso, observa-se também o personagem caracterizado como Melindrosa, travestido de mulher, com vestido e for no cabelo. Há, portanto, diversos grupos minoritários, populares, representados nas fgurinhas de Piolin.

Por esse ângulo, Piolin parece executar a função proposta pelos modernistas do Manifesto Antropófago. Da mesma forma que se inspira nos variados tipos populares e os traz para o picadeiro, nas pantomimas e apresentações que executa, tornando-os centro do espetáculo, da arte circense e do discurso ali representado, nas fgurinhas, ele também parece devorar os diferentes personagens que compunham a população brasileira, mesmo aqueles que, por motivos diversos, eram marginalizados, trazendo-os à tona representados nas embalagens de suas fgurinhas. Essa ilustração, presente em embalagens de balas que circulavam em variados ambientes, possibilita que o pedreiro, o travestido, o prisioneiro, o espanhol e todos os grupos sociais ou culturais ganhassem o espaço público, fossem vistos e circulassem enquanto imagem.

Os invólucros das Balas Piolin constituíam uma coleção de ilustrações formada a partir de um personagem título, um protagonista. A construção de coleções de fgurinhas com um personagem principal foi analisada por Goulart em sua pesquisa de mestrado:

De modo geral, ao contrário das fgurinhas distribuídas pelos cigarros, onde um tema como ‘celebridades’ era organizado a partir de uma série de exemplos de indivíduos dessa categoria, a fgurinha de bala tinha como tema privilegiado um personagem caricatural vivendo uma diversidade de situações. Tinha como fundamento da construção da imagem o conjunto de ações e fatos, priorizados em relação ao conjunto de indivíduos. Enfm, era a introdução da narrativa, ao invés de catálogo de personagens, o personagem vivia situações. (GOULART, 1989 [1989], p. 123GOULART, Paulo Cezar Alves. Álbum de figurinhas: configurações e história. Dissertação (Mestrado em Jornalismo). Escola de Comunicações da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1989 [1989].)

Goulart afirma que outra característica comum nas coleções de fgurinhas da época eram as representações imagéticas, nos cromos, de “‘tipos de rua’, personagens constantes do cenário urbano, que constituíram um padrão para o registro iconográfico: estampas avulsas, fotos ou inserções em periódicos ilustrados”. (GOULART, 1989 [1989], p. 113GOULART, Paulo Cezar Alves. Álbum de figurinhas: configurações e história. Dissertação (Mestrado em Jornalismo). Escola de Comunicações da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1989 [1989].).

Representar, em coleções de fgurinhas, um único personagem vivendo diferentes situações cotidianas, era uma tentativa de aproximar o personagem e seu produto do público comum, encurtando a distância que geralmente se forma entre o ídolo e o fã. Através do garoto-propaganda, o palhaço Piolin, vivendo momentos do cotidiano comum da população, as fgurinhas permitem uma projeção do consumidor em relação ao personagem, possibilitando uma identificação entre a pessoa que compra os doces e o personagem que representa o doce. Sobre essa interpretação, Goulart ainda acrescenta outra mudança importante:

Esta passagem do quem são (fgurinhas de cigarros) para o quê fazem (fgurinhas de balas) parece estar relacionada à definição de um novo público, a criança, com quem, possivelmente, a ação, as ‘façanhas’ dos personagens estabelecem um canal mais direto, informal e mais próximo. (GOULART, 1989 [1989], p. 113GOULART, Paulo Cezar Alves. Álbum de figurinhas: configurações e história. Dissertação (Mestrado em Jornalismo). Escola de Comunicações da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1989 [1989].)

Como as embalagens eram colecionáveis, coloridas e ilustradas com situações vividas por Piolin, possuíam apelo junto a diferentes públicos, mas, principalmente, do infantil, que surgia como novo nicho de consumidores. A narrativa presente nas embalagens das Balas Piolin não possuía uma estrutura definida, permitindo ao colecionador, e talvez com destaque à imaginação e ao público infantil, criar as histórias, aventuras e desafos que o personagem viveria, ao unir duas ou mais figurinhas em sequência. Outra forma de lazer possível era a troca de fgurinhas ou a disputa delas em brincadeiras como o jogo do bafo, além da conquista de prêmios variados, já que é informado na embalagem dos doces que “aos consumidores destas saborosas balas serão oferecidos valiosos brindes”. Desta forma, percebemos que as fgurinhas das Balas Piolin se inseriam também em sociabilidades diversas, construindo e compartilhando memórias, práticas sociais, imaginário.

