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O silêncio sinfônico da floresta. Geofonia, biofonia e antropofonia em A selva, de Ferreira de Castro

The symphonic silence of the forest. Geophony, biophony and anthropophony in Ferreira de Castro’s A selva

RESUMO

A selva (1930), de Ferreira de Castro, é um romance baseado num conhecimento profundo da floresta, que, no plano narrativo, se traduz numa aposta sem precedentes na atividade de escuta. A partir de algumas sugestões desenvolvidas no âmbito dos Sound studies, o presente ensaio busca elaborar uma reflexão sobre a paisagem sonora em A selva, destacando a interação entre sons de origem biológica (biofonia e antropofonia) e não biológica (geofonia), na convicção de que, para compreender a floresta, é necessário antes de tudo saber ouvir e interpretar seus sons e seus silêncios.

PALAVRAS-CHAVE
Ferreira de Castro; Amazônia; paisagem sonora.

ABSTRACT

A selva (1930), by Ferreira de Castro, is a novel based on a deep knowledge of the forest that, on the narrative level, translates into an unprecedented bet on the activity of listening. Drawing upon suggestions developed within the scope of Sound studies, this essay reflects on the soundscape in A selva, highlighting the interaction between sounds of biological origin (biophony and anthropophony) and non-biological (geophony), in the conviction that to understand the forest, it is necessary first of all to know how to listen and interpret its sounds and silences.

KEYWORDS
Ferreira de Castro; Amazon; soundscape.

Eu pretendera fugir à regra.

(Ferreira de Castro, A selva, 2018a).

Publicado em 1930, na cidade de Porto, o romance A selva, de Ferreira de Castro, foi um dos maiores sucessos editoriais da sua época. Imediatamente consagrado em Portugal e no Brasil, em poucos anos foi traduzido para 14 idiomas (inclusive para o japonês e o sueco), tornando-se um verdadeiro best-seller internacional. Calcula-se que em 1958 já estava à venda em 21 países e era apreciado por milhões de leitores. Segundo José Hermano Saraiva, A selva “é talvez o romance de um escritor português do século XX que mais extraordinária repercussão obteve em todo o mundo” (SARAIVA, 2006SARAIVA, José Hermano. A escola e a selva: evocação de Ferreira de Castro. Programa apresentado por José Hermano Saraiva dedicado ao cenário da Casa-Museu Ferreira de Castro em Ossela, Rede de Televisão Portuguesa (RTP), transmitido no dia 28 de junho de 2006. Disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/a-escola-e-a-selva/. Acesso em: 2 jan. 2023.
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). Por sua vez, Luciana Stegagno Picchio não hesita em considerar o livro “um clássico da literatura portuguesa, uma daquelas obras que, como se diz hoje com fórmula vagamente eclesiástica, entra no cânone da literatura portuguesa” (PICCHIO, 2018PICCHIO, Luciana Stegagno. Texto de contracapa. In: CASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018.).

Mas A selva é, sobretudo, uma obra transnacional de um autor que não se identifica com um único país e que, como sugere Jorge Amado, também o Brasil pode reivindicar plenamente como parte de seu patrimônio literário regional e nacional:

Para nós, brasileiros, Ferreira de Castro é um paraense dos melhores, não o consideramos estrangeiro, sequer português. Pelo menos o Ferreira de Castro de A selva, romance brasileiro, marco de grandeza da nossa literatura. Nada de maior se escreveu, na nossa língua ou em qualquer outra, sobre a Amazônia e a tragédia do homem amazônico. (AMADO, 1998AMADO, Jorge. Nossa honra e nosso orgulho. In: ALVES, Eurico de Andrade (org.). Ferreira de Castro: sonho de uma humanidade - no centenário do seu nascimento 1898-1998. São João da Madeira: Associação Internacional dos Amigos de Ferreira de Castro, 1998, p. 129., p. 129).

Ao longo das décadas, são muitos os intelectuais e os escritores que expressaram elogios e admiração para A selva e para o talento de seu autor como, por exemplo, Blaise Cendrars, Agustina Bessa-Luís, Albert Camus, Richard Bermann, Jaime Brasil (BRASIL, 1961BRASIL, Jaime. Ferreira de Castro. Lisboa: Arcadia, 1961.; NEVES, 1976NEVES, Avelino Vieira (Org.). In memoriam de Ferreira de Castro. Cascais: Arquivo Bio-Bibliográfico dos Escritores e Homens de Letras de Portugal, 1976.; ALVES, 2012ALVES, Ricardo António. Viajar com Ferreira de Castro. Guimarães: Opera Omnia, 2012.; SAMUEL, 2017SAMUEL, Paulo (Org.). Ferreira de Castro, 100 anos de vida literária. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2017.). Dessa lista faz parte também Stefan Zweig (2006)ZWEIG, Stefan. (1942). Brasil um país do futuro. Porto Alegre: L&PM, 2006., que, em seu célebre Brasil, um país do futuro, de 1942, deixou um comentário que vale a pena ser destacado. Nas páginas dedicadas à economia da borracha e ao “terrível sistema de exploração” presente na região amazônica, o escritor vienense ressaltava com fervor as cruéis condições de vida dos seringueiros e apontava A selva como uma leitura obrigatória: “Quem quiser entender todos os pormenores do horror daquela época deve ler o admirável romance de Ferreira de Castro, que narra esse período vergonhoso com grandioso realismo” (ZWEIG, 2006ZWEIG, Stefan. (1942). Brasil um país do futuro. Porto Alegre: L&PM, 2006., p. 110).

