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Ética e Política

Ética e política são conceitos complexos. Já por haver entre eles uma estreita relação. Aliás, isso é evidenciado no próprio título dos diversos trabalhos que seguem. Analisando os textos optei por trazer algumas reflexões que podem parecer difíceis, mas vou fazer um esforço para falar delas com clareza. Começo com uma pequena introdução sobre ética para depois, com as iluminações de Hannah Arendt (2011ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011., 2012), discutir como se pode pensar a política e a liberdade numa comunidade que se queira ética. Refleti muito para escrever essas páginas e provoco o leitor para que questione essas minhas reflexões.

A ética é uma dimensão inseparável do cotidiano dos homens e mulheres. Isso fica claro ao examinarmos sua própria etimologia. Tanto o termo grego ethos, de onde provém ética, como o termo latino mos, de onde provém moral, referem-se à mesma realidade: os costumes que vão se estabelecendo nas relações cotidianas entre as pessoas de uma comunidade. Mesmo agora, sempre que um grupo se reúne, imediatamente seus participantes começam a estabelecer maneiras de viver, como vão desenvolver as tarefas, quem vai se responsabilizar pelo quê. Tacitamente vão estabelecendo normas implícitas, deveres para cada um, jeitos de se viver: pois esses são os costumes que se transformam em ética e moral.

É importante notar que a dimensão moral ou ética perpassa sempre todas as ações humanas. Não há como evitar esse fenômeno surpreendente. Todo tipo de ação e convivência carrega consigo, intrinsecamente, uma conotação valorativa, a presença de valores. Os valores nos interpenetram e nos possuem, são eles que sempre nos impulsionam a agir. Eles fazem parte da própria constituição do ser humano. Paulo Freire (1997FREIRE, P. Paulo Freire in Memoriam. São Paulo: PUCSP - Departamento de Educação, 1997 [vídeo].), numa entrevista dada poucos dias antes de morrer, testemunhava isso de maneira profundamente vivencial afirmando ser impossível pensar ou fazer algo sem que essa dimensão da ética lhe tomasse o incorporasse: “somos seres éticos, a ética perpassa toda nossa existência”.

No entender cotidiano costuma-se dizer - e isso não está errado - que tanto a ética como a moral têm a ver com adjetivações ligadas a bom ou ruim. Essa questão, contudo, se torna intrigante, e bem mais complexa, quando passamos a nos perguntar sobre os fundamentos desse “bom/ruim”. É a essa altura que alguns já começam a distinguir entre ética e moral: moral seriam os costumes, normas que se estabelecem implícita e tacitamente entre pessoas e grupos, sem questionamento. Já a ética seria uma reflexão filosófica, crítica, sobre essa questão crucial: baseados em quê podemos afirmar que uma coisa é boa ou ruim?

Várias teorias (paradigmas, explicações, justificações) foram sendo construídas para responder à questão. Duas são as principais. Uma primeira é chamada de naturalismo: algo é bom ou ruim se se adéqua e responde às leis da natureza. A lei natural é a grande lei ética. Já uma segunda, o contratualismo, argumenta que o que garante o bom/ruim de algo é a lei positiva, criada pelos humanos: se existe lei, presume-se que seja boa e deve ser seguida. Esse é o paradigma dominante nos dias de hoje. Todos correm à procura de uma lei e quando a encontram, procuram impô-la aos demais.

Estou convencido que é possível avançar nessa reflexão. Busco inspiração nas contribuições de uma importante pensadora do século XX, Hannah Arendt. Ela viveu - e sofreu - intensamente as vicissitudes do século pensando-as criticamente. Considerada idealista, ou saudosista, por alguns, suas reflexões permanecem muito atuais.

Arendt busca na polis grega e na civitas romana argumentos para não apenas entender, mas também sugerir, uma nova compreensão de política compatível e propiciadora de uma nova ética. Não se precisa aceitar que a polis tenha chegado a ser um modo de vida universal e generalizado para todos os gregos. Ela se constituiria numa situação ideal em que as pessoas, já libertadas do labor (trabalho), necessário para satisfazer às necessidades vitais (o espaço da necessidade), e tendo também superado o domínio da obra, da fabricação e transformação da natureza (o espaço da utilidade), poderiam viver com mais plenitude aquela dimensão em que se situaria o verdadeiramente humano, o espaço da ação como discurso, que fundamentaria uma nova ética - uma ética do discurso. Esse espaço político era o espaço da liberdade.

