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Tradição e revolução: Mário de Andrade e o patrimônio histórico e artístico nacional

Tradition and revolution: Mário de Andrade and the Brazilian cultural heritage

RESUMO

Este artigo tem como foco as ideias de Mário de Andrade sobre a importância do patrimônio histórico e artístico nacional. Defende-se que a posição do escritor é informada por uma perspectiva vanguardista e revolucionária. Nesse quadro, a tradição não vale por si mesma, mas na medida em que comporta um aproveitamento contemporâneo e transformador, tanto na esfera artística quanto na esfera política.

PALAVRAS-CHAVE
Mário de Andrade; patrimônio histórico e artístico; Modernismo

ABSTRACT

This paper is focused on Mário de Andrade’s ideas about the importance of national historical and artistic heritage. We argue that the writer’s position is informed by an avant-gardist and revolutionary perspective. In this context, the value of tradition does not stand on its own, but insofar as it admits a contemporary and transformative use, both at aesthetic and political spheres.

KEYWORDS
Mário de Andrade; cultural heritage; Modernism

O interesse pelo passado sob o signo da atualidade,

quer dizer, sem passadismo, havia sido firmado

fazia duas décadas por Mário de Andrade.

(Roberto Schwarz, Sequências brasileiras, p. 48).

Do fundo das imperfeições que o povo faz, vem uma força [...]

que pode transferir o pouso das montanhas.

(Mário de Andrade, nota para o prefácio de Na pancada do ganzá. Os cocos, p. 419)

Mário de Andrade costuma ser entronizado como uma espécie de papa da conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Nos momentos em que a voltagem da ideologia é máxima, trata-se mesmo, sem exagero, de uma operação institucional de canonização, cujo resultado mais imediato é a composição de uma imagem tradicionalista e governamental do trabalho extraordinário e multifacetado que o criador de Macunaíma realizou com a herança cultural brasileira. A mistificação vem de longe; remonta pelo menos à época em que os estudos de Mário sobre o folclore nacional começavam a encorpar. Salvo engano, foi o próprio escritor o primeiro a percebê-la. Em carta de 1934 a Câmara Cascudo – um de seus principais interlocutores nas questões relativas às tradições brasileiras –, comenta sua surpresa com os “perversos seres humanos que estavam me virando medalhão”, advertindo na sequência, contrariado: “Não é isso não a minha íntima realidade, [...] minha realidade é muito outra, dum antiacadêmico pesquisador”2 2 Carta de 18 de junho de 1934 (ANDRADE, 2000a, p. 132). . Assim como em ocasiões anteriores, movimentando-se à contracorrente, opondo-se às tendências nacionais para a glorificação da personalidade, recusando a fetichização de si mesmo e da própria obra, Mário reafirma a disposição experimental que move sua atividade. Se nossa hipótese estiver correta, esse espírito – que talvez não seja inapropriado chamar de vanguardista – anima não apenas a produção literária do escritor, mas também suas reflexões, trabalhos e iniciativas no campo do patrimônio histórico e artístico nacional, inclusive aqueles que se desenvolvem na esfera oficial.

Considere-se por exemplo o trabalho mais institucional realizado por Mário de Andrade no campo da política de preservação do patrimônio: o anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), que o escritor elaborou em 1936 a pedido do Ministério da Educação, e que serviu de base para o decreto-lei por meio do qual foi criado o Sphan em 1937 (ANDRADE, 1981_____. Cartas de trabalho: correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945. Lélia Coelho Frota (Ed.). Brasília: MEC/Sphan, 1981.b)3 3 O anteprojeto elaborado por Mário de Andrade foi apenas parcialmente aproveitado no decreto-lei que determina a criação do Sphan. Seus aspectos radicalmente democráticos – que comentaremos a seguir – não foram acolhidos pelo legislador. . Conforme já se observou, o texto de Mário é bastante avançado e contém propostas inovadoras, que seriam incorporadas à legislação brasileira somente meio século mais tarde, na Constituição de 19884 4 No direito internacional, propostas semelhantes começam a aparecer em meados dos anos 1960, portanto trinta anos depois da elaboração do anteprojeto de criação do Sphan (SILVA, 2002). Cf. também: Sala, 1990. . Se é possível sintetizar esse avanço, digamos que o conceito de patrimônio que informa o anteprojeto subverte os parâmetros dominantes na década de 1930. Primeiro, porque inclui as manifestações da cultura popular, ampliando por exemplo a categoria dos “monumentos”, que passa a abranger não apenas as grandes igrejas, fortalezas ou palácios coloniais e imperiais, mas também casas e capelas populares e até cruzes de beira de estrada. Segundo, porque abarca não apenas os “bens materiais”, mas também os intangíveis, como as lendas, a música, as danças, os provérbios etc., bens que Mário chamava de “tradições móveis”.

Esses dois “gestos” – que aliás se articulam, uma vez que a força da cultura popular costuma ser maior justamente nos bens “imateriais” – delineiam uma ideia de patrimônio artístico não apenas mais ampla do que a concepção vigente naquele momento, mas verdadeiramente revolucionária. No que diz respeito às implicações práticas, quebra-se a tradicional identificação do patrimônio artístico com a propriedade privada e com a cultura das elites – portanto com o poder econômico, político e social (SALLA, 1990, p. 25). Já no plano teórico, a ênfase nas “tradições móveis” historiciza a categoria de patrimônio, que se torna concreta e instável, e não mais abstrata e rígida. A própria denominação escolhida pelo escritor para referir-se ao patrimônio imaterial – “tradições móveis” – ressalta o caráter dinâmico desses “bens” culturais: por meio dela, Mário chama atenção para o fato de que estes se transformam continuamente, de modo que é preciso (conforme aliás prevê o anteprojeto) realizar a revisão periódica dos critérios mesmos que definem o patrimônio artístico nacional.

São as tradições móveis, justamente, que atraem a maior parte do interesse de Mário de Andrade pelo patrimônio brasileiro. Embora não menospreze o valor das “antiguidades arquitetônicas esplêndidas” do período colonial5 5 A expressão é de Mário de Andrade (2015, p. 351). , seu trabalho se concentra nos bens imateriais, em particular na música e nas danças populares. Sobretudo por esse motivo, o Nordeste ocupa uma posição central na reflexão de Mário em torno da herança cultural do Brasil: na região nordestina persistiam, segundo o escritor, a maior quantidade e a maior diversidade de “tradições móveis” que ainda não haviam sido “desnorteadas pelo progresso invasor”6 6 A expressão, ligeiramente modificada na citação, é de Mário de Andrade (1936). Sobre o problema do progresso no pensamento andradino, cf. Lopez, 1972, p. 110-118. e que por isso mesmo ainda expressavam, por meio de manifestações artísticas originais, experiências psicossociais especificamente brasileiras, portanto modos de pensar e de viver diferentes das formas da racionalidade burguesa.

