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POLÍTICA E HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA EM MOÇAMBIQUE: DEZ NOTAS EPISTEMOLÓGICAS* * Uma versão em inglês e ligeiramente diferente deste texto foi publicada no número 39 (2013) da revista Kronos da Universidade de Western Cape, na África do Sul, com o título "Politics and contemporary history in Mozambique: A set of epistemological notes". Tradução do autor.

POLITICS AND CONTEMPORARY HISTORY IN MOZAMBIQUE: A SET OF EPISTEMOLOGICAL NOTES

Resumo

O artigo procura refletir sobre as condições de escrita da história contemporânea na sua relação com o poder político em Moçambique desde a independência em 1975. Argumenta que o Partido-Estado construiu a sua própria narrativa do passado recente - aqui designada de Roteiro da Libertação - e operacionalizou-a como instrumento político e ideológico de exercício do poder, para tal procurando legitimá-la, ou seja, transformá-la de memória política em memória pública. Ao mesmo tempo em que se debruça sobre a natureza do Roteiro da Libertação e a sua evolução para responder às exigências sempre novas do presente, o texto argumenta que a produção de narrativas acadêmicas autônomas e soberanas não pode, neste contexto, senão entrar em competição com o Roteiro da Libertação; uma competição que só em ambiente democrático pode ser desdramatizada e deixar de ser encarada politicamente como ameaça.

Palavras-chave:
História contemporânea; memória; Moçambique; Roteiro da Libertação; epistemologia

Abstract

The article attempts to reflect on the writing conditions of contemporary history in its relationship with political power in Mozambique since independence in 1975. It argues that the State Party has constructed its own narrative of the recent past - here termed the Liberation Script - and operationalized it as a political and ideological instrument for the exercise of power, in order to legitimize it, that is, to transform it from political memory into public memory. While discussing the nature of the Liberation Script and its evolution in response to the ever-present demands of the present, the text argues that the production of autonomous and sovereign academic narratives can, in this context, only compete with the Liberation Script; a competition that can only be de-dramatized in a democratic environment where such narratives are no longer considered as a political threat.

Keywords:
Contemporary history; memory; Mozambique; Liberation Script; epistemology

1.

Olhando a história contemporânea de Moçambique produzida no contexto doméstico, aquilo que surpreende, talvez mais ainda do que a sua questionabilidade, é a sua escassez. Tal situação, ao menos em parte, deve-se a uma herança colonial de difícil acesso da maioria da população a algo mais do que o nível básico de ensino, em particular à ausência quase absoluta de africanos no ensino superior no tempo colonial; a isto poderíamos associar a inexistência de cursos universitários de história até às vésperas da independência. 1 1 Além disso, há que ter em conta as fragilidades de uma história moçambicana que dava ainda os seus primeiros passos, com pioneiros como Alexandre Lobato que, ao menos parcialmente, incidiu o seu trabalho na história de um Moçambique já não como mera extensão da história de Portugal, mas centrada em si própria, procurando ligações novas com o subcontinente indiano, a costa oriental africana ou o interior da África Austral. A influência desses fatores estaria por detrás da escassez de historiadores e da fraca tradição historiográfica, com a consequente ausência de uma historiografia substancial.

Olhando de um ângulo diferente, poderíamos ainda acrescentar que a história enquanto disciplina acadêmica não tem grande reputação no atual contexto de transformação neoliberal da universidade, em que os cursos mais populares são aqueles que aparentemente garantem mais emprego, ou ainda que esta situação é também resultado do desinvestimento das autoridades no ensino superior devido a constrangimentos financeiros ou às crenças neoliberais. De qualquer forma, a história parece afastar-se cada vez mais do "mercado".

Finalmente, poderíamos simplesmente relativizar o argumento da escassez, apelando para a série de relatos históricos "informais" que ultimamente têm florescido nas prateleiras das livrarias, escritos sobretudo por veteranos nacionalistas e tomando a forma de biografias ou testemunhos históricos. Isto seria um indicador de que a história, ao menos fora dos muros da universidade, está bem de saúde.

Por mais verdadeiro que tudo isto possa ser, e por mais que apelemos ao contexto referido para entender a situação, continua difícil de entender, por exemplo, por que razão, quarenta anos após os acontecimentos, o país continua a aguardar a primeira história da libertação e da independência escrita internamente.

Cruzando as fronteiras para o interior da história contemporânea propriamente dita, e sem ignorarmos os argumentos já avançados, poderíamos procurar ainda novas causas de tal escassez na espécie de crise das narrativas assertivas numa disciplina que, nas últimas décadas, tem sido alvo de ataques continuados, particularmente por parte das teorias pós-coloniais, com acusações de autoritarismo, de propagação de perspectivas de classe ou tentativa de manutenção do monopólio das narrativas de explicação do passado. Na nossa era, o passado teria deixado de poder ser abordado por "grandes narrativas de explicação" e estaríamos condenados a fragmentos e pontos de vista diversificados. Ao recuar da assertividade para uma espécie de timidez, a disciplina procuraria refúgio em micronarrativas mais modestas, recusando prudentemente as generalizações ou buscando outras soluções no quadro da multidisciplinariedade em voga.

