Acessibilidade / Reportar erro

Câncer de mama, pobreza e saúde mental: resposta emocional à doença em mulheres de camadas populares

Resumos

O objetivo do estudo foi analisar as reações emocionais ao câncer de mama em um grupo de mulheres de camadas populares. A amostra foi composta por 15 pacientes vinculadas a uma entidade assistencial de apoio a mastectomizadas. Os dados foram coletados mediante o emprego de roteiro semi-estruturado de entrevista individual e apreciados em conformidade com um sistema de classificação que postula a existência de quatro categorias mutuamente excludentes: negação, estoicismo, aflição e enfrentamento. Os resultados obtidos indicam que o estoicismo foi a resposta emocional mais freqüente entre as pacientes analisadas. A literatura mostra que tal reação pode contribuir para a redução temporária do estresse, porém, conduz gradativamente ao invalidismo que tende a dificultar o ajustamento psicossocial à doença e ao tratamento.

neoplasias mamárias; pobreza; saúde mental; adaptação psicológica


This study aimed to analyze the emotional response of a low-income group of women to the breast cancer. The sample was composed by 15 patients from a mastectomized women's support entity. Data were collected through individual face-to-face semi-structured interview. The results were appraised according to a classification system that postulates the existence of four categories mutually excluding: denial, stoicism, affliction and confrontation. The results obtained indicate that stoicism was the more frequent emotional response in the evaluated group. The scientific literature shows that stoicism can contribute to the temporary reduction of stress, but it gradually leads to a uselessness feeling which tends to make difficult the psychosocial adjustment to the disease and its treatment.

breast neoplasms; poverty; mental health; psychological adaptation


El presente trabajo tiene como objetivo analizar las reacciones emocionales al cáncer de mama en un grupo de mujeres de clases populares. La muestra fue compuesta por 15 pacientes de una entidad de apoyo a las mujeres mastectomizadas. Datos obtenidos con una entrevista semi-estructurada se apreciaron de acuerdo con un sistema de clasificación que postula la existencia de cuatro categorías que se excluyen mutuamente: rechazo, estoicismo, aflicción y confrontación. Los resultados indican que el estoicismo fue la reacción emocional más frecuente en el grupo evaluado. La literatura científica muestra que el estoicismo puede contribuir a la reducción temporal del stress, pero que lleva gradualmente a un sentimiento de inutilidad qué tiende a crear dificultades para el ajustamiento psico-social a la enfermedad y el tratamiento.

neoplasias de la mama; pobreza; salud mental; adaptación psicológica


ARTIGO ORIGINAL

Câncer de mama, pobreza e saúde mental: resposta emocional à doença em mulheres de camadas populares1 1 Trabalho subvencionado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Rodrigo Sanches PeresI; Manoel Antônio dos SantosII

IPsicólogo, Doutorando em Psicologia, e-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

IIPsicólogo, Docente, e-mail: masantos@ffclrp.usp.br. Departamento de Psicologia e Educação. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil

RESUMO

O objetivo do estudo foi analisar as reações emocionais ao câncer de mama em um grupo de mulheres de camadas populares. A amostra foi composta por 15 pacientes vinculadas a uma entidade assistencial de apoio a mastectomizadas. Os dados foram coletados mediante o emprego de roteiro semi-estruturado de entrevista individual e apreciados em conformidade com um sistema de classificação que postula a existência de quatro categorias mutuamente excludentes: negação, estoicismo, aflição e enfrentamento. Os resultados obtidos indicam que o estoicismo foi a resposta emocional mais freqüente entre as pacientes analisadas. A literatura mostra que tal reação pode contribuir para a redução temporária do estresse, porém, conduz gradativamente ao invalidismo que tende a dificultar o ajustamento psicossocial à doença e ao tratamento.