Para conhecer e registrar a arte popular do Nordeste, principalmente a cantoria nordestina, Mário realizou em 1928-1929 uma “viagem etnográfica” à região, e é com a finalidade principal de impedir “a perda destas criações que o progresso, o rádio, o cinema estão matando com violenta rapidez”7 7 “Sugestões” anexas ao texto do “Anteprojeto para a Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional” enviado a Rodrigo Melo Franco de Andrade (ANDRADE, 1981b, p. 53). , que organizou em 1938, já como diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, a conhecida Missão de Pesquisas Folclóricas, destinada a registrar bailados, festas e cantos do Nordeste8 8 Durante sua viagem ao Nordeste, Mário de Andrade escreveu crônicas diárias sobre suas experiências na região. A maioria desses textos aborda, sob ângulos variados, o contato do escritor com a música, as danças, os rituais e as festas do folclore nordestino. As crônicas foram reunidas em: Andrade, 2015. Uma seleção dos registros fonográficos da Missão de Pesquisas Folclóricas, acompanhada de um encarte com textos sobre esse projeto, encontra-se em: Andrade, 2006a. .

Ao contrário do que se poderia imaginar, entretanto, a crítica do progresso que destrói as tradições locais não implica, no pensamento andradino, tradicionalismo e antipatia pela modernização. As técnicas industriais e o urbanismo contemporâneo estimulam a sensibilidade e a imaginação de Mário mesmo durante a estadia no Nordeste, quando o foco se concentra em recolher, e dessa forma “salvar”, as tradições populares. Nas crônicas que escreve em Pernambuco, na Paraíba ou no Rio Grande do Norte, o “turista aprendiz” celebra em diversas ocasiões os esboços de progresso da economia da região. Distante da nostalgia senhorial de um Gilberto Freyre, reivindica por exemplo o advento das usinas nas plantações de cana-de-açúcar:

Como se vê são ainda processos bem primários de fábrica… Os pessimistas falam que pelo menos trinta por cento do açúcar se perde. Parece muito… Porém vinte por cento que seja, o brasileiro já está cansado com quatrocentos anos de banguê… Pede usinas. O “coqueiro” se inspira e na “pancada do ganzá” celebra as turbinas modernas…

– Adonde eu vi nove trubina?…

– Na Usina Brasileira.

– Adonde eu vi nove trubina?…

– Na Usina Brasileira.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 314).

Mário transcreve o refrão de um coco ouvido e anotado por ele no Rio Grande do Norte. A celebração, em chave ufanista-alegórica, da turbina moderna pelo cantador nordestino é um verdadeiro achado modernista, na medida em que a conjugação “inocente” e simpática de elementos do progresso com formas da cultura popular forjada nas áreas “atrasadas” do Brasil constitui um dos eixos do programa das nossas vanguardas, em particular do modernismo paulista dos anos 1920 (SCHWARZ, 1997SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: _____. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11-28.). Por sua vez, o ponto de vista que organiza o comentário acompanha o entusiasmo do coqueiro: a perspectiva “futurista” – que na Europa glorificava a “civilização” industrial, inclusive a poderosa capacidade de destruição da natureza que o progresso havia adquirido – não questiona a economia agrária, que remonta ao Brasil Colônia. Isso posto, interessa aqui observar o valor relativo que o patrimônio histórico ou artístico tem para Mário de Andrade nesse trecho de crônica: o antigo engenho colonial não figura como um bem cultural a ser preservado a todo custo; ao contrário, seu custo econômico justifica a substituição do banguê pela usina. As vantagens da eficiência produtiva prevalecem sobre a questão da salvaguarda do patrimônio cultural, cujo valor depende de sua função no presente.

A utilidade contemporânea das coisas do passado constitui portanto um critério relevante, por vezes decisivo, para a escolha de preservar ou não o patrimônio histórico e artístico nacional. Mesmo bens culturais preciosos são submetidos à consideração de sua “atualidade”, por assim dizer. Ao comentar a polêmica a respeito da demolição da Sé da Bahia, Mário oscila entre “os prós e os contras”, concluindo com a seguinte ponderação, que não condiz com a imagem de um pai-fundador dedicado à conservação incondicional das tradições brasileiras:

O problema da Sé da Bahia está mas é enunciado errado. É muito mais grandioso do que a derrubada ou não derrubada dum casarão pra alargamento de rua. O próprio centro urbano da cidade alta é que se tem de resolver se é prático ou não ficar onde está. Todas aquelas ladeiras, quedas de supetão, torceduras de terrenos são absolutamente contrárias a qualquer norma utilitária de urbanismo contemporâneo. Não é possível aplainar aquilo e retificar as ruas sem arrasar tudo. Ou se destrói tudo pra atualizar aquilo, ou, qualquer paliativo destruirá tradições curiosas e mesmo valiosas que nem a dita Sé, não passando de paliativo e não resolvendo nada – esse é o problema.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 298).

Mário reconhece a importância histórica e artística do casario e das igrejas coloniais da capital baiana, mas o valor dessas “tradições” não é absoluto. À luz dos princípios do “urbanismo contemporâneo”, a demolição do centro de Salvador – hoje tombado como patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) – revela-se uma medida razoável, que viabilizaria o alinhamento da cidade velha à modernidade. Essa racionalização do problema da destruição da Sé da Bahia constitui ela mesma uma posição moderna, na qual o valor do passado não é fetichizado nem descartado a priori, mas situado nas tensões do presente e determinado num contexto de demandas e perspectivas variadas e muitas vezes conflitantes.

Nesse quadro, a inexistência de monumentos históricos pode ser uma vantagem. É o caso de Natal, que representa no Turista aprendiz, no que diz respeito a essa questão, uma espécie de contramodelo da capital baiana. Natal é agradável, em grande parte, por ser uma “cidade mocinha, podendo progredir à vontade sem ter coisas que dói destruir”; “cidadinha clara, moderna”, “bem construída”, atravessada por “avenidas magníficas cheias de ar” e nucleada por uma “city” pequena e acessível, onde se concentram bancos, telégrafo, hotéis etc. (ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 297; 276). Na boca larga do Rio Potenji, ótima para a entrada e a saída de navios a vapor, o Forte dos Reis Magos, o mais importante monumento histórico da capital, figura como uma “marca chata de passado, que o embarcadouro apaga logo” (ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 276-277)9 9 Deve-se observar, entretanto, conforme notou Arthur Vonk (2015), que a valorização da modernidade é aqui modulada pela conjugação do progresso com estruturas, aspectos ou elementos pré-modernos. Assim, a capital rio-grandense-do-norte é moderna e ao mesmo tempo guarda um “ar de chacra”, com suas “ruas conhecidas encostadas na sombra de árvores formidáveis”, suas praças que são “quase pátio”, seu Palácio do Governo “familiar”. Como se sabe, a exaltação dessa coexistência muito particular de modernidade e familiaridade – ou por outra, a miragem de um “progresso inocente”, na expressão de Roberto Schwarz (1997, p. 24) – é muito própria do modernismo brasileiro. Suas implicações artísticas e políticas são complexas, contraditórias, e mereceriam um comentário aprofundado, que não cabe neste artigo. Para nós, importa ressaltar que a posição de Mário de Andrade no que diz respeito ao patrimônio histórico e artístico nacional está longe de ser unívoca. Sobre as contradições que estruturam a descrição de Natal feita por Mário, cf. Vonk, 2015, p. 62-65. Sobre a utopia modernista de um “progresso inocente”, cf. Schwarz, 1997. .