Realismo e engajamento são, de fato, as características principais d’A selva e, em boa parte, os motivos de seu sucesso editorial. Como várias obras sobre a Amazônia, ela foi escrita por uma testemunha direta. No entanto, o que a torna uma obra única no gênero é o tipo de testemunho que ela traz. Ferreira de Castro não foi um viajante, um explorador, um engenheiro ou um cientista que se limitou a atravessar a Amazônia dentro de um período limitado de tempo. Ele foi um emigrante cujo trabalho o obrigou a ter uma convivência intensa e cotidiana com a região durante vários anos.

A selva é uma ficção autobiográfica, e, portanto, a análise do romance não pode prescindir das experiências vividas pelo seu autor (ALVES, 2012ALVES, Ricardo António. Viajar com Ferreira de Castro. Guimarães: Opera Omnia, 2012.; AMORIM, 1998AMORIM, António. Ferreira de Castro e a Amazônia: ou a atração do abismo. Oliveira de Azeméis: Caima Press Edições, 1998.; BAZE, 2012BAZE, Abrahim. Ferreira de Castro, um imigrante português na Amazônia. 3. ed. Manaus: Valer Editora, 2012.; BERNARD, 1992BERNARD, Emery. L’humanisme luso-tropical selon José Maria Ferreira de Castro. Grenoble: Ellug, 1992.; NAVARRO, 1958NAVARRO, Judith. Ferreira de Castro e o Amazonas. Porto: Livraria Civilização Editora, 1958.). Ferreira de Castro chega ao Brasil em 1910 com 12 anos de idade. Pobre e órfão, começa a ajudar na casa comercial que o tio tinha fundado em Belém, mas a estabilidade inicial - financeira e, em parte, afetiva - termina rapidamente. Um dia o tio, que deveria ser seu protetor, o informa aos gritos que não iria mais sustentá-lo. Então, para não morrer de fome, o jovem aceita a proposta de ir para o seringal. Durante os quatro anos passados trabalhando na extração da borracha e, mais tarde, como empregado do armazém, Ferreira de Castro conhece de perto os aspectos mais nefandos e sórdidos do ser humano. Será uma experiência tão marcante que, por muitos anos, depois de ter voltado para Belém, continuará a atormentá-lo em forma de pesadelo, por longo tempo, mas a falta de alfabetização o impedirá de elaborar e de traduzir por meio da escrita essa vivência.

Na ocasião dos 25 anos da primeira edição, Ferreira de Castro escreve um texto de prefácio intitulado “Pequena história de A selva” no qual, com minúcia, reconstrói a longa gestação da obra. Eis como ele explica os motivos que o fizeram demorar 15 anos para escrever o romance:

[…] durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras. Um medo frio, que inda hoje sinto, quando amigos e até desconhecidos me incitam a escrever memórias, uma única confissão, uma existência exposta ao sol, que eu próprio julgo seria útil às juventudes que se encontrassem em situações idênticas às que vivi. (CASTRO, 2018bCASTRO, Ferreira de. Pequena história de A selva. In: A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018b, p. 9-17., p. 11)2 2 Nas citações foram mantidas a grafia e a pontuação originais dos textos indicados. .

A literatura será uma conquista capaz de oferecer a chance de uma libertação, que é pessoal (a do autor do seu passado) e, também, coletiva (dos milhares de seringueiros que, finalmente, veem denunciadas as injustiças das quais são vítimas). Nesse sentido, A selva pode ser lida como uma lenta e sofrida introspecção realizada sob o impulso de denunciar um drama social nacional, contrapondo princípios éticos e morais aos abusos de um sistema exploratório.

Nos planos de Ferreira de Castro, a obra desmentiria muitos dos estereótipos e convenções ligados à literatura sobre a Amazônia. A selva seria “um livro monótono porventura”, mas “honesto”, no qual “o próprio cenário, em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos induzisse ao exame” (CASTRO, 2018bCASTRO, Ferreira de. Pequena história de A selva. In: A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018b, p. 9-17., p. 15). Mais do que uma “personagem de fundo”, a floresta seria uma “personagem de primeiro plano” retratada em todo seu fascínio e mistério e sempre através de um forte compromisso com a realidade. Partindo dessas intenções, Ferreira de Castro visava a uma renovação radical das tendências da literatura sobre a Amazônia: “eu pretendera fugir à regra” (CASTRO, 2018bCASTRO, Ferreira de. Pequena história de A selva. In: A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018b, p. 9-17., p. 15).

Trata-se, sem dúvida, de um projeto bastante ambicioso, mas que o romance não irá desatender. No plano narrativo, o conhecimento aprofundado da floresta se traduz numa aposta sem precedentes na atividade de escuta. Como na “selva oscura” do Inferno de Dante e, também, na Amazônia e em seu inferno verde de densas matas e de falta de luz, a capacidade de detectar os sons é um elemento crucial para a orientação e para a sobrevivência. Talvez, não por acaso, uma das primeiras contribuições sobre a análise da paisagem sonora na literatura seja A buon cantor, buon citarista, de Guglielmo Bilancioni (1932)BILANCIONI, Guglielmo. A buon cantor, buon citarista. Roma: Formiggini, 1932., um estudo focado na Divina Comédia e escrito por um otologista, isto é, um médico especializado nos distúrbios do ouvido. Ao enfrentar outra selva, 90 anos mais tarde, este estudo pretende propor um modelo de escuta literária baseado na recuperação de algumas ferramentas teóricas e metodológicas desenvolvidas no âmbito dos Sound studies (GANN, 2011GANN, Kyle. No such thing as silence. New Haven and London: Yale University Press, 2011.; GAUTIER, 2015GAUTIER, Ana María Ochoa. Silence. In: NOVAK, David; SAKAKEENY, Matt (Ed.). Keywords in sounds. Durham and London: Duke University Press, 2015, p. 183-192.; KRAUSE, 2012KRAUSE, Bernie. The great animal orchestra: Finding the origins of music in the world’s wild places. New York-Boston-London: Back Bay Books, 2012.; 2015KRAUSE, Bernie. Voices of the wild: animal songs, human din, and the call to save natural soundscapes. New Haven and London: Yale University Press, 2015.; SCHAFER, 1985SCHAFER, Raymond Murray. Il paesaggio sonoro. Milano: Ricordi-Lim, 1985.). De fato, os textos sobre a Amazônia e, especialmente, A selva oferecem um arquivo sonoro mudo que precisa ser escutado, não apenas lido: um arquivo de peculiar valor literário, que guarda a memória de sonoridades extintas, no qual é possível resgatar preciosas oportunidades de aprendizagem ecológica.