Ao procurar ainda um caminho distinto dos já referidos, as notas que se seguem baseiam-se no argumento segundo o qual tal escassez historiográfica doméstica é, em grande medida, consequência do tipo de relações de vizinhança estabelecidas entre a política e a história após a independência do país. 2 2 A Política e a História (e, mais adiante neste texto, a Memória) são aqui consideradas como categorias ou "campos" configurados pelas suas dimensões institucionais e práticas. A partir da independência, a Política tornou-se uma categoria dirigida pela Frelimo que, após o seu 3º Congresso em 1977, de forma algo paradoxal, se transformou em partido político, reforçando ao mesmo tempo o monopólio do poder; a História refere-se sobretudo a uma atividade acadêmica centrada na universidade. Em particular, elas procurarão mostrar que tais relações foram modeladas por dois importantes fatores: por um lado, o monopólio das explicações do passado detido pela política e, no interior desta, pela Frelimo, o partido no poder e única fonte de autoridade; e por outro, a centralidade de uma narrativa específica da libertação que, codificada como um roteiro, um script, constituiu um instrumento para legitimar essa autoridade e torná-la inquestionável. Por outras palavras, o Roteiro da Libertação veio a constituir aquilo que Michel Foulcault e Giorgio Agamben, depois dele, designaram de "dispositivo", ou seja, um discurso estratégico localizado na interseção das relações de poder e das relações de saber. 3 3 O dispositivo é resumido por Agamben (2009) com as seguintes três características: "a) É um conjunto heterogéneo que inclui virtualmente tudo, linguístico e não-linguístico, sob a mesma égide: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas políticas, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si é a rede que se estabelece entre esses elementos; b) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e localiza-se sempre numa relação de poder; c) Enquanto tal, ele aparece na interseção entre relações de poder e relações de conhecimento". Cf. AGAMBEN, Giorgio. What is an apparatus? Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 2, 3.

2.

Aquilo que é aqui designado de Roteiro da Libertação trata-se de um corpus narrativo coerente e fixo, constituído por uma sequência de eventos numa linha temporal e organizados em algumas grandes fases separadas entre si por congressos da Frelimo que operam como pontos de periodização. Cada congresso ocorre para resolver uma crise que se agravava no interior de cada período, e para neutralizar a ameaça que essa crise representava para o empreendimento nacionalista. A abertura de uma nova fase, tornada possível com a resolução da crise da fase anterior, é consequentemente uma prova concreta da justeza das análises da Frelimo e da eficiência das respostas que ela soube trazer.

Assim, e sucintamente, a Frelimo, frente ampla de libertação, conseguiu unir as pequenas organizações nacionalistas que anteriormente se digladiavam no ambiente anticolonial da diáspora, com o objectivo de conseguir a independência do país. As crises e tensões que caracterizaram esse processo culminaram e foram resolvidas no 1º Congresso da Frelimo, que consumou a união e estabeleceu a luta armada como estratégia para a independência, face à recusa intransigente do regime colonial de negociar o poder e, muito menos, de o entregar aos moçambicanos. Na fase seguinte, alguns membros ambiciosos dessas extintas organizações, tendo perdido os seus cargos de liderança com a unificação, e incapazes de assegurar novos cargos na Frente, abandonam-na para criar novos grupos. Entretanto, outros quadros da Frente, para quem a independência consistia simplesmente na substituição do regime colonial branco por um novo regime negro, e que usavam a sua posição privilegiada para conseguir retirar vantagens materiais da luta, tentaram alterar o curso estabelecido pelo Congresso, desencadeando uma nova crise interna baseada no confronto com a jovem liderança revolucionária empenhada na guerra de libertação no interior do país. Este conflito interno foi-se agravando até 1968, altura em que foi formalmente resolvido pelo 2º Congresso da Frelimo, que derrotou os reacionários, declarou a guerra popular prolongada como estratégia principal e adotou formalmente a revolução.

O desenvolvimento da guerra popular libertou um número crescente de territórios, designados de zonas libertadas, onde a vida quotidiana se organizava de maneira revolucionária, oferecendo um vislumbre daquilo que seria a vida do país independente no futuro. Funcionando como uma peça tangível do futuro colocada no passado, as zonas libertadas surgiram assim como uma espécie de "realidade fabricada" que testava e provava as soluções corretas que a Frelimo trazia para dirigir o país. Entretanto, a vitória militar e a conquista da independência vieram a constituir a prova definitiva de que as opções revolucionárias eram as opções corretas e justas.

3.

Quando chegou ao poder em 1975, na sequência do golpe militar em Portugal e do desmoronamento do regime colonial, a Frente de Libertação tinha à frente gigantescos desafios. Ao nível regional, o ambiente era altamente hostil, com a presença de um vizinho rodesiano muito agressivo e a extraordinária ameaça representada pela África do Sul do apartheid. Internamente, os desafios consistiam em conseguir controlar um Estado e um país que emergiam dos duros tempos coloniais e necessitavam de transformações profundas. Quase tudo tinha de ser feito desde o início. Apesar da sua magnitude, a tarefa era encarada com grande confiança e otimismo. O ato de governar era visto como a continuação daquilo que tinha sido feito com tanto sucesso durante a luta armada. Embora transferido para a cidade, o poder era muito direto e estava aberto a uma dinâmica centrípeta com a forte influência da sua base rural. O Estado colonial tinha de ser desmantelado e substituído por um novo Estado de base popular. As soluções dos problemas encontravam-se na sabedoria popular.

Se o ascendente militar garantia à Frente uma posição em que não tinha de negociar o poder, o seu itinerário histórico conferia-lhe legitimidade para essa atitude. Em tal contexto, o Roteiro da Libertação, enquanto narrativa desse itinerário efetuada pela entidade mais habilitada a fazê-la, a própria Frente, provou ser um poderoso instrumento não só para legitimar o regime em termos políticos, mas também para lhe proporcionar uma espécie de carta de navegação na condução dos destinos do país. De fato, a experiência granjeada durante a vitoriosa luta de libertação, baseada nas soluções encontradas pela Frente, constituía a melhor garantia de um sucesso continuado e, portanto, era ela que devia iluminar o caminho no presente. A experiência, tal como era narrada pelo Roteiro da Libertação, tornou-se assim uma base para a unidade de todos os moçambicanos.

A eficiência do Roteiro da Libertação, enquanto aparelho que assegurava ao regime a sua legitimidade e o tornava inquestionável, dependia de um corpus claro e direto, características necessárias para que pudesse chegar às massas populares e manter o seu vigor enquanto ditame; por outras palavras, dependia da sua simplicidade. E esta simplicidade era assegurada, em particular, pelo seu desenvolvimento linear com base em oposições binárias: justiça versus injustiça, nacionalismo versus colonialismo, revolucionário versus reacionário, moderno versus tradicional, militar versus civil, rural versus urbano etc. No interior de cada binômio, o progresso dependia da vitória do primeiro elemento sobre o segundo.

Alguns desses binômios mantiveram-se ativos durante toda a luta (nacionalismo versus colonialismo, por exemplo), enquanto outros surgiram como características das fases principais (assim, a primeira fase assistiu ao conflito unidade versus divisão; a segunda, aos revolucionários versus reaccionários etc.). Por outro lado, além de estruturar o roteiro, este raciocínio dicotômico teve repercussões que ajudaram a reforçar o regime em termos simbólicos, por exemplo, como triunfo do rural sobre o urbano ou da modernidade revolucionária sobre a cultura tradicional reacionária.

Além do papel formal atrás descrito, o Roteiro da Libertação teve também o papel muito importante de circunscrever e definir um capital de experiência que distinguia o revolucionário do cidadão comum, ou seja, aquele que participara na luta de libertação daquele cujo passado ocorrera no espaço ocupado pelo regime colonial. O revolucionário protagonizara os acontecimentos inscritos no roteiro e podia falar acerca deles, enquanto o outro, embora estando em maioria, misturava o sofrimento experimentado sob o regime colonial com os vícios adquiridos no contato com ele. As cidades, em particular, eram locais carregados de vícios coloniais extremos, descritas como ninhos de Pides (agentes da polícia política fascista) e prostitutas.

Vale a pena mencionar aqui duas maneiras de adquirir tal experiência revolucionária: uma era a narração de sofrimento, cerimônia através da qual um candidato devia descrever perante o coletivo a sua experiência de vida sob o regime colonial, uma espécie de "prova de sofrimento" como parte do procedimento para se juntar às fileiras revolucionárias; a outra, no período de transição imediatamente anterior à independência do país, consistia no envio de militantes relevantes, mas desprovidos de experiência revolucionária, para estadias mais ou menos curtas nos campos da guerrilha, de forma a adquirirem a experiência revolucionária. Ambas parecem maneiras interessantes de estabelecer uma experiência revolucionária comum a partir da transformação da experiência colonial individual, e um procedimento para estandardizar a experiência narrada pelo roteiro.

Em suma, por alturas da independência nacional, o país era um espaço de experiências plurais. E, tal como as zonas libertadas mostravam o futuro, a experiência inscrita no Roteiro da Libertação era simultaneamente a experiência que todos deviam desejar ter tido e aquela que se devia tornar a experiência de todos. O Roteiro da Libertação era o mapa que mostrava como o cânone da experiência relevante tinha de migrar do ambiente colonial para o ambiente revolucionário das zonas libertadas.

4.

O 3º Congresso da Frelimo de 1977, ao transformar a Frente num partido marxista-leninista, num contexto político denominado de "democracia de partido único", reforçou a unidade e fortaleceu o caráter inquestionável do regime. Disciplinou uma transição que, embora entusiástica, era pouco organizada, como se depois da festa de celebração fosse necessário regressar de forma ordenada à vida de todos os dias. A economia e a política foram ferreamente centralizadas no partido. Se com a independência o rural invadira o urbano, agora estava em vias de acontecer o contrário, com a nova ordem a irradiar da cidade capital Maputo para as províncias e zonas rurais. A montanha tornou-se cada vez mais a metáfora adequada para ilustrar a nova ordem das coisas, com "a nação" (a liderança) no topo e "a localidade" o povo na base. Passou a ser normal dizer "vou subir à nação" ou "estas orientações vão descer até a localidade". Se anteriormente o conhecimento se encontrava espalhado pelas zonas rurais, agora ele concentrava-se na cidade e, especificamente, no Partido de Vanguarda. Os campos de reeducação, criados para acolher os marginais que a cidade rejeitava e expulsava a fim de se tornar mais limpa e pura, localizavam-se nada mais nada menos que nas zonas rurais (o "mato", depois do interregno das zonas libertadas, voltava à sua condição periférica original). O ambiente tornou-se altamente influenciado pela estética soviética, com pirâmides, estrelas, uniformes militares e hierarquias rígidas: o líder no topo, seguido do bureau político, do comité central, das estruturas do partido até o nível local, e finalmente da sociedade em geral. O tempo foi também severamente disciplinado, com planos quinquenais, um plano prospectivo indicativo concebido para trazer o desenvolvimento em dez anos, ou mesmo um plano para reassentar em aldeias comunais toda a população rural do país num prazo de dez anos. Mais uma vez, isto serve de metáfora clara da vitória do urbano sobre o rural.

É evidente que, em tal contexto, a relação entre a Política e o Roteiro da Libertação e, em grande medida, o conteúdo deste último (o equilíbrio entre as suas afirmações e os seus silêncios) tinham ambos de mudar substancialmente. O Roteiro da Libertação tornou-se mais rígido e a sua utilidade era agora, não tanto mostrar o caminho do futuro, mas antes certificar quem estava habilitado a conduzir legitimamente a política em seu nome. Por outras palavras, o Roteiro da Libertação deixou de ser uma carta de navegação que orientava os esforços do país para passar a ser uma carta branca que podia cobrir todas as opções, extremamente rígida, mas ao mesmo tempo altamente adaptável a todas as possíveis finalidades.

Além da clareza e simplicidade atrás apontadas, duas características asseguravam agora a eficiência do roteiro. Em primeiro lugar, ele tinha de ser flexível para poder adaptar-se a um contexto em mudança e, portanto, para manter a sua capacidade de resposta em diferentes circunstâncias; e, em segundo lugar, tinha de estar selado, ou blindado, para permanecer a salvo de interpretações externas "não qualificadas" que podiam erodir a sua lógica e instalar a contradição entre os seus elementos internos.

Essas duas características estavam intimamente interligadas. A flexibilidade não era nova. Tinha a sua origem remota no velho princípio maoista das respostas concretas aos desafios concretos. Mas o que de fato a garantia essa flexibilidade após a independência era sobretudo o fato do Roteiro da Libertação não ser escrito, mas transmitido oralmente. Esta oralidade permitiu que o roteiro mantivesse a sua adaptabilidade ao longo dos anos, com base na gestão das suas afirmações e dos seus silêncios ou, se quisermos, mantendo um corpus central constante, mas com margens que podiam mudar ligeiramente para poder responder aos desafios do dia a dia, sempre diferentes. 4 4 Em bom rigor, alguns textos importantes enquadravam o roteiro, alguns deles sem autor expresso e publicados pelo Departamento de Trabalho Ideológico da Frelimo, e na sua maioria constituindo o registo escrito de discursos proferidos pelo presidente Samora Machel em grandes comícios (curiosamente, textos que mantiveram um sabor de oralidade). Em qualquer caso, e mesmo quando recorriam a exemplos históricos, eram textos que, pela sua natureza fragmentária, se destinavam a configurar princípios políticos e decisões de política mais do que a proporcionar relatos históricos rigorosos.

Claro que o fato de o roteiro ser dito, não escrito, sublinhava e tornava mais sensível a questão sobre quem estava habilitado a contá-lo; por outras palavras, quem eram aqueles que, como modernos griots, deviam gerir o conteúdo do roteiro, incluindo as suas ênfases e os seus silêncios. Se anteriormente, quando era aberto, o roteiro serviu à experiência da vitória da libertação no seu confronto com a experiência colonial, agora, deter a experiência da libertação tornara-se insuficiente. O Roteiro da Libertação estava completo e selado e, consequentemente, a experiência da luta não trazia um valor acrescentado per se. A questão agora já não se limitava à posse de experiência, a questão era agora quem devia gerir o roteiro. E essa nova habilitação provinha dos escalões e da disciplina do partido. O centro de gravidade tinha mudado do passado revolucionário para o presente político com a sua hierarquia.

5.

Do ponto de vista da Política, a História enquanto disciplina não podia acrescentar nada de útil ao Roteiro da Libertação, à exceção talvez de um prestígio acadêmico que, nesses dias, não parecia de resto muito necessário. Pelo contrário, mesmo se movida pelas melhores intenções, como era o caso, a História podia ter um impacto altamente contraproducente ao trazer complexidade àquilo que era simples e devia permanecer simples. A flexibilidade do roteiro seria afetada, uma vez que o texto escrito constitui a base da operação histórica. Além disso, o processo de "fabrico" afastar-se-ia da teleologia e das preocupações políticas para se aproximar da revisão e do debate, vistos com suspeição. E, finalmente, esta interferência teria autores individuais concretos e teria origem na prática acadêmica e não nos escalões da política. Isto significa que o funcionamento normal da História poderia, mesmo se involuntariamente, trazer um perigoso desafio aos princípios e autoridade mais elementares.

Certamente que tanto a Política como a História tinham preocupações éticas. Contudo, enquanto as da Política se referiam a uma ideia de ordem social e de missão política, ou seja, eram politicamente motivadas, a ética da História derivava sobretudo do seu método e das suas preocupações epistemológicas. Isto significa que a operação da História procuraria fontes sem qualquer complacência hierárquica e independentemente da orientação política, incluindo as fontes mais reservadas e sensíveis; e que aplicaria a estas fontes as suas próprias metodologias de validação, incluindo o procedimento do contraditório.

Tanto a Política como a História tinham por paradigma a verdade, mas na operação de cada uma as respectivas verdades eram articuladas com categorias distintas. Enquanto o roteiro se baseava numa verdade que distinguia o bem e o mal e tinha de funcionar no presente, sendo uma vez mais suportada por fundações teleológicas, a verdade em história relacionava-se com o que acontecera de fato e porquê. Consequentemente, do ponto de vista da Política, o bem e o mal (revolucionário versus reacionário) podiam ser perigosamente reduzidos a meras motivações dos atores num dado processo. E a intuição de tudo isto certamente que pesou nas reservas alimentadas pela Política, uma vez que o que estava em causa era a quebra da armadura que protegia o Roteiro da Libertação. 5 5 Evidentemente que se pode acrescentar a isto as suspeitas levantadas pelo passado colonial da história institucional que, até à independência, se baseara na elite colonial.

Após a independência, o preço a pagar por uma boa relação entre a Política e a História foi assim que esta última se manteve afastada do processo da libertação, incidindo antes em questões mais remotas da história e geografia coloniais. Certamente que a História tinha todos os motivos, incluindo éticos, para se posicionar ao lado do nacionalismo. Todavia, a maneira de expressar essa proximidade e alinhamento constituía ao mesmo tempo a maior ameaça ao Roteiro da Libertação: o debate da saga e a sua reescrita. 6 6 Tentativas de tratar historicamente o período da libertação, no início da década de 1980, foram drasticamente desencorajadas pelas autoridades.

6.

A guerra civil teve um impacto complexo no ambiente atrás descrito. Por um lado, contribuiu para tornar o regime mais rígido, num contexto regional em que o conflito com o apartheid chegava a uma espécie de clímax. Nessa rigidez integrava-se o reforço das barreiras que asseguravam a inexpugnabilidade do Roteiro da Libertação. Mas, por outro lado, o ambiente menos coeso criado pela guerra sem dúvida que provocou no roteiro os primeiros sinais de erosão. O primeiro elemento a ser afetado, tanto simbólica como literalmente, foi o princípio da unidade. Apesar do argumento de que a guerra se tratava de uma agressão externa, o que em si era verdadeiro, um fato inegável revelado pela guerra era que para uma parte crescente da sociedade moçambicana o Roteiro da Libertação não era inquestionável. E, embora ninguém se atrevesse a questionar o fundamento anticolonial da luta (nem sequer a Renamo nos seus discursos mais agressivos), tudo o que vinha depois disso era posto em causa, incluindo a questão da unidade. Embora esse questionamento não fosse detalhado nem sistemático, ele confrontava o roteiro desde a altura do 1º Congresso, aceitando Eduardo Mondlane como pai da nação, mas rejeitando tudo o resto. Figuras que haviam sido eliminadas da história ressurgiam como heróis merecedores de um lugar no panteão, como Uria Simango ou, desta feita em carne e osso, Phanuel Guideon Mahluza, antigo dirigente do Coremo agora integrando as fileiras da Renamo. Afinal, talvez a questão da unidade não tivesse ficado resolvida nos dias do início da luta. E, claro, as fases que se seguiam no roteiro eram matéria de desacordo total, com a Renamo a recusar radicalmente a revolução, para isso recorrendo à retórica anticomunista da Guerra Fria, mas também visando especificamente o Roteiro da Libertação.

Entretanto, desenvolvimentos como o Pacto de Não-Agressão assinado em 1984 entre Moçambique e a África do Sul em Nkomati também afetaram profundamente a mecânica de funcionamento do Roteiro da Libertação. Resumidamente, o pacto estabelecia que a África do Sul deixaria de apoiar a Renamo em troca da retirada do apoio de Moçambique ao Congresso Nacional Africano (ANC). Certamente que se pode argumentar que o pacto foi um ato de sobrevivência nacional em face de uma difícil situação militar, econômica e humanitária. Todavia, é também inegável que ele representou um golpe no conteúdo e na mecânica do Roteiro da Libertação. Literalmente, era a primeira vez que o princípio teleológico de que a justiça vencia sempre não se consumava, o conflito binário não terminava com a vitória das forças revolucionárias, mas, sim, com um pacto; de fato, uma espécie de empate. O pacto provava que um itinerário anteriormente infalível estava agora condenado a incluir retrocessos. A vitória deixava de ser um dado. Ou, pondo as coisas de outra maneira, pela primeira vez a realidade não podia ser explicada pela lógica do roteiro.

7.

É mais do que coincidência, um verdadeiro sinal dos tempos, o fato de ter surgido pela primeira vez em 1986 um desafio direto e sistemático ao roteiro, do ponto de vista da História enquanto disciplina (embora não necessariamente equacionado como tal pelos autores), na forma de um artigo escrito por Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (BRAGANÇA & DEPELCHIN, 1986BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6, 1986, p. 29-52., p. 29-52). 7 7 BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6, 1986, p. 29-52. E é interessante que o desafio foi lançado de duas maneiras distintas, embora intimamente relacionadas, sendo a primeira ligada a preocupações metodológicas e a segunda à relação com a realidade de então, por outras palavras, ao roteiro enquanto dispositivo. É questionada a separação da luta armada da história de Moçambique (passo necessário para construir o dispositivo), 8 8 Escrevem eles: "O período anterior à fundação da Frelimo é visto como fazendo parte dum outro período, nitidamente separado do período da luta armada. Não se põe em dúvida a validade dum estudo da história da luta armada, o que se questiona é saber se produzir uma história da luta armada dirigida pela Frelimo permite, automaticamente, compreender a história global do processo ao nível do país". Cf. BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique, op. cit., p. 35. De certa forma, isto parecia querer dizer que a história da Frelimo não devia ser vista como maior do que a história de Moçambique. aquilo que atrás considerei como a separação entre a experiência da libertação daqueles que participaram na luta armada e a experiência daqueles que apenas haviam vivido no mundo colonial, na verdade a maioria dos moçambicanos. Os autores consideram, além disso, que

Um dos problemas de fundo da História da Frelimo provém não só da forma vitoriosa como esta história é abordada, mas, sobretudo, da utilização dos seus conhecimentos de forma inquestionável. O fato de a luta armada ter desembocado na independência em 1975 contribuiu para que esta fosse vista como uma prova de justeza da luta armada, criando-se assim um consenso, implícito e silencioso, sobre as causas da vitória da independência (BRAGANÇA & DEPELCHIN, 1986BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6, 1986, p. 29-52., p.33). 9 9 Ibidem, p. 33.

Assim,

(...) a formulação de novas perguntas e questões torna-se (...) uma necessidade. Estas devem ser, porém, colocadas de modo a que permitam abordar a história da Frelimo, não como um texto inalterável, mas como um processo contraditório inserido na luta nacionalista e social de Moçambique (BRAGANÇA & DEPELCHIN, 1986BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6, 1986, p. 29-52., p.32). 10 10 Ibidem, p. 32.

Claramente, a História, que até então tinha mantido uma atitude discreta e silenciosa, tinha muito a dizer, quer sobre o conteúdo do roteiro, quer sobre a utilização deste como dispositivo. E o ambiente de abertura que surgiu em consequência do fim da guerra civil e do acordo de paz permitia-lhe sem dúvida encarar a sua tarefa com grande otimismo.

8.

O ambiente criado pelo acordo de paz favoreceu, em mais do que uma maneira, a abertura do Roteiro da Libertação. Em termos gerais, o acordo terminou com a guerra com base muito mais em elementos de perdão e esquecimento do que em elementos de lembrança, acusação ou saldar de dívidas. O presente parecia contar agora muito mais do que o passado na vida da população cansada da guerra, e o "comportamento" e a retórica da política tinham agora que ter isso em conta. Além disso, de acordo com a nova regra democrática, pelo menos teoricamente, a fonte da legitimidade política tinha de ser transferida da história da libertação para o processo eleitoral. A partir desta altura, ao que parecia, os argumentos mais importantes sob escrutínio democrático basear-se-iam em aspectos concretos da vida atual incluídos nos programas dos partidos, muito mais do que no papel histórico desempenhado que, aliás, era, como vimos, objeto de disputa. Ao que parecia, tal contexto ditaria o fim do Roteiro da Libertação enquanto dispositivo, ou pelo menos influenciaria a sua profunda transformação.

Essa transformação viria a ter lugar em volta de certo número de questões. Em primeiro lugar, ao tornar-se menos central e, portanto, menos sensível, o dispositivo e todos os aspectos relacionados com ele sofreram uma importante desdramatização. E, pelo fato de ser menos dramático, o Roteiro da Libertação acabou por começar a perder a sua já afetada natureza inquestionável, tornando-se uma área contestada aberta à intervenção da memória, individual ou pública, e aberta também à historiografia acadêmica. Para tal, as fontes orais e de arquivo, mantidas pela Frelimo e pelo Arquivo Histórico, teriam de ser disponibilizadas.

Significativamente, no dia 26 do mesmo mês em que foi assinado o acordo de paz, foi também aprovado pelo governo o decreto nº 33/1992, que instituía o Sistema Nacional de Arquivos. O seu artigo 11 afirmava que seria "permitido o acesso público aos documentos recolhidos ao Arquivo Histórico de Moçambique decorridos 30 anos sobre a sua produção, salvo se: a) houver restrições de confidencialidade determinadas no processo de avaliação e enquanto as mesmas se verificarem; b) estiverem sob processamento técnico". 11 11 Ver Governo de Moçambique. Boletim da República, I série, n. 43, 26 de outubro de 1992. A história contemporânea encontrava finalmente algum espaço de manobra. Estava em vias de se tornar disponível a matéria-prima para a sua operação, além, claro, dos testemunhos orais e escritos.

Surpreendentemente, ou talvez não, os acontecimentos seguiram, contudo, numa outra direção, uma vez que as forças políticas dominantes não estavam preparadas para desistir do dispositivo como instrumento para legitimar e reforçar o seu poder. O Roteiro da Libertação tornou-se por isso numa questão central disputada entre elas. 12 12 As forças da oposição procuraram preservar a figura de Eduardo Mondlane como pai da nação, ao mesmo tempo em que punham em causa todo o resto, que consideravam como um desvio comunista antidemocrático levado a cabo sob a direção de Samora Machel. Alguns dos seus heróis eram os réprobos da narrativa da Frelimo, Uria Simango em particular. Todavia, a "pegada" da oposição no interior do Roteiro da Libertação era tão leve que ela procurou estabelecer um dispositivo próprio, também provido de afirmações e de silêncios, sublinhando o fato de ter trazido a democracia ao país e silenciando o seu papel na brutalidade da guerra, por exemplo. A exploração desta linha cai fora do âmbito do presente texto. Em consequência, apesar de ele ter perdido a centralidade anterior, foi recuperado pela Frelimo como capital para a luta democrática, na medida em que esta organização se considerava a única herdeira do esforço da libertação.

Todavia, o novo contexto, completamente distinto, exigia uma exploração diferente do roteiro em termos das suas afirmações e dos seus silêncios. O primeiro e mais importante passo foi manter a propriedade do dispositivo ao mesmo tempo em que se garantia que a oposição permanecia fora dele, com o argumento de que ela nada mais tinha sido que uma força auxiliar dos rodesianos e da agressão sul-africana, desprovida, portanto, de quaisquer raízes no passado da libertação, ou figurando ali apenas com o papel de traidora ou derrotada.

Ao reclamar a propriedade do Roteiro da Libertação, a Frelimo tinha razão em grande medida, no sentido de que os atores que haviam dirigido a luta de libertação eram os mesmos que passaram a dirigir a Frelimo enquanto partido após a independência. Porém, em termos políticos, a lógica deste argumento enfermava de uma torção que provocou importantes mal-entendidos e lhe conferiu vulnerabilidades. Enquanto a Frente de Libertação tinha tido um âmbito nacional, o partido, por definição, só representa uma fração do espectro político uma vez que é composto por aqueles que a ele voluntariamente aderem. Se durante o sistema de partido único o argumento ainda podia manter em certo sentido a sua lógica, desde a adoção da constituição democrática de 1990 que previa um sistema multipartidário, que ele passava a enfermar de importantes ambiguidades e mesmo obscuridades. Pondo-se a alternativa de pertencer a um único partido ou a toda a nação, o roteiro devia agora ter permanecido com a segunda.

Mas, enquanto tentava sublinhar estes aspectos de propriedade, a Frelimo também evitava outros que exigiam um crescente silêncio, como era o caso, em particular, mas não apenas, do conteúdo socialista do roteiro, causador de grande desconforto, uma vez que contradizia abertamente a agenda neoliberal do partido, agora em construção. Em suma, era necessário um Roteiro da Libertação feito só de forma, sem o velho conteúdo socialista.

9.

A Memória formal chegou tarde a este processo, após o acordo de paz de 1992, quando nas livrarias começaram a surgir livros de testemunho, da autoria sobretudo de veteranos da Frelimo, tanto "do interior" como da luta armada. De qualidade desigual, serviam também propósitos diferentes, desde os clássicos da escrita de memórias aos do "estabelecimento da verdade", lidando com o passado de diversas maneiras, fazendo prova de lealdade política ou reafirmando itinerários individuais na geografia e no mercado políticos.

Com a introdução desta nova categoria na equação, o quadro tornou-se ainda mais complexo na medida em que a Memória estabeleceu desde logo uma tensão nova, nomeadamente com a Política e, em menor medida, com a História.

A tensão entre a Memória e a Política não era imediatamente discernível. Embora a compreensão dos contornos desta dinâmica necessite ainda de muita pesquisa, podemos colocar o assunto da seguinte maneira: a Memória existe, claro, desde o início, mas era anteriormente disciplinada pelo Roteiro da Libertação ou pelo menos submetida às conveniências deste. Isto significa que embora estivesse presente, a Memória reverberava em círculos muito mais estreitos, e mesmo nos casos em que ganhava certa notoriedade nunca desafiava o roteiro na sua mensagem central. Todavia, com o florescimento destas novas publicações, as coisas começaram a mudar. Embora à superfície os testemunhos parecessem corroborar ou mesmo reforçar o Roteiro da Libertação, de fato eles confrontavam-no pelo menos em dois importantes aspectos: sendo escritos, afetavam a flexibilidade atrás referida, datando e fixando as interpretações; além disso, eles surgiam como iniciativas "descentralizadas", com conteúdos que revelavam frequentemente contradições interpretativas entre si, ou diretamente com o roteiro. No final, os relatos diversos, descrevendo itinerários individuais com motivações frequentemente conflituosas, começaram a afetar a coesão do roteiro, reinstalando tensões que são inevitáveis na vida real. 13 13 Sendo a mais celebre de todas, a dúvida lançada sobre o fato de Alberto Chipande ser o autor do "primeiro tiro" contra as autoridades coloniais, levantada por outro importante veterano, o que, sem ser transcendental, erodia, porém, um valor simbólico importante uma vez que este acontecimento é considerado no Roteiro da Libertação como aquele que iniciou a luta armada.

Por outro lado, a Memória também estabeleceu uma tensão com a História. De fato, ela surgiu no senso comum como substituto legítimo da História ou pelo menos como fator que minimizava a ausência desta última. Para o público, o papel da História não é de debater e "produzir" o passado, mas de estabelecer inequivocamente o "passado verdadeiro". E, claro, aqueles que tinham vivido e experienciado os acontecimentos eram vistos como os mais credenciados para dizer como as coisas aconteceram, a estabelecer de uma vez por todas a verdade. De certa maneira, esses relatos ameaçavam, pois, substituir a História enquanto produção acadêmica. Muito mais atraentes, em particular devido ao ambiente mais dramático e emotivo que conseguiam criar, as memórias tinham talvez como única fraqueza o seu caráter fragmentário, numa altura em que a tarefa era explicar claramente a totalidade do processo ao grande público.

Mas a relação entre as duas tem sinais contrários dado que, em termos gerais, a Memória traz evidentemente uma dinâmica muito positiva. As memórias escritas, enquanto fonte, são um grande alimento da operação histórica, alargando as perspectivas e enriquecendo os debates. Mas, do lado negativo, há que ter em conta que as memórias escritas podem reduzir ainda mais o espaço de recolha de testemunhos orais, ameaçado já por estes 40 anos que medeiam a atualidade e os acontecimentos, além de que atenuam a pressão que tem de ser mantida no sentido da abertura dos arquivos.

Em termos gerais, a Memória veio produzir junto da Política um efeito bastante semelhante àquele que potencialmente podia ser produzido pela História que atrás referimos: trazer complexidade e debate ao roteiro, enfraquecendo o seu caráter inquestionável e afetando a eficiência do dispositivo. 14 14 Evidentemente, grande parte da argumentação usada para a Memória podia também aplicar-se a outra categoria fundamental surgida com o acordo de paz, a Mídia independente. É por isso que a Memória será sempre desconfortável para a Política.

10.

Argumentou-se atrás que o passado recente da luta nacionalista contra o colonialismo foi elaborado após a independência como um dispositivo que designei de Roteiro da Libertação, tendo por objetivo assegurar a continuidade e a legitimação do regime vitorioso. Constituído por um núcleo fixo, o roteiro agregou elementos em mudança para permitir a adaptação a uma realidade em alteração permanente, em particular na sequência da transformação da Frente de Libertação em partido. Profundamente desgastado pela guerra civil, o dispositivo enfrentou novos elementos de mudança com a adoção pelo país de uma constituição democrática, com o acordo de paz e, ainda uma vez, com a profunda transformação da Frelimo na sequência da adoção de uma agenda neoliberal. Durante algum tempo, a substituição do Roteiro da Libertação pela regra democrática como fonte de legitimação do poder parecia inevitável. Contudo, a Frelimo veio a mostrar grande relutância em prescindir do dispositivo, temendo que isso fizesse com que ela perdesse a sua preponderância. E, uma vez que a sua atual agenda política e econômica contradiz o conteúdo socialista do dispositivo, a opção parece ter sido a "re-blindagem" do roteiro para que a sua forma pudesse ser usada sem os inconvenientes do conteúdo. Por outras palavras, existe atualmente um profundo desencontro entre a mensagem transmitida pelo Roteiro da Libertação e aquilo que se pretende que seja a sua utilidade no presente.

Num tal contexto, a História enquanto disciplina acadêmica continua a representar um fator de perturbação para o Roteiro da Libertação, por velhas e novas razões. Estas últimas relacionam-se com uma transição democrática ainda difícil, em que a competição política se reveste de uma retórica militarista e de exclusão do outro. Assim, o fato de que a operação da história não pode ser medida em termos de filiação política, mas antes por paradigmas de rigor e crítica próprios, e de tal só poder ser aferido no interior da disciplina, segundo os seus métodos, procedimentos e níveis, é visto pela política como um sinal de independência muito pouco merecedor de confiança. Sinal claro dessa desconfiança é que, em desafio do que a legislação prescreve, os arquivos permanecem fechados.

E, todavia, a História pode ser de grande valor para o processo democrático. Ela pode ajudar a mostrar que não é apenas o futuro que se abre a uma miríade de possibilidades. O passado, sempre aberto à revisita, é o contrário de uma produção fixa, fechada, definitiva e unidimensional. O passado é um trabalho em permanente reelaboração. Neste sentido, ele tem de ser resgatado não como carta de navegação, não como carta branca, não como arma política, mas por aquilo que ele efetivamente é: um passado a ser partilhado e debatido por todos. Ao ajudar a criar a distância que deve sempre existir entre o presente e o passado, reduzindo este a dimensões que possam ser "manuseadas" pela sociedade, algo que a Política ainda não está preparada para fazer e a Memória é simplesmente incapaz de fazer, 15 15 Incapaz de criar a distância, mais emocional, a Memória tende a acompanhar a Política na manutenção, e por vezes exacerbação, da carga dramática do passado. E, de resto, a Memória, pelo menos enquanto material publicamente divulgado, pode sempre, e está provavelmente a ser "redisciplinada" no interior das instâncias da Frelimo. a História como disciplina tem certamente um papel a desempenhar. Mas para tal ela tem de conquistar mais espaço e liberdade de manobra.