Mas a importância de preservar o patrimônio histórico e artístico pode ser relativizada não apenas em função de considerações por assim dizer não artísticas – de ordem econômica ou urbanística, por exemplo. Para Mário de Andrade, os bens culturais do passado podem ser um estorvo também do ponto de vista artístico, estético ou cultural10 10 Observando bem, é possível notar nas próprias considerações sobre as vantagens da modernidade amena de Natal o esboço de um ponto de vista estético, que se mistura ao enfoque utilitário – urbanístico e econômico: o velho forte à beira-mar, por exemplo, figura na paisagem como uma “marca chata de passado”, que perturba a harmonia entre os elementos modernos e os naturais. . Em uma passagem – sempre do Turista aprendiz – que lembra o comentário sobre os banguês e as usinas, Mário celebra, nas salinas potiguares, a troca dos velhos moinhos por motores elétricos:

Mas que boniteza as salinas!… Graças a Deus aliás que elas já estão perdendo a sensação metafórica de Holanda que davam pros sabidos. Os moinhos já estão sendo substituídos por motores elétricos, menos visíveis na paisagem que pra logo ficará tão somente sal e Sol, uma geometria em luz.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 328).

A substituição do velho meio de produção pelo novo, aqui, é bem-vinda em suas implicações estéticas – “que boniteza!” – e culturais. A introdução do progresso na economia salineira limpa a paisagem dos elementos que lhe conferiam um pitoresco kitsch, tornando-a moderna: de um lado, os moinhos antiquados, o passadismo pernóstico e a “macaqueação” provinciana da cultura europeia; de outro, os motores discretos, a natureza brasileira e a abstração de vanguarda. Nesse quadro, os moinhos são uma tradição cujo desaparecimento não apenas é aceitável – diante dos benefícios que a instalação de motores traz para a produção de sal – mas bem-vindo, na medida em que significa a abolição da cultura dos doutores e bacharéis, uma cultura importada, elitista, caduca e amaneirada, que os modernistas vinham dinamitando desde o início dos anos 192011 11 Vale notar que certas palavras de ordem do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” [1924] parecem ecoar no comentário do turista aprendiz sobre as salinas do Norte: “pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia […] a volta ao sentido puro […] contra todas as indigestões da sabedoria. [...] Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio” (ANDRADE, O., 1972). .

Mário de Andrade tem portanto um interesse não passadista pelo passado. Sua predileção pelas “tradições móveis”, ou seja, pelos bens culturais que se transformam ao longo do tempo, constitui por si mesma um indício desse ponto de vista não conservador em relação ao patrimônio histórico e artístico nacional. Sob essa perspectiva, o patrimônio interessa – e muito – na medida em que dá lastro histórico-social para a invenção de formas artísticas novas, portanto na medida em que contém elementos decisivos para a formação da cultura brasileira contemporânea. Na crônica em que discute o problema da demolição da Sé da Bahia, imaginando que sua posição poderia municiar os passadistas que o acusavam de ser um bárbaro futurista demolidor de tradições venerandas, Mário procura especificar suas ideias sobre a importância do patrimônio cultural brasileiro:

Dizem que sou modernista e... paciência! O certo é que jamais neguei as tradições brasileiras, as estudo e procuro continuar a meu modo dentro delas. [...] O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente estão porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares.

As tradições imóveis não evoluem por si mesmas. Na infinita maioria dos casos são prejudiciais. Algumas são perfeitamente ridículas que nem a “carroça” do rei da Inglaterra. Destas a gente só pode aproveitar o espírito, a psicologia e não a forma objetiva. A tolice básica da arquitetura neocolonial está nisso: pegaram, a maioria, nas formas decorativas coloniais, reduziram elas a fórmulas, que ajuntaram restaqueramente [...]. O resultado foi 89 por cento das feitas aleijões medonhos.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 297).

Como o leitor terá notado, Mário expõe uma concepção antitradicionalista de tradição, segundo a qual esta vale quando comporta um uso transformador, ou seja, conforme pode ser aproveitada em chave atual. Essa ideia já havia sido sugerida por ele em uma entrevista concedida em 1925, portanto em torno de dois anos antes da viagem ao Nordeste: “Nós já temos um passado guaçu e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente”12 12 “Assim falou o Papa do futurismo”. Entrevista para A Noite, Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1925 (ANDRADE, 1983a, p. 19). .

Como em outros momentos de sua obra, Mário de Andrade chama a atenção para a necessidade que havia, no Brasil de sua época, de constituir-se uma tradição cultural, mas enfatiza que “tradicionalizar” significa recolher e integrar em larga escala a nossa precária herança cultural tendo como referência o presente. Trata-se de estabelecer com o passado e seus problemas internos não apenas uma relação de continuidade ou adensamento, mas também de superação. Logo, o próprio conceito marioandradino de tradição inclui tanto o passado cultural quanto a liberdade em relação a ele13 13 A percepção é de Roberto Schwarz (1999a, p. 48). . Nesse contexto, a preservação do patrimônio histórico e artístico – um dos eixos principais do projeto de formação da cultura brasileira idealizado e posto em prática por Mário – não constitui uma finalidade em si mesma: o levantamento, a documentação e o tombamento dos bens culturais são norteados pela disposição vanguardista. Nada mais distante da cultura patrimonial defendida por Mário, portanto, do que a intenção de mumificar a cultura. Nem sequer os museus deveriam ser concebidos com espírito conservador:

O verdadeiro museu não ensina a repetir o passado, porém a tirar dele tudo o quanto ele nos dá dinamicamente para avançar em cultura em nós, e em transformação dentro do progresso social.

(ANDRADE, 1938_____. Museus populares. Problemas, n. 5. São Paulo: janeiro de 1938, p. 55.)14 14 Sobre as propostas museais de Mário de Andrade, cf. Lourenço, 2002. .

Outra coisa que me parece de enorme e imediata necessidade é a organização de museus. Mas, pelo amor de Deus! museus à moderna, museus vivos, que sejam um ensinamento ativo15 15 Carta de setembro de 1937, endereçada a Paulo Duarte (DUARTE, 1977, p. 152). .

O caráter avançado das ideias e ações de Mário de Andrade relativas ao patrimônio histórico e artístico não se restringe, pois, à dilatada extensão do conceito de cultura que as informa ou à inclusão dos bens imateriais na salvaguarda patrimonial. Além disso, o patrimônio é entendido pelo autor de Macunaíma como um conjunto de materiais que municia a produção artística de vanguarda. Não por acaso, Mário costuma identificar, nos bens materiais e imateriais que constituem o patrimônio histórico e artístico nacional, um parentesco com o vanguardismo. Entre inúmeros exemplos, tome-se o mesmo centro velho de Salvador, cuja demolição chega a ser cogitada por Mário de Andrade, conforme visto anteriormente. Se, por um lado, sob a ótica da racionalidade urbana, todas “aquelas ladeiras, quedas de supetão, torceduras de terrenos são absolutamente contrárias a qualquer norma utilitária” (ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 298), por outro, sob uma perspectiva por assim dizer psicológica, a experiência do Pelourinho tem aspectos expressionistas, futuristas, cubistas e surrealistas; os planos e curvas do bairro parecem organizados por montagem:

[…] Parece incrível que se tivesse construído uma cidade assim... Ruas que tombam, que trepam [...], o barulho nem é tamanho assim porém dá a impressão de enorme, um enorme grito.