Com efeito, a afirmação da primazia da escuta defendida pelo economista Jacques Attali como instrumento cognitivo se torna hoje, na era do Antropoceno, um dos recursos mais eficazes para lidar com a catástrofe ambiental. Se é somente “escutando os sons e os barulhos” que “será possível compreender melhor para onde anda a loucura dos homens e quais esperanças são ainda possíveis” (ATTALI, 1986ATTALI, Jacques. Bruits. Essai sur l’economie politique de la musique. Paris: Livre de Poche, 1986., p. 11 - tradução minha), é apenas escutando “os sons e os barulhos” do passado e do presente da floresta amazônica que será possível compreender o futuro dela e, em parte, também o do planeta.

Desde as páginas iniciais de A selva, uma paisagem sonora extremamente rica e variada começa a forjar a visualização das cenas retratadas. De fato, cada paisagem sonora, como explica Bernie Krause, é sempre o resultado da combinação entre geofonia, biofonia e antropofonia. A geofonia abrange o conjunto dos sons de origem não biológica - por exemplo, o vento, a chuva, a água de um rio. Esses sons primordiais sempre se misturam aos produzidos por seres viventes. O canto de um sabiá, o rugido de uma onça, o zunir dos mosquitos e as outras emissões sonoras de origem animal levam o nome de biofonia. Nesse sentido, de forma surpreendente, até em um lugar remoto como a Amazônia, não falta a antropofonia, isto é, uma ampla gama de sons e ruídos que atestam direta ou indiretamente a presença do homem (KRAUSE, 2012KRAUSE, Bernie. The great animal orchestra: Finding the origins of music in the world’s wild places. New York-Boston-London: Back Bay Books, 2012., p. 157).

A primeira parte do romance relata a saída de Belém e a viagem até o seringal Paraíso, de Juca Tristão. Alberto, o protagonista, é um jovem português de 26 anos, estudante de Direito que se exilara de Portugal por suas ideias monárquicas e por ter participado da Revolta de Monsanto, de 1919. No Brasil, ele reviverá pontualmente as várias fases da dramática experiência do autor: a perda do apoio do tio, a falta repentina de recursos, a decisão de trabalhar na extração da borracha e a longa viagem de barco em direção à floresta.

Durante os 15 dias de navegação, o cotidiano é marcado pela antropofonia, principalmente por “indicadores sonoros”: apitos, toques de campainhas, silvos e tiros. Como explica Murray Schafer (1985SCHAFER, Raymond Murray. Il paesaggio sonoro. Milano: Ricordi-Lim, 1985., p. 193 et seq), são sons facilmente reconhecíveis, que, se utilizados segundo um sistema mais ou menos complexo de combinações e repetições, passam a formar um código de comunicação específico. A bordo do Justo Chermont (esse é o nome do barco, o mesmo no qual viajou Ferreira de Castro), os indicadores sonoros pautam o ritmo da vida dos passageiros e da tripulação em contraste com o ambiente acústico natural. Informam quando está na hora de zarpar: “Lá de cima, de um dos canos do barco, desceram dois apitos, seguidos logo por uma campainha ambulante que dava a visitas e intrusos o sinal de partida” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 42). Anunciam a chegada: “Antes mesmo de o navio quebrar o silêncio da tarde dominical com os apitos da convenção, já no cimo da ribanceira se aglomeravam vultos humanos, cada vez mais numerosos” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 76). Servem como sinal de despedida: “A sereia do navio tornou a fazer-se ouvir - três silvos de despedida que abafaram o choro de uma criança, vindo de algures, incomodamente” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 43). Comunicam que as operações de descarga serão feitas sem atracar: “Prancha cá, prancha lá, em obediência ao destino de mercadorias e passageiros ou ainda por chamada, feita com três tiros de rifle, de qualquer seringal não incluído na rota, o navio, cada vez mais leve, apitou um dia para Humaitá” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 75).

Se, aos olhos de um observador externo, a presença de um barco a vapor nas regiões remotas e impenetráveis da Amazônia poderia ser interpretada como a afirmação incontestável da superioridade do homem civilizado e da modernidade contra uma dimensão selvagem e de atraso, no caso do Justo Chermont a mesma imagem representa o reflexo de uma sociedade avançada que, no entanto, guarda ainda traços de barbaridade em suas hierarquias sociais e dinâmicas de poder. À medida que o barco se embrenha no labirinto líquido da floresta, a rígida alternância dos indicadores sonoros não simboliza mais a imposição de um princípio de ordem e racionalidade contra o caos da natureza pura e indômita, mas ressoa como uma espécie de ouverture à tragédia que muitos passageiros vão viver dali a pouco.

Com efeito, a desumanização dos futuros seringueiros começa logo depois do embarque em Belém, como se o Justo Chermont fosse já, de certa forma, uma antecipação flutuante do seringal Paraíso. São homens recrutados nas regiões mais pobres do Nordeste, sobretudo do Ceará, os quais foram levados, por profunda miséria e desespero, a acreditar em grandiosos sonhos de riqueza por meio da extração da borracha. Viajam amontoados na terceira classe como animais em cativeiro - “o rebanho encarcerado”, (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 68) -, prontos para ser repartidos entre os seringais do Rio Madeira. Compartilham o pouco espaço disponível com as caixas de mercadorias - porque eles também são considerados mercadorias -, esperando apenas que a liturgia de apitos, silvos, campainhas e tiros dê início às operações de descarga.

