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Experiências de familiares de crianças e adolescentes, após o término do tratamento contra câncer: subsídios para o cuidado de enfermagem

Resumos

A sobrevida de crianças e adolescentes com câncer tem aumentado nos últimos anos. Pesquisadores e profissionais da área de saúde têm estabelecido como prioridade estudos sobre os efeitos tardios do tratamento e qualidade de vida dos sobreviventes. O objetivo deste estudo é compreender como as famílias de crianças e adolescentes com câncer vivenciam a experiência do término do tratamento. O estudo é de natureza descritivo-exploratória com análise qualitativa dos dados. Participaram dez famílias de crianças e adolescentes na fase de término do tratamento que estavam em acompanhamento em um hospital-escola. Os dados foram organizados em dois eixos temáticos: a memória - o que foi vivido e o presente - o que se vive. Com esse estudo, evidenciou-se a vitalidade dos participantes de sobreviver ao tratamento e a tenuidade de viver após ele. Os resultados possibilitaram identificar aspectos que necessitam de intervenção, objetivando a melhoria da qualidade de vida de crianças, adolescentes e da própria família, após o término do tratamento.

neoplasias; criança; adolescente; família; sobreviventes; enfermagem pediátrica


The survival of children and adolescents with cancer has increased in recent years. Researchers and professionals in the health area have prioritized studies on the delayed effects of the treatment and quality of life of the survivors. This study aims to understand how parents and other family members of children and adolescents with cancer, experience the completion of the treatment. This descriptive and exploratory study adopted a qualitative methodological approach. A total of ten families whose children had completed the cancer treatment and were in follow-up in a hospital-school were selected for the study. The data were organized in two thematic axes: the memory % what was experienced and the present % what is being experienced. The study evidenced the participants' vitality to survive the treatment and fragility to live after it. The results allowed identifying aspects that need intervention, aiming at the improvement of quality of life of children, adolescents and the whole family after the end of the treatment.

neoplasms; child; adolescent; family; survivors; pediatric nursing


La sobrevivencia de niños y adolescentes con cáncer viene aumentando en los últimos años. Investigadores y profesionales del área de la salud han establecido como prioridad, estudios sobre los efectos tardíos del tratamiento y la calidad de vida de los pacientes. El objetivo de este estudio es comprender como las familias de niños y adolescentes con cáncer vivencian el término del tratamiento. El estudio es de naturaleza descriptivo- exploratoria con análisis cualitativo de los datos. Participaron diez familias de niños y adolescentes en la etapa final de su tratamiento seguido dentro de un hospital-escuela. Los resultados fueron organizados en dos ejes temáticos: la memoria- lo que fue vivido y el presente- lo que se vive. Con este estudio, se evidenció la vitalidad de los participantes para terminar el tratamiento y la fragilidad de vivir posterior al mismo. Los resultados permiten identificar aspectos que requieren de intervención, teniendo como objetivo una mejor calidad de vida para los niños, adolescentes y para su familia, posterior al tratamiento.

neoplasias; niño; adolescente; familia; sobreviviente; enfermería pediátrica


ARTIGO ORIGINAL

Experiências de familiares de crianças e adolescentes, após o término do tratamento contra câncer: subsídios para o cuidado de enfermagem1 1 Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado

Maria Carolina Alves OrtizI; Regina Aparecida Garcia de LimaII

IMestre em Enfermagem, Enfermeira do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: ortiz@eerp.usp.br

IIProfessor Associado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: limare@eerp.usp.br