A sensação de simultaneidade é feroz, lembra cinema alemão. Os bondes, pra desembarcar num plano, tombam de banda e passam por cima da cabeça da gente. Vêm cheios com moços de branco dependurados até nas torres curtas das igrejas. Torcem por cantos inconcebíveis [...] Um largo e três igrejas de repente. [...] Pra chegar na cidade alta a gente dá de cara com mais outra igreja de teatro, num trânsito vivo de gente irregular, todos os matizes [...]. Passear a pé em São Salvador é fazer parte de um quitute magnificente e ser devorado por um gigantesco deus Ogum, volúpia quase sádica, até.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 263).

Esse vanguardismo das tradições brasileiras é reconhecido por Mário de Andrade sobretudo na música, em especial na arte dos cantadores nordestinos16 16 Vale observar que a música era considerada por Mário de Andrade a arte que mais radicalmente transgredia a lógica da racionalidade burguesa, segundo a qual se organizava – de acordo com os nossos modernistas – a “civilização” europeia com seus recalques constitutivos. Não cabe, aqui, desenvolver essa questão. Indico apenas o essencial: que a música, segundo Mário, tende a cancelar aquele que talvez seja o princípio lógico fundamental dessa “civilização”: o princípio de não contradição, segundo o qual o mesmo não pode ser ao mesmo tempo o seu contrário. Cf., por exemplo, Andrade, 1980a; 1983b, p. 23-70. . Ouvindo coqueiros em Natal, por exemplo, Mário percebe que o canto desses artistas não se enquadra na escala cromática:

Em que tonalidade estão cantando? Às vezes é absolutamente impossível a gente saber. Um dos fenômenos mais interrogativos da humanidade é justamente a fixação dos sons da escala cromática. […]

Ora, está me parecendo que os coqueiros nordestinos usam também entoar com número de vibrações que afastam o som emitido dos doze sons da escala geral. O quarto de tom de que a música erudita não se utilizou na civilização europeia, esse estou mesmo convencido que os nordestinos dão. Já topei com ele três feitas nesta viagem, entoado pela preta Maria Joana, cantadeira famanada de Olinda, e por um catimbozeiro natalense. [...]

Não é cantar desafinado não. Cantam positivamente “fora de tom” e este fora de tom está sistematizado neles e é de todos.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 283)17 17 Mário recupera essa observação no Ensaio sobre música brasileira, onde essa “timbração estranha”, identificada também em outras manifestações da vida musical do país, é interpretada como característica – e talvez como algo já próximo de um patrimônio? – nacional, a ser aproveitada pelos compositores brasileiros: “São maneiras expressivas de entoar, originais, características e dum encanto extraordinário. São manifestações nacionais que os nossos compositores devem de estudar com carinho e das quais, se a gente possuísse professores de canto com interesse pela coisa nacional, podia muito bem sair uma escola de canto não digo nova, mas apresentando peculiaridades étnicas de valor incontestável. Nacional e artístico” (ANDRADE, 2006b, p. 43-46). .

Mário nota que os coqueiros nordestinos emitem frequências que não correspondem exatamente àquelas dos “doze sons” que compõem a escala cromática. Volta e meia, o canto situa-se entre uma nota e outra da escala, “escapando” portanto do sistema tonal bem temperado, em que se alicerça a música europeia do século XVIII até os inícios do século XX, e em que Max Weber identificou, na esfera da música, o processo histórico de racionalização que caracteriza a organização da sociedade burguesa (WEBER, 1995WEBER, Max. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. Trad. Leopoldo Waizbort. São Paulo: Edusp, 1995.). Com a abertura de espírito própria de um artista de vanguarda, Mário percebe que essa prática de cantar “fora de tom” não constitui um desvio da norma – situação em que esta existiria como parâmetro e continuaria a valer, apesar do desvio – mas outra norma, que estrutura outro sistema musical, diferente do sistema dominante: “Não é cantar desafinado não. Cantam positivamente ‘fora de tom’, e este fora de tom está sistematizado neles e é de todos” (ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 283). Noutras palavras, o escritor reconhece e valoriza, na cantoria popular nordestina, o emprego sistemático da microtonalidade, que naquele momento começava a ser explorada por compositores vanguardistas e que seria um dos principais campos do experimentalismo na música do século XX.

Outro aspecto vanguardista que Mário de Andrade ressalta na arte dos cantadores do Nordeste é a liberdade em relação ao compasso. Theodor W. Adorno, naqueles que talvez sejam os seus ensaios mais polêmicos, afirma que as celebradas liberdades rítmicas do jazz – geralmente consideradas como o principal aspecto do avanço do gênero – têm um alcance “tão limitado quando o corte especial de um vestido”, uma vez que se conformam sempre, claramente ou de maneira disfarçada, à “autoridade” do compasso fundamental da peça: “as conquistas rítmicas do jazz são meros ornamentos sobre uma arquitetura métrica convencional” (cf. ADORNO, 2001ADORNO, Theodor W. Moda intemporal – sobre o jazz. In: _____. Prismas: crítica cultural e sociedadeNone. Trad. Augustin Vernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. Ática: São Paulo, 2001, p. 117-130., p. 117-130; 2002_____. Essays on musicNone. Selected, with introduction, commentary and notes by Richard Leppert. Trad. Susan H. Gillespie. Berkeley: University of California Press, 2002., p. 495-499.). Não é o caso de discutir, aqui, a correção do juízo de Adorno, mas interessa notar que a autonomia que o filósofo não encontra no jazz – e que seria uma expressão radical de resistência contra a sociedade totalmente administrada – é observada por Mário de Andrade, com assombro e entusiasmo, na música dos coqueiros:

Quanto à maneira com que [os cocos] são cantados, ela é muito original e por vezes duma liberdade e dum caráter extraordinários. Momentos há em que se torna quase impossível descobrir e grafar com exatidão não só pequenas figurações, pequenas “fitas” virtuosísticas episódicas, como até o ritmo geral da peça. [...] A dicção musical se manifesta de maneira tão livre, tão prosódica às vezes, outras tão fantasista, que os ritmos se libertam de qualquer peia de compasso. [...] O ritmo às vezes é realmente livre, não combate o compasso porque prescinde deste, [...] prescinde do esquema métrico deste.

(ANDRADE, 2002c_____. Os cocos. Introdução e notas de Oneyda Alvarenga. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002c.).

A liberdade rítmica dos coqueiros é tamanha, que não raro desafia as possibilidades mesmas da notação musical. Ou seja, no limite, o ritmo dos cocos não se deixa matematizar, não se deixa apreender pela razão calculadora. Situada no contexto das reflexões de Mário sobre o folclore nacional, essa liberdade extraordinária dos coqueiros constitui uma radicalização de uma “tendência” geral dos brasileiros para “um jeito fantasista de ritmar” (ANDRADE, 2006b_____. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006b., p. 24-31). Em maior ou menor grau, o ritmo livre, que não se ajusta à “rítmica já organizada e quadrada que Portugal trouxe da civilização europeia”, aparece nas diversas formas da música popular brasileira – desafios, toadas, martelos etc. (ANDRADE, 2006b_____. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006b., p. 24-25). Não apenas nos cocos, portanto, mas em praticamente todas as manifestações populares que integram o patrimônio musical brasileiro, Mário destaca e valoriza o “desprezo” vanguardista pela “medida injusta (puro preconceito teórico as mais das vezes) chamada compasso” (ANDRADE, 2006b_____. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006b., p. 28)18 18 Vale notar, ainda, que segundo Mário o ritmo livre aproxima a cantoria brasileira do recitativo: trata-se, nas palavras do escritor, de uma rítmica “fraseológica”, “oratória”, que situa a música entre a canto e a fala, e que deveria ser aproveitada pelos compositores nacionais, tendo em vista romper com o “mensuralismo tradicional europeu”. Seria demais aproximar, na demolição que ambas implicam da autoridade do compasso, a recomendação marioandradina do “recitativo” – e também do canto “fora de tom” – e a valorização do “canto falado” (Sprechgesang) pela música de vanguarda, sobretudo expressionista, na Europa? .

À liberdade rítmica associa-se o caráter “improvisante”, na expressão de Mário de Andrade (2006b, p. 90)_____. Música de feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983b., das tradições musicais do Brasil. Mesmo quando se desenvolve dentro de parâmetros harmônicos, melódicos ou rítmicos, a improvisação é uma aventura, portanto o contrário da reprodução de modelos preestabelecidos; seu regime é o da invenção permanente (JANKÉLÉVICH, 1998JANKÉLÉVICH, Vladimir. De l’improvisation. In: _____. Liszt: rhapsodie et improvisation. Paris: Flammarion, 1998, p. 107-173.). Opõe-se, desse modo, ao mundo totalmente administrado – onde não se pode improvisar – oposição que lhe confere um caráter subversivo (ADORNO, 2001ADORNO, Theodor W. Moda intemporal – sobre o jazz. In: _____. Prismas: crítica cultural e sociedadeNone. Trad. Augustin Vernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. Ática: São Paulo, 2001, p. 117-130.). Mário de Andrade, na contramão de uma orientação conservadora em relação ao patrimônio artístico, enaltece justamente o momento da improvisação dos coqueiros, quando surge o canto novo – improvisação desenfreada em que os materiais da tradição retidos na memória são mobilizados e constelados de forma original e sem lógica aparente. No canto novo, que irrompe numa espécie de transe criativo, os aspectos vanguardistas – dadaístas, surrealistas, expressionistas, futuristas, cubistas – da prática musical dos cantadores se concentram e se radicalizam: o cantador “descreve de maneira moderníssima e impressionante” (ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 169). Comentando a arte admirável de Chico Antônio, Mário destaca esse momento superlativo em que o cantador, valendo-se das formas tradicionais, subverte a tradição e inventa música nova:

[...] quanto mais gira e mais tonto [o cantador], mais o verso da embolada fica sobrerrealista, um sonho luminoso de frases, de palavras soltas, em dicção magnífica. Poemas que nenhum Aragon já fez tão vivo, tão convincente e maluco. É prodigioso.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 318).

De repente, sem razão, sem ele mesmo perceber como, [...] em vez de seguir na embolada costumeira, o cantador saiu num canto que desconhecia. [...] numa exaltação inconcebível [...] discursava em sons feito louco, engolia palavras pra respirar [...] num texto inventado e sem nexo, multiplicando versos-feitos sobre sertão, despedidas, bois, amor e trabalhos de engenho, numa lucilação sobre-humana em que todo o Nordeste se expandia com fragor.

(ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 47).

Talvez não haja imagem mais forte do “desrecalque localista” que, na expressão de Antonio Candido (2000a, p. 120)CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: _____. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000., nossos modernistas procuraram ativar. Ao contrário do saudosismo regionalista e tradicionalista que começava a emergir entre alguns intelectuais brasileiros no final dos anos 1920, o espírito que anima essa liberação modernista de conteúdos socioculturais reprimidos – no nosso caso, a orientação em que Mário de Andrade compreende a forma popular do canto novo – é cosmopolita e contemporâneo19 19 Numa das crônicas de sua viagem ao Nordeste, Mário critica “um nordestinismo atrasadão, assoberbante, às vezes ridiculamente vaidoso, apoucando a sensibilidade, a atualidade de muitos daqui” (ANDRADE, 2015, p. 339 – grifo meu). . As afinidades do canto novo com as experiências das vanguardas evidenciam-se no conto “Vida do cantador”, na cena em que Chico Antônio, vindo do Nordeste, chega à cidade de São Paulo. Sob a influência dos inúmeros estímulos simultâneos da cidade moderna, que o embriagam como a cachaça e a dança giratória, o cantador experimenta a mesma vertigem de sensações que precede a irrupção do canto novo, mas que nesse caso prepara a expressão vanguardista de uma “sinfonia da metrópole”:

Luzes encarnadas, azuis, verdes, apagavam, acendiam, casas iluminadíssimas, pra quê tanta luz! enfieiras de bondes, moças passeando, uma misturada formidável. [...] havia também as frases dos outros, se entendia quase tudo, muitas moças passeando, mas que rua incomparável, [...] automóvel que não acabava mais, quedele o prêmio que a morena me mandou, buzinas, uma porta era teatro, músicos, deléns de mais bondes enormes chegando. Chico Antônio estava tonto. Principalmente estava deliciado. Gozava por dentro um chuáá contínuo, enlanguescente, nirvanizante, muito cômodo e conhecido, que era ele. Se repetia nele um daqueles momentos de paroxismo a que atingia no coco, quando após muito esforço de canto, muito giro de corpo, cachaça operando, desintelectualizado, ai vou montar no carrossel, pra onde vais mulher! todo ele se fundia numa nebulosa eloquente em que as próprias palavras eram valores imensos cósmicos de música. Era maravilhoso o que estava sentindo.

(ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 58-59)20 20 Uma vertigem semelhante parece estar na origem dos poemas “futuristas” de Pauliceia desvairada. Nessa linha, o trecho que descreve a inspiração de Chico Antônio parece ser uma representação literária do “estado lírico”, ou “lirismo”, que se encontra no centro da poética vanguardista proposta no “Prefácio interessantíssimo”: “O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. […] Lirismo: estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura” (ANDRADE, 2013, p. 66; 71). .

Isso posto, pode-se dizer sem risco de exagero que as “tradições móveis”– ou seja, os bens culturais que compõem o patrimônio artístico imaterial – têm para Mário de Andrade uma função revolucionária no campo das artes. Coalhadas de elementos que não se enquadram nas convenções estéticas clássicas ou burguesas, elas prefiguram as rupturas vanguardistas e devem ser assimiladas pelos artistas contemporâneos com disposição inovadora, tendo em vista a liquidação histórica de uma cultura atrasada, elitista e falsificada.

