Acessibilidade / Reportar erro

Para entender a crise contemporânea: a experiência portuguesa como lição

RESENHA: Para entender a crise contemporânea: a experiência portuguesa como lição BRAZ, Marcelo. Para a Crítica da Crise:. diálogos com intelectuais e parlamentares da esquerda em Portugal. .Curitiba: :. Prismas, ,2016. .362. p.
REVIEW: Understanding the Contemporary Crisis: the Portuguese experience as a lesson BRAZ, Marcelo. Para a Crítica da Crise:. diálogos com intelectuais e parlamentares da esquerda em Portugal. [For the Critique of the Crisis: dialogues with intellectuals and members of parliament from Portugal’s left]. .Curitiba: :. Prismas, ,2016. .362. p.


O livro de Marcelo Braz, intitulado Para a Crítica da Crise: diálogos com intelectuais e parlamentares da esquerda em Portugal, foi lançado em dezembro de 2016, ou seja, já quase em 2017, pela Editora Prismas e é resultado de sua pesquisa em estágio de pós-doutorado no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa no período de fevereiro de 2015 a janeiro de 2016.

O conteúdo abordado dessa recente publicação trata sobre a crise capitalista contemporânea, tendo como cenário a realidade econômica, social e política de Portugal, especialmente no período entre 2011 a 2015, quando o país ainda estava sob a liderança política de Pedro Passos Coelho do Partido Social Democrata (PSD). Em novembro de 2015, Antônio Costa, do Partido Socialista (PS) assume o poder com o apoio de outros partidos de esquerda, tais como o Partido Comunista Português (PCP), Partido Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Os Verdes. Esse processo representou um grande avanço democrático, mas Braz direciona a sua análise para desvelar o pensamento e ação da esquerda portuguesa (PCP e BE) frente ao governo de direita (do PSD), vigente até 2015.

O autor tem por objetivo discutir a essência da crise capitalista contemporânea e, para tanto, apresenta seu livro em duas partes. A primeira é subdividida em três momentos: no primeiro, o autor analisa a crise capitalista entendendo-a como um movimento determinante do próprio capital, utilizando como referência teórica as ideias centrais de Marx presentes n’O Capital. Vale-se de autores marxistas como Ernest Mandel, Michel Husson, Jorge Beinstein, David Harvey, François Chesnais e outros, para demonstrar que existe “uma pluralidade de causas que engendram as crises, todas elas movidas pelas contradições inerentes ao movimento do capital” (p. 31).

Em outro momento, Braz expõe algumas hipóteses investigativas para explicar a crise contemporânea do capital, desde 1970 até sua explosão mais atual em 2007/2008. O vigor de sua convicção teórica e política tem como ponto de partida o processo de financeirização do capital, entendida como estratégia de manutenção das taxas de lucros dos grandes oligopólios mundiais e nacionais.

No terceiro e último momento da primeira parte do livro, o autor expõe os aspectos particulares da crise em Portugal, destacando suas origens, o desenvolvimento, os responsáveis e as suas consequências para o país. Analisa, ainda, aspectos econômicos, políticos, sociais e ideológicos que reverberam como ameaças à soberania do Estado Português, à democracia burguesa e às condições de vida da população. Este momento se apresenta de forma articulada com algumas considerações feitas pelos sujeitos de sua pesquisa empírica (intelectuais e parlamentares portugueses), à luz de categorias analíticas imprescindíveis para a compreensão de como se manifesta a crise capitalista em Portugal, tais como imperialismo, financeirização, neoliberalismo, mundialização financeira, liberalização, desregulamentação, capital fictício, mais-valia, circulação de capitais, dentre outros. Destaca-se aqui as análises referentes à adesão de Portugal à União Europeia (UE) em 1992 e à adoção de uma moeda única (Euro) em 2000, bem como a relação de dependência e subalternidade que o país estabeleceu ao assinar, em 2011, o “Memorando de Entendimento” (Tratado Orçamental) com a Troika (Fundo Monetário Internacional (FMI), UE e Banco Central Europeu (BCE)). Esses desdobramentos acarretaram em aumento exponencial da dívida pública; redução do crescimento econômico; privatizações; aumento da centralização e concentração de capitais; maior desigualdade entre os países integrados à UE; desemprego e emigração - especialmente de jovens -; contingenciamento de gastos em políticas sociais, dentre outros. Diante dessa realidade, o autor define que o Estado passa a atuar como um “comitê de relações do capital financeiro” (p. 43).

Ao avançar para a segunda parte do livro, Braz apresenta a íntegra das entrevistas realizadas na pesquisa, as quais abrangem 15 entrevistados. Dentre os critérios para a escolha dos entrevistados, definiu que todos deveriam estar vinculados, de alguma forma, à esquerda portuguesa, e não ter exercido qualquer função governativa no período entre 2011-2015, momento esse em que a esquerda representava o confronto político no interior do Parlamento Português. A pesquisa privilegia, portanto, sujeitos com “atuação na esquerda não governativa” (p. 20).

A opção metodológica apresenta-se por meio de diálogos entre o pesquisador e os entrevistados, os quais foram subdivididos em duas categorias: 1) com intelectuais; 2) com parlamentares do PCP e do BE. Este procedimento metodológico imprimiu uma riqueza singular enquanto forma de exposição, pois permite que os capítulos do livro sejam estudados especificamente, ou em blocos referentes aos intelectuais, ou ainda de cada um dos partidos investigados.

Em relação aos dados obtidos, o autor utiliza quatro questões de pesquisa:

  • 1) A natureza da crise (origens, causas e determinantes);

  • 2) Os principais responsáveis pela crise (países/nações, governos, instituições, empresas, políticos, empresários, banqueiros, investidores, gestores/executivos);

  • 3) As principais consequências (econômicas, sociais, políticas) para o país; e

  • 4) As soluções, alternativas e saídas: qual a política de esquerda na crise (estratégia da esquerda em tempos de crise). Sair ou não sair do euro.

No que se refere à natureza da crise (origens, causas e determinantes), os resultados apresentam questões complexas sobre a relação entre a taxa de câmbio fixada pela UE e os reflexos para o funcionamento da economia dos países integrados, apontando o acirramento das desigualdades entre os próprios países, o desequilíbrio de suas balanças comerciais e o aumento estratosférico da dívida pública. As análises trazem à luz aspectos nefastos da financeirização do capital em detrimento do capital produtivo, o crescimento do papel das multinacionais e os efeitos da liberalização e desregulamentação da circulação de capitais, “criando um sistema financeiro separado do Estado” (p. 120) como afirma Francisco Louçã, um dos entrevistados. A articulação das várias perspectivas permite a visualização acurada da dificuldade portuguesa frente às políticas de austeridade impostas pela UE.

Em seguida, ao se analisar os principais responsáveis pela crise (países/nações, governos, instituições, empresas, políticos, empresários, banqueiros, investidores, gestores/executivos), o entendimento da crise vai ficando ainda mais claro. Nesta questão, a tônica das análises recai no despreparo do país no momento de adoção da moeda única (2000), na aceitação de uma arquitetura desigual estabelecida na Zona do Euro e os prejuízos para a soberania do Estado, a subserviência do governo português ao comando de uma oligarquia financeira mundial e regional, as dificuldades impostas pelos Tratados de Maastrich (1992), Tratado de Lisboa (2009) e Tratado Orçamental (2011). A pluralidade de pensamentos abre um leque de possíveis responsabilidades que aparecem articuladas entre si. Certamente não se trata de identificar o ou um responsável, mas sim, de compreender o comando financeiro de uma oligarquia mundial institucionalizada para garantir as taxas de lucro do grande capital.

Na terceira questão discutida na obra, as principais consequências (econômicas, sociais, políticas) para o país revelam que a crise capitalista contemporânea assume feições bastante semelhantes para o conjunto da classe trabalhadora mundial. Os entrevistados indicam o aumento exponencial da dívida pública portuguesa; o aumento do desemprego; e a redução do crescimento econômico e do poder de compra dos trabalhadores, anunciando inúmeras ofensivas à questão social do país. Os diálogos do entrevistador e dos entrevistados revelam, ainda, que os portugueses têm vivenciado uma brutal regressão de direitos sociais e trabalhistas, o que leva os entrevistados a considerarem a realidade atual como uma tragédia social, política e econômica não revertida pelo governo do PS iniciado em fins de 2015. Aqui, vale lembrar, que o autor da obra e muitos dos entrevistados colocam ênfase na dívida pública como consequência da crise, como mecanismo controlado pelo capital financeiro, que assola os países de capitalismo periférico. Nesse sentido, os efeitos da crise estão vinculados ao crescente endividamento desses países, que assim como Portugal, são pressionados a

intensificarem suas formas de saqueio dos fundos públicos, a avançarem mais sobre os salários dos trabalhadores e reduzir ou mercantilizar as políticas e os serviços públicos em todos os níveis, da saúde à previdência social, passando pela educação e pela assistência social, o que significa um agressivo processo de desmantelamento dos sistemas de proteção social (p. 46-47).

Por fim, a quarta questão remete às soluções, alternativas e saídas: qual a política de esquerda na crise (estratégia da esquerda em tempos de crise). Sair ou não sair do euro. Os diálogos deixam claro que o horizonte para a maioria da esquerda portuguesa está em preparar as bases populares para uma possível saída do Euro, ainda que seja um processo a ser negociado e que deva ocorrer em médio ou longo prazo. A perda de soberania do Estado e as perdas colocadas pela integração com a UE desdobram-se na necessidade de renacionalizar parte dos setores produtivos estratégicos que foram privatizados nos últimos governos; romper com o “espartilho de limitação das escolhas democráticas” (p. 298); defender as políticas no sentido de recuperar os direitos que foram perdidos, de eliminar a lógica de privatizações e austeridade como política de desenvolvimento determinada pela Troika (FMI, UE, BCE); e reestabelecer a luta de classe como referência histórica para a retomada da organização dos trabalhadores, dos movimentos sociais e do fortalecimento dos sindicatos que lutam pela defesa e garantia de proteção social.

Para a Crítica da Crise é um livro de alta sofisticação intelectual. Prima pelo tom didático, articulado com o aprofundamento teórico e científico. Apresenta uma leitura prazerosa, que produz um fascínio no leitor, por proporcionar a sensação de estar participando conjuntamente dos diálogos realizados entre o autor e seus entrevistados. Marcelo Braz apresenta um tema indelével no âmbito do Serviço Social, ofertando uma publicação indispensável para a compreensão da crise capitalista contemporânea e seus reflexos para a classe trabalhadora nesses tempos regressivos de neoliberalismo e mundialização do capital, cuja destruição e barbárie vêm fazendo-se presente em todas as dimensões da vida social.

Publication Dates

  • Publication in this collection
    Jan-Apr 2018

History

  • Received
    01 May 2017
  • Accepted
    05 Sept 2017
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com