Descritores: neoplasias mamárias; pobreza; saúde mental; adaptação psicológica

INTRODUÇÃO

O câncer de mama caracteriza-se basicamente pela ocorrência, em uma das estruturas que compõem o órgão, de tumores malignos que se formam em virtude da reprodução incontrolável de células que passaram por complexo processo de transformações desordenadas e podem evoluir por extensão direta ou disseminação metastática. Os principais sintomas locais são nódulos palpáveis e deformações - sobretudo abaulamentos ou retrações - na mama. Porém, secreção mamilar sanguinolenta e nódulos nas axilas podem ser verificados ocasionalmente. Sintomas constitucionais - tais como astenia, febre e emagrecimento - também compõem o quadro clínico(1).

Na atualidade, a doença em questão é o tipo de neoplasia maligna mais comum na população feminina de diversos países. Além disso, as taxas de incidência aumentam a cada ano como reflexo da tendência global à predominância de estilos de vida que fomentam a exposição a fatores de risco. As mais recentes projeções do Ministério da Saúde apontam que somente no Brasil aproximadamente 50.000 novos diagnósticos seriam confirmados em 2006 e que o risco variaria de 38 casos na Região Centro-Oeste a 71 casos na Região Sudeste para cada 100.000 mulheres. Por essa razão, o controle do câncer de mama se destaca como preocupação crescente para os serviços nacionais de saúde pública(2).

Em uma série de países desenvolvidos tem-se verificado, nos últimos anos, a redução do tamanho médio dos tumores mamários e, conseqüentemente, a diminuição das taxas de mortalidade pela doença. Afinal, o diagnóstico precoce potencializa a resolutividade do tratamento. Não obstante, o câncer de mama ainda representa uma das maiores causas de morte da população feminina, sobretudo nas classes econômicas menos privilegiadas. Isso ocorre porque - devido à convergência de uma série de fatores como baixo nível educacional, carência de informações e acesso restrito às novas terapêuticas - nesse segmento da população a prática da prevenção secundária é pouco freqüente, inclusive nas nações mais ricas(3). Ademais, dentre os habitantes de um mesmo país, que compartilham de uma mesma cultura, observa-se diferenças regionais importantes, em função da classe social, da idade, do gênero e atitudes, crenças e valores associados à saúde e à doença.

Na literatura científica recente, percebe-se que os estudos têm se voltado cada vez mais para a investigação dos fatores psicossociais que estariam associados à dificuldade de estabelecimento do diagnóstico precoce do câncer de mama. A maioria desses estudos aponta que, em nível individual, crenças comportamentais associadas à falta de informação e à percepção distorcida da doença conduzem, em maior ou menor grau, à evitação do auto-exame das mamas e restringem a demanda pela mamografia e pelo exame clínico das mamas em mulheres que vivem em condição de pobreza(4-5). Tal fato pode ser compreendido levando-se em consideração que, a despeito dos atuais avanços científicos em oncologia, a palavra câncer ainda é comumente vista nessa população como sinônimo de dor, sofrimento, humilhação, mutilação e morte(6).

As crenças comportamentais que dificultam a adesão aos métodos utilizados no diagnóstico precoce do câncer de mama em mulheres com menor poder aquisitivo também podem influenciar a reação emocional à doença e, assim, comprometer sensivelmente a efetividade das estratégias adotadas pelas pacientes na luta pela manutenção da própria vida(7). Conhecer tais crenças, portanto, é indispensável para que os profissionais de saúde possam evitar a desqualificação da experiência popular do adoecer e, assim, encontrem meios de maximizar o alcance de suas intervenções. Partindo desse princípio, o presente estudo foi conduzido com o objetivo de analisar as reações emocionais ao câncer de mama em um grupo de mulheres de baixa renda. Tal propósito se justifica em face da escassez de pesquisas dessa natureza, desenvolvidas especificamente junto a essa população.

MÉTODO

Tipo de estudo

O presente estudo seguiu um delineamento descritivo, transversal e qualitativo.

