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Violência doméstica: do visível ao invisível

Resumos

Este estudo objetivou identificar e analisar as notificações de violência doméstica contra crianças, realizadas junto às Regionais de Saúde Guarulhos, os limites da atuação dos profissionais da saúde e o significado da violência doméstica contra a criança no cotidiano do seu trabalho. Caracteriza-se o cenário das notificações realizadas nos anos 2001 e 2002, no município, com o intuito de melhor compreender a realidade e subsidiar o diálogo com os dados colhidos através da abordagem qualitativa. Constatou-se predominância dos casos de negligência 45% das notificações, 26% de violência física e 14% de suspeita de violência sexual. Quem mais notificou foram os assistentes sociais, sendo responsáveis por 46% das notificações. Por meio das falas dos atores sociais, identificou-se duas categorias empíricas: "interfaces da violência" e "medo".

saúde; violência doméstica; criança; notificação de abuso


This study aimed to identify and analyze notifications of domestic violence against children registered at the Regional Health Services in Guarulhos, São Paulo, Brazil; the limitations imposed to health professionals' actions and the meaning of domestic violence against children in the health professionals' routine. The notifications registered between 2001 and 2002 were characterized in order to better understand this reality and also to support the collected data through the qualitative approach. There is a predominance of negligence cases 45%, while 26% of the notifications related to physical violence and 14% to suspected sexual violence. Social workers registered the highest number of notifications, 46%. Based on the social agents' discourse, we identified two empirical categories: "interfaces of the violence" and "fear".

health; domestic violence; child; mandatory reporting


Este estudio tuvo por finalidad identificar y analizar las notificaciones realizadas en las sedes de salud del municipio de Guarulhos, los límites en las acciones realizados por los profesionales y el significado de la violencia domestica en su cotidiano de trabajo. Fue descrito el escenario de las notificaciones realizadas en 2001 y 2002 con el objetivo de obtener una mejor comprensión de la realidad y apoyar el diálogo con las informaciones recolectadas a través de la investigación cualitativa. De los casos notificados constatamos un predominio de casos de negligencia en 45% de las notificaciones, así mismo, 26% fueron notificaciones de violencia física y 14% de las notificaciones fueron sospecha de violencia sexual. Quién más realizó las notificaciones fue el asistente social, siendo responsable por 46% de las mismas. A partir de las discusiones con los agentes sociales, identificamos dos categorías empíricas: "interfases de la violencia" y "miedo".

salud; violencia doméstica; niño; notificación obligatoria


ARTIGO ORIGINAL

Violência doméstica: do visível ao invisível

Marta Angélica Iossi SilvaI; Maria das Graças Carvalho FerrianiII

IProfessor Doutor, e-mail: maiossi@eerp.usp.br

IIProfessor Titular, e-mail: caroline@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem

RESUMO

Este estudo objetivou identificar e analisar as notificações de violência doméstica contra crianças, realizadas junto às Regionais de Saúde Guarulhos, os limites da atuação dos profissionais da saúde e o significado da violência doméstica contra a criança no cotidiano do seu trabalho. Caracteriza-se o cenário das notificações realizadas nos anos 2001 e 2002, no município, com o intuito de melhor compreender a realidade e subsidiar o diálogo com os dados colhidos através da abordagem qualitativa. Constatou-se predominância dos casos de negligência 45% das notificações, 26% de violência física e 14% de suspeita de violência sexual. Quem mais notificou foram os assistentes sociais, sendo responsáveis por 46% das notificações. Por meio das falas dos atores sociais, identificou-se duas categorias empíricas: "interfaces da violência" e "medo".

Descritores: saúde; violência doméstica; criança; notificação de abuso

INTRODUÇÃO

Falar da violência contra a criança tem sido, ao longo da trajetória da humanidade, algo complexo, à medida que impõe apontar alternativas e expectativas para combater a vulnerabilidade social em que se encontra a infância, tanto global como localmente. Implica, ainda, abordar os conflitos familiares, núcleo até então tido como local de proteção à criança.