Ao longo da década de 1930, à medida que a obra de Mário de Andrade realiza uma inflexão política, tornando-se cada vez mais engajada nas questões sociais, o valor das tradições populares passa a associar-se não apenas à revolução cultural, mas também à revolução política. Em um texto do início dos anos 1940 sobre a situação do folclore no Brasil, Mário faz uma observação interessante, em que a assimilação da cultura popular é disposta sob a perspectiva da luta de classes:

Na maioria das suas manifestações, [o folclore no Brasil] é antes uma forma burguesa de prazer (leituras agradáveis, audições de passatempo) que consiste em aproveitar exclusivamente as “artes” folclóricas, no que elas podem apresentar de bonito para as classes superiores. Na verdade este “folclore” que conta em livros e revistas ou canta no rádio e no disco, as anedotas, os costumes curiosos, as superstições pueris, as músicas e os poemas tradicionais do povo, mais se assemelha a um processo de superiorização social das classes burguesas.

(ANDRADE, 1998_____. Folclore. Manual bibliográfico de estudos brasileiros. Direção de Rubens Borba de Morais e Willian Berrien. Brasília: Senado Federal, 1998., p. 423).

Mário denuncia uma forma de aproveitamento das “tradições móveis” que não significa a promoção efetiva do âmbito popular nem sequer na esfera da cultura, muito menos no plano social. Nesse quadro, o folclore é assimilado pela burguesia: primeiro, somente em sua dimensão estética, que é separada de suas implicações sociais; segundo, somente nas formas em que não fere o gosto da classe que o consome. Assim despojado das asperezas que poderiam perturbar a paz burguesa, reduzido a suas manifestações “bonitas”, o material popular perde o gume – inclusive no plano artístico – tornando-se objeto de uma experiência “culinária”, em que a posição das elites, ao contrário de ser ameaçada, é reconfirmada. Portanto, a superação dos drásticos desníveis culturais do Brasil, ou seja, a incorporação das matrizes da cultura popular pela arte “erudita” e moderna, não poderia realizar-se sem a abolição dos ainda mais drásticos desníveis sociais do país.

Mário de Andrade começa a desenvolver a percepção do vínculo entre revolução artística e revolução política no final dos anos 1920. Não caberia, nos limites deste artigo, reconstruir – na medida em que isso é possível – o complicado processo de tomada de consciência política de Mário. Todavia é importante mencionar que a “viagem etnográfica” ao Nordeste parece ser uma experiência decisiva para o início dessa transição21 21 Mário reconstitui em parte o processo de sua politização, balizando-o com alguns de seus poemas engajados, em uma carta de 5 de abril de 1944 endereçada a Carlos Lacerda (cf. ANDRADE, s. d., p. 83-93). . Nas crônicas que escreve durante a viagem, não raro ele registra a forte impressão que lhe causa a “miséria medonha” que depara na região, impressão forte a ponto de interditar não apenas a alegre curiosidade modernista pela cultura local, mas até mesmo a própria possibilidade de fazer literatura. Noutras passagens, procura calcular as condições de vida dos trabalhadores, estimando salários e concluindo serem estes “ridículos”, “criminosos”. Nos passeios pelo interior, faz a crítica da concentração da propriedade da terra, e em certo momento chega a dar como certo o advento de uma revolução no país. Assim, ao mesmo tempo que recolhia os bens imateriais do patrimônio histórico e artístico nacional, Mário de Andrade ia adquirindo, na expressão de Antonio Candido (2000b)_____. Literatura e subdesenvolvimento. In: _____. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000b, p. 140-162., uma “pré-consciência do subdesenvolvimento do país”. As duas experiências ocorrem ao mesmo tempo e vão se amalgamar ao longo dos anos 1930, precipitando-se em algumas da obras mais importantes da produção tardia de Mário, em especial no conto Vida do cantador e na ópera Café.

A cena final da Vida do cantador inicia-se com o lamento insuportável dos bois de uma fazenda de café em São Paulo, onde o coqueiro Chico Antônio se instalara havia pouco para trabalhar na lavoura. Inconsoláveis, alguns também furiosos, os bois choram a morte de um novilho, que fora abatido para o jantar do fazendeiro. Em vão, funcionários da fazenda procuram acalmar os bois, que se exasperam mais e mais:

Foi quando se escutou um grito que subia, um grito sobre-humano, agudíssimo, claro, tão nítido que feria, tão forte que dominou a voz lamentosa dos bois. Chico Antônio, trepado no mourão mais alto da porteira grande, aboiava. [...] E a voz vibrante, em notas musicalíssimas, subiu, se ergueu num arpejo de sétima, firmou-se no som, tremeu, mas baseando-se na apoiadura rápida firmou-se outra vez, se prolongou na vogal fechada, aguda de som, grave no tom, se prolongando até sobrepairar fulminante acima do choro dos bois. E então desceu num glissando lento, vindo terminar no mais grave, num som falado macio, quase um segredo, ôh, boi!… [...] Não durou muito e o bramidos dos bois se espaçavam.

(ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 62-63).

Chico Antônio tranquiliza os bois e anuncia a eles, cantando, que vai embora da fazenda, onde a vida é “ganhar dinheiro ganhar dinheiro” e o indivíduo, “manejado pela concorrência”, não está mais “na posse de todas as suas qualidades de ser”; onde o trabalhador não passa de um “corpo forte” e as noites são “de um mutismo desumano”: “Vou-me embora, vou-me embora ô-lê-ô-dá! tão cedo eu aqui não venho”, canta Chico Antônio:

[…] Depois desceu simples do mourão, se dirigiu a eles, parou junto deles. Os bois o encaravam cheios da mansidão. Vá!… murmurou sério, só pros bois. E eles partiram, buscando a outra porteira que dava para o campo. Chico Antônio seguiu com eles, mas, percebendo que a porteira estava fechada, ordenou irritado:

– Abram essas porteiras! .

(ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 64).

Abandonar a fazenda, nesse contexto, significa recusar a civilização burguesa, o mundo morto do dinheiro e do trabalho reificado, onde não existe lugar para o canto – “numa fazenda da Paulista! cantar!… Já se fora o tempo” (ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 61)22 22 Assim como em outros momentos da obra de Mário, o boi constitui nessa cena final da Vida do cantador um símbolo do trabalhador brasileiro (cf. FRAGELLI, 2015). . A negação da ordem capitalista é mediada pela encantação que Chico Antônio entoa para os bois. Como um Orfeu sertanejo, o cantador amansa os animais por meio da música, aplaca a revolta desesperada e sem direção, e mostra o caminho da liberdade. Todavia o êxito dessa revolta pacífica, conduzida apenas pela arte, é posto em xeque no último e trágico momento do conto. Há um touro zebu na fazenda, e sua fúria não cede à influência encantatória da música de Chico Antônio: “para o touro não havia consolo possível”. Quando o cantador ordena que a porteira do campo seja aberta para os bois saírem, “um rapazola sem prática”, funcionário da fazenda, abre por engano a cocheira do zebu:

Se escutou só um ronco feio e o monstro num galope seco. Chico Antônio ainda se virou, mas foi pra receber em cheio na barriga as guampas do zebu.

Quando conseguiram matar a fera o cantador já estava morto fazia tempo. Jazia contorcido, uma perna dobrada por baixo da outra, olhos esbugalhados, as mãos engruvinhadas no ventre, como querendo prender as tripas sangrentas. Na boca também, entreaberta, uma baba sangrenta.

(ANDRADE, 1993_____. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993., p. 64).