Alberto foi inserido no “rebanho”, mas não se sente parte dele. Reivindica teimosamente a sua diferença sem entender que, naquele contexto, o lugar de nascimento não faz nenhuma diferença - “A bordo do ‘Justo Chermont’ só Alberto marcava a existência da nacionalidade” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 74). Se a origem portuguesa, a cor da pele, os vestidos, a educação, a eloquência e a formação o levam a exigir a primeira classe como um direito inalienável, a falta de dinheiro o condena impiedosamente ao lado dos nordestinos. O toque da campainha que a cada dia anuncia o almoço da primeira classe acentua ainda mais a sua crise identitária:

Há muito tempo já que ouvia tocar, lá em cima, na primeira classe, a campainha anunciando o almoço. Deviam mesmo ter acabado de comer, pois da amura superior chegavam até ele vozes que dialogavam nessa indolência de quem põe, com um charuto, epílogo ao repasto e vai fazendo aprazivelmente a digestão. Balbino tardava; ter-se-ia esquecido, não viria, talvez. Sobretudo, a ideia de olvido humilhava Alberto. (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 51).

Balbino é o recrutador de mão de obra do seringal. A sua indiferença, que em breve se transformará em desprezo e, mais tarde, em perseguição e crueldade, personifica a implacável cultura escravocrata do seringal. De resto, a paisagem sonora é dominada pelo silêncio. Há o silêncio de Alberto, que, durante os 15 dias de navegação, limita no máximo a interação com os seus companheiros de viagem, como se a conversa pudesse contagiá-lo e corrompê-lo. Por isso, como um interlocutor mudo e passivo, ficará deslocado e dividido entre os papos indolentes da primeira classe e o eco da fala impura dos nordestinos que projeta o sertão no meio da selva: “no cérebro de Alberto cruzaram-se palavras desconexas, frases soltas - ‘Si, siô, eu já fui’; ‘É pró Humaitá, onde tá o doutô Bacelá’; ‘Ó Mundica, num mexa aí’” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 42).

Virando o ouvido fora do barco, há o silêncio da floresta, que, já desde as primeiras horas de navegação, começa a se impor com autoridade. Na literatura sobre a Amazônia, a alternância entre a harmonia edênica do dia e os barulhos infernais da noite é um dos traços definidores da paisagem sonora. Em O missionário (1891), por exemplo, Inglês de Sousa (2001SOUSA, Inglês de. (1891). O missionário. São Paulo: Martin Claret, 2001., p. 151) conta que, enquanto tinha luz, padre Antônio ficava em êxtase ao ouvir o “conjunto inimitável de harmonias divinas”. Mas, depois do pôr do sol, o religioso era levado à loucura pelo canto lancinante dos mosquitos: “cantavam, e aquele zinzim contínuo e monótono bulia-lhe com os nervos, perturbava-lhe a calma do espírito, apertando-lhe o coração num desespero infantil” (SOUSA, 2001SOUSA, Inglês de. (1891). O missionário. São Paulo: Martin Claret, 2001., p. 202). A contraposição sonora entre a paisagem diurna e a noturna encontra-se também em À margem da história (1909), de Euclides da Cunha: “Nos meios-dias silenciosos - porque as noites são fantasticamente ruidosas -, quem segue pela mata, vai com a vista embotada no verde-negro das folhas” (CUNHA, 1995CUNHA, Euclides da. (1909). À margem da história. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. v. 1. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, p. 247-425., p. 250). Pouco mais tarde ela é proposta por Alberto Rangel no conto “O Tapará”, de Inferno verde (1914): “À hora do meio dia ensoalhado, a floresta é pavorosamente muda; à noite ela é wagnerianamente agitada de todas as vozes” (RANGEL, 1914RANGEL, Alberto. Inferno verde: scenas e scenários do Amazonas. Famalicão: Typographia Minerva, 1914., p. 32).

No que diz respeito a essa tendência, em A selva, a paisagem sonora da floresta é mais homogênea e regular. Nas lembranças de Alberto, o silêncio é o aspecto mais marcante dos dias e noites passados no seringal em companhia de Firmino, o “cabra escovado” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 83) que lhe ensinara a extrair a borracha. É um silêncio constante e abrangente que, de modo implacável, assim como a vegetação, envolve, contorna, encobre, sufoca e, metaforicamente, enterra, todas as presenças externas à floresta: “Via Firmino em Todos-os-Santos, na vida de muitos meses em comum, ambos sepultados na selva hiante, na clareira que diminuía dia a dia, sob um silêncio aterrador” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 249).

As principais reflexões teóricas no campo dos estudos de sonoridades recusam uma definição unívoca do silêncio, ressaltando o seu caráter ambivalente e contraditório: por um lado, o silêncio remete à ideia de paz e plenitude; por outro, traz a ideia de “sinistras ressonâncias” (GAUTIER, 2015GAUTIER, Ana María Ochoa. Silence. In: NOVAK, David; SAKAKEENY, Matt (Ed.). Keywords in sounds. Durham and London: Duke University Press, 2015, p. 183-192., p. 183 - tradução minha). Na prosa realista de Ferreira de Castro, o silêncio da selva não é nem infernal, nem edênico, mas uma espécie de síntese acústica do encontro do bem com o mal, da vida com a morte. O silêncio é misterioso, obscuro, enigmático: monótono, mas potencialmente mutável; estático e, todavia, inquieto; tedioso e, ao mesmo tempo, promissor de metamorfoses imprevisíveis. Nunca ganha uma conotação definitiva, mas a sua essência, tão ambígua e indecifrável, é pontualmente reiterada através de metáforas de rara beleza literária e de anadiploses (repetição da última palavra de uma frase no início da seguinte: “[...] o silêncio. Um silêncio [...]”). Ambas as figuras retóricas estão presentes, por exemplo, na descrição do espetáculo que a floresta proporciona a Alberto e Firmino numa linda noite de luar: “[…] quando a proa avançava para obstáculo, a selva rasgava-se de novo, a ilusão repetia-se, o mundo fabuloso continuava. E silêncio. Um silêncio de boca enorme que se abrira para soltar grito pânico e ficara muda e estarrecida para toda a eternidade” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 119-120).