Marco teórico-metodológico

Em um estudo clássico definiu-se proveitosa metodologia para a avaliação do impacto psicológico do câncer de mama. As reações emocionais mobilizadas pelo adoecimento em uma amostra de sessenta e nove pacientes foram avaliadas três meses após a execução da terapêutica cirúrgica. Cinco anos depois, essas respostas foram relacionadas ao curso do tratamento. Os resultados obtidos apontam que havia quantidade maior de mulheres livres da doença entre aquelas que reagiram ao câncer de mama com negação ou demonstraram espírito de luta do que entre aquelas que responderam com aceitação estóica ou sentimentos de desamparo. Ademais, sugerem que a mobilização afetiva precipitada pelo contato com a realidade do diagnóstico se estrutura sobre uma rede de crenças comportamentais que sustentam determinados comportamentos de busca de saúde(8).

A referida metodologia consiste em um sistema classificatório que postula a existência de quatro categorias mutuamente excludentes de reações emocionais ao câncer de mama, a saber: negação, estoicismo, aflição e enfrentamento. A categoria negação diz respeito às respostas que mostram dissociação das experiências psicológicas despertadas pelo diagnóstico freqüentemente acompanhada de atitude evasiva ou de indiferença. A categoria estoicismo compreende as reações emocionais baseadas na crença de que se deve suportar heroicamente o sofrimento. Nesse caso, a doença pode ser vista como provação que deve ser aceita passivamente ou como um teste aos limites humanos diante do qual nada resta a fazer a não ser se conformar.

Na categoria aflição são classificadas as respostas que indicam que o sofrimento emocional vivenciado pela mulher em função do adoecimento é demasiadamente intenso e sobrepuja os recursos adaptativos que ela é capaz de mobilizar para contê-lo. Finalmente, na categoria enfrentamento são classificados aqueles comportamentos, sentimentos e pensamentos que denotam atitude de buscar confrontar diretamente a situação. Vale destacar que se supõe que o enfrentamento focalizado no problema é um recurso adaptativo positivo, ao contrário do enfrentamento centrado na emoção, o qual caracterizaria as três primeiras categorias do sistema em questão.

Casuística

A população do presente estudo foi composta por quarenta e duas pacientes que, no período compreendido pela investigação (de março a dezembro de 2006), estavam cadastradas em uma entidade assistencial voltada ao suporte social a mulheres mastectomizadas. A amostra foi composta por 15 pacientes selecionadas por atenderem aos critérios de inclusão definidos pelos pesquisadores, ou seja, que: a) somavam de trinta a oitenta anos de idade; b) haviam recebido o diagnóstico de câncer de mama há pelo menos três meses; c) não apresentavam antecedentes psiquiátricos ou suspeita de déficit intelectual; d) não apresentavam evidências de recidivas ou metástases e e) possuíam renda familiar de até dois salários mínimos.

A média de idade das participantes do presente estudo foi de 57,5 anos com amplitude de variação dos quarenta e nove aos setenta e dois anos. A Tabela 1 sistematiza uma caracterização sociodemográfica das mesmas e aponta, a propósito da ocupação atual, do estado marital e do nível de escolaridade, respectivamente, que oito pacientes eram donas-de-casa, nove estavam casadas e sete não chegaram a completar o ensino fundamental. Além disso, dentre as sete mulheres que exerciam alguma atividade remunerada, predominaram ocupações de baixo prestígio social e que requerem baixo ou nenhum nível educacional e de qualificação profissional.

Instrumento e materiais

Para a coleta dos dados utilizou-se de roteiro semi-estruturado de entrevista, um gravador e fitas cassete. O roteiro em questão enfatizava os aspectos subjetivos relacionados à apreciação que a paciente faz da própria condição de saúde e das reações emocionais desencadeadas pela doença. A opção por esse tipo de instrumento partiu do princípio de que um roteiro semi-estruturado seria capaz de viabilizar o exame das reações emocionais suscitadas pelo câncer de mama, direcionando a investigação segundo determinados aspectos considerados de maior relevância pelos pesquisadores e, ao mesmo tempo, poderia oferecer às participantes a oportunidade de configurar o campo da entrevista conforme suas características individuais, auxiliando-as, assim, a apresentar, frente às questões que lhes eram dirigidas, respostas representativas de suas concepções, valores e crenças(9).

Procedimento de coleta de dados

As entrevistas foram realizadas individualmente em situação face a face e gravadas em áudio mediante o consentimento das participantes As condutas éticas preconizadas para pesquisas envolvendo seres humanos, foram integralmente observadas. A propósito, o presente estudo é parte de um projeto mais amplo, o qual contou com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Todas as participantes formalizaram sua anuência com a investigação mediante assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, que explicitava seus direitos e enfatizava o caráter voluntário de sua participação no estudo. Cumpre assinalar também que os pesquisadores arcaram com as despesas de transporte das mulheres até a sede da entidade assistencial, local onde se realizou a coleta de dados.

Procedimento de análise de dados

As gravações em áudio foram transcritas de modo integral e literal. Posteriormente, as reações emocionais ao câncer de mama referidas pelas pacientes foram classificadas em quatro categorias mutuamente excludentes - negação, estoicismo, aflição e enfrentamento - a partir do emprego de um sistema já mencionado(8). Com o intuito de se evitar eventual contaminação dos resultados, a aplicação do procedimento de análise das entrevistas foi executada independentemente por dois juízes especializados (psicólogos pós-graduados). As reações classificadas de modo consensual foram automaticamente aceitas. As discordâncias foram discutidas caso a caso pelos pesquisadores com os juízes até que se alcançasse acordo consensuado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados obtidos indicam que oito das quinze pacientes (Participantes 1, 2, 3, 4, 6, 11, 12 e 15) encararam o câncer de mama como uma fatalidade diante da qual a única atitude possível seria a aceitação passiva. Nesses casos, até mesmo as perdas anatômicas decorrentes da terapêutica cirúrgica despertaram conformismo. Esse tipo de reação emocional, sustentado por uma crença comportamental específica, adotada como atitude de resignação, muitas vezes se afigura como um modo de sufocar emoções potencialmente desestruturantes, dentre as quais a indignação, a revolta e a raiva por se ver ameaçada por uma doença que pode ceifar sua vida. Observa-se, portanto, que o estoicismo foi a reação emocional mais freqüente na amostra em questão.

A necessidade de sufocar emoções precipitadas pelo adoecimento se torna compreensível tendo-se em vista que a confirmação do diagnóstico de câncer de mama representa importante trauma psicológico na maioria dos casos porque, como sustenta a literatura científica especializada, a enfermidade incide sobre o principal suporte simbólico corpóreo da sensualidade e da sexualidade da mulher(10). Além disso, as conseqüências físicas e as repercussões emocionais do tratamento geralmente afetam a imagem corporal, conduzindo, não raro, a rupturas na identidade feminina. Desprovidas da mama, muitas pacientes se sentem tolhidas daquilo que define sua natureza. Portanto, de acordo com o que afirmam diversos estudos, o câncer de mama pode ser considerado uma das doenças mais temidas pelas mulheres, independentemente da classe social(6).

A afirmação apresentada a seguir exemplifica como, no discurso de uma das avaliadas, o estoicismo pôde ser identificado.

Na hora eu fiquei muito assustada. Só que logo passou [...]. Porque nossa vida já tá escrita, né? Eu acredito que tudo é destino. Então, o que é que a gente pode fazer?Nada, né? (Participante 6).

A noção de "destino" - que também surgiu nas entrevistas como a expressão da "vontade divina" - foi invocada nesses casos para justificar que, diante do que supostamente lhe estava designado ("escrito" no seu carma), nada caberia fazer senão se conformar passivamente. Algumas pacientes expressavam esse conformismo dizendo que se entregaram às mãos de uma entidade superior ou às mãos dos médicos, as quais poderiam supostamente operar em conformidade com a "vontade divina".

Reações emocionais dessa natureza tendem a conduzir à adesão hesitante ao tratamento preconizado, pois, por mais que a mulher consinta em seguir as condutas recomendadas, sempre haverá em seu íntimo um espaço para a dúvida e a descrença. Será que vale a pena se submeter a tantas provações? Será que esse tratamento é realmente a melhor solução? Será que tudo vai dar certo no final? Questionamentos análogos a esses podem surgir, dado que, se tudo está predefinido pelo destino traçado para cada uma, a existência de meios eficazes para influenciar o curso aparentemente irremediável dos acontecimentos seria pouco provável.

Essa incredulidade também se manifesta de um outro modo. Três pacientes (Participantes 5, 9 e 13) demonstraram que, quando da confirmação do diagnóstico, desconsideraram a gravidade da doença e, em função disso, protelaram o início do tratamento. Ou seja, a doença conduziu, nesses casos, à negação. Vale destacar inclusive que, tal como ilustra a afirmação apresentada a seguir, uma das examinadas mencionou que, mesmo depois de ter concluído o tratamento, duvida da malignidade de seu tumor.

Eu fiz a quimio e o caroço sumiu. Aí eu achava que não era câncer. Tanto é que eu não voltei no médico quando tava agendada a cirurgia. Eu só fiz a cirurgia depois porque eu percebi que o caroço tava voltando. Só que, pra te falar a verdade, até hoje eu tenho minhas dúvidas (Participante 5).

Nota-se, assim, o descrédito do saber científico e da autoridade médica.

A ocorrência desse fenômeno possivelmente se encontra associada à condição de pobreza em que vivem as participantes do presente estudo, uma vez que, para pessoas de baixa renda, estar doente significa perder o único recurso do qual se dispõe para sobreviver: a capacidade para o trabalho(11). Negar a doença pode, assim, ser uma forma de manter a rotina de afazeres domésticos ou atividades profissionais e favorecer a satisfação de necessidades básicas como alimentação e moradia. Ademais, freqüentemente se crê, no contexto das camadas populares, que "mulher não pode se dar ao luxo de ficar doente", dado que cabe à figura feminina papel fundamental para a manutenção do bem-estar familiar, o qual, muitas vezes, inviabiliza seu próprio bem-estar.

Apenas duas pacientes (Participantes 8 e 10) reagiram ao câncer de mama com enfrentamento, pois buscaram ativamente obter informações sobre o próprio prognóstico, não se renderam diante das dificuldades inerentes ao tratamento, não se sentiram estigmatizadas pela doença e não alimentaram ressentimento pela mutilação ou opressão por sentimentos de vergonha. O relato apresentado a seguir demonstra como, no discurso de uma das mulheres, essa reação pôde ser identificada.

Eu perguntei pro médico como ia ser. Foi a primeira coisa que eu fiz. Ele me explicou direitinho. Aí eu fiz tudo o que eu tinha que fazer. [...] Sabe que no hospital eu conheci uma mulher que não aceitou fazer o tratamento? E ela não fez mesmo! Tanto é que ela morreu. Nossa, isso nunca passou pela minha cabeça! (Participante 8).

A busca ativa de informações junto aos profissionais de saúde freqüentemente traduz o desejo de se sentir novamente no controle dos acontecimentos de sua vida. Esse sentimento básico é parcialmente subtraído pela irrupção de uma doença grave como o câncer de mama. Assim, adotar atitude combativa e realista frente à doença pode ter um caráter reparatório, isto é, representar uma tentativa de repor o autodomínio sobre aquilo que lhe sucede. Assumir esse tipo de postura frente à própria enfermidade pode fazer a diferença, determinando provavelmente aquelas que sobrevivem e aquelas que morrem por desconsideração do perigo, como referido anteriormente na avaliação da reação emocional apresentada pela Participante 8.

