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Cuidar em novo tempo: o trabalho de cuidadores com pacientes psiquiátricos em moradias

Resumos

O objetivo deste estudo foi analisar o trabalho de cuidadores de pacientes psiquiátricos, em dois tipos de serviços residenciais terapêuticos. A pesquisa recorreu ao método etnográfico, baseado na teoria interpretativa, e utilizou as técnicas de observação participante e entrevistas em profundidade. Os sujeitos principais são onze cuidadores e os sujeitos secundários, quatro supervisores. Os principais achados consistem na identificação da formação e capacitação do cuidador; atividades pelas quais se responsabiliza e concepções sobre elas, mudanças desencadeadas nos serviços residenciais, vínculo que se estabelece entre cuidadores e moradores, possibilidade de discussão regular do trabalho em supervisão e impacto dos diferentes equipamentos de moradia no cotidiano de cuidadores e pacientes. As conclusões permitem reconhecer a relevância do trabalho dos cuidadores. Ainda que lhe falte melhor definição legal, formação e capacitação adequadas, este trabalho é o principal responsável pelas mudanças comportamentais observadas nos moradores, que permitem constatar o processo de reabilitação em curso.

Cuidadores; Assistência em Saúde Mental; Moradias Assistidas; Reabilitação


The research aims to analyze the caregivers' work developed with psychiatric patients in assisted living facilities. The research used the ethnographic method and is theoretically based on Interpretative Anthropology for the analysis of the meanings of practices related to the caregiver's work in these residential devices. The techniques used in the research were participant observation and interviews. The main subjects of the search were the eleven caregivers and the secondary subjects were four supervisors. The results show the bond established between caregivers and residents, the possibility of a regular discussion under supervision, the impact of different equipments at the dwelling house on the daily reality of professionals and patients. The main conclusions permit recognizing the relevance of caregivers' work. Despite its deficient education, training and legal definition, this work supports behavioral changes observed in dwellers, which reveal the ongoing rehabilitation process.

Caregivers; Mental Health Assistance; Assisted Living Facilities; Rehabilitation


El objetivo de este estudio fue analizar el trabajo de cuidadores con pacientes psiquiátricos en dos tipos de servicios en residencias terapéuticas. La investigación recurrió al método etnográfico, basado en la Teoría Interpretativa, y utilizó las técnicas de observación participativa y entrevistas en profundidad. Los sujetos principales son once cuidadores y los sujetos secundarios, cuatro supervisores. Los principales hallazgos consisten en: identificación de la formación y capacitación del cuidador; actividades por las cuales se responsabiliza y ; concepciones que tiene sobre ellas; cambios desencadenados en los servicios en residencias terapéuticas; vínculo que se establece entre cuidadores y residentes; posibilidad de discusión regular del trabajo en supervisión; e, impacto de los diferentes equipamientos de la residencia en lo cotidiano de cuidadores y pacientes. Las conclusiones permiten reconocer la relevancia del trabajo de los cuidadores. A pesar de que les falte mejor definición legal, formación y capacitación adecuada, este trabajo es el principal responsable por los cambios comportamentales observados en los residentes, que permiten constatar el proceso de rehabilitación en curso.

Cuidadores; Atención en Salud Mental; Instituciones de Vida Asistida; Rehabilitación


ARTIGO ORIGINAL


Cuidar em novo tempo: o trabalho de cuidadores com pacientes psiquiátricos em moradias

Neila SprioliI; Maria Cristina Silva CostaII

ITerapeuta Ocupacional, Mestranda em Enfermagem, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: nsprioli@yahoo.com.br

IIDoutor em Antropologia Social, Professor Doutor, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: mccosta@eerp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi analisar o trabalho de cuidadores de pacientes psiquiátricos, em dois tipos de serviços residenciais terapêuticos. A pesquisa recorreu ao método etnográfico, baseado na teoria interpretativa, e utilizou as técnicas de observação participante e entrevistas em profundidade. Os sujeitos principais são onze cuidadores e os sujeitos secundários, quatro supervisores. Os principais achados consistem na identificação da formação e capacitação do cuidador; atividades pelas quais se responsabiliza e concepções sobre elas, mudanças desencadeadas nos serviços residenciais, vínculo que se estabelece entre cuidadores e moradores, possibilidade de discussão regular do trabalho em supervisão e impacto dos diferentes equipamentos de moradia no cotidiano de cuidadores e pacientes. As conclusões permitem reconhecer a relevância do trabalho dos cuidadores. Ainda que lhe falte melhor definição legal, formação e capacitação adequadas, este trabalho é o principal responsável pelas mudanças comportamentais observadas nos moradores, que permitem constatar o processo de reabilitação em curso.

Descritores: Cuidadores; Assistência em Saúde Mental; Moradias Assistidas; Reabilitação.

Introdução

Este estudo resulta de pesquisa desenvolvida no Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio de Janeiro(1). O Instituto, que já foi palco da atuação de ilustres e inovadores psiquiatras, sedia novas e importantes mudanças, desde o início da década de 2000. Lá, entre 2000 e 2002, iniciaram-se várias modificações na assistência oferecida aos internos dos setores das grandes enfermarias de moradores, típicas de hospícios de grandes proporções. A partir de 2003, reforçando essas mudanças, colocou-se em curso um projeto - Programa de Moradias - com a contratação de profissionais de nível superior, que fariam a supervisão do grupo de cerca de 40 pessoas recém-contratadas para realizar a tarefa de cuidadores.

É sobre o trabalho do cuidador que se volta à atenção desta pesquisa. Na cena atual da assistência psiquiátrica, esse personagem assume papel pouco discutido na literatura, porém, fundamental tanto para a "desconstrução" do aparato manicomial quanto para a inserção de pacientes psiquiátricos em novas possibilidades de assistência e tratamento, de fato, nos serviços residenciais terapêuticos(2).

Com os novos serviços residenciais, tem início profunda modificação no "tratamento" oferecido aos pacientes/moradores, até então restrito à medicação e contenção, no interior das enfermarias de hospitais psiquiátricos. Introduzem-se ações em alguns setores que repercutem na redução dos prejuízos decorrentes dos longos anos de "institucionalização", entendida como "o complexo de 'danos' derivados de uma longa permanência coagida no hospital psiquiátrico, quando a instituição se baseia sobre princípios de autoritarismo e coerção. Tais princípios, donde surgem as regras sob as quais o doente deve submeter-se, incondicionalmente, são expressão e determinam nele uma progressiva perda de interesse que, através de um processo de regressão e de restrição do Eu, o induz a um vazio emocional"(3).

O Programa de Moradias do Instituto propôs assistência inspirada em novas modalidades oferecidas dentro dos princípios da Reforma Psiquiátrica. Para isso, precisava se adequar às mudanças, sob a perspectiva da psiquiatria orientada, prioritariamente, para a reabilitação dos pacientes psiquiátricos, que "não é a substituição da desabilitação pela habilitação, mas um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de troca de recursos e de afetos"(4).

A nova proposta previa ações como o resgate da cidadania, mediante pesquisa da identidade dos pacientes e viabilização de documentação; tratamento médico (considerando as complicações clínicas advindas da idade e mesmo aquelas produzidas ao longo de anos de uso excessivo de medicamentos); consultas psiquiátricas regulares e individuais, com reavaliação das medicações; promoção da autonomia dos moradores em suas atividades cotidianas; inserção dos moradores em serviços de atenção diária, e muitas outras. Todas as ações eram propostas com a perspectiva de introduzir os moradores em um novo cotidiano, contraposto à institucionalização, que conjugasse moradia e terapia, e se voltasse para a reabilitação, construção da cidadania do doente mental e sua inserção na comunidade.

O trabalho com pacientes psiquiátricos em moradias comuns (não mais somente nos espaços asilares), que proporcionam cotidianos mais ricos em reabilitação psicossocial, não deve se caracterizar apenas como mudança física, estrutural ou hotelaria mais humanizada. Ainda que essas mudanças tenham grande importância e permitam visualizar o progresso da assistência psiquiátrica, mais relevante é a orientação desse trabalho para a reinserção do doente mental na comunidade e a construção de sua cidadania.

Dois tipos de serviços públicos associam assistência e habitação: as residências terapêuticas e as "moradias assistidas". As residências terapêuticas (RT), de acordo com a legislação brasileira, são aquelas inseridas na comunidade e subordinadas ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua área geográfica(5). As moradias localizadas no interior de instituições psiquiátricas não são consideradas RTs. Entretanto, tais moradias são também locais onde o morar torna-se importante possibilidade de trabalho com a clientela dita "cronificada", por meio de ações que enriquecem o cotidiano, perdido na longa institucionalização. Constroem-se aí, mediante tarefas simples, novas possibilidades de estar na vida e na comunidade. Habitar um local e nele ser reconhecido.

Nos novos serviços residenciais terapêuticos, RT e moradias assistidas, o significado maior do cuidado, como a atenção ou desvelo oferecido a algo ou alguém, implica uma série de ações cotidianas(6). Objeto tradicional da enfermagem, o cuidado, atualmente, envolve a participação de várias categorias profissionais. No cuidado ou assistência proporcionada pelos distintos tipos de moradias, destaca-se um trabalhador pouco conhecido, raramente mencionado na literatura especializada e até mesmo pouco reconhecido pela regulamentação legal dos serviços de moradia: o cuidador.

O objetivo central deste artigo consistiu em analisar o trabalho do cuidador, em face de pacientes psiquiátricos com histórico de longa institucionalização, em serviços residenciais terapêuticos.

Métodos

Trata-se de pesquisa qualitativa, que realizou análise interpretativa dos significados das práticas e concepções, relacionadas ao trabalho do cuidador, orientada pela escolha do método etnográfico, com o suporte teórico da Antropologia Interpretativa(7-8). Como qualquer pesquisa etnográfica, volta-se à interpretação dos significados de condutas, concepções, relações, valores, articulando-os ao contexto sociocultural em que são produzidos.

A etnografia é tomada, neste estudo, como método desenvolvido por uma ciência específica, a antropologia, e compreendida como "uma descrição densa"(7), descrição à procura de significados. Esta pesquisa etnográfica acompanhou o cotidiano dos serviços de moradia do Instituto e apreendeu o trabalho do cuidador junto a pacientes psiquiátricos, como "teias de significados"(7) a serem interpretadas. Dessa forma, o método possibilitou à pesquisadora o acesso à interpretação formulada pelo próprio grupo estudado, e ensejou a interpretação teoricamente informada, produzida pelo pesquisador(9-10).

A pesquisa se desenvolveu desde 2008 até 2010, e incluiu a abordagem retrospectiva dos serviços residenciais do Instituto Nise da Silveira, no Rio de Janeiro. O lócus da investigação constituiu-se das moradias assistidas localizadas dentro do Instituto e das RTs de seu entorno (antes subordinadas ao Instituto e hoje administradas pelo CAPS da área).

Onze cuidadores definiram-se como sujeitos principais desta pesquisa e, como sujeitos secundários, quatro supervisoras de equipes de cuidadores, interlocutoras privilegiadas dos primeiros. Os critérios de inclusão dos sujeitos foram: trabalhar como cuidador ou supervisor dos serviços e aceitar participar. A definição do número de participantes deu-se pelo critério de saturação das informações.

Priorizaram-se as técnicas de observação direta e entrevistas em profundidade, com roteiros sucintos. A observação foi registrada em cadernos de campo e as entrevistas, gravadas, e, posteriormente, transcritas.

A análise interpretativa recorreu à identificação de unidades de significados, por meio das convergências e divergências dos dados coletados com os dois grupos de participantes da pesquisa. As unidades de significados identificadas foram: assistência nas moradias assistidas e residências terapêuticas; o trabalho do cuidador; capacitação para o cuidado; as mudanças geradas nos moradores e nas residências. A análise procurou integrar os significados apreendidos nas ações e concepções dos sujeitos às estruturas conceituais que as informam e, dessa forma, assegurar sua contextualização (a cultura entendida como contexto)(7-8).

A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Municipal Phillipe Pinel, Prefeitura do Rio de Janeiro/Superintendência de Serviços de Saúde, sob Protocolo nº27, de 17/4/2008. O estudo respeitou as recomendações éticas da Resolução 196/96, e todos os participantes assinaram o termo de consentimento informado.

Resultados e Discussão

Os resultados indicam convergências e divergências nas concepções e ações dos sujeitos principais e secundários. Todavia, em que pese a diferenciação entre ações e concepções dos cuidadores, encontraram-se mais convergências do que divergências entre eles, o que também ocorreu com os sujeitos secundários. Entre os dois grupos de sujeitos revelaram-se especificidades indicadoras de uma apreensão mais técnica dos supervisores, em relação ao trabalho dos cuidadores.

Na pesquisa empírica foram reveladas algumas das satisfações e dos desapontamentos produzidos no cotidiano dos serviços, as dificuldades encontradas, as formas de agir, e compreensões diversas dos sentidos do trabalho aí realizado.

As muitas entrevistas e as observações realizadas produziram material esclarecedor, não só acerca dos diversos aspectos e prioridades presentes no dia a dia das moradias assistidas e residências terapêuticas, como, também, e principalmente, do trabalho efetuado pelos cuidadores nesses dispositivos residenciais.

Existem 7 moradias internas no Instituto Municipal Nise da Silveira, administradas por seu Núcleo de Reabilitação e Integração Social. Bastante distintas entre si, encontram-se desde moradia com um único ocupante, até uma pensão habitada por 42 moradores, passando por algumas moradias intermediárias, com 20 ou 14 moradores, essas últimas com estrutura mais próxima à de uma casa de família. As RTs localizadas no entorno do Instituto, mas subordinadas ao CAPS, são 5, com 4 moradores cada.

Uma das mais importantes convergências nas avaliações elaboradas por cuidadores e supervisores, bem como identificadas na observação efetuada, diz respeito à influência da estrutura do serviço na qualidade da assistência.

Os cuidadores e a supervisora responsável pela moradia assistida de maior porte falam, com eloquência, dos problemas de uma grande estrutura, com número excessivo de moradores (portadores de condições de saúde bastante diferenciada), que pretende ser moradia. Nesse caso, o ambiente dificulta, sobremaneira, seu gerenciamento, e a viabilização da proposta de um olhar individualizado, direcionado aos moradores.

Nas casas maiores, que conservam características de enfermarias, ou seja, de locais de internação hospitalar, como as duas maiores moradias internas do Instituto, os cuidadores permanecem em evidente estado de alerta em relação à casa e às pessoas que por lá circulam. Em sua postura corporal, expressões faciais e condutas, esses trabalhadores repetem comportamentos de outros, das antigas enfermarias hospitalares, em que a vigilância assume caráter essencial.

Os moradores das casas maiores, por sua vez, apresentam regularidade em suas perambulações de um lado para outro, o olhar perdido em algum ponto distante, alheios ao que acontece a seu redor, em uma circulação aparentemente destituída de sentido. Nos espaços menores, registros da observação realizada descrevem moradores saindo do quarto para ir à cozinha comer, ou ir até a sala ver televisão, num exemplo de circulação com sentido definido. Os moradores das moradias assistidas menores e das RTs demonstram maior domínio do espaço residencial do que os habitantes das grandes moradias institucionais.

Nas RTs, as características de proximidade e cuidado, observadas na ação do cuidador em relação direta com o morador, se potencializam pela intimidade que o espaço produz. Essa qualidade passa a ser facilitadora da apropriação do espaço e dos objetos que o compõem, pelos moradores, o que se constatou de diversas formas, como, por exemplo, quando ao chegar para visitar uma RT, a pesquisadora, recebida pelos moradores que ali estavam, os viu interromperem suas atividades, curiosos para ver quem chegava e saber o que fazia. Comportamentos semelhantes raramente foram identificados nos serviços internos do Instituto, onde a presença da pesquisadora nem sempre era observada, ou, quando observada, o era apenas momentaneamente, numa atitude de curiosidade pouco duradoura.

Os relatos dos sujeitos principais e secundários, bem como a observação realizada indicam que características como o número reduzido de quartos e de moradores na casa e a possibilidade de maior liberdade e de interferência dos moradores em suas residências são fatores que contribuem para a maior qualidade da assistência.

Quanto à identificação dos cuidadores, a maioria deles é constituída por técnicos de enfermagem (7), portanto, com formação educacional correspondente ao ensino médio profