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Estado, economia e democracia no Brasil e na América Latina

Historiadores de todo o mundo afirmam que mudanças significativas aconteceram nos rumos da humanidade a partir do momento em que os homens colocam em questão as explicações teocêntricas que iluminaram o conhecimento humano durante muito tempo, marcando assim a passagem da Era Medieval para a Modernidade. Essa passagem incidiu em várias áreas do conhecimento como nos enciclopedistas franceses; na Astronomia e Física, com Pascal e Newton; na Química, com Lavoisier; na Matemática, com Descartes; na Medicina e Biologia, de Hipócrates a Darwin; nas Artes, na Cultura, Literatura, nas Engenharias e em todos os objetos cognoscíveis, possíveis de serem submetidos à racionalidade humana tendo o homem como o centro das preocupações. É por evidente que se alteraram, a partir daí, as formas tradicionais de exercício de poder e por consequência os modos de organização das diferentes sociedades. Assim, Estado, Economia e Democracia passam a ter suas formas e conteúdos ressignificados no bojo do processo de constituição das classes sociais, das economias liberais e das democracias burguesas.

Se no velho continente esse processo é temporalmente situado na transição dos regimes feudais para as sociedades burguesas, na América Latina processo semelhante não apenas ocorre em um distinto tempo histórico, como também é marcado pela violenta expropriação colonialista e imperialista dos nossos povos originários, pela constituição dependente e subordinada de nossas economias - caracterizadas pela degradante e exponencial superexploração da força de trabalho - e pela formação claudicante dos regimes democráticos que se revezaram, ao longo da história, com regimes autoritários civis-empresariais e/ou militares.

Essas particularidades, bem como os sentidos gerais e as características universalizantes do Estado, da Democracia e das diferentes formas econômicas - embora sejam os elementos centrais da luta de classes ao redor do mundo - não foram por muito tempo temas dignos de prestigio científico nos meios acadêmicos e intelectuais. O déficit entre nós com relação a estudos e pesquisas nessas áreas vem sendo apenas recentemente enfrentado com o advento de teorias que resgatam a nossa particularidade de ser um subcontinente expropriado e de economias dependentes, a exemplo do que demonstra a Teoria Marxista da Dependência (TMD), associado a experiências recentes de alternância democrática que ofereceram novas formas de fazer político, distintas das tradicionais orientações (neo)liberais imperialistas, a exemplo de experiências na Venezuela, Bolívia, Uruguai ou mesmo no Brasil. Essas duas ordens de fatores têm possibilitado com que tratemos com maior atenção não apenas as grandes temáticas citadas, mas outras que delas decorrem, como a configuração das políticas públicas, as formas de gerenciamento e alcance dos aparelhos de Estado, as transformações das instituições e o regulacionismo delas decorrentes, dentre outros temas.

É na esteira desse resgate que a Revista Katálysis nos brinda com uma edição inteiramente voltada aos temas do Estado, da Economia e da Democracia na América Latina. As reflexões aqui contidas nos dão a oportunidade de problematizar tanto do ponto de vista teórico quanto prático as dimensões constitutivas de nossas sociedades que tem o Estado como seu principal agente difusor.

Como elemento de disputa dentro e fora de si mesmo, os Estados burgueses condensam materialmente as contradições provenientes da correlação de forças dispostas nas sociedades, por isso, por mais que possam tender ao atendimento de necessidades sociais e humanas (e isso se relaciona diretamente à qualidade dos estatutos democráticos) sua natureza coercitiva é intransponível. Ou como nos ensina Jaime Osório (2014, p. 17) quando diz que

o Estado é muito mais que dominação de classes. Mas é essencialmente dominação de classes. O Estado é muito mais do que a condensação de relações de poder, mas é fundamentalmente a principal condensação das relações de poder. O Estado é muito mais do que as relações que conformam uma comunidade, mas é essencialmente uma comunidade, porém ilusória. Enfim, o Estado é muito mais do que coerção, mas é principalmente violência concentrada.

Sendo assim, torna-se fundamental referenciar o Estado à história e à luta de classes, pois ele é o elemento decisivo tanto para a reiteração da dominação capitalista/burguesa quanto para a transição socialista/ revolucionária.

Do mesmo modo, é necessário que resgatemos o projeto originário da democracia burguesa para que possamos, ao acompanhar sua evolução, submetê-la a critica e confrontá-la com as possibilidades históricas de substituí-la pela democracia socialista, ou nos dizeres de Marx, pela ditadura do proletariado.

A democracia burguesa, durante algum tempo, foi a grande responsável pelos conteúdos civilizatórios que o capitalismo apresentara até sua fase monopolista. É com ela que se inaugura a noção de direitos humanos, por exemplo, que se colocada em contraposição ao Absolutismo Monárquico verifica-se inegável sua dimensão civilizatória. Como forma política dos Estados liberais, a Democracia burguesa não tarda a apresentar suas contradições estruturais, e aquela noção central de que os regimes democráticos burgueses são formas neutras de gestão da vida social diante do conflito classista cai por terra. Logo, nos vemos diante de uma ditadura democrática da burguesia sustentada sob o discurso da igualdade formal.

A transição democrática na América Latina, sob o manto da citada igualdade formal, manteve, do ponto de vista econômico, a dependência estrutural na medida em que a região permanece com baixos níveis de industrialização e dependência tecnológica. O modelo agro-mineiro exportador, agora qualificado como modelo secundário exportador, tem acirrado a exclusão econômica das massas de trabalhadores ao mesmo tempo em que refunda as elites locais. Curiosamente, alguns governos latino-americanos passaram a incentivar o consumo interno pela indução estatal ao mesmo tempo em que passam a permitir o avanço da liberalização e desterritorialização do Capital. Por algum tempo, essa lógica, possível apenas a partir das articulações conservadoras entre frações da classe dominante e frações da classe trabalhadora, apresentou resultados imediatos que criaram a ilusão do desenvolvimento. Contudo, no momento seguinte, tornaram-se insustentáveis, pois a longevidade da estratégia dependeria fundamentalmente da realização de reformas de base estruturais como reforma agrária, tributária e política, além de outras medidas, movimento que não interessa às velhas e novas elites. Deste modo, a dependência se reafirma e o nosso continente segue sendo proprietário do contraditório título de o maior em urbanização e, ao mesmo tempo, o mais desigual do mundo.

Como se não bastasse, o esgotamento dessa frágil concertação entre Capital-Trabalho abriu brechas históricas significativas na relação entre as classes e permitiu que um destrutivo movimento de restauração ultraconservadora se abatesse sobre nós (Brasil, Honduras, Paraguai, Argentina são exemplos significativos). Seja por golpes políticos/institucionais ou mesmo pela ilusão do sufrágio, a América Latina encontra-se em uma complexa encruzilhada histórica. Os artigos dessa edição se constituem, desse modo, como um pequeno, porém significativo, esforço de nos ajudar a compreender esses dilemas e a nos inspirar a buscar soluções que nos remetam à luta cotidiana e à prática revolucionária.

Renato Francisco dos Santos Paula, novembro de 2017.

Reference

  • OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018
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