A proposta de Arendt é refletir sobre a ação humana: do labor do escravo e da fabricação artificial da mundanidade para a ação como fala, como discurso, a única exercida diretamente entre seres humanos sem a mediação das coisas ou da matéria: a condição humana da pluralidade.

Aprofundando o pensamento de Arendt. Ela começa afirmando que “o que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade” (ARENDT, 2012______. O que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012., p. 47). A política não era apenas um “meio” para possibilitar a liberdade. “Ser livre e viver-numa-polis eram, num certo sentido, a mesma e única coisa” (ARENDT, 2012, p. 47). E logo adiante explicita: “O sentido da coisa política aqui, mas não seu objetivo, é os homens terem relações entre si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio [...] [eles] regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do convencimento recíproco” (ARENDT, 2012, p. 48, ênfase minha).

Comento essas citações. Dois pontos centrais tem a ver com nosso caso: primeiro, não era a política que propiciava a liberdade: o viver numa polis já era viver a liberdade, constituía a liberdade. E esse “viver numa polis” é o que se chama de ética, o ethos, o mos, o costume. Segundo: no que se constituía esse ethos, esse costume? Exatamente no fato de eles materializarem esse ethos pela fala, pelo discurso. Resumindo: a política era a ética; e a ética se constituía no poder falar em pé de igualdade. Viver na polis era viver a liberdade.

Enfatizo mais um ponto. A coisa política se centrava, pois, em torno da liberdade. Mas essa liberdade era entendida de duas maneiras complementares: negativamente, como não ser dominado e não dominar; e positivamente, como um espaço que só pode ser produzido por muitos, como ela afirma: “sem esses outros, que são meus iguais, não existe liberdade alguma” (ARENDT, 2012______. O que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012., p. 48). Essa a liberdade autêntica só possível na relação.

Uma distinção mais. Na fala costumeira vinculamos o conceito de igualdade ao de justiça, e não ao de liberdade. Arendt avança novamente aqui ao mostrar a importância do discurso - da fala em pé de igualdade - como um fundamento para a ética. Ela insiste: “isonomia não significa que todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política [...] isonomia é, antes de mais nada, liberdade de falar e como tal o mesmo que isegoria” (ARENDT, 2012______. O que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012., p. 49). E agora, o detalhe importante: “o falar na forma de ordenar, e ouvir na forma de obedecer não eram avaliados como falar e ouvir originais; não era uma conversa livre [...] mas sim [comprometida] por um fazer que pressupunha o forçar e o ser forçado” (ARENDT, 2012, p. 49). Por isso, conclui Arendt, os gregos diziam que os escravos e bárbaros eram aneu logou, não dominavam a palavra, encontravam-se em uma situação na qual era impossível a conversa livre. Aqui a importância da fala em pé de igualdade para uma política construída por uma ética fundamentada no discurso.

Desafiaria os leitores a fazer a experiência de tal prática: todos têm o direito, e o dever, de falar, de colocar seu projeto em comum. Mas um falar sem coação e sem dominação: em pé de igualdade (essa a ética em ação). A partir desse discurso se poderia construir o projeto político, isto é, como deveria ser a comunidade, a cidade.

Concluindo, nosso propósito foi trazer alguns questionamentos com respeito à relação entre ética e política. Iniciamos mostrando como se entende ética e seus diferentes fundamentos. Prosseguimos introduzindo a questão da política para argumentar, a partir das reflexões da Arendt, ser possível falar em uma nova ética, a partir do momento em que assumimos e praticamos uma política fundamentada num discurso em pé de igualdade. Assim, seria possível estabelecer um novo fundamento para a ética, uma ética do discurso, onde as pessoas “regulamentam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do convencimento recíproco”: um espaço = liberdade, propiciado pela ética e política. “O acessório indispensável, a constante presença de outros, o relacionamento com iguais na publicidade da ágora, a isegoria torna-se o verdadeiro conteúdo do ser-livre”, onde “o próprio falar era compreendido a priori como uma espécie de agir” (ARENDT, 2012______. O que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 56), onde o agir e o falar não se separam.

Pedrinho Guareschi, julho de 2017.

References

  • ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
  • ______. O que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
  • FREIRE, P. Paulo Freire in Memoriam. São Paulo: PUCSP - Departamento de Educação, 1997 [vídeo].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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