RESUMO

A sobrevida de crianças e adolescentes com câncer tem aumentado nos últimos anos. Pesquisadores e profissionais da área de saúde têm estabelecido como prioridade estudos sobre os efeitos tardios do tratamento e qualidade de vida dos sobreviventes. O objetivo deste estudo é compreender como as famílias de crianças e adolescentes com câncer vivenciam a experiência do término do tratamento. O estudo é de natureza descritivo-exploratória com análise qualitativa dos dados. Participaram dez famílias de crianças e adolescentes na fase de término do tratamento que estavam em acompanhamento em um hospital-escola. Os dados foram organizados em dois eixos temáticos: a memória - o que foi vivido e o presente - o que se vive. Com esse estudo, evidenciou-se a vitalidade dos participantes de sobreviver ao tratamento e a tenuidade de viver após ele. Os resultados possibilitaram identificar aspectos que necessitam de intervenção, objetivando a melhoria da qualidade de vida de crianças, adolescentes e da própria família, após o término do tratamento.

DESCRITORES: neoplasias; criança; adolescente; família; sobreviventes; enfermagem pediátrica

INTRODUÇÃO

A incidência do câncer pediátrico em nosso país ainda é desconhecida na sua totalidade, porém, as estimativas nacionais provenientes de serviços especializados, ligados à Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (SOBOPE) e cadastrados no Ministério da Saúde, indicam que ocorrem de 8.000 a 10.000 casos/ano no Brasil(1).As estatísticas norte-americanas estimam que um em cada 900 indivíduos, entre 16 e 44 anos, será sobrevivente do câncer infantil, com expectativa de atingir um a cada 250 até o ano 2010(2). No Brasil, as crianças e jovens com leucemia linfóide aguda são curados em 80% dos casos(3).

Na atualidade, estar livre da doença na perspectiva da medicina é uma possibilidade crescente para as crianças e os adolescentes com câncer. Há, porém, as dimensões emocionais e sociais da cura. Nesse sentido, se a experiência de ter um câncer traz impacto em todos os níveis de vida da criança, do adolescente e de seus familiares, a experiência de sobreviver a uma doença tão grave e ao tratamento agressivo também o traz(4). Uma criança curada de câncer é um ex-doente, potencialmente portador de seqüelas físicas e psíquicas mais ou menos visíveis e incapacitantes, que conserva, por muito tempo, as marcas da ameaça que atingiu o seu corpo e que pesou em sua vida(5).

O termo sobrevivente surgiu na década de 1970 e não há consenso na literatura pediátrica oncológica sobre a definição de sobreviventes. Alguns autores definem sobreviventes como crianças e adolescentes que estão livre da doença pelo menos há cinco anos, enquanto outros denominam aqueles que completaram a terapia pelo menos há dois anos(6). Adotou-se, neste estudo, a definição de que sobreviventes do câncer são aquelas pessoas que foram diagnosticadas com a doença e afetadas pelo diagnóstico, incluindo, nessa última situação, também os familiares, amigos e cuidadores(7).

Na interação dos indivíduos na esfera familiar, o estado de saúde e doença de cada um de seus membros afeta e é afetado pela família. Crianças e adolescentes, especialmente com doenças graves como o câncer, afetam toda a família e as interações de seus membros. Sob essa perspectiva, tornar-se paciente e receber cuidados de saúde engloba uma série de eventos que compreendem a interação entre várias pessoas, incluindo a família, os amigos e profissionais de saúde. O papel que cada família assume nesse processo varia de acordo com o tipo de problema de saúde e o grau de envolvimento dos familiares(8-9).

A família representa um importante apoio aos seus membros no processo saúde-doença(8). Como conseqüência, ela tem assumido os cuidados diários necessários ao processo terapêutico, no âmbito domiciliar e também durante os episódios de hospitalização. A ênfase crescente na família tem resultado na modificação da maneira como ela é percebida no contexto de saúde, ultrapassando, sobretudo, as definições utilitárias que se atribuíam à família, quando era vista exclusivamente como um bem para o paciente e sua presença era considerada e, às vezes, tolerada em especial nos ambientes de assistência à saúde, levando-se em conta seu papel na esfera afetiva da recuperação do familiar doente(9).