A floresta é silenciosa, mas não é muda. De modo mais geral, seguindo uma linha interpretativa que tem na célebre 4’33’’ de John Cage o seu manifesto, podemos pensar que o silêncio não existe (CAGE, 2011CAGE, John. Silence: lectures and writings. Middletown: Wesleyan University Press, 2011.; GANN, 2011GANN, Kyle. No such thing as silence. New Haven and London: Yale University Press, 2011.). Como explica Italo Calvino (2004CALVINO, Italo. L’avventura di un poeta. In: CALVINO, Italo. Romanzi e racconti. A cura di Mario Barenghi e Bruno Falcetto. Milano: Mondadori, 2004, p. 1166-1172., p. 1166 - tradução minha), através das palavras do poeta Usnelli, “todo silêncio consiste na rede de rumores miúdos que o envolve”. Assim, o silêncio da floresta descrito por Ferreira de Castro não é determinado pela ausência de sons, mas pelo efeito que um número indefinido de sons produz conjuntamente. Em A selva observamos que a densa vegetação, as altas árvores e a quantidade maciça de água fundem e harmonizam todas as emissões sonoras num rumor de fundo constante e uniforme que desperta a atenção de Alberto desde os primeiros minutos passados no seringal: “E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfônico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 88).

Naquela tarde a floresta, como se fosse uma grande sala de concerto, oferece a composição silenciosa da natureza, combinando sonoridades de origem não biológica (o vento entre as folhagens) com sonoridades do mundo animal (os gorjeios), numa primorosa mistura de “geofonia” e “biofonia”, para usar as categorias de Bernie Krause (KRAUSE, 2012KRAUSE, Bernie. The great animal orchestra: Finding the origins of music in the world’s wild places. New York-Boston-London: Back Bay Books, 2012., p. 39 e 68; KRAUSE, 2015KRAUSE, Bernie. Voices of the wild: animal songs, human din, and the call to save natural soundscapes. New Haven and London: Yale University Press, 2015., p. 11-12 - tradução minha).

A partir do pôr do sol, as sonoridades começam a se transformar, mas sem questionar a soberania do silêncio. Os “rumores estranhos e imprecisos” da noite são apenas um deslocamento da acentuação rítmica - “uma síncope” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 90) do silêncio do dia - dentro da mesma sinfonia que continua sendo executada. Um pouco mais tarde, nas primeiras luzes da manhã, a paisagem sonora da floresta volta de novo a maravilhar Alberto. Embora a estrutura da orquestra mude radicalmente, a sensação para o ouvinte é a de escutar ainda a sinfonia silenciosa da noite, porém com um arranjo diferente: “Por toda a parte havia uma orquestra invisível, feita de aves trinando melodias diferentes, que se diluíam frequentemente num ritmo tão suave que era quase o silêncio verificado, na véspera, por Alberto, mas agora mais vivo, mais alvoroçante e integrado no esplendor da manhã” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 96).

Quando acontece um temporal, uma “orquestra infernal” começa a tocar “um concerto cada vez mais alarmante de instrumentos desvairados” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 158). Na verdade, trata-se unicamente de uma interrupção momentânea, um pequeno intervalo dentro de uma partitura já escrita. Em poucos instantes a selva volta à sua normalidade, como “um monstro que estava ali, pesado, inofensivo, a bramir um sofrimento que não despertava piedade” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 158).

Às vezes, na silenciosa sinfonia da floresta destaca-se uma ou mais vozes solistas da natureza. Nessas raras eventualidades que podem ocorrer tanto de dia quanto à noite, a sensação de silêncio é garantida pela monotonia e repetição da emissão sonora que, como se fosse um barulho branco, acaba gerando uma imunidade acústica no ouvinte. É o caso, por exemplo, da algazarra do coral de periquitos que acompanham Alberto durante os dias de trabalho no armazém: “Ouviu os passos de Elias, que regressava ao escritório. Depois, os do senhor Guerreiro. E, de novo, o silêncio. Um silêncio só perturbado, lá fora, pela chilreada dos periquitos nas goiabeiras. Mas ela era tão repetida, tão persistente, que por vezes ele a esquecia e tudo voltava a parecer-lhe silencioso” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 255).

Um fator que merece ser considerado na análise das sonoridades é a tipologia do ouvinte. Quem mora por muito tempo no mesmo lugar desenvolve um conhecimento profundo da sua paisagem sonora e, sobretudo, adquire a capacidade de atribuir o significado correto a cada elemento sonoro, aprendendo a distinguir um ruído insignificante de outro que constitui uma ameaça. Pelo contrário, quando o ouvinte não consegue identificar uma emissão sonora, ele pode formular conclusões erradas ou manifestar reações excessivas e injustificadas.