Piolin e os quadrinhos

A criação de múltiplas narrativas, permitidas pela junção das embalagens das Balas Piolin podem ter sido, inclusive, o que levou à criação de outra linguagem pela qual Piolin atingiu diferentes grupos sociais: a publicação de tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem no suplemento infantil do periódico paulistano, A Gazeta. Entre os anos de 1929 e 1934, encontramos as histórias ilustradas protagonizadas por Piolin e atingindo públicos letrados e iletrados.

As histórias em quadrinhos protagonizadas pelo personagem, eram desenhadas por Gomez Dias e Nino Borges (SANTOS, VERGUEIRO, RAMOS, CHINEN, 2012 [2012], p. 25SANTOS, Roberto Elísio dos. Produção editorial de quadrinhos no Brasil: do surgimento ao Gibi. In: SANTOS, Roberto Elísio dos; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo; CHINEN, Nobuyoshi. Gibi: A revista sinônimo de quadrinhos. São Paulo: Via Letera, 2012 [2012].) e traziam o personagem vivendo situações cotidianas com elementos cômicos. Embora as histórias possuíssem texto e diálogo, as imagens permitiam que mesmo os não alfabetizados, compreendessem o contexto da história e mesmo, a piada. Interessante apontar que, em diversas histórias, o protagonista aparecia trabalhando em ofícios nos quais ele era representado nas fgurinhas, que haviam sido lançadas poucos anos antes. Também cabe ressaltar que Piolin frequentemente interagia com personagens comuns, que representavam diferentes grupos sociais não pertencentes às elites. Piolin, e o mundo no qual era retratado nos quadrinhos, era popular, formado por trabalhadores diversos, imigrantes, negros e vagabundos, elementos que compunham o tecido social e que, para os modernistas, pertencentes à elite cultural e social, eram os outros.

A primeira edição d’A Gazeta: Edição Infantil que traz alguma menção, nas histórias em quadrinhos, ao palhaço Piolin, é a de 3 de outubro de 1929, quando aparece uma menção ao espetáculo de Piolin no circo. Contudo, a primeira tirinha na qual o personagem é desenhado, aparece no dia 10 de outubro de 1929, quando não apenas ele, mas a sua icônica bengala, são os principais personagens da história.

Figura 10
(Piolin comprou um bonde)

Legenda dos quadrinhos:

  1. Narrador: Piolin comprou um vehiculo e quiz estreal-o na festa da Penha.

    Piolin: Será que a Penha é lá mesmo?

  2. Narrador: O carro não tinha motor. Na ida devia ser puchado...

    Piolin: Anda caranguejola! Por aqui não há grillo! Depois, eu garanto a zona!...

    Bengala: AII! Não aperte!

  3. Narrador: Na volta, elle viria sosinho, ladeira abaixo, já se vê...

    Piolin: Espera ahi! Você pensa que puchar não cança? Anda, peste!

    Bengala: Vamos ou não?

  4. Narrador: Mas Piolin tinha que fazer muita força e estava doente.

    Piolin: Segura um pouco. Vou tomar meu fortificante.

  5. Narrador: O medico o mandara tomar um remédio de que elle não gostava... pouco. Tomou o remédio para ganhar força.

    Piolin: Uma! Duas! Tres! Quantas gotas mesmo o medico receitou?

    Bengala: Não tome de menos! Faz mal!

    Piolin: Ôta, remedio ruim!

    Bengala: Não engula a colher!

  6. Narrador: Puchou bastante. Mas o carro pouco andava.

    Piolin: Não! Agora ele vem mesmo!

    Bengala: E eu só no equilíbrio.

  7. Narrador: Piolin podia com o camarão. Não podia, porém, com a bengala!...

    No bonde: Habilitem-se! O succo! Tem força! Entrada grátis. Sahida 200 reis.