Apesar da violência existir desde a Antigüidade, somente a partir da década de 60 é que o tema vem sendo amplamente estudado e discutido por pesquisadores da área da saúde(1).

Pode-se pontuar que muitos problemas têm dificultado o dimensionamento do fenômeno da violência doméstica contra a criança no Brasil como, por exemplo, as diferentes definições do problema, a diversidade das fontes de informações e a inexistência de inquéritos populacionais nacionais. No entanto, os resultados de algumas pesquisas nacionais indicam que a violência intrafamiliar no Brasil é expressiva, devendo ser encarada como prioridade na agenda das políticas sociais(2).

Apreendeu-se, neste estudo, o fenômeno da violência, em especial, nas suas formas e expressões, considerando sua complexidade, polissemia e subjetividade, além de reconhecer que também se trata de problema multifacetado e multidimensional, onde os diversos tipos de violência costumam se expressar de forma associada, conformando uma rede onde aquelas que expressam os conflitos do sistema social se articulam nos níveis interpessoais(3).

Apesar da mudança verificada no âmbito legal com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990(4) e o reconhecimento dos direitos sociais dessa parcela da população, tem-se como contraponto a potencialização da problemática de crianças e jovens em situação de risco social e pessoal, nos centros urbanos e no interior de seus lares.

Entre as políticas públicas para o seu enfrentamento(5-7), destacam-se aquelas voltadas para a redução da morbimortalidade por violências, à orientação e melhoria da qualidade das notificações, à estruturação da rede nacional de prevenção da violência e promoção da saúde e à implantação e implementação de núcleos de prevenção à violência nos estados e municípios e a instituição do Sistema de Vigilância Epidemiológica para Acidentes e Violências (SEVIV), especificamente no Estado de São Paulo(8).

Com relação ao município de Guarulhos, foram implantados e implementados no decorrer da última década, importantes projetos, programas e ações na área específica de proteção à criança e ao adolescente vitimizados, com ênfase na notificação, na atenção à saúde da população em situações de violências e um comitê municipal de enfrentamento à violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes(9-10) .

Com base em experiência profissional, e subsidiados nos objetivos da presente pesquisa, procurou-se responder a questões como: que dificuldades e que facilidades os profissionais de saúde têm enfrentado para acolher e atender as crianças vítimas ou suspeitamente vítimas de violência doméstica? Quais são os limites e barreiras sentidos pelos profissionais de saúde que os levam a adotar posturas de minimização ou omissão perante a violência? Que políticas e ações setoriais e integradas têm sido adotadas com relação a esse problema?

Diante dessas considerações, esta pesquisa delineou-se com o objetivo de identificar e analisar as notificações de violência doméstica contra crianças, realizadas junto às Regionais de Saúde de Guarulhos, os limites e lacunas da atuação dos profissionais da saúde, e o significado da violência doméstica contra a criança no cotidiano do seu trabalho.

MÉTODOS

O presente estudo trata-se de pesquisa descritiva e exploratória com abordagem qualitativa, alternativa metodológica que colaborou para a compreensão da realidade expressa pelos profissionais da saúde com relação à sua visão acerca do fenômeno da violência doméstica contra a criança.

Após análise e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP, pela Secretaria Municipal de Saúde de Guarulhos e consentimento dos sujeitos da pesquisa, manifestado por meio da assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas e análise de documentos e registros, entre agosto de 2003 e abril de 2004.

Para melhor compreender o objeto de estudo, ampliar a consciência acerca do problema e descrever sua magnitude, esta pesquisa buscou identificar de forma quantitativa o cenário das notificações de violência doméstica contra a criança, junto às Regionais de Saúde de Guarulhos nos anos 2001 e 2002.

Para tanto, consultou-se 35 fichas de notificações de casos confirmados e/ou suspeitos, encaminhadas pelas Unidades Básicas e Pronto Atendimentos às quatro Regionais de Saúde do Município de Guarulhos com vistas a um primeiro olhar crítico do problema em questão.

A partir dessa análise preliminar das notificações, estabeleceu-se, como campo de estudo e realidade a ser compreendida e investigada, a Regional de Saúde III, por meio da Unidade de Saúde da Família (USF) Jd. Fortaleza e Unidade Básica de Saúde (UBS) Carmela, onde, pelos dados levantados, os índices de notificações foram relevantes. Foram consultados os prontuários das crianças relacionados às notificações da Regional III, para caracterizar as situações que indicavam a confirmação e/ou a suspeita da ocorrência de violência doméstica.

Os sujeitos do estudo foram profissionais que atendiam, no seu trabalho cotidiano, crianças e/ou suas famílias potencialmente vítimas de violência doméstica. Foram entrevistados 2 psicólogos, 2 enfermeiros, 2 agentes comunitários de saúde, 2 auxiliares de enfermagem e 2 médicos pediatras.

O roteiro para as entrevistas contou com três questões abertas e norteadoras: qual a sua vivência ou experiência no atendimento dos casos de violência doméstica contra crianças? O que tem feito frente a possíveis casos? Como vê o trabalho, os recursos disponibilizados no município com relação à assistência a estas crianças?

A partir do material obtido e da fundamentação teórica, analisou-se os dados de acordo com a proposta de Minayo(11), utilizando o método hermenêutico dialético, que possibilita o confronto de diferentes posicionamentos na interpretação dos dados e se apresenta, segundo a autora, como "o mais capaz de dar conta de uma interpretação aproximada da realidade. Ele coloca a fala em seu contexto para entendê-la a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e totalizante em que é produzida".

A análise qualitativa das entrevistas levou à ordenação e classificação dos dados por unidades de registros, referenciadas por temas, e refinados em expressões de síntese, as categorias empíricas que explicitaram a realidade, segundo a visão dos entrevistados.

RESULTADOS

Na Figura 1, observou-se que o maior índice registrado de notificações de violência contra a criança nos anos 2001 e 2002 corresponde à região da Regional de Saúde III, com 40% dos casos notificados.


Quanto aos tipos de violência aos quais as vítimas foram submetidas, na Figura 2, notou-se predominância dos casos de negligência, 45% das notificações, 26% de violência física e 14% de suspeita de violência sexual.


Na Figura 3, quanto à categoria profissional responsável pela notificação, verificou-se que quem mais notificou foi o assistente social, sendo responsável por 46% das notificações, seguido pelos psicólogos, os quais foram responsáveis por 12% das notificações. Os enfermeiros foram responsáveis por apenas 3% das notificações. Um percentual significativo, 21% das notificações, não apresentou a categoria profissional notificante.


Observou-se, segundo análise da Figura 4, que 31% dos casos foram encaminhados ao Conselho Tutelar exclusivamente, 28% ao Conselho Tutelar e outros programas sociais concomitantemente e 23% apenas para tratamento ambulatorial.


AS CATEGORIAS EMPÍRICAS

Após o processo de organização do material coletado nas entrevistas, das várias leituras desse material e de sua análise qualitativa, apreendeu-se das falas dos profissionais duas categorias empíricas, "interfaces da violência" e "medo".

Interfaces da violência

Esta categoria evidenciou a ausência de políticas públicas que possam responder pelo fenômeno da violência doméstica contra a criança e a dificuldade dos sujeitos em identificar e assistir os casos no cotidiano de sua atuação. Os profissionais apontaram, ainda, outros aspectos relacionados à falta de visibilidade do problema, à falta de preparo dos profissionais para lidar com essa questão e destacam a necessidade da integração das ações com diferentes áreas e serviços.

Sim, uma rede de atenção e assistência, seria muito bom se pudéssemos trabalhar, ou até mesmo termos um espaço somente para discutirmos de forma mais integrada se não todos, mas os principais casos. (E8).

Gostaria muito que a Secretaria implementasse e criasse um espaço dentro do programa da criança onde pudéssemos ser capacitados e orientados a trabalhar com essa problemática, bem como oportunizar uma integração de forma mais oficializada com outros serviços e secretarias. (E9).

A percepção da violência doméstica como fenômeno multifacetado e de complexas raízes macroestruturais está presente, de forma significativa, nos discursos, conforme demonstram as falas.

[...] eu diria que a violência que eu detecto está muito relacionada com as condições de vida.... (E1).

Eu tenho vários casos de mães etilistas e que saem na noite e deixam as crianças sozinhas, tenho vários casos desses. (E8).

Sabemos da importância da notificação e do registro dos casos que nos chegam, mas às vezes se torna difícil definir se é realmente ou não, pois muitos casos são de ordem social ... Então quem são as maiores vítimas? As crianças. (E10).

Outra questão apontada pelos sujeitos é a falta de formação e capacitação dos profissionais da saúde para atuarem frente a esse problema.

Muitos profissionais estão despreparados para avaliar e perceber as situações de violência... Eu acho que é falta de capacitação dos profissionais e uma supervisão, acompanhamento. (E6).

Acho que seria necessário divulgar mais entre os profissionais o que fazer e como fazer, muitos não sabem como agir ou não se sentem respaldados... (E8).

Assim como eu muitos colegas têm dificuldade de identificar o que é violência, e que referência temos além do Conselho. (E9).

Medo

Esta categoria empírica evidenciou o medo que emerge no imaginário, no cotidiano e na ação dos atores sociais frente aos casos de violência doméstica, sendo um dos fatores delineadores da ação dos sujeitos, influenciando no que fazem ou no que pensam poder ou não fazer.

Porque eu tenho casos assim. Já teve casos que a família me fala o que acontece, todo mundo sabe, aí passa por um pronto-socorro e ninguém percebe ou faz que não percebe muitas vezes por medo. (E4).

Eu mesma quando acabei de desligar o telefone fiquei com medo. Falei: gente o que foi que eu fiz? Fiquei preocupada, não conseguia dormir direito. (E5).

As falas dos profissionais ressaltam o medo de serem perseguidos pelos familiares das vítimas notificadas.

Porque outras pessoas fizeram isso por mim entendeu, não precisou ser a gente daqui, porque depois a gente fica mal visto pelo bairro. Você já pensou, denunciar uma família e no mês seguinte você ter que ir lá! (E5).

É... receosa, eu fiquei sabendo que ela já tinha sido chamada e ela muito brava disse que ia descobrir quem foi que fez a denuncia... Eu fiquei contente de ver que não falaram da onde vinha a denúncia. (E4).

DISCUSSÃO

O município de Guarulhos, considerando-se os dados registrados junto às Regionais de Saúde, ainda apresenta significativa subnotificação dos casos de violência doméstica contra crianças, o que tem se constituído em fator dificultador para o estabelecimento de novas políticas e ações integradas, uma vez que "o ato de notificar é um elemento crucial na ação pontual contra a violência, na ação política global e no entendimento do fenômeno"(12).

A subnotificação está freqüentemente relacionada com à falta de conhecimento dos profissionais da saúde, da importância e dos procedimentos necessários para a notificação, a ausência de adesão à notificação; preocupação dos profissionais com a quebra de confiabilidade das informações e finalmente pela falta de percepção dos profissionais sobre a relevância dessa temática para a saúde pública(13).

O estudo mostrou que a Regional de Saúde III, é a região com maior índice de notificações. Essa área corresponde a inúmeros bairros e vilas com alta concentração de pobreza e situações de miserabilidade, áreas de invasão territorial e favelas, heterogeneidade e alta rotatividade de sua população e superlotação dos lares. Acresce-se a isso a escassez de capital social, fatores esses que vêm mantendo os níveis de desigualdade econômica, cultural e social na região.

Nessa região encontram-se instaladas 6 Unidades Básicas de Saúde com 12 Equipes de Saúde da Família, 3 Unidades de Pronto Atendimento e 1 Central Odontológica.

De acordo com dados da Secretaria Municipal da Saúde(14), baseados nos dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), essa região apresenta estimativa de 287.902 habitantes, correspondendo a 20,97% da população total do município. Desses, 71.198 (24,73%) encontram-se na faixa etária de 0 a 9 anos.