Ressalte-se, porém, que para que se possa enfrentar a doença, se faz necessário envolvimento subjetivo com o próprio corpo. A literatura científica aponta que, de modo geral, nas classes populares, os recursos físicos pessoais são utilizados em demasia no trabalho(11). Em contrapartida, pouca atenção é dedicada às experiências corporais fora desse contexto. Ou seja: uma relação reflexiva com o corpo parece ser incompatível com sua exploração no desempenho de atividades produtivas. Esse raciocínio explicaria, ao menos parcialmente, o fato do enfrentamento ter se destacado como uma reação emocional ao adoecimento incomum entre as participantes do presente estudo.

Em dois casos (Participantes 7 e 14) observou-se mobilização emocional acentuada durante a entrevista, o que justifica a classificação da aflição como reação emocional predominante. Possivelmente isso ocorreu porque a perspectiva da recidiva era vivenciada como ameaça iminente, análoga, do ponto de vista metafórico, àquela que representa, na mitologia, a espada de Dâmocles. Angústia e persecutoriedade permearam o discurso dessas participantes, monopolizando suas preocupações com possível recorrência do câncer de mama, tal como se pôde apreciar no relato apresentado a seguir

Olha, ninguém sabe o que eu tô passando. Eu tô apavorada, desesperada! O médico falou que a cirurgia não é certeza. Eu achava que era só tirar o tumor e pronto. Só que ele falou que pode voltar em outro lugar. Tem um risco muito grande (Participante 14).

Alguns dos motivos associados à prevalência do estoicismo no presente estudo são facilmente presumidos, tendo-se em vista que diversas pesquisas apontam o quão perturbador pode ser o câncer de mama. Em uma delas se constatou que mais de um quarto das mulheres diagnosticadas havia um ano preenchiam os critérios para algum transtorno psiquiátrico - sobretudo ansiedade, depressão e disfunção sexual - ainda que em sua forma branda(12). Outra pesquisa revelou que quatro em cinco pacientes experimentam reações de sofrimento psicológico diante do diagnóstico e metade delas com intensidade suficiente para serem consideradas portadoras de transtorno psiquiátrico(13).

Os resultados do presente estudo, contudo, sugerem que em pacientes de baixa renda a construção da experiência popular do adoecer é influenciada de modo específico por uma associação automática entre o câncer de mama e um doloroso processo de deterioração física sem paralelo na existência humana. Tal associação parece ser especialmente acentuada nessa população e, como já mencionado, decorre essencialmente da falta de informação e de aproximação emocional com o câncer de um modo geral. Além disso, geralmente fomenta crenças comportamentais que dificultam a adesão à prevenção secundária e, como conseqüência, inviabilizam o diagnóstico precoce(4). É justamente por esse motivo que a classe social das pacientes é considerada importante fator prognóstico no câncer de mama(14).

Pesquisas indicam também que a reação emocional ao câncer de mama mais freqüente na amostra do presente estudo tende a promover em pacientes com tumores em diferentes localizações a contenção de esforços, cujo emprego nas transações entre o indivíduo e o contexto seria potencialmente oportuno para a promoção de sua saúde física e mental. Embora contribua para a redução temporária do estresse, esse processo conduz gradativamente a um invalidismo, que se estende para além das limitações objetivas impostas pela doença e, assim, pode comprometer o ajustamento dinâmico às demandas inerentes a cada uma das etapas que se sucedem, do diagnóstico ao tratamento(15-16).