A história em quadrinhos do dia 10 de abril de 1930 traz Piolin contracenando com diferentes tipos populares. Na história, cansado, o palhaço esperava descansar um pouco num banco de praça, que aos poucos é ocupado por outros trabalhadores igualmente fatigados, que disputam espaço e o espremem até que Piolin é levado ao hospital. Interessante pensar que Piolin estava cansado, mas não se sabe do que. Os demais personagens estão carregando objetos ou são identificados pela profssão que exercem, enquanto Piolin não tem uma motivação para o cansaço explicada.

Figura 11
(Piolin Desempregado)

Legendas das imagens:

  1. Piolin buscava um lugar. Onde fosse descançar.

  2. Entrou no Jardim da Luz, Sentou-se ao lado do Cruz!

  3. E já olvidava a canceira, Quando veiu a lavadeira...

  4. Depois o Beppe açougueiro, Que queria o banco inteiro!

  5. A Joanna entrou no Jardim!... Quase mataram o Piolin.

  6. Que, com o corpo triturado, Foi logo hospitalizado!...

Essa questão é interessante, já que em outra história em quadrinhos, Piolin perde o emprego e volta a ser vagabundo. Cabe pensar que o personagem, ao menos nos quadrinhos, não tinha profssão definida e portanto, disputava vagas de emprego com diferentes sujeitos que, como ele, compunham essa multidão de pessoas que pertenciam ao mundo do trabalho. No momento em que perde o emprego Piolin não é identificado como desempregado, mas como vagabundo, o que é representativo das poucas vagas de emprego formal disponíveis à época, não sendo suficientes para absorver a população em idade produtiva que estava disponível, ao mesmo tempo em que demonstra o discurso dos governantes e elites a respeito daqueles que não possuíam um emprego formal: eram vistos com desconfiança e rapidamente identificados como vagabundos.

Figura 12
(Piolin Garçon...)

Legendas das imagens:

1- Piolin vivia à matroca. E um dia foi convidado Para no “Café Mocôca” “Bancar” o fino empregado. 2- No novo emprego ele então, Já tendo casa e comida. Fingia ser bom garção, E não queria outra vida! 3- Ferrara namoro grosso Com a menina do balcão Que o achava um lindo-mo? De muito bom coração. 4- Um freguês inesperado, Cortou o idílio gritando: - Olá, garção namorado! Não vê que estou esperando?! 5- E vae Piolin com prestesa Atender o tal freguez, derrama o café na mesa E o emprego: Era uma vez! 5- A garçonete espantada Abriu a bocca no mundo - E Piolin, vida apertada! Voltou a ser vagabundo.

O humor, presente nas tirinhas de Piolin, que passam a ser nomeadas de “As desventuras de Piolin”, traziam referências ao jeito malandro ou esperto de ludibriar as regras. O exemplo da história a seguir é bem claro quanto a isso. Eram formas de dobrar as regras e diminuir os custos em diferentes aspectos da vida, inclusive o entretenimento, que àquela época, além do circo, também englobava os cafés, passeios e ruas comerciais, além do cinema como formas diversas de lazer.

Figura 13
(As desventuras de Piolin)

Legendas das imagens:

1- Piolin deu na veneta De ir ao cinema melhor. “Lá por dentro a cousa é preta Mas aqui fora é peor”. 2- Ao bilheteiro, o Claudino. Pede o nosso Piolin: “Meia entrada para o Lino, E uma inteira para mim!” 3- “Meia entrada só se vende Para as crianças que estão De calças curtas, comprehende? De calças compridas, não!” 4- Vem cá, moleque! Este amigo Pensa que do Congo eu vim! Tambem... andando comtigo Só podem pensar assim! 5- E eil-os, enfm, a caminho Da desejada funcção. “Pensando bem, esse zinho Foi mesmo camaradão” 6- E agora, seu “passarinho”, Tá satisfeito? Assim, pois, Vá passando, de mansinho, Uma entrada para dois!

Importante perceber que esses dois suportes imagéticos nos quais Piolin foi protagonista, as embalagens das balas e as histórias em quadrinhos no periódico A Gazeta, foram contemporâneos. As Balas Piolin iniciaram a circulação em 1927, enquanto as histórias em quadrinhos circularam a partir de 1929, mesmo ano em que Piolin foi homenageado pelos modernistas no almoço em que ele foi o “prato” principal.

Conclusão

Estas imagens de Piolin, que circularam nas fgurinhas e nas histórias em quadrinhos, assim como pantomimas criadas por Abelardo Pinto para o picadeiro, faziam crítica social, expunham desigualdades, exploravam o humor como forma de expor a realidade enfrentada pelos populares.

É da junção desses elementos todos que percebemos os diferentes motivos pelos quais Piolin foi a escolha feita pelos modernistas paulistas, da Semana de Arte Moderna, para representar aquilo que eles consideravam como a cultura popular brasileira simplificada em apenas um sujeito. Piolin era popular em diferentes sentidos: por não ser oriundo das elites, por viajar o Brasil afora com os espetáculos circenses, acolhendo, nos seus números, experiências e vivências de diferentes regiões brasileiras, por ter conquistado o público com suas apresentações.

Contudo, Piolin não era apenas isso, um artista popular e circense escolhido pelas elites modernistas paulistas. Artista circense, Abelardo Pinto aprendeu suas técnicas através de ensinamentos e observação dos demais artistas do circo, em um processo tradicional e geracional de ensino-aprendizagem. Já fazia sucesso com a plateia do Circo Alcebíades, no qual iniciara como palhaço, quando os modernistas o “descobriram”, enxergando em sua maneira de interpretar e nas peças e pantomimas que criava, personagens, situações e trejeitos populares. O êxito de Piolin enquanto artista não dependeu dos modernistas, porém, Abelardo apontou, em entrevista anteriormente citada, que o reconhecimento dos modernistas acelerou esse processo, pois eles pertenciam à elite, possuíam acesso a diferentes meios de comunicação, e, portanto, detinham espaços de discurso para quem ou o que desejavam.

A eleição de Piolin foi, de fato, uma seleção feita pelas elites dentre tantos outros artistas populares que circulavam, se apresentavam, produziam sob a lona do circo ou fora dela. Desta forma, os modernistas se aproximaram de um artista já reconhecido pelo público, autor e ator que acreditavam possuir capacidade de criação de um material autêntico e nacional, que o distinguia perante influências internacionais, e que levava seus discursos e sua arte a diferentes regiões brasileiras. Escolheram-no como símbolo de uma cultura nacional, diferente da deles e, por esta razão, era necessário que a devorassem, para que a entendessem, deglutissem, e dela se apropriassem.

Mais do que isso, Piolin também representava uma das formas de lazer presentes na Belle Époque, o circo, que denotava características de uma vida urbana, moderna, na qual o lazer, o teatro, o circo, o cinema, aparecem como formas de diversão, sociabilidade e distração. Somando-se a esses elementos, Piolin ainda se inseriu num processo maior, de novas técnicas e tecnologias que permitiram a propagação de imagens, a circulação de ilustrações de estilos e suportes diversos entre um público vasto. Através das fgurinhas das Balas Piolin, o consumo do personagem se dava na visualidade do espetáculo circense, na compra e consumo de balas, no colecionismo e hábitos de lazer e sociabilidades, como a troca e disputa de fgurinhas e também da criação de roteiros, unindo aleatoriamente as fgurinhas na ordem desejada, ou lendo e visualizando as histórias em quadrinhos protagonizadas pelo personagem no suplemento infantil do periódico A Gazeta.

Desta forma, Piolin não foi apenas um artista circense que teve seu talento e técnica reconhecidos, aplaudidos e homenageados por público diverso, desde os populares até os intelectuais, mas tornou-se mercadoria ao protagonizar situações variadas nos invólucros de balas e nas histórias em quadrinhos. Piolin era um dos representantes de uma arte tradicional e, simultaneamente, representava elementos modernos para o lazer e sociabilidade da época ao tornar-se personagem de figurinhas e história em quadrinhos, ao ser chamariz e produto de consumo, ao circular de forma abrangente e com técnicas que permitiram a produção e reprodução de imagens em larga escala, inserindo-se, assim, nos lares brasileiros. Piolin, assim como todos os artistas circenses, vivia o contemporâneo, experimentando, explorando e convivendo com as novas técnicas e tecnologias que surgiam, com as mudanças de hábitos e práticas sociais e culturais, abraçando as diferentes e inovadoras possibilidades encontradas, como as fgurinhas, os quadrinhos, o teatro, os programas de rádio, e, mais tarde, os programas de televisão. Desta forma, Piolin e outros artistas circenses criavam seus espaços de fala, expunham suas experiências, visões de mundo, discursos, utilizando todo um arsenal, tanto tradicional quanto inovador, disponível para falar de si, dos seus e dos diferentes contextos locais, regionais e nacionais nos quais estavam inseridos. Não precisavam, para isso, da benção de um grupo elitista, que desejava falar por eles e apropriar-se do que ele poderia oferecer.

