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A pobreza como fator predisponente ao adoecimento de trabalhadores do corte da cana-de-açúcar

Resumos

Pesquisa exploratória, estruturada na Teoria Social Ecológica para o estudo da promoção da saúde de 39 trabalhadores, atuantes no corte da cana-de-açúcar de usina do interior do Estado de São Paulo-Brasil. Objetivou identificar fatores individuais, sociais e ambientais predisponentes ao adoecimento desses trabalhadores. Os dados foram coletados por meio de observação direta da atividade laboral e de questionário. Os principais determinantes individuais do adoecimento dos trabalhadores foram esforços físicos e acelerado ritmo de trabalho; entre os determinantes ambientais, destacaram-se calor intenso, poeira, fuligem e presença de animais peçonhentos; as condições de vida e trabalho refletem a pobreza desses indivíduos, principal determinante social do seu adoecimento. A interação desses fatores pode ocasionar o aparecimento de doenças respiratórias, cutâneas, osteomusculares e acidentes de trabalho. Assim, erradicar a pobreza e melhorar as condições de trabalho são fundamentais para a promoção da saúde desses trabalhadores.

condições de trabalho; saúde ocupacional; pobreza; trabalhadores rurais


This exploratory research based on the Social Ecological Theory aimed to study the health promotion of 39 people working in the harvest of the sugarcane in São Paulo, Brazil. The objectives were to identify the individual, social and environmental factors predisposing the workers to illnesses. The data were collected through direct observation of the labor activity and a questionnaire. The main individual determinant factors were physical effort and hectic work rhythm, and among the environmental factors, intense solar radiation, dust, soot and the presence of venomous animals were highlighted. The conditions of life and work reflect the poverty of these individuals and are the main social determinants of illness. The interaction of these factors can cause respiratory, cutaneous, musculoskeletal problems, occupational accidents. Thus, eradicating poverty and improving work conditions are fundamental for the health promotion of these workers.

working conditions; occupational health; poverty; rural workers


Investigación exploratoria, estructurada en la Teoría Social Ecológica, para el estudio de la promoción de la salud en 39 trabajadores del corte de la caña de azúcar de una cultura del Estado de São Paulo-Brasil. El objetivo fue identificar los factores individuales, sociales y ambientales del adolecer de los trabajadores. La recolecta de datos fue realizada mediante observación directa de la actividad y del trabajo y un cuestionario. Los principales determinantes individuales del adolecer de los trabajadores fueron el ritmo físico acelerado y esfuerzo en el trabajo; entre determinantes del ambiente fue el calor intenso, la polvareda y la presencia de animales ponzoñosos; las condiciones de vida y de trabajo reflejan la pobreza de estos individuos, el principal determinativo del adolecer de los trabajadores. La interacción entre estos factores puede causar enfermedades respiratorias, cutáneas, osteomusculares y accidentes laborales. Así, suprimir la pobreza y mejorar las condiciones del trabajo son básicos para la promoción de la salud de estos trabajadores.

condiciones de trabajo; salud laboral; pobreza; trabajadores rurales


ARTIGO ORIGINAL

IDoutoranda, e-mail: ferocha@eerp.usp.br

IIProfessor Titular, e-mail: marziale@eerp.usp.br, avrmlccr@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, Brasil

RESUMO

Pesquisa exploratória, estruturada na Teoria Social Ecológica para o estudo da promoção da saúde de 39 trabalhadores, atuantes no corte da cana-de-açúcar de usina do interior do Estado de São Paulo-Brasil. Objetivou identificar fatores individuais, sociais e ambientais predisponentes ao adoecimento desses trabalhadores. Os dados foram coletados por meio de observação direta da atividade laboral e de questionário. Os principais determinantes individuais do adoecimento dos trabalhadores foram esforços físicos e acelerado ritmo de trabalho; entre os determinantes ambientais, destacaram-se calor intenso, poeira, fuligem e presença de animais peçonhentos; as condições de vida e trabalho refletem a pobreza desses indivíduos, principal determinante social do seu adoecimento. A interação desses fatores pode ocasionar o aparecimento de doenças respiratórias, cutâneas, osteomusculares e acidentes de trabalho. Assim, erradicar a pobreza e melhorar as condições de trabalho são fundamentais para a promoção da saúde desses trabalhadores.

Descritores: condições de trabalho; saúde ocupacional; pobreza; trabalhadores rurais

INTRODUÇÃO

Principalmente após a década de 70, a cana-de-açúcar tornou-se um dos principais produtos agrícolas do Brasil, sendo responsável hoje por cerca de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB) e por US$ 8 bilhões em exportações(1). Atualmente, o setor sucroalcooleiro emprega mais de 1 milhão de pessoas e o Brasil é maior produtor mundial de cana-de-açúcar e o Estado de São Paulo é responsável por 60% da produção nacional, sendo que 55% do produto é transformado em álcool e 45% em açúcar(1).

Nos últimos anos, o mundo tem voltado a atenção para o etanol, extraído da cana-de-açúcar, devido à necessidade da busca de fontes alternativas de combustível diante da incerteza de disponibilidade futura de petróleo e das questões envolvidas com o aquecimento ambiental. Assim, o Brasil tem buscado aprimorar as técnicas de produção do etanol utilizado como combustível para veículos e máquinas, exportado principalmente para os Estados Unidos(1). Esses fatos tornam o Brasil potencial fornecedor desses produtos e o coloca em posição economicamente favorável para investimentos multinacionais, o que resultaria num desenvolvimento econômico.

No que se refere à produção de álcool, apesar de oferecer desenvolvimento econômico ao Brasil, há necessidade de informar ao mundo como é o trabalho das pessoas evolvidas no corte da cana-de-açúcar: pessoas pobres e expostas a diversas situações de risco à saúde, as quais têm determinado seu adoecimento pelo trabalho.

O trabalho do corte de cana-de-açúcar é realizado sob altas temperaturas devido ao clima quente do período de colheita, com temperaturas variando entre 23 e 36°C; há presença de poeira e fuligem provenientes da terra e da queima da cana e de animais peçonhentos; os instrumentos usados são cortantes e podem ocasionar acidentes de trabalho; as jornadas diárias são longas, as pausas para descanso são insuficientes, o ritmo de trabalho e o esforço físico são intensos e os salários são baixos(2) - cerca de R$ 0,30 (US$ 0,15) por metro de cana cortado, o que equivale a uma remuneração mensal de R$ 750,00 (US$ 375), ou dois salários mínimos.

A maioria dos cortadores são pobres; residem em moradias muitas vezes sem saneamento básico e água encanada, com total falta de higiene, possuem padrão nutricional que não atende às necessidades orgânicas individuais, recebem atendimento médico meramente curativo, através do sistema público de saúde, não possuem qualquer possibilidade de lazer e possuem baixo grau de escolaridade(2).

A pobreza é entendida como um dos determinantes da saúde de uma população, sendo por esse motivo importante alvo das atenções da Organização Mundial da Saúde. Devido à intrínseca relação entre pobreza e condições de saúde, a Organização Mundial de Saúde organizou um encontro mundial em Nova Iorque, em 2000, onde foi elaborada a Declaração do Milênio, documento no qual constam os principais objetivos para a redução dos níveis de pobreza e melhoria da qualidade de vida da população mundial neste milênio: erradicar a pobreza extrema e a fome, atingir ensino básico universal, promover igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, combater a AIDS e outras doenças contagiosas, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer parceria mundial para o desenvolvimento global(3-4).

A pobreza possui 5 dimensões centrais, as quais refletem a privação de capacidades humanas: humana (privação de saúde, educação), econômica (renda, meio de vida, trabalho decente), política (diretos, participação), sociocultural (dignidade, status social) e dimensão de proteção (vulnerabilidade, riscos, falta de segurança)(5).

Baseados no pressuposto de que a saúde e a doença são processos determinados pela interação de diversos fatores e no intuito de analisar as condições de saúde dos cortadores de cana, esta pesquisa foi realizada com vistas a encontrar subsídios para responder às seguintes questões norteadoras:

- Quais os fatores individuais, sociais e ambientais que podem determinar o adoecimento dos trabalhadores envolvidos no corte manual da cana-de-açúcar?

- Como a pobreza e as condições de trabalho têm influenciado o adoecimento destas pessoas?

OBJETIVOS

Geral

- Identificar os fatores individuais, sociais e ambientais predisponentes ao adoecimento de trabalhadores do corte manual da cana-de-açúcar.

Específicos

- Identificar os dados demográficos, relacionados aos trabalhadores envolvidos no corte manual da cana.

- Identificar fatores ambientais que podem trazer riscos à saúde dos trabalhadores.

- Identificar as condições sociais dos trabalhadores no corte da cana-de-açúcar.

MARCO CONCEITUAL: A TEORIA SOCIAL ECOLÓGICA

De acordo com a Teoria Social Ecológica(6-7), o estado de saúde e bem-estar do indivíduo são determinados pela interação de fatores individuais, sociais e ambientais.A Ecologia Social é vista como modelo ou conjunto de princípios teóricos para o entendimento das inter-relações entre diversos fatores individuais e ambientais na saúde e doença do indivíduo(7). A perspectiva ecológica nas ciências comportamentais e na Saúde Pública tem como foco a natureza das ações dos indivíduos com seu meio físico e sociocultural(6-7).

Principais pressupostos da Teoria Social Ecológica(6): o bem-estar dos indivíduos é influenciado por múltiplos fatores do ambiente físico e social; análises da saúde e da promoção da saúde devem focalizar a multidimensional e complexa natureza dos ambientes humanos; assim como os ambientes podem ser descritos quanto à sua complexidade, os indivíduos inseridos nesses ambientes devem ser estudados em diversos âmbitos; as relações entre indivíduos e ambientes são caracterizadas por ciclos de influência mútua e interdependência.

As mais expressivas aplicações de intervenções multidimensionais podem ser verificadas nos documentos Healthy People 2000 e Healthy People 2010, elaborados pelo governo norte-americano com a finalidade de determinar objetivos e prioridades de ação para promover a saúde e melhorar a qualidade de vida dos norte-americanos(8-9).

MÉTODO

Trata-se de pesquisa exploratória, baseada na hipótese de que o processo saúde/doença é determinado pela interação de fatores individuais, sociais e ambientais, pressuposto central da Teoria Social Ecológica(6-7) e utilizada como um dos referenciais no estudo da Promoção da Saúde em diversos países.

O estudo foi desenvolvido numa usina de cana-de-açúcar do interior do Estado de São Paulo-Brasil, a qual possui mais de mil cortadores de cana-de-açúcar no período de safra, quando é realizado o corte da colheita.

A população de estudo foi constituída por 39 trabalhadores de ambos os sexos que realizam o corte manual da cana-de-açúcar, selecionados aleatoriamente e que consentiram em participar voluntariamente da pesquisa, emitindo consentimento por escrito.

Procedimentos: a fase de coleta de dados foi realizada nos meses de julho e agosto de 2006, sendo utilizado um questionário norteado por perguntas abertas relacionadas a dados demográficos e às condições de saúde e laborais dos trabalhadores. Além disso, foram realizadas observações diretas do ambiente de trabalho e dos locais de moradia dos trabalhadores em três turnos de trabalho, sendo utilizado roteiro pré-estabelecido e diário de campo para anotações. Após cada turno de trabalho, os trabalhadores eram acompanhados até suas residências, sendo observadas suas condições de moradia.

Os dados foram analisados a partir da identificação dos principais fatores individuais, sociais e ambientais associados ao adoecimento dos trabalhadores. Foi realizada a análise dos dados com o objetivo de compreender quais os principais riscos à saúde dos cortadores de cana. Para essa análise, foi utilizada a Teoria Social Ecológica na Promoção da Saúde(6-7) como referencial teórico.

Considerações éticas: o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo-Brasil e teve o consentimento dos diretores da respectiva usina açucareira. Foram seguidas as normas da Resolução 196 referente às normas éticas de pesquisas envolvendo seres humanos(10).

RESULTADOS

Fatores Individuais

Dos 39 trabalhadores, 35 pertenciam ao sexo masculino (89,7%), com idade entre 18 e 60 anos, sendo que 69,2% trabalhadores tinham até 30 anos de idade e apenas 7,7% apresentaram idade superior a 45 anos. Em relação ao estado civil, 56,4% trabalhadores eram casados, 35,9% solteiros, 5,1% amasiados e 2,6% separados. Todos os trabalhadores negaram realizar outra atividade profissional. A maioria dos sujeitos (84,6%) constituía migrantes da Região Nordeste do país e 15,4% dos cortadores eram oriundos do Estado de São Paulo. Em relação ao grau de escolaridade, 56,4% dos cortadores possuíam até quatro anos de estudo, 38,5% estudaram de cinco a oito anos e 5,1% possuíam até 11 anos de estudo.

As informações emitidas demonstraram que 71,8% dos cortadores desenvolvia a atividade há menos de seis anos, 12,8% trabalhava no corte da cana entre seis e dez anos, 7,7% entre 11 e 15 anos e 7,7% não informaram.

Informações sobre as condições de trabalho e saúde

A maioria dos cortadores (89,7%) acreditava que o corte manual pode trazer riscos à sua saúde; 43,6% dos trabalhadores identificaram riscos de acidentes decorrentes do manuseio do facão, instrumento usado para cortar a cana, e da exposição a animais peçonhentos e informaram também sobre o risco de desenvolvimento de problemas respiratórios pelo contato com poeira e fuligem da cana queimada.

Dentre os outros riscos à saúde, apontados por 23,1% dos trabalhadores, está a sobrecarga física e os desgastes relacionados ao grande esforço físico realizado durante o corte da cana, devido ao ritmo intenso de trabalho. Foram também identificados por 17,9% dos cortadores os riscos de ocorrência de problemas osteomusculares.

Sobre a ocorrência de acidentes, 33,3% dos cortadores referiram já ter sofrido acidentes durante o corte da cana, os quais envolveram o manuseio do facão, ocasionando cortes em membros superiores e inferiores (mãos, pernas e pés, principalmente).

Quando questionados sobre a quantidade de cana cortada diariamente, 28,2% dos trabalhadores referiram cortar até oito toneladas; 46,1% informaram cortar até quatorze toneladas e 10,2% dos trabalhadores até vinte toneladas por dia; 15,4% referiram não saber a quantidade de cana cortada em cada jornada de trabalho. Entre os trabalhadores do sexo masculino, a quantidade de cana cortada diariamente variou entre seis e vinte toneladas, enquanto as mulheres referiram cortar entre sete e dez toneladas diárias.

Quanto à presença de problemas de saúde, a maioria dos trabalhadores (94,8%) negou qualquer problema de saúde; apenas um trabalhador (2,6%) referiu apresentar depressão e um outro cortador (2,6%) afirmou dor crônica em membro superior direito.

Sobre o cansaço físico e psicológico dos trabalhadores, 74,4% dos cortadores referiram sentir o corpo cansado e dolorido ao fim da jornada de trabalho e 17,9% informaram preocupação ou cansaço mental.

Todos os cortadores referiram realizar três refeições diárias: café da manhã, almoço e jantar. Foi observado que o café da manhã (um copo com 200ml de leite com café e um pão de 50g com margarina) é servido aos cortadores pela usina durante o transporte para as lavouras, por volta das seis horas. Durante a observação da jornada de trabalho, constatou-se que o almoço, realizado entre 10h30 e 11h30, era representado pela ingestão de feijão, arroz, macarrão e farinha de mandioca. Em relação ao jantar, todos os trabalhadores referiram usar rotineiramente os mesmos alimentos ingeridos no almoço.

Fatores ambientais

Os fatores ambientais foram identificados por meio da observação no local de trabalho e de informações emitidas pelos trabalhadores.

Durante o período de safra na região, que compreende os meses de abril a novembro, os trabalhadores envolvidos no corte da cana enfrentam diferentes condições climáticas, expostos a temperaturas elevadas (até 36°C), a intensa radiação solar, umidade, chuva, vento, poeiras decorrentes do corte e fuligem proveniente da queima, que precede o corte manual.

Outros riscos ambientais são representados por resíduos de agrotóxicos, utilizados no plantio da cana-de-açúcar, e a presença de animais peçonhentos nas lavouras, principalmente cobras.

Fatores sociais

Os trabalhadores iniciam a jornada diária de trabalho às sete horas e terminam às quinze horas e vinte minutos, possuindo um dia de folga a cada cinco dias trabalhados. Ao chegarem à lavoura, cada trabalhador recebe um pedaço de terra chamado "eito"; cada "eito" possui de 100 a 150 metros de extensão e é composto por cinco "ruas", as quais representam as linhas nas quais é plantada a cana para facilitar o corte.

Durante a observação do corte da cana-de-açúcar, constatou-se que, para realizar a atividade laboral, o trabalhador flexiona a coluna vertebral, formando um ângulo menor que noventa graus em relação a seus membros inferiores; com uma das mãos, segura um feixe de cana e com a outra mão, utilizando o "facão", golpeia a planta. Em seguida, o cortador levanta o feixe cortado e o carrega depositando-o em montes, os quais são transportados por caminhões para a usina para a produção de álcool ou açúcar.

Para se protegerem do sol, da poeira e da fuligem, todos os cortadores utilizavam chapéu, lenços na face, duas camisas de mangas longas sobrepostas e calças compridas, além de fazerem uso de equipamentos de proteção individual (EPI): óculos, luvas, proteção para as pernas e botas de couro.

Em relação à remuneração, o cortador de cana recebe por produção, ou seja, pela quantidade de metros de cana cortados diariamente; o valor médio do metro de cana cortada manualmente era de R$ 0,30, equivalente a US$ 0,15.

Em relação às condições de moradia e ao acesso aos serviços de saúde, foi observado que os trabalhadores residem em cidades pequenas nos arredores das lavouras e que todas as moradias localizavam-se em bairros asfaltados do centro da cidade, representando construções simples de alvenaria, com sistema de água encanada e esgoto tratado. Algumas casas possuíam pisos laváveis, quartos com camas individuais, banheiro com vaso sanitário e chuveiro, cozinha com refrigerador e fogão e sala de estar, sendo habitadas por um total de oito a dez trabalhadores do sexo masculino e solteiros. Evidenciou-se que, quando os trabalhadores constituem famílias, são obrigados a deixar essas residências, ocupando casas menores e em condições menos adequadas de sobrevivência, realidade observada em moradias localizadas em terrenos não asfaltados, nos quais diversas casas são construídas bem próximas umas das outras, sem muros separando os espaços familiares, não oferecendo qualquer privacidade aos moradores e formando aglomerados populacionais sem mínimas condições de higiene; verificou-se a presença de grande quantidade de lixo acumulado nessas áreas, latões de lixo destampados nas portas das inúmeras casas, inúmeros insetos e roupas sujas jogadas pelo terreno, misturadas à sujeira e à terra do chão.

Na usina, não existem programas preventivos de doenças ocupacionais, ou acompanhamento das famílias dos empregados, e é oferecido convênio médico particular somente aos trabalhadores que desempenham funções administrativas; os cortadores de cana utilizavam os serviços públicos de saúde e todos referiram procurar atendimento médico somente quando apresentam algum problema de saúde, não fazendo nenhum tipo de cuidado de promoção da saúde.

DISCUSSÃO

Os resultados apresentados demonstram a existência de diferentes fatores individuais, sociais e ambientais que são predisponentes ao adoecimento de trabalhadores do corte manual da cana-de-açúcar, no Brasil, e a pobreza é fator relevante nesse contexto.

Constatou-se que os cortadores de cana estão expostos a diversas situações de risco à sua saúde, os quais representam um conjunto de cargas laborais que se manifestam em padrões de desgaste biopsíquico dos trabalhadores(11), categorizadas em: cargas físicas (radiação solar, chuvas, extremos de temperatura); cargas químicas (poeira, fuligem, resíduos de agrotóxicos); cargas biológicas (inoculação de microorganismos infecciosos por picada de animais peçonhentos); cargas mecânicas (acidentes ocasionados principalmente pelo manuseio de instrumentos de trabalho); cargas fisiológicas (extremo esforço físico, posturas incorretas, movimentos corporais bruscos e repetitivos); cargas psíquicas (ritmo acelerado de trabalho, atenção e concentração constantes, monotonia, repetitividade, ameaça de desemprego)(2,12).

As cargas físicas, químicas, biológicas e mecânicas representam fatores ambientais, relacionados ao aparecimento de diversos problemas de saúde que acometem cortadores de cana, como doenças respiratórias e cutâneas, lesões em membros superiores e inferiores e a ocorrência de inúmeros sintomas, como fadiga, mal-estar, aumento da pressão arterial e da freqüência cardíaca(2,12).

As cargas fisiológicas e psíquicas, por sua vez, representam fatores individuais que estão associados à ocorrência de acidentes de trabalho, os quais acarretam diversos tipos de injúrias e incapacidades aos trabalhadores. Além disso, o conjunto de movimentos corporais bruscos e repetitivos, o constante esforço físico e o intenso ritmo de trabalho exigidos no corte manual da cana determinam o desgaste físico desses indivíduos e o aparecimento de problemas osteomusculares, como dor e lesões agudas e crônicas em membros superiores e região lombar e extremo cansaço físico e mental(2,12).

A partir dos dados demográficos, identificou-se que os trabalhadores possuem baixa escolaridade, a maioria é de migrantes nordestinos e indivíduos jovens, que chegam a cortar até 20 toneladas diárias de cana e possuem alimentação inadequada, rica em carboidratos e pobre em proteínas e fibras, insuficiente ao alto gasto energético ocasionado pelo trabalho realizado.

Os trabalhadores realizam sua atividade de trabalho desrespeitando os limites do próprio corpo, intensificando seu ritmo de trabalho na busca de remuneração mais elevada e como forma de garantir o emprego em safras subseqüentes, o que leva à degradação da saúde desses indivíduos e até à morte pelo excesso de trabalho, como ocorrido com 10 cortadores de usinas do Estado de São Paulo, em 2005(13).

As condições inadequadas de moradia, a falta de higiene, a alimentação imprópria, os diversos fatores de risco durante o trabalho e os baixos salários, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e a ausência de lazer representam os determinantes sociais do adoecimento dos trabalhadores(14), fatores que retratam e caracterizam a situação de pobreza em que vivem os cortadores de cana da usina.

A pobreza pode determinar o aparecimento de doenças devido à falta de saneamento básico e higiene ambiental nos locais de moradia da população e a alterações do estado de nutrição dos indivíduos, levando ao comprometimento do estado imunológico e facilitando infecções e a transmissão de doenças(14-15). Além disso, a pobreza reflete a existência de vulnerabilidade, riscos, falta de segurança e a privação de saúde, educação, renda, meio de vida, trabalho decente, direitos, participação, status social e principalmente de dignidade humana(5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As condições de vida e de trabalho dos cortadores de cana-de-açúcar podem levá-los ao adoecimento devido a fatores individuais, ambientais e sociais. Desse modo, para a melhoria das condições de vida, saúde e trabalho desses indivíduos são necessárias intervenções multidimensionais, que representem propostas de modificação dos diferentes determinantes do seu adoecimento para que realmente ocorra promoção da saúde dessa população; intervenções isoladas, focalizadas somente em fatores individuais ou direcionadas unicamente à melhoria das condições ambientais ou que, exclusivamente, proponham ações sociais não são capazes de reverter a situação vivenciada por esses trabalhadores.

Assim, considera-se que, para promover a saúde dos cortadores de cana, torna-se fundamental a elaboração e implementação de intervenções que contemplem a minimização e eliminação dos diversos fatores que têm determinado o adoecimento dessa população, principalmente pela adoção de programas de melhoria das condições de trabalho e da erradicação da pobreza desses indivíduos, o que depende não somente de ações locais, mas de modificações organizacionais, políticas, sociais, ambientais e individuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 15.5.2007

Aprovado em: 20.8.2007

Estudo subsidiado financeiramente pela CAPES.

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  • A pobreza como fator predisponente ao adoecimento de trabalhadores do corte da cana-de-açúcar

    Fernanda Ludmilla Rossi RochaI; Maria Helena Palucci MarzialeII; Maria Lucia do Carmo Cruz RobazziII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Aceito
      20 Ago 2007
    • Recebido
      15 Maio 2007
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