Para quem vem do Nordeste ou de Portugal, como Alberto, a paisagem sonora da Amazônia é inicialmente indecifrável. Em O paroara, de Rodolfo Teófilo (1899TEÓFILO, Rodolfo. O paroara: scenas da vida amazonense e amazonica. Ceará: Biblioteca da Padaria Espiritual, 1899., p. 338 e 344), qualquer ruído da floresta é suficiente para estarrecer os emigrantes nordestinos recém-chegados ao seringal: o canto de um jacamim é confundido com o ataque iminente “de um índio ou [de] um animal do tamanho de um touro”; e o zunir do vento, com o “sibilar da flecha indígena”. Se aqui a incapacidade dos seringueiros mais inexperientes de interpretar a paisagem sonora coincide com as cenas de maior tensão narrativa, em A selva a inicial ignorância auditiva do protagonista provoca o riso de Firmino, resultando nos únicos breves parênteses de comicidade que caracterizam o romance. Na primeira vez em que Alberto atravessa a floresta, basta um barulho de folhagem e uma batida de asas para assustá-lo:

Às vezes, era certo, uma imprevista e pânica restolhada de folhas e de asas levava Alberto a parar, agarrando-se instintivamente ao braço do companheiro. - É uma inambu - disse Firmino, sorrindo daquele temor. Mais adiante, ruidoso lagarto, correndo subitamente sobre a folhagem morta, de novo o galvanizava. (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 88).

Para o ouvido profano de Alberto qualquer som não identificável preanuncia um perigo. Mas o seu terror é imediatamente acalmado - e ridicularizado - pela explicação de Firmino: “É uma inambu”. Em poucos segundos tudo é engolido pelo soberano silêncio da floresta e, implacavelmente, volta a se impor a sensação desgastante de uma eterna espera para algo imprevisível: “Mas o silêncio volvia. E, com ele, uma longa, uma indecifrável expectativa” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 88).

Poucos dias depois do encontro com o inambu, Alberto é de novo surpreendido por um som que não consegue identificar. Embora sua reação seja ainda de pânico, é possível notar uma transformação dos mecanismos de escuta. Pela primeira vez, ele tenta formular uma hipótese interpretativa. Depois de ter ouvido as palavras de Firmino sobre as onças, o medo do desconhecido é substituído pelo medo do monstruoso. A partir daquele momento, na sua imaginação, qualquer som semelhante a um bramido será imediatamente associado à presença do temível felino:

Por fim, o silêncio quebrou-se: um urro longo e repetido, exalado de boca que estava perto, alarmou a solidão e foi-se expandindo por todos os recantos do paul. A terra estremecera, como se fossem de vulcão as goelas que gritavam. Apanhado sem aviso, Alberto saltou na canoa, fazendo-a balançar.

- É uma onça?

Firmino sorria, deleitado:

- Eh, seu moço, que nos mete no fundo! Não é onça, não. É sapo-boi que está a desenferrujar a garganta…

E descrevendo o bicharoco, foi remando com frenesi, que era já tarde de mais para se andar no igapó. (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 122).

A voz é o instrumento mais eficaz à disposição do homem para contrastar o silêncio e exorcizar a solidão. É o primeiro sinal de vida em resposta à morte que o silêncio simboliza (DOLAR, 2012DOLAR, Mladen. The linguistics of the voice. In: STERNE, Jonathan (Org.). The sounds studies reader. London-New York: Routledge, 2012, p. 539-554., p. 540). Em A selva, os seringueiros usam a voz antes de tudo para conversar - vorazmente - nos raros momentos de encontros disponíveis. O silêncio e a solidão são companheiros inseparáveis de quem trabalha na extração da borracha: “o seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um solitário”, escreve Euclides da Cunha (1995CUNHA, Euclides da. (1909). À margem da história. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. v. 1. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, p. 247-425., p. 278). Nos 15 dias de navegação, Alberto também enfrenta a solidão - não por obrigação, mas por marcar a própria diversidade e superioridade em relação aos outros passageiros da terceira classe. O seu arrogante silêncio, o desprezo com os nordestinos e a procura do isolamento terminam com o desembarque do Justo Charmort. O encontro com a selva modifica rapidamente o seu ponto de vista e seu comportamento: “já não julgava por bem seus assomos de altivez e seu orgulhoso isolamento no convés do navio” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 148). Uma vez que deixa o barco e põe os pés na terra firme, Alberto constata que todos os seringueiros são vítimas das mesmas injustiças e que ele, apesar das origens lusitanas e do nível cultural, não constitui uma exceção. Há um imediato instinto de sobrevivência que o leva a se solidarizar com os outros “prisioneiros da selva” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 145). Na perspectiva de uma vida isolada, a conversa funciona, primeiramente, como um antídoto contra a loucura - não por acaso, o risco de que Firmino possa enlouquecer por não ter mais ninguém com quem conversar será a sua principal preocupação quando ele deixar o seringal para trabalhar no armazém (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 164-165). Mas para Alberto a conversa é também um instrumento para ampliar seus conhecimentos. Graças a Firmino, Agostinho e aos outros seringueiros, ele aprende bastante tanto sobre a Amazônia quanto sobre o sertão do Ceará, que é a região de onde vinha a maioria de seus companheiros. Como numa dupla iniciação, Alberto é apresentado aos segredos da floresta e, sobretudo, à tragédia da seca vivida pelo povo nordestino: “o drama do Ceará, que a todos ultrapassava” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 146), “o êxodo, mais trágico e numeroso do que o dos antigos hebreus nos domínios da cristandade” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 147).

É interessante observar que esses diálogos confirmam o caráter peculiar da paisagem sonora amazônica, negando a tradicional contraposição entre voz e silêncio, em que a voz expressa a vida, e o silêncio simboliza a morte. Se por um lado, como temos visto, a mudez barulhenta da selva inclui impulsos vitais e atmosferas fúnebres, por outro, as vozes dos seringueiros, desses “homens sepultados na selva do Amazonas” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 226), ressoam como vozes transcendentes, dramaticamente à beira entre a vida e o além.