As reais implicações desse invalidismo para a saúde mental de pacientes de camadas populares ainda são desconhecidas, dado que as pesquisas que sustentam suas associações com o estoicismo não foram desenvolvidas especificamente junto a essa população. Todavia, parece razoável cogitar que o fenômeno em questão, promovendo déficit no desempenho da capacidade produtiva e intensificando a privação material, afetaria drasticamente o senso de auto-eficácia - ou seja, a percepção de ser competente para a execução de atividades diárias diversificadas - em mulheres que vivem em situação de pobreza. Afinal, ensejaria um processo contínuo e progressivo de desfiliação em relação ao modo de produção capitalista vigente no mundo globalizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito da perspectiva da escuta de um número relativamente reduzido de pacientes, o presente estudo aponta que a reação emocional de mulheres de classes econômicas populares ao câncer de mama pode estar relacionada aos desdobramentos da condição de pobreza, os quais freqüentemente incluem acesso limitado a informações e recursos de tratamento. Ademais, sugere que, nessa população, estratégias pouco adaptativas tendem a ser adotadas no manejo das repercussões emocionais da doença e do tratamento. Os achados também corroboraram evidências de que são freqüentes em pacientes com câncer de mama certos traços de personalidade, como a tendência a suprimir emoções, sobretudo a raiva, e de responder ao estresse usando um estilo de enfrentamento repressivo(12). Certamente novas pesquisas são necessárias, mas os resultados reforçam a notória necessidade de programas multidisciplinares de educação em saúde compatíveis com o universo cognitivo e afetivo de mulheres de baixa renda para a popularização da prevenção secundária do câncer de mama.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 9.5.2007

Aprovado em: 27.8.2007

  • 1. Instituto Nacional do Câncer (BR). Falando sobre doenças de mama. Rio de Janeiro (RJ): Ministério da Saúde; 1996.
  • 2. Instituto Nacional do Câncer (BR). Estimativa 2006: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro (RJ): Ministério da Saúde; 2006.
  • 3. Kamangar F, Dores GM, Anderson WF. Patterns of cancer incidence, mortality and prevalence across five continents: defining priorities to reduce cancer disparities in different geographic regions of the world. J Clin Oncol 2006; 24: 2137-50.
  • 4. Gonçalves SMCM, Dias, MR. A prática do auto-exame da mama em mulheres de baixa renda: um estudo de crenças. Estud Psicol (Natal) 1999; 4(1):141-59.
  • 5. Thomas SM, Fick AC. Women's health. Part II: individual, environmental and economic factors affecting adherence to recommended screening practices for breast cancer. J La State Med Soc 1995; 147(4):149-155.
  • 6. Maluf MFM, Mori LJ, Barros ACSD. O impacto psicológico do câncer de mama. Rev Bras Cancerol 2005; 51(2):149-54.
  • 7. Lazarus RS. Coping with the stress of illness. WHO Reg Publ Eur Ser 1992; 44:11-31.
  • 8. Greer S, Morris T, Pettingale KW. Psychological response to breast cancer: effect on outcome. Lancet 1979; 2(8146):785-87.
  • 9. Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo (SP): Moraes; 1994.
  • 10. Daune F. Aspects psychologiques du cancer du sein. Rev Med Brux 1995; 16(4):245-7.
  • 11. Boltanski L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 1989.
  • 12. Dean C. Psychiatric morbidity following mastectomy: preoperative predictors and types of illness. J Psychosom Res 1987; 31(3):385-92.
  • 13. Lovestone S, Fahy T. Psychological factors in breast cancer. British Med J 1991 May, 302(6787):1219-20.
  • 14. Abreu E, Koifman S. Fatores prognósticos no câncer de mama feminino. Rev Bras Cancerol 2002; 48(1):113-31.
  • 15. Gimenes MGG, Queiroz E. As diferentes fases de enfrentamento durante o primeiro ano após a mastectomia. In: Gimenes MGG, Fávero MH, organizadoras. A mulher e o câncer. Campinas (SP): Psy; 1997. p. 173-96.
  • 16. Alves LCA. Correlação entre adaptação psicossocial à colostomia permanente e resposta psicológica ao câncer. Psiq Prát Méd 2000 [citado 2007 jan 03]; 33(4), outubro-dezembro 2000. Disponível em URL: http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/original4_01.htm
  • 1
    Trabalho subvencionado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Aceito
      17 Abr 2007
    • Recebido
      05 Abr 2007
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br