Conhecer a experiência da família nas crises, a sobrecarga que a doença provoca e a qualidade de vida que se consegue obter no dia-a-dia possibilita que os enfermeiros, cientes das estratégias utilizadas pelas famílias, ofereçam apoio e discutam as melhores alternativas para o enfrentamento da situação de doença(10). Dessa maneira, é o objetivo deste trabalho compreender como os pais e outros familiares de crianças e adolescentes com câncer vivenciam a experiência do término do tratamento, para apoiá-los no enfrentamento desse e de futuros períodos.

PERCURSO METODOLÓGICO

Este estudo caracteriza-se como descritivo-exploratório, com abordagem metodológica qualitativa, dada a natureza do objeto de estudo e objetivo proposto. Buscou-se, assim, compreender os significados que os familiares das crianças e adolescentes atribuem à experiência da sobrevivência ao câncer. Entende-se que tais significados são construções da vida cotidiana, na relação social com os seus semelhantes.

Escolheu-se como campo de pesquisa o Ambulatório de Oncopediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). Em respeito à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, o projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição em questão, obtendo sua aprovação. Participaram do estudo dez famílias, cujos filhos tiveram seu tratamento concluído. Dessas famílias, nove foram mães, dois pais e duas irmãs.

Os dados foram coletados mediante entrevista semi-estruturada, observação e levantamento em prontuário. Utilizou-se à entrevista semi-estruturada como principal recurso para a coleta de dados que foi gravada, após a permissão dos participantes. Partiu-se do pressuposto de que o domicílio, por ser um espaço de maior domínio das famílias, possibilitaria segurança, liberdade e maior privacidade durante a entrevista. Observou-se que, de fato, isso ocorreu, pois os participantes demonstraram mais tranqüilidade em seu domicílio do que no dia da abordagem para a apresentação do projeto no ambiente hospitalar. As entrevistas, no domicílio, permitiram se que identificasse a situação em que as famílias viviam, oferecendo recursos para planejar intervenções que fossem próximas às suas realidades.

RESULTADOS

A partir dos dados, identificou-se dois eixos temáticos: a memória - o que foi vivido e o presente - o que se vive, os quais serão apresentados a seguir.

A memória - o que foi vivido

Relembrar o passado, o caminho percorrido até o diagnóstico correto, as dificuldades enfrentadas com a piora do estado de saúde da criança, o medo e a incerteza do diagnóstico e a familiarização com a nova rotina, novas pessoas, novos ambientes fizeram parte da vida dos familiares. O início da doença, que geralmente é abrupto, sem uma causa conhecida foi identificado por alterações pequenas e corriqueiras que se agravaram repentina e rapidamente, surpreendendo a família. A busca pelo diagnóstico correto fez parte da história desses pais e filhos. O câncer, por ser uma doença com sinais e sintomas inespecíficos, pode tornar o diagnóstico, muitas vezes, difícil, como observado no relato abaixo.

Eu achava que era coisa de criança, uma dor boba. Às vezes a gente pensa que criança reclama demais... Daí, em setembro, ele começou a ficar muito ruim, começou a ter diarréia e vômito. Levei no médico que disse que era verme, dei remédio e não melhorou, voltei com ele no médico com queixa de dor na barriga. Dessa vez me disseram que eram gases, dava remédio e nada do menino melhorar, ele começou a emagrecer... Fiquei uns quatro meses correndo atrás de médico, depois, além do abdome, começou a doer a barriga. O vômito e a diarréia eram todo dia, levei na médica que pediu exame de sangue e disse que era hepatite... Eu bati o pé com ela, isso não é hepatite. Os meus filhos todos quando nascem eu levo em um só médico, porque se tem alguma coisa errada, quando fica doente fica mais fácil de achar (Fernanda, mãe de Fábio).

Receber a notícia de um diagnóstico de câncer desencadeia uma cascata de reações, sentimentos e atitudes na família e criança como medo, revolta, sentimento de culpa e busca de ajuda.

...Constataram que ela tinha um tumor. Entramos em desespero. O nosso mundo acabou (Ivana, mãe de Iara).

... Chegando lá, os médicos de Ribeirão, explicaram tudo do tumor, que tinha tratamento... que ia cair o cabelo dele. Eu fiquei desesperada, porque todo mundo fala que quem tem essa doença [câncer] morre... Nossa eu fiquei... (Joana, mãe de Junior).

Os pais precisaram reorganizar suas atividades para acompanhar suas crianças, passaram por reestruturação familiar, no âmbito da vida social e financeira, como mencionado a seguir.

...Ele [criança] às vezes falava: pai fica comigo no hospital para fazer exame. Não! Não posso ficar... [abaixa cabeça e faz silêncio]. Certo que às vezes a mãe ficava brava.., e eu.. eu não posso ficar, preciso trabalhar que é só eu que trabalho em casa, se eu começar a faltar... Eu preciso de ir lá fazer meu serviço. Não adiantou de nada, me mandaram embora mesmo assim... (Antônio, pai de André).

...Eu ia com as meninas todos os domingos na missa, mas depois que começou o tratamento eu não fui mais na igreja, porque ela não podia ficar em lugares com muita gente... Como eu ia deixar ela para trás? Não dava! Parei de ir à igreja...(Ivana, mãe de Iara).

Percebeu-se, neste estudo, que, quando a organização para o cuidado do filho requer o rompimento com o vínculo empregatício de um dos membros, particularmente aquele responsável financeiramente, ocorre comprometimento da renda familiar.

...Trabalhei até março de 2004 como auxiliar de cozinha em um supermercado da cidade e fazia alguns bicos, como empregada doméstica... mas depois que a menina adoeceu tive que parar para cuidar da minha filha. Separei do pai... sou só eu... é difícil... ainda estou desempregada (Carla, mãe de Cíntia).

Outra situação potencial a ser enfrentada é o distanciamento entre os membros da família. Os pais e filhos saudáveis passam por separações devido ao tratamento da criança, os irmãos saudáveis também são afetados pelo tratamento.

A irmã precisou passar no psicólogo, durante o tratamento dela [filha doente], porque a irmã se sentia rejeitada... Eu só cuidava dela [filha doente]... A irmã ficava com a tia ou com a avó porque naquela época eu morava no fundo da casa de minha sogra (Carla, mãe de Cíntia).

O irmão sofreu, ele não entendia muito... Via todo mundo chorando e perguntava: mãe o Fábio vai morrer? Eu dizia não... Mas eu não escondia nada, falava que o dodói do Fábio era muito grave, que ia ter que ficar internado para sarar, ele ficava com minha sogra (Fernanda, mãe de Fábio).

Os efeitos adversos, as cirurgias e o plano terapêutico proporcionaram momentos de sofrimento e dor à criança, ao adolescente e àqueles mais próximos. As possibilidades de sucesso do tratamento bem como os riscos e seqüelas da terapia sensibilizaram os pais à medida que iam passando pelas diferentes fases dos diferentes protocolos. Os pais perceberam que a doença, o tratamento e as hospitalizações trariam repercussões não só biológicas, mas também sociais. As possibilidades de seqüelas, devido à ressecção tumoral, ou à notícia da ressecção de um órgão ou mais, causaram momentos de crises nos pais.

Estava magrinho, com a químio, o organismo da pessoa fica fraco... porque no começo tem que dar uma droga muito forte, ele ficou magrinho e logo começou a cair o cabelo, só sei que nesse tempo foi muito difícil... ele vomitava... [pai abaixa a cabeça e enxuga as lágrimas] (Antônio, pai de André).

Com a químio ela sofreu muito, com uma semana caiu todos os cabelos, ficou carequinha, passava muito mal, foi muito sofrimento essa parte... A cirurgia durou quase 10 horas... Acho que foi o Dr. Célio que chegou e falou que não foi só o rim que tirou não... foi o baço, um pedaço do pâncreas... foi um choque... passei até mal no hospital, tive crise nervosa, entortou mão e a boca, tudo... (Carla, mãe de Cíntia).

Observou-se, diante dos relatos, que a fase inicial da doença e do tratamento trouxe aos pais e familiares mudanças em suas vidas. Todos os participantes lembraram do processo pela busca do diagnóstico, a trajetória até receber o diagnóstico correto, bem como o impacto que a confirmação da doença trouxe a suas vidas. Dessa forma, os pais se iniciaram no conhecimento sobre o câncer, o tratamento e suas conseqüências.

O presente - o que se vive

Os participantes do estudo mencionaram alegria ao término da terapêutica, mas ao mesmo tempo, relataram seus sentimentos e preocupações relacionadas à condição física e adaptações da criança frente às seqüelas.

Na hora em que tivemos a notícia, foi uma alegria para mim e para ele. Só que eu tenho muito medo e tenho muito cuidado com ele. Eu não deixo ele jogar bola, porque vai que leva uma bolada no local da cirurgia. Porque ele tem aquele buraco na barriga para fazer xixi. Ele não pode nadar, porque pode pegar uma infecção. Ele sempre tem infecção. Agora está tomando antibiótico e melhorou. Mas a gente nunca sabe. Ele é quem cuida das sondagens dele, faz de 4 em 4 horas. Ele não dorme direito, nem eu, porque eu tenho medo dele não acordar sozinho. Não anda sem camisa. Fala sempre que não é igual aos outros. Porque eu sempre chamo, para sondar enquanto ele está brincando, os outros não param de jogar bola para fazer sondagem,. ele esquece. Quando tem que acordar ele à noite... nossa! Ele acorda bravo... é muito cansativo, para ele e para mim. Mas a gente conversa bastante, melhor estar assim do que estar morto (Helena, irmã de Hugo).

A necessidade de cuidados especiais e o seguimento das orientações médicas nos primeiros meses, após o término do tratamento, foram seguidos pelos pais e mesmo aqueles cuidados que já não eram mais necessários foram mantidos com o objetivo de prevenir situações que pudessem alterar o estado de saúde da criança.

O médico falou que agora a vida dele é normal que ele está curado. Ter vida normal, lógico que ele não pode, porque não pode beber água de torneira... Mas eu continuo tendo alguns cuidados, dou água fervida, coloco as frutas no molho com água sanitária. Não custa ter esses cuidados... É até bom... Eu compro água de galão, que parece ser boa... Mas eu fervo a água, mesmo assim. Suco só com água fervida... ele [filho] leva água fervida para tomar na escola... nunca é demais... Vou deitar e fico pensando: será que hoje tem remédio? (Eva, mãe de Eduardo).

As seqüelas decorrentes do tratamento também foram foco de atenção. Observou-se no relato de uma mãe, descontentamento e preocupação, reconhecendo a necessidade do uso de medicação ao longo da vida da filha.

Ah! Eu fiquei feliz quando tive a notícia que acabou o tratamento. Eu fiquei feliz... Graças a Deus! Eu estou meio chateada por causa da Benzectazil, porque tem que tomar por muito tempo... a gente fica chateada. Ela tirou o baço vai ter que tomar a Benzectazil para se proteger das contaminações. O médico falou para mim que é bem arriscado, que se não tomar pode pegar um vírus grave que leva até a morte. Ela tirou o baço porque o tumor estava enraizado, já tinha afetado e tirou também um pedaço do pâncreas. Isso deixa a gente chateada.... é duro. Eu ainda não tive interesse em perguntar... como vai ser daqui para frente. Sei que tem tomografia, exames cada seis meses. Acho que eu ando com a cabeça muito assim... e a gente não pergunta (Carla, mãe de Cíntia).

Observou-se que as seqüelas interferem na qualidade de vida dos sobreviventes. A preocupação com a auto-imagem, especificamente com a queda do cabelo, pareceu ser a maior delas, talvez por deixar a criança ou adolescente diferente dos demais.

Hoje ela tem falhas na cabeça, tem alguns buracos, a cabeça dela não é lisa como a nossa... O cabelo dela não vai crescer, é cheio de falhas, ela tem vergonha, tenho dó... [começa a chorar] ela não gosta de sair de casa, se preocupa... Falo que vai crescer, mas não vai. Tenho que pensar, que o cabelo é de menos. Espero nunca mais passar por isso. Tem dia que estou confiante, mais tem dia... Às vezes choro muito... Fisicamente ela não suportará a doença de novo, nem emocionalmente. Nem eu... (Ivana, mãe de Iara).

O período que sucede o tratamento também é marcado por conflitos de sentimentos onde os pais verbalizam que, após terem superado a crise da doença e da terapêutica, sobrevivem ainda sentindo-se atingidos pelos diversos sentimentos e alterações pessoais e emocionais. Toda doença grave confronta a criança e a sua família com sofrimentos e expectativas, provocando profundas e marcantes transformações em suas vidas(11). Esta situação também foi relatada pelos participantes deste estudo, como destacado a seguir.

Nossa quando eu tive a notícia que acabou o tratamento... [abaixa a cabeça e fica em silêncio] foi aí que eu passei a ter uma fase difícil da minha vida e estou até hoje nela, não sei o que vai acontecer. Não estou conseguindo lidar com isso, é uma barra. Agora para mim, algo mudou, eu sinto. Conversei com a psicóloga dele, não sou a mesma... Estou insegura, sem paciência, preciso aprender a lidar com esse problema. Tem dias que tenho insônia noite a dentro. Fico andando pela casa lembrando das coisas que aconteceram. Vejo o dia da cirurgia certinho...tenho um aperto no coração. Igual ao que era antes. Já passou... eu sei, mas não consigo lidar. Por que eu fico lembrando? Você me entende... Está complicado. Está complicado lidar com isso. Tem dia, que acordo bem, sento aqui sozinha e começo a lembrar. Não era para ser assim... passou! passou! Hoje era para eu estar mais tranqüila, mas não... Eu fico vivendo aquilo, me pego com medo, me pego chorando, sofrendo. Eu acho difícil... Isso não está legal.. (Fernanda, mãe de Fábio).

Os pais tentam superar suas dificuldades retomando atividades que faziam e foram interrompidas pelo tratamento.

Agora a gente procura ir para roça, ir passear, divertir para ver se a gente esquece. Mas não desliga, sempre o pensamento vem... Vamos à missa todo domingo... Vamos ver se vamos para a praia... viajar... antes não podia. Quero fazer atividades, ocupar minha cabeça (Eva, mãe de Eduardo).

O distanciamento da equipe que cuidou da criança, durante o tratamento, é vivido pelos pais, de forma dual, ou seja, referem ao mesmo tempo em que celebram a alta, sentem-se ameaçados pela ausência do hospital e da equipe que, nas intercorrências, estava pronta para o atendimento. Referem perder o chão com a alta do tratamento, questionando sua capacidade de lidar com o estado de saúde da criança com o término do tratamento.

Eu levo ele no hospital a cada 3 semanas e a cada 3 meses ele terá que fazer uma ressonância... agora eu não sei direito... se der febre a resistência cai... ele não explicou direito [médico] vou ter que levar lá [hospital] ver aquela confusão de novo.... Exame, remédio... esses dias ele estava com tosse, levei no posto de saúde daqui e passaram soro, mas é difícil porque aqui ninguém o conhece, não sabem o que aconteceu... Eu tenho dúvidas, ele só pode comer coisas fortes... (Débora, mãe de Daniel).

Os pais reconhecem que a nova rotina de horário e atendimento dos filhos é sinal de nova fase, um período após a doença. Reconhecem as famílias que estão iniciando o tratamento e se mostram disponíveis para auxiliá-los, como apresentado na seqüência.

Fico vendo o ambulatório de curados... vi muitos que estão há tempo curados e não tiveram mais nada... é bom... precisa de um pessoal para ajudar as mães... Quando volto lá vejo mais famílias passando pelo que passo ou que passei... Talvez a gente se encontrar, seria bom... (Débora, mãe de Daniel).

Agora, é o ambulatório de curado. No primeiro ano, ele vai de seis em seis semanas nos retornos, depois no segundo ano ele vai de dois em dois meses e vai espaçando. Ele nunca vai perder o contato com o hospital (Antônio, pai de André).

Para ultrapassar as barreiras físicas, sociais e emocionais deixadas pela doença, os pais buscam apoio na família, nos amigos, na equipe de saúde, e na religião como nos relatos abaixo.

O pessoal da igreja ajuda muito, porque estou desempregada. Ajudam com cesta básica, estão até construindo uma casa pra mim com as crianças, daí vamos sair daqui, por que não dá... A assistente social lá do hospital também ajuda muito, sempre que preciso, ela ajuda... (Débora, mãe de Daniel).

Minha irmã me ajudou muito, minha mãe também porque não é fácil o tratamento... e agora a gente não sabe direito... (Carla, mãe de Cíntia).

Se Deus curou não vai deixar voltar, tenho fé... Hoje eu creio que meu filho está curado, Deus curou o menino. Uma vez discuti com o médico, porque não foi o médico que curou, mas Deus fez com que o médico curasse... (Débora, mãe de Daniel).

Estar atento à qualidade da cura, como a família reage e percebe as seqüelas do câncer implica em atentar para a qualidade de vida, após a terapia a curto, médio e a longo prazo. A necessidade de acompanhamento contínuo pela equipe de saúde aos sobreviventes se evidencia pela possibilidade de detectar situações que requerem intervenção.

DISCUSSÃO

Sobreviver ao câncer tem dimensões distintas, há a cura física e a psíquica, onde a física corresponde àquela constatada e anunciada pela equipe de saúde e a psíquica é aquela obtida quando os membros da família encontram ou reencontram a sua identidade(5). O modo como a doença é vivenciada pelo doente e pela família é, na maioria das vezes, um acontecimento único, uma experiência pessoal, resultante da história de cada ser humano, de seu modo de viver, de ser e relacionar, que só pode ser entendida dentro de sua própria história(12). Para quem tem um filho com diagnóstico de câncer, parece ser difícil incorporar a doença à rotina familiar, no entanto eles se organizam para as idas diárias ao ambulatório, lidam com as complicações da doença, ou da própria terapêutica, que mantém a família em alerta e enfrentam os períodos de hospitalização(13). O período da terapêutica pode acarretar efeitos positivos e negativos aos membros da família como, por exemplo, nos irmãos saudáveis. Eles podem apresentar sentimentos de preocupação, proteção ou, ainda, raiva, ansiedade e culpa, frente ao tratamento do irmão doente. É necessária atenção aos irmãos, com incentivo aos pais para oferecer mais tempo aos filhos saudáveis e principalmente explicar sobre a doença e tratamento(14).

A família que tem a experiência de viver e sobreviver ao câncer passa por períodos de transformações, com momentos de maior desequilíbrio no sistema familiar em determinadas fases, que podem estar ligados às etapas da própria doença ou aos marcos do desenvolvimento infantil. Esses períodos requerem da enfermagem um planejamento de assistência com especificidades e individualidades(15).

A constante ameaça de recaída e a possibilidade de recomeçar um novo tratamento revelam o sentimento de insegurança presente nos familiares daquelas que sobreviveram ao câncer. Diante da complexidade e agressividade da doença e tratamento, os sobreviventes do câncer passam a lutar na tentativa de conquistar, de maneira positiva, o enfrentamento das recordações do passado, buscando um novo momento da vida, uma vida sem a doença, ou melhor, a vida após a doença(16). Preocupam-se como será o caminho de seus filhos, se vão superar os limites impostos pela própria vida, se terão dificuldades devido às seqüelas. Em relação à qualidade da sobrevivência, não se deve basear somente nas medidas biomédicas, mas também em critérios referentes à dimensão existencial. Para tanto, é necessário melhor conhecer essa dimensão e, mais especificamente, as implicações que trazem às crianças e aos adolescentes que vivenciam as mudanças decorrentes do processo de doença e tratamento(17). Entende-se que, para dar continuidade ao acompanhamento dos sobreviventes, é necessário estabelecer relação de longa duração entre os profissionais de saúde e os pacientes. Continuidade é definida(18) como uma palavra utilizada no lugar de longitudinalidade que é definida como "lidar com o crescimento e as mudanças de indivíduos ou grupos no decorrer de um período de anos". Essa relação longitudinal da equipe com o sobrevivente possibilita maior probabilidade de reconhecer os problemas dos pacientes, por uma equipe que está familiarizada com ele. Aponta-se que o enfermeiro deve participar desse processo de cuidado contínuo à criança e à sua família de maneira integral, a fim de estimular e ajudar a criar a capacidade nos pais e familiares de enfrentarem o processo do diagnóstico, tratamento, cura e sobrevivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se que sobreviver ao câncer representa o percurso percorrido pelas famílias com suas crianças e adolescentes que terminaram o tratamento contra o câncer. Sobreviver ainda remete a um estado de saúde que pode estar acompanhado de seqüelas da terapêutica, as quais podem surgir precocemente ou a longo prazo, mas de uma forma ou de outra têm um significado marcante para os familiares, crianças e adolescentes. Para planejar intervenções de enfermagem junto à família, é preciso compreender a experiência das famílias, cujas crianças e adolescentes terminaram o tratamento, para que, posteriormente, se possa auxiliar no processo de enfrentamento e adaptação a esse novo período.

Sobreviver ao tratamento é complexo e depende dos aspectos objetivos e subjetivos das famílias. A experiência do término da terapêutica está relacionada ao enfrentamento e à adaptação no modo que os familiares conviveram com a doença e o tratamento, na maneira que procuraram resgatar sua rotina e planejaram o futuro. Aponta-se, aqui, algumas estratégias de intervenção na perspectiva de contribuir com as famílias de crianças e adolescentes que terminaram o tratamento o câncer: treinamento e preparo dos profissionais de saúde - cursos de especialização, educação permanente e a própria graduação devem contemplar conteúdos sobre as conseqüências funcionais e psicossociais do câncer e seu tratamento, enfatizando a prevenção e cuidados aos efeitos tardios; formação de uma equipe multiprofissional para o cuidado de crianças adolescentes e familiares, sobreviventes ao tratamento contra o câncer; formação de grupo de pais para orientação e troca de experiência - promover momentos de encontros com os membros da família para que falem sobre suas dúvidas e dificuldades; realizar parcerias com empresas e comunidade para capacitação e inserção do sobrevivente no mercado de trabalho; Conhecer a realidade de cada família. Para tanto, deve-se, realizar visitas domiciliares para conhecer a realidade vivida pelos familiares, envolvimento do serviço especializado de oncologia com o setor primário de atendimento à saúde - fornecimento de carta de contra-referência com a história de cada criança ou adolescente, destacando os possíveis sinais e sintomas de recaída e efeitos tardios, envolver o sobrevivente no processo de tomada de decisão e planejamento do tratamento.

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Recebido em: 27.7.2006

Aprovado em: 8.3.2007

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  • 1
    Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Recebido
      24 Jul 2006
    • Aceito
      08 Mar 2007
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