A morte do cantador pela violência cega do touro desfaz de um golpe a miragem da liberação pacífica das classes populares nucleada pela cultura; e assinala, por meio do choque – que é também um choque de linguagem, na descrição do cantador morto –, a importância da formação de uma consciência política, que direcione a potência libertária das “tradições móveis” – ou seja, que leve os trabalhadores a distinguir seus inimigos e a direcionar a revolta contra eles, de modo que a revolução não sacrifique a si mesma no momento de sua realização.

A conjugação das matrizes da cultura popular com uma orientação política constitui o núcleo poderoso da ópera Café, onde o patrimônio artístico imaterial é aproveitado por técnicas de vanguarda – em especial, do teatro expressionista, para representar um assunto contemporâneo, a crise econômica de 1929 – e projetar uma revolução popular de caráter socialista. A título de comentário ou mesmo apenas de ilustração, importa notar que os principais materiais do folclore utilizados por Mário de Andrade em Café advêm das danças dramáticas do Brasil, bailados que o escritor considerava, em conjunto, “uma das manifestações mais características da música popular brasileira”, e que por isso constituíam objetos privilegiados da política de preservação do patrimônio artístico nacional esboçada por Mário em sua própria atividade de folclorista (cf. ANDRADE, 2002b_____. Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002b.)23 23 A frase citada encontra-se na página 31. .

A presença das danças dramáticas se verifica tanto na concepção e na estrutura geral da ópera quanto em momentos particulares, sob a forma de pequenos materiais – ritmos, melodias, versos – introduzidos pelo autor no libreto ou na marcação de cena24 24 A aproximação do libreto de Café com as danças dramáticas é sugerida por Flávia Camargo Toni (2004, p. 123). . Segundo o próprio Mário, a ideia básica sobre a qual a ópera foi composta concentra-se no “princípio místico de morte e ressurreição da natureza”, que “fundamenta as nossas danças dramáticas de origem não erudita” (ANDRADE, 1998a_____. (1943). Psicologia da criação. In: COLI, Jorge (Org.). Música final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Campinas: Editora da Unicamp, 1998a., p. 105)25 25 Em nota manuscrita, Mário sugere que o Café, no fundo, é um “reisado secular”. Sobre os reisados, cf. Andrade, 1999, p. 434-435. . Na concepção de Café, esse princípio associa-se à morte e ressurreição do grão de café, e assume a forma histórica de uma crise econômica da qual emerge uma revolução social – no caso, a crise da economia cafeeira paulista, em 1929, e uma revolução popular imaginária, desejada pelo escritor, que eclode na cidade de São Paulo.

Por sua vez, o aproveitamento das “tradições móveis”, sobretudo das danças dramáticas, em momentos particulares da obra pode ser identificado em todas as cenas da ópera, nas quais são incorporados por meio de técnicas experimentais: “pedaços” de materiais tradicionais são inseridos em contextos diferentes de seu contexto original, ora justapostos a materiais populares de origem diversa, ora deformados por um tratamento expressionista, ora combinados a formas da cultura erudita etc. Para nós, entre os inúmeros exemplos possíveis, interessa especialmente observar que as palavras de ordem proferidas pela multidão na cena final, em plena ação revolucionária, são cantos de guerra extraídos de congos – danças dramáticas de origem africana, que celebram a entronização de um novo rei negro:

TODOS: Fogo e mais fogo! Fogo até morrer!

(Textos e música tradicionais no Brasil.) [...] É guerra! É guerra! É revolução! É de parte a parte Fogo na nação!

(Textos e música tradicionais no Brasil.) (ANDRADE, 2013_____. Poesias completas. Edição de Telê Porto Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013., p. 608-610).

Para Mário de Andrade, a revolução pulsa no coração das tradições populares:

Por detrás da casa [casa-grande do engenho Bom Jardim, no Rio Grande do Norte], parecendo perto, principia um bate-bate surdo. É longe. É um zambê, coco pra dançar, acompanhado a puíta, zambê, ganzá e a “chama”, outro tambor de voz medonha, atravessando os ares. [...]

São 24 horas e me deito. O zambê continua no longe. E continuará decerto até que rompa a arraiada. Uma sensação estranha de século XIX... Samba de escravos perpetuado através de todas essas liberdades servis... Que não acabarão de verdade enquanto não vier uma fatal, mas longínqua ainda, bandeira encarnada.

(ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 319).