  • *
    Uma versão em inglês e ligeiramente diferente deste texto foi publicada no número 39 (2013) da revista Kronos da Universidade de Western Cape, na África do Sul, com o título "Politics and contemporary history in Mozambique: A set of epistemological notes". Tradução do autor.
  • 1
    Além disso, há que ter em conta as fragilidades de uma história moçambicana que dava ainda os seus primeiros passos, com pioneiros como Alexandre Lobato que, ao menos parcialmente, incidiu o seu trabalho na história de um Moçambique já não como mera extensão da história de Portugal, mas centrada em si própria, procurando ligações novas com o subcontinente indiano, a costa oriental africana ou o interior da África Austral.
  • 2
    A Política e a História (e, mais adiante neste texto, a Memória) são aqui consideradas como categorias ou "campos" configurados pelas suas dimensões institucionais e práticas. A partir da independência, a Política tornou-se uma categoria dirigida pela Frelimo que, após o seu 3º Congresso em 1977, de forma algo paradoxal, se transformou em partido político, reforçando ao mesmo tempo o monopólio do poder; a História refere-se sobretudo a uma atividade acadêmica centrada na universidade.
  • 3
    O dispositivo é resumido por Agamben (2009)AGAMBEN, Giorgio. What is an apparatus? Stanford, CA: Stanford University Press, 2009. com as seguintes três características: "a) É um conjunto heterogéneo que inclui virtualmente tudo, linguístico e não-linguístico, sob a mesma égide: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas políticas, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si é a rede que se estabelece entre esses elementos; b) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e localiza-se sempre numa relação de poder; c) Enquanto tal, ele aparece na interseção entre relações de poder e relações de conhecimento". Cf. AGAMBEN, Giorgio. What is an apparatus? Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 2, 3.
  • 4
    Em bom rigor, alguns textos importantes enquadravam o roteiro, alguns deles sem autor expresso e publicados pelo Departamento de Trabalho Ideológico da Frelimo, e na sua maioria constituindo o registo escrito de discursos proferidos pelo presidente Samora Machel em grandes comícios (curiosamente, textos que mantiveram um sabor de oralidade). Em qualquer caso, e mesmo quando recorriam a exemplos históricos, eram textos que, pela sua natureza fragmentária, se destinavam a configurar princípios políticos e decisões de política mais do que a proporcionar relatos históricos rigorosos.
  • 5
    Evidentemente que se pode acrescentar a isto as suspeitas levantadas pelo passado colonial da história institucional que, até à independência, se baseara na elite colonial.
  • 6
    Tentativas de tratar historicamente o período da libertação, no início da década de 1980, foram drasticamente desencorajadas pelas autoridades.
  • 7
    BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6, 1986, p. 29-52.
  • 8
    Escrevem eles: "O período anterior à fundação da Frelimo é visto como fazendo parte dum outro período, nitidamente separado do período da luta armada. Não se põe em dúvida a validade dum estudo da história da luta armada, o que se questiona é saber se produzir uma história da luta armada dirigida pela Frelimo permite, automaticamente, compreender a história global do processo ao nível do país". Cf. BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique, op. cit., p. 35. De certa forma, isto parecia querer dizer que a história da Frelimo não devia ser vista como maior do que a história de Moçambique.
  • 9
    Ibidem, p. 33.
  • 10
    Ibidem, p. 32.
  • 11
    Ver Governo de Moçambique. Boletim da República, I série, n. 43, 26 de outubro de 1992.
  • 12
    As forças da oposição procuraram preservar a figura de Eduardo Mondlane como pai da nação, ao mesmo tempo em que punham em causa todo o resto, que consideravam como um desvio comunista antidemocrático levado a cabo sob a direção de Samora Machel. Alguns dos seus heróis eram os réprobos da narrativa da Frelimo, Uria Simango em particular. Todavia, a "pegada" da oposição no interior do Roteiro da Libertação era tão leve que ela procurou estabelecer um dispositivo próprio, também provido de afirmações e de silêncios, sublinhando o fato de ter trazido a democracia ao país e silenciando o seu papel na brutalidade da guerra, por exemplo. A exploração desta linha cai fora do âmbito do presente texto.
  • 13
    Sendo a mais celebre de todas, a dúvida lançada sobre o fato de Alberto Chipande ser o autor do "primeiro tiro" contra as autoridades coloniais, levantada por outro importante veterano, o que, sem ser transcendental, erodia, porém, um valor simbólico importante uma vez que este acontecimento é considerado no Roteiro da Libertação como aquele que iniciou a luta armada.
  • 14
    Evidentemente, grande parte da argumentação usada para a Memória podia também aplicar-se a outra categoria fundamental surgida com o acordo de paz, a Mídia independente.
  • 15
    Incapaz de criar a distância, mais emocional, a Memória tende a acompanhar a Política na manutenção, e por vezes exacerbação, da carga dramática do passado. E, de resto, a Memória, pelo menos enquanto material publicamente divulgado, pode sempre, e está provavelmente a ser "redisciplinada" no interior das instâncias da Frelimo.

Referências bibliográficas

  • AGAMBEN, Giorgio. What is an apparatus? Stanford, CA: Stanford University Press, 2009.
  • COELHO, João Paulo Borges. Abrir a fábula. Questões da política do passado em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 106, mai. 2015, p. 153-166.
  • COELHO, João Paulo Borges. Memory, history, fiction: a note on the politics of the past in Mozambique. In: RENCONTRE INTERNATIONALE: IL ÉTAIT UNE FOIS LES INDÉPENDANCES AFRICAINES... LA FIN DES EMPIRES?, 21-22 de outubro de 2010. Anais Paris: EHESS, 2010.
  • COELHO, João Paulo Borges. Política e memória: fontes arquivísticas e história contemporânea de Moçambique. Problemas e algumas perspectivas. In: IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS DE TRADIÇÃO IBÉRICA, 24-28 de outubro de 2005. Anais Lisboa: Torre do Tombo, 2010.
  • BRAGANÇA, Aquino de & DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, n. 5/6, 1986, p. 29-52.
  • Governo de Moçambique. Boletim da República, I série, n. 43, 26 de outubro de 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2018
  • Aceito
    19 Dez 2018
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