Piolin atingiu, com sua arte, grupos sociais variados, elites, intelectuais, populares, letrados, iletrados, que o aplaudiam e o consumiam nas diferentes plataformas nas quais se apresentava ou era apresentado. Também uniu públicos etários distintos, pois o sucesso, de seus números circenses, atingia tanto os adultos, como as crianças. Além disso, seus produtos, as balas, fgurinhas e histórias em quadrinhos, tinham um imenso apelo junto ao público infanto-juvenil, público este que surgira enquanto grupo consumidor autônomo em fins do século XIX.

Piolin era, portanto, adulto e infantil, moderno e tradicional, elitista e popular, tosco e inovador. O personagem representava, de certa forma, todos os públicos, toda a população brasileira, mas acima de tudo, representava a população circense, seus discursos, experiências, formas de vida, trabalho e busca por oportunidades de exposição, circulação e audiência. A atuação de Piolin se concentrava nos picadeiros, onde Abelardo Pinto traduzia suas experiências enquanto circense, artista, brasileiro que circulava por regiões distintas do país. Mas, para além dos picadeiros, o sucesso permitiu a ele adentrar as residências das famílias que consumiam suas balas e histórias em quadrinhos, firmando uma sensibilidade, um imaginário, uma identidade, que passa a ser compartilhada por sujeitos muito distintos, que, de estranhos, da relação nós e outros, tornam-se apenas nós, brasileiros, fãs e entusiastas de Piolin. De certa forma, Piolin extrapola o papel que os modernistas elegeram para ele, pois acaba sendo um personagem que aproveita a rede de relações, a modernidade das técnicas gráficas, a força da elite enquanto elemento que abre espaços para diferentes plataformas, públicos e formas de expressão e lança-se em novos voos, fora da lona e do picadeiro, tornando-se porta-voz de um discurso que traz à tona, nos espetáculos, entrevistas, programas de rádio e, posteriormente, televisão, as experiências de vida e práticas cotidianas de um sem-número de brasileiros, protagonizando um produto de consumo, as balas, que eram envolvidas em embalagens cujas ilustrações traziam o personagem encarnando uma diversidade de situações, personagens e identidades.

O discurso das elites sobre Piolin, de reconhecimento de sua arte, de suas pantomimas, tinha como objetivo, através de suas homenagens e artigos publicados, dizer quem Piolin era e o que ele fazia. No entanto, o público do circo não precisava dessa intermediação, pois assistia, compreendia e significava os espetáculos à sua maneira. Somando-se a isso, esse discurso elitista e modernista tinha um público restrito, já que o teor dos textos era formal e pouco acessível para um público vasto, que inclusive não consumia as revistas nas quais parcela dos artigos era publicada, como Terra Roxa e Outras Terras.

O discurso de Piolin era popular, pois originara-se dentre os populares. Desta forma, além de vivenciarem as apresentações circenses dentro de suas próprias experiências, o público ainda acessava o discurso de Piolin, de diferentes formas, em versões ilustradas, como nas fgurinhas e nas histórias em quadrinhos. Falando através de imagens e não de um vocabulário formal e pouco acessível, o discurso e experiência populares conquistam maior autonomia, liberdade e alcance, com a eleição de meios discursivos e veículos de imprensa que atingiam, inclusive, o público analfabeto e semianalfabeto. O discurso de Piolin era democrático, com o uso de imagens, a circulação através de invólucros de balas e a publicação de histórias em quadrinhos na versão destinada ao público infanto-juvenil, de A Gazeta, englobando todos a quem seus espetáculos e produtos imagéticos alcançassem.