Acabadas as conversas, as palavras de quem fugiu da seca não abandonam Alberto, mas, de maneira descontrolada, voltam a visitá-lo quando, no silêncio e na solidão da floresta, o seu espírito está mais vulnerável. O resultado é um patchwork sonoro feito de frases recortadas, timbres ofegantes, lascas de memórias e choros abafados, no qual o drama do povo nordestino encontra, talvez, a forma mais eficaz de ser narrada em toda sua carga inenarrável de dor e sofrimento:

“Era um capanga valente capaz de espantar a António Silvino.” “Naquele ano de seca, eu deitei a boca ao tijuco para ver se ainda chupava umas gotas de água. Depois, não pude mais e bebi urina de cavalo.” “Eu vi o meu tio Alfredo endoidecer de sede e correr, correr atrás de nós, com os braços abertos, que até parecia uma alma penada. Nós vínhamos a fugir do sertão e ele caiu e lá ficou a estrebuchar, enquanto os urubus não deram cabo dele.” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 146).

Como numa enorme caixa de ressonância vegetal, em la voragine da selva ecoa o passado junto com o presente, proporcionando um cruzamento vertiginoso entre o destino individual e a história nacional. É significativo, nesse sentido, que na paisagem sonora do romance, o único som que desafia e vence o silêncio da floresta é a voz de Tiago, um velho negro “alto, escanzelado e capenga” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 177) que vive isolado numa barraca. “Outrora escravo, agora quase inútil” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 176), Tiago é uma espécie de relíquia do passado, um fantasma da senzala cuja ambígua relação com Juca Tristão, o dono do seringal, atesta a pujança da cultura patriarcal no Brasil pós-abolição. Nas noites infindáveis de cachaça, sua voz lança gritos aterrorizantes que não deixam ninguém dormir e que espantam a selva, apavorando até seus animais mais ferozes:

[…] embriagava-se e passava a noite em interminável gritaria. Rememorava todos quantos o haviam chamado Estica nos últimos dias e insultava-os em altos berros, com uma energia e pertinácia que dir-se-iam já impossíveis na sua idade. A selva acolhia com espanto aquela voz e ia-a repercutindo de desvão a desvão, estarrecendo a noite. Ninguém podia dormir, pois quando se julgava, por um súbito silêncio, que o ébrio entrara enfim no sono, os gritos voltavam de novo e cada vez mais intempestivamente. Nessas horas negras de tumulto, nem as próprias onças se aproximavam, por mais porcos que houvesse na pocilga. (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 177).

Mas os berros de Tiago não expressam somente uma reação contra o apelido de “Estica”, decorrente da “perna coxa”. Sua voz humana, que produz sons desumanos, está carregada de uma raiva atávica, pessoal e coletiva de quem já foi vítima e testemunho de muitas injustiças e humilhações na época da escravidão e que, portanto, não pode aceitar que elas voltem no tempo presente. E é justamente à luz desse passado que Tiago se revelará um guardião do valor da liberdade contra um sistema baseado no autoritarismo dos padrões e na exploração dos trabalhadores - “Branco não sabe o que é a liberdade como negro velho. Eu é que sei” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 261). Assim, entende-se por que, quando os cinco seringueiros que tentaram fugir são amarrados e chicotados com o peixe-boi, ele não hesita em executar uma vingança imediata colocando fogo no barracão de Juca Tristão, embora tenha um carinho sincero pelo patrão e um evidente ressentimento contra os seringueiros. “[Juca Tristão] estava a escravizar os seringueiros. Tronco e peixe-boi no lombo, só nas senzalas” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 261) - essa é a simples explicação que Tiago deu para justificar sua ação.

Sempre pela voz de Tiago, a memória da escravidão é evocada também com tons melancólicos. Às vezes, os seus altos berros são substituídos por antigas melodias. São canções que remetem para um passado longínquo, porém tragicamente atual, e coincidem geograficamente com a África, estabelecendo uma conexão entre os negros e os nordestinos, os escravos nas plantações e os seringueiros na floresta, os navios negreiros e os barcos que de Belém sobem o rio Madeira: “Às vezes Tiago cantava. Eram sempre canções lentas, arrastadas, fatalistas, que enchiam a noite de melancolia, fazendo esquecer a voz pastosa do bêbedo. Canções de escravos, mais toada do que palavras, por ele aprendidas na infância e trazidas para o Brasil no ventre dos negreiros” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 177).

Além dessas canções, a música está presente também em todos os eventos comunitários do seringal. A descrição do momento da dança durante as festas é recorrente em vários textos da literatura amazônica segundo um esquema bastante consolidado. Há quase sempre um ou dois músicos improvisados, muitos homens, pouquíssimas mulheres, bastante cachaça, um calor insuportável, um soalho que range e uma iluminação precária. São cenas desoladoras nas quais a música, independentemente do repertório, não traz alegria, mas concede apenas uma evasão efêmera à rotina alienadora do seringal.

Já em O paroara, é possível registrar um contraste estridente entre a euforia do ritmo sincopado do baião e o esgotamento físico e mental dos participantes da festa: “Esse mesmo baião, que na terra natal vibrado por uma viola os electrisava, aqui, auxiliado pelo alcool pouco arrebatava-os. Têm o corpo enfermo e a alma cheia de apprehensões” (TEÓFILO, 1899TEÓFILO, Rodolfo. O paroara: scenas da vida amazonense e amazonica. Ceará: Biblioteca da Padaria Espiritual, 1899., p. 372). Apesar da mudança de gênero musical e de instrumentos, a sequência da dança repete-se quase inalterada em “Maíbi” de Rangel: “A gaita começava a soar os soluços bemóis de uma valsa ronceira. E então, aqueles homens, no meio dos quais havia apenas duas mulheres, se agarraram aos pares, desabalando-se a dançar sobre o soalho flácido e ondulado das paxiúbas” (RANGEL, 1914RANGEL, Alberto. Inferno verde: scenas e scenários do Amazonas. Famalicão: Typographia Minerva, 1914., p. 205).