  • 2
    Carta de 18 de junho de 1934 (ANDRADE, 2000a_____. Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Introdução e notas de Veríssimo de Melo. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000a., p. 132).
  • 3
    O anteprojeto elaborado por Mário de Andrade foi apenas parcialmente aproveitado no decreto-lei que determina a criação do Sphan. Seus aspectos radicalmente democráticos – que comentaremos a seguir – não foram acolhidos pelo legislador.
  • 4
    No direito internacional, propostas semelhantes começam a aparecer em meados dos anos 1960, portanto trinta anos depois da elaboração do anteprojeto de criação do Sphan (SILVA, 2002SILVA, Fernando Fernandes da. Mário e o patrimônio: um anteprojeto ainda atual. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 30, 2002, p. 129-137.). Cf. também: Sala, 1990SALA, Dalton. Mário de Andrade e o Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. In: Revista do IEB, n. 31, São Paulo, 1990, p. 19-26..
  • 5
    A expressão é de Mário de Andrade (2015, p. 351)_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015..
  • 6
    A expressão, ligeiramente modificada na citação, é de Mário de Andrade (1936)ANDRADE, Mário de. A situação etnográfica no Brasil. NoneJornal SínteseNone, n. 1, Belo Horizonte, outubro de 1936.. Sobre o problema do progresso no pensamento andradino, cf. Lopez, 1972LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972., p. 110-118.
  • 7
    “Sugestões” anexas ao texto do “Anteprojeto para a Criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional” enviado a Rodrigo Melo Franco de Andrade (ANDRADE, 1981_____. Cartas de trabalho: correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945. Lélia Coelho Frota (Ed.). Brasília: MEC/Sphan, 1981.b, p. 53).
  • 8
    Durante sua viagem ao Nordeste, Mário de Andrade escreveu crônicas diárias sobre suas experiências na região. A maioria desses textos aborda, sob ângulos variados, o contato do escritor com a música, as danças, os rituais e as festas do folclore nordestino. As crônicas foram reunidas em: Andrade, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015.. Uma seleção dos registros fonográficos da Missão de Pesquisas Folclóricas, acompanhada de um encarte com textos sobre esse projeto, encontra-se em: Andrade, 2006a_____. Missão de Pesquisas Folclóricas. São Paulo: Sesc, 2006a..
  • 9
    Deve-se observar, entretanto, conforme notou Arthur Vonk (2015)VONK, Arthur Vergueiro. Turista em transe. Magma, n. 11, São Paulo, 2015, p. 55-69., que a valorização da modernidade é aqui modulada pela conjugação do progresso com estruturas, aspectos ou elementos pré-modernos. Assim, a capital rio-grandense-do-norte é moderna e ao mesmo tempo guarda um “ar de chacra”, com suas “ruas conhecidas encostadas na sombra de árvores formidáveis”, suas praças que são “quase pátio”, seu Palácio do Governo “familiar”. Como se sabe, a exaltação dessa coexistência muito particular de modernidade e familiaridade – ou por outra, a miragem de um “progresso inocente”, na expressão de Roberto Schwarz (1997, p. 24)SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: _____. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11-28. – é muito própria do modernismo brasileiro. Suas implicações artísticas e políticas são complexas, contraditórias, e mereceriam um comentário aprofundado, que não cabe neste artigo. Para nós, importa ressaltar que a posição de Mário de Andrade no que diz respeito ao patrimônio histórico e artístico nacional está longe de ser unívoca. Sobre as contradições que estruturam a descrição de Natal feita por Mário, cf. Vonk, 2015VONK, Arthur Vergueiro. Turista em transe. Magma, n. 11, São Paulo, 2015, p. 55-69., p. 62-65. Sobre a utopia modernista de um “progresso inocente”, cf. Schwarz, 1997_____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999..
  • 10
    Observando bem, é possível notar nas próprias considerações sobre as vantagens da modernidade amena de Natal o esboço de um ponto de vista estético, que se mistura ao enfoque utilitário – urbanístico e econômico: o velho forte à beira-mar, por exemplo, figura na paisagem como uma “marca chata de passado”, que perturba a harmonia entre os elementos modernos e os naturais.
  • 11
    Vale notar que certas palavras de ordem do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” [1924] parecem ecoar no comentário do turista aprendiz sobre as salinas do Norte: “pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia […] a volta ao sentido puro […] contra todas as indigestões da sabedoria. [...] Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio” (ANDRADE, O., 1972ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Obras completas – 6: do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 8-10.).
  • 12
    “Assim falou o Papa do futurismo”. Entrevista para A Noite, Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1925 (ANDRADE, 1983a_____. Entrevistas e depoimentos. Edição organizada por Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983a., p. 19).
  • 13
    A percepção é de Roberto Schwarz (1999a, p. 48)_____. Os sete fôlegos de um livro. In: _____. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 46-58..
  • 14
    Sobre as propostas museais de Mário de Andrade, cf. Lourenço, 2002LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus à grande. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 30, 2002, p. 183-209..
  • 15
    Carta de setembro de 1937, endereçada a Paulo Duarte (DUARTE, 1977DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: Hucitec, 1977., p. 152).
  • 16
    Vale observar que a música era considerada por Mário de Andrade a arte que mais radicalmente transgredia a lógica da racionalidade burguesa, segundo a qual se organizava – de acordo com os nossos modernistas – a “civilização” europeia com seus recalques constitutivos. Não cabe, aqui, desenvolver essa questão. Indico apenas o essencial: que a música, segundo Mário, tende a cancelar aquele que talvez seja o princípio lógico fundamental dessa “civilização”: o princípio de não contradição, segundo o qual o mesmo não pode ser ao mesmo tempo o seu contrário. Cf., por exemplo, Andrade, 1980a_____. Terapêutica musical. In: _____. Namoros com a medicina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980a, p. 13-56.; 1983b_____. Música de feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983b., p. 23-70.
  • 17
    Mário recupera essa observação no Ensaio sobre música brasileira, onde essa “timbração estranha”, identificada também em outras manifestações da vida musical do país, é interpretada como característica – e talvez como algo já próximo de um patrimônio? – nacional, a ser aproveitada pelos compositores brasileiros: “São maneiras expressivas de entoar, originais, características e dum encanto extraordinário. São manifestações nacionais que os nossos compositores devem de estudar com carinho e das quais, se a gente possuísse professores de canto com interesse pela coisa nacional, podia muito bem sair uma escola de canto não digo nova, mas apresentando peculiaridades étnicas de valor incontestável. Nacional e artístico” (ANDRADE, 2006b_____. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006b., p. 43-46).
  • 18
    Vale notar, ainda, que segundo Mário o ritmo livre aproxima a cantoria brasileira do recitativo: trata-se, nas palavras do escritor, de uma rítmica “fraseológica”, “oratória”, que situa a música entre a canto e a fala, e que deveria ser aproveitada pelos compositores nacionais, tendo em vista romper com o “mensuralismo tradicional europeu”. Seria demais aproximar, na demolição que ambas implicam da autoridade do compasso, a recomendação marioandradina do “recitativo” – e também do canto “fora de tom” – e a valorização do “canto falado” (Sprechgesang) pela música de vanguarda, sobretudo expressionista, na Europa?
  • 19
    Numa das crônicas de sua viagem ao Nordeste, Mário critica “um nordestinismo atrasadão, assoberbante, às vezes ridiculamente vaidoso, apoucando a sensibilidade, a atualidade de muitos daqui” (ANDRADE, 2015_____. O turista aprendiz. Telê Porto Ancona Lopez; Tatiana Longo Figueiredo (Ed.). Brasília: Iphan, 2015., p. 339 – grifo meu).
  • 20
    Uma vertigem semelhante parece estar na origem dos poemas “futuristas” de Pauliceia desvairada. Nessa linha, o trecho que descreve a inspiração de Chico Antônio parece ser uma representação literária do “estado lírico”, ou “lirismo”, que se encontra no centro da poética vanguardista proposta no “Prefácio interessantíssimo”: “O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. […] Lirismo: estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura” (ANDRADE, 2013_____. Poesias completas. Edição de Telê Porto Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013., p. 66; 71).
  • 21
    Mário reconstitui em parte o processo de sua politização, balizando-o com alguns de seus poemas engajados, em uma carta de 5 de abril de 1944 endereçada a Carlos Lacerda (cf. ANDRADE, s. d._____. 71 cartas de Mário de Andrade. Coligidas e anotadas por Lygia Fernandes. Rio de Janeiro: Livraria São José, s. d., p. 83-93).
  • 22
    Assim como em outros momentos da obra de Mário, o boi constitui nessa cena final da Vida do cantador um símbolo do trabalhador brasileiro (cf. FRAGELLI, 2015FRAGELLI, Pedro. O bicho do Brasil: o significado social do boi na obra de Mário de Andrade. In: PENJON, Jacqueline (Org.). L’animal dans le monde lusophone: du réel à l’imaginaire. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2015, p. 237-266.).
  • 23
    A frase citada encontra-se na página 31.
  • 24
    A aproximação do libreto de Café com as danças dramáticas é sugerida por Flávia Camargo Toni (2004, p. 123)TONI, Flávia Camargo. Café, uma ópera de Mário de Andrade: estudo e edição anotada. Tese (Livre-docência). Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004..
  • 25
    Em nota manuscrita, Mário sugere que o Café, no fundo, é um “reisado secular”. Sobre os reisados, cf. Andrade, 1999_____. Dicionário musical brasileiro. Coordenação de Oneyda Alvarenga e Flávia Camargo Toni. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999., p. 434-435.
  • Este artigo constitui um dos resultados de uma pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) entre 2014 e 2018, com apoio da Capes. Sua primeira versão foi apresentada no colóquio “Repensando o Nordeste”, realizado em novembro de 2016 no mesmo Instituto.
  • FRAGELLI, Pedro. Tradição e revolução: Mário de Andrade e o patrimônio histórico e artístico nacional. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 75, p. 144-161, abr. 2020.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2019
  • Aceito
    13 Fev 2020
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