A força de Piolin não se resume, portanto, no fato de ter sido “escolhido” pelos modernistas, mas também por ter ultrapassado essa nomeação e ter protagonizado, através de diferentes formas discursivas, representações e produtos que permitiram aos diferentes grupos populares marginalizados ocuparem local de destaque, visibilidade e representação perante a sociedade.

A força de Piolin pode ser resumida na fala de Arthur Miranda, antigo frequentador do Circo Piolin, no documentário Piolin, o cor po e a alma do c irco, que a f r ma que:

A alma do circo é quando você... Eu vi Piolin, eu vi o circo, eu vi o trapézio, eu via tudo que era do circo, tudo que referencia, eu vi comedinhas, eu via atrações. O Piolin, para mim, era exatamente o circo. Então, se amanhã não tivesse mais lona, não tivesse mais mastro, não tivesse mais palco, só o Piolin, eu estarei vendo o circo. (SOUSA JUNIOR, 2015, 59 min.)

  • 3
    Em sua pesquisa, Lili Castro aponta que o palhaço de tipo branco é comum na palhaçaria europeia do início do século XIX, principalmente na Inglaterra, França e Itália. Encarnando um tipo de maior autoridade e requinte, esse palhaço aparecia de rosto pintado de branco e trejeitos sofsticados, remetendo à aristocracia da época, e se inspirando nos pierrots, da Commedia dell’Arte. Quando está atuando em dupla, ele mantém o lugar de autoridade, enquanto o outro palhaço, de tipo augusto, torna-se o desajeitado. Para maiores informações, consultar: CASTRO, Lili e BOLOGNESI, M. F. Palhaços. São Paulo: UNESP, 2003 [2003].
  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. As imagens das Balas Piolin são do acervo pessoal de Cristiane Framartino Bezerra, escritora de Ribeirão Preto, que autorizou digitalizá-las. As imagens das histórias em quadrinhos do Piolin são do acervo da Hemeroteca Digital Brasileira. Esse artigo é oriundo de discussões iniciadas em minha tese de doutorado, (SANTANA, Camila Jansen de Mello de. Um piá na urbe: fragmentos de modernização e urbanização nas fgurinhas das Balas Zéquinha (1929-1948). Tese (Doutorado em História)-Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. A pesquisa foi orientada pela professora Dr. Rosane Kaminski. A elaboração da tese contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES, bolsas de pesquisa (Processo 03/2015 a 06/2019: 1498947). Agradeço imensamente a leitura atenta e sugestões extremamente pertinentes que os avaliadores fzeram do texto original; à leitura da Bruna Alves Lopes, que enriqueceu o texto na sua primeira versão e ao Sérgio de Carvalho, que muito gentilmente compartilhou sua tese para inspiração, consulta e referência.
  • Este artigo integra o Dossiê 1922/2022: o século da Semana – balanços e perspectivas organizadores
    Francisco Cabral Alambert Junior, Marcos Antonio da Silva, Nelson Tomelin
  • Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. As imagens das Balas Piolin são do acervo pessoal de Cristiane Framartino Bezerra, escritora de Ribeirão Preto, que autorizou digitalizá-las. As imagens das histórias em quadrinhos do Piolin são do acervo da Hemeroteca Digital Brasileira. Esse artigo é oriundo de discussões iniciadas em minha tese de doutorado, (SANTANA, Camila Jansen de Mello de. Um piá na urbe: fragmentos de modernização e urbanização nas fgurinhas das Balas Zéquinha (1929-1948). Tese (Doutorado em História)-Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. A pesquisa foi orientada pela professora Dr. Rosane Kaminski. A elaboração da tese contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES, bolsas de pesquisa (Processo 03/2015 a 06/2019: 1498947). Agradeço imensamente a leitura atenta e sugestões extremamente pertinentes que os avaliadores fzeram do texto original; à leitura da Bruna Alves Lopes, que enriqueceu o texto na sua primeira versão e ao Sérgio de Carvalho, que muito gentilmente compartilhou sua tese para inspiração, consulta e referência.

Fontes

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  • COIMBRA, Carlos. Iracema Produção e Direção de Carlos Coimbra. Rio de Janeiro, 1979. 1 VHS (93 min.), sonoro, color.
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Editado por

Editores Responsáveis
Miriam Dolhnikof e Miguel Palmeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2022
  • Aceito
    13 Set 2022
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