Em A selva, um clima semelhante de falsa alegria acompanha as polcas que Pedro Surubi executa no acordeão durante o pagode do domingo:

Começou outra polca.

- Então, minha gente? - E Lourenço deu o exemplo, indo bailar com a negra Vitória. Os homens precipitaram-se e, quando lhes faltaram mulheres, ligaram-se entre eles, para o rodopio voluptuoso. Eram vultos de lanterna-mágica na luz vaga e oscilante do farol - formas indecisas que se movimentavam na sombra, tendo de nítido apenas as cabeças com seus lábios húmidos de luxúria. (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 138).

Entretanto, essa cena possui maior complexidade se comparada aos outros exemplos citados. Atrás da cortina habitual de tristeza e desolação que caracteriza as festas nos seringais, aqui se percebe a ameaça de uma pulsão sexual reprimida que é pronta a explodir de maneira descontrolada e violenta de um momento para outro. Como feras famintas em busca de presas, os seringueiros cercam as poucas mulheres, mesmo sabendo que não podem lançar o ataque. Não obstante, a censura dos corpos é compensada pela liberdade incondicional das mentes. Enquanto na dança cada gesto, postura e movimento são rigidamente controlados, nas fronteiras abertas dos pensamentos podem brotar as fantasias mais indecentes:

Várias monstruosidades estavam ali em hipótese, em íntima admissão, e seriam imediatas realidades se a frouxa luz do farol se apagasse de vez. A chicha e a cachaça começavam por estimular, tornando justificáveis, nos cérebros incandescidos, todas as aberrações, depois amolengavam-nos, apresentando-lhes como facilidade vindoira, o impossível e como breves certezas as mais indizíveis esperanças. E era essa ilusão que continha os famintos. Os seus braços, que se arqueavam, com gesto de posse definitiva, sobre o busto das cinco mulheres, acabavam por abrir-se em renúncia, sempre que o acordeão emudecia. (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 139-140).

Entre os homens presentes na festa, somente Alberto consegue manter equilíbrio e integridade. Quando percebe que entre as “monstruosidades […] em hipótese” dos seringueiros havia também uma menina de poucos anos, ele reage com horror e indignação: “só um cérebro desvairado pensaria que ela tinha também um sexo” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 152), comentará mais tarde.

O risco de que longe da frouxa luz do farol as aberrações daqueles “cérebros incandescidos” possam se tornar concretas é palpável. A música, junto com a cachaça - a “morfina na vida áspera do seringueiro” (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 79) -, oferece um remédio temporário cujos efeitos são contrastantes, tanto calmantes quanto estimulantes. O som nervoso do acordeão de Pedro Surubi possibilita, de fato, uma forma de transgressão controlada, mais ilusória do que real, delimitada no tempo (pela curta duração da polca) e no espaço (pelas modestas dimensões da barraca). Como a flauta do encantador de serpentes, o acordeão possui um poder hipnótico que, todavia, não garante o controle definitivo dos instintos dos seringueiros. E não adianta que entre uma polca e outra alguns se atirem na água para tentar apagar o fogo com um “banho moderador”, pois em breve já voltarão irremediavelmente “para a tentação, [e] para o abismo” da dança (CASTRO, 2018aCASTRO, Ferreira de. A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018a., p. 139).

A imagem ambígua e complexa dessa humanidade degenerada, que indigna e ao mesmo tempo comove e que, ao final, o leitor não sabe se condena ou absolve, é, talvez, a contribuição mais inovadora que Ferreira de Castro, em continuidade com Euclides da Cunha e Alberto Rangel, oferece à literatura amazônica. Sem ser apenas uma denúncia do autoritarismo dos patrões e das condições de semiescravatura dos seringueiros, A selva leva para uma reflexão mais ampla sobre a ciclicidade da injustiça e suas consequências. A moral da história, se tiver uma, é que um sistema injusto e corrupto produz seres humanos injustos e corruptos. Não há nenhuma esperança de redenção, remissão, resgate ou conciliação e, ainda menos, haverá a possibilidade para a Amazônia de ser um “Paraíso perdido” (para citar o título da obra que Euclides da Cunha planejava escrever).

Lá onde não há justiça, a comunidade fica à mercê de um mecanismo perverso de compensação. A violência causa sempre mais violência, e as vítimas, inevitavelmente, vão criar outras vítimas. A natureza, por sua conta, não é culpada pelo sangue derramado e pelas angústias sofridas. A floresta não é um inferno verde que aterroriza e castiga seus invasores. Rejeitando o retrato “maculado por milhentos romances de aventuras, onde a imaginação dos seus autores, para lisonjear os leitores fáceis, se permitira todas as inverossimilhanças, todas as incongruências”, Ferreira de Castro (2018bCASTRO, Ferreira de. Pequena história de A selva. In: A selva. Amadora: Cavalo de Ferro, 2018b, p. 9-17., p. 15) revela que na Amazônia as ameaças mais perigosas para o homem vêm de seus pares - eles, sim, capazes de ser monstruosos, muito mais de que qualquer fera.

Afinal, o que sobra no silêncio da sinfonia da floresta é o “zás! zás! zás!” das chicotadas nos homens que tentaram fugir do seringal em busca da liberdade; os berros desumanos que um ex-escravo lança contra quem lhe faltou respeito; o eco de antigas canções que já foram entoadas no ventre de um navio negreiro; os soluços da mãe de Alberto, se ela soubesse das humilhações sofridas pelo filho; os gritos desesperados de uma mulher pela morte do marido, assassinado por não ter aceitado que a filha, ainda muito nova, se casasse com um seringueiro; e, enfim, o barulho da barraca do patrão que cai em pedaços sob as chamas de um incêndio vingador contra novas formas de abuso e escravidão.

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    Nas citações foram mantidas a grafia e a pontuação originais dos textos indicados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2023
  • Aceito
    08 Mar 2023
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