O Mapa de Exclusão e Inclusão Social de Guarulhos(15) aponta que diversos bairros que compõem a Regional III apresentam índices significativos de exclusão social, desemprego, baixa qualidade de vida e desenvolvimento humano.

Outro aspecto relevante, observado na análise dos resultados, refere-se ao alto percentual de casos de negligência notificados e o cuidado na identificação dos casos de negligência no dia-a-dia do trabalho do profissional de saúde. Essa identificação é complexa, exige dos profissionais um olhar crítico no sentido de diferenciar a existência da intencionalidade, em não prover as necessidades da criança, das privações e carências decorrentes das situações de pobreza.

Observou-se, ainda, que a baixa notificação realizada pelos enfermeiros parece evidenciar a necessidade de maior envolvimento dessa categoria, que se mostra peculiar não só pelo seu saber específico, mas pela sua capacidade de ação, de escuta e de relação, um agente com potência de ação e transformação.

Ademais, a enfermagem, entendida como prática social, carregada de compromisso com a emancipação e desenvolvimento humano, não pode se realizar senão na perspectiva da complexidade das transformações do contexto social contemporâneo, em que está incluindo a abordagem integral e multidisciplinar da violência doméstica contra a criança.

Embora possuam o conhecimento de que as fichas de notificação devam ser preenchidas corretamente, 21% das notificações não apresentavam a categoria profissional notificante, o que vem confirmar o fato de os profissionais minimizarem o preenchimento e importância da ficha de notificação. Outro fato a ser abordado, frente a esse aspecto, é a possibilidade de que o não preenchimento da função e conseqüente assinatura sejam indicativos de que muitos profissionais temam transtornos legais e relacionais, advindos da notificação.

Neste estudo, embora os resultados mais significativos apontem para o encaminhamento dos casos aos Conselhos Tutelares, conforme preconizado pelo ECA, chamou a atenção o fato de 23% das notificações terem tido como encaminhamento apenas o tratamento ambulatorial das vítimas, sem a devida notificação ao Conselho Tutelar, uma vez posta sua obrigatoriedade.

Os entrevistados revelaram que a grande dificuldade para se efetivar a assistência às crianças vítimas de violência doméstica é a dificuldade dos sujeitos em identificar os casos com exatidão e a falta de preparo dos profissionais para lidar com essa questão.

Pelas falas pode-se apreender a dificuldade técnica do processo de notificar. Apesar da obrigatoriedade da notificação, os profissionais têm dificuldades em adotá-la como conduta padrão, conduta essa ainda carregada de muitas incertezas e dúvidas.

Essa dificuldade pode estar relacionada ao fato de que a questão da violência doméstica contra a criança não tem sido tratada de forma sistematizada e integrada na formação dos profissionais, ou seja, nos currículos de graduação, e mostra-se ausente da pauta de educação permanente nos serviços de saúde. Logo, muitos profissionais não dispõem de informações básicas que permitam diagnosticá-la com exatidão(12).

Os profissionais demonstraram, em suas falas, clara percepção da importância de políticas públicas integradas e articuladas para a assistência às crianças vítimas de violência doméstica, articulação essa necessária para o reordenamento de políticas públicas mais visíveis e sustentáveis.

Nesse sentido, a saúde pública "precisa se voltar para o desenvolvimento de ações conjuntas com outros setores, não se limitando a espaços tradicionalmente por ela ocupados"(16).

Em relação aos fatores determinantes da violência doméstica contra a criança, percebeu-se, nas falas dos profissionais, que esses os articulam com a violência estrutural e social a que as crianças, suas famílias e a sociedade em que vivem estão expostas.

Com os discursos e produção teórica apresentados, cabe, aqui, a reflexão sobre a violência que ocorre no campo estrutural que acaba por delinear a violência no espaço privado das famílias. O padrão de violência imposto por muitas famílias às suas crianças não pode ser visto isolado das questões mais amplas de poder, frustração, redução dos direitos sociais e de privação, causadas pelo desemprego, injustiça social, políticas econômicas ineficientes e pela ausência do Estado em cumprir o seu papel de gerador e gestor das políticas sociais.

Entende-se que o aspecto econômico não é o único vértice a ser considerado, na determinação histórica da violência. Há que se considerar os fatores educacionais, culturais, sociais e políticos que se inter-relacionam dialeticamente na disputa pelo poder, pela posse do outro, da autoridade.

A qualidade de vida de crianças e adolescentes será uma realidade quando a luta contra a violência entre classes sociais (violência estrutural de que as infâncias pobres, prostituídas e exploradas no trabalho são alguns frutos) e a luta contra a violência intraclasses sociais (de que a infância vitimizada no lar é uma conseqüência) forem levadas simultaneamente(17).

Com relação à categoria empírica "medo", observou-se que, ao verbalizar a situação do medo, os profissionais o enfatizam como algo real, decorrente de experiências ameaçadoras, que convivem no seu dia-a-dia, sentindo-se ameaçados em sua integridade física e no desenvolvimento de seu trabalho, caracterizando uma das resistências para se notificar, ao se sentirem perseguidos pelos familiares das vítimas que foram notificados(12).

Para se entender a dinâmica e manifestação desse medo relatado pelos sujeitos, é preciso apreendê-lo como um fenômeno societário complexo que envolve as relações entre as forças sociais, culturais e políticas da sociedade, não podendo, portanto, ser estudado fora da sociedade que o produz, uma vez que ele se nutre de fatos sociais, a exemplo da violência urbana, imaginários e culturais traduzidos nas relações cotidianas(18).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a realização deste trabalho, pode-se reafirmar que a violência doméstica contra a criança e suas nuanças impõem-se como um exercício para compreender a dinâmica atual da família e da sociedade. O tema é complexo, e dado essa complexidade é um conhecimento ainda em construção.

Para impedir a (re)produção do ciclo da violência intrafamiliar, as iniciativas sociopolíticas na área devem buscar responder os desafios de tirar a violência doméstica contra crianças da clandestinidade compreender melhor o processo de produção desse fenômeno, formar profissionais competentes e socialmente comprometidos no combate a essa modalidade de violência.

Ressalta-se, todavia, que esse processo de visibilidade não ocorre de maneira homogênea, existem avanços e retrocessos, êxitos e obstáculos, requerendo um exercício de perseverança e compromisso.

Conhecer o significado e as interfaces da violência doméstica contra crianças na visão dos profissionais da saúde oportunizou verificar que esses profissionais carecem de formação e apoio, e que o processo de trabalho necessita ter outro olhar com vistas à melhor articulação das políticas sociais a serem estabelecidas entre diversas áreas.

Considera-se este estudo como uma contribuição para a área da saúde, e para a enfermagem, mediante o aprofundamento na compreensão do objeto de estudo, apontando que o papel do enfermeiro, como elemento da equipe de saúde, implica em uma postura mais ativa, apropriando-se de novos conhecimentos e práticas.

Conclui-se este trabalho esperando que os resultados apresentados instrumentalizem transformações na prática assistencial e fomente a realização de novas pesquisas, uma vez que estudo não encerra a compreensão acerca do significado da violência doméstica contra a criança.

Estudos que objetivem a avaliação dos sistemas de informação para o acompanhamento da magnitude do problema, que busquem aprimorar um referencial teórico-analítico, capaz de permitir a compreensão desse fenômeno na especificidade que ele tem hoje, os fatores de vulnerabilidade e de proteção comuns às diferentes culturas e sociedades, ou o quanto o tema está inserido nos currículos escolares dos diferentes níveis de formação podem ser o caminho para novos conhecimentos e direcionamentos que possibilitem a promoção dos direitos, da proteção e da cidadania dessa população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 23.3.2005

Aprovado em: 10.11.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Aceito
    10 Nov 2006
  • Recebido
    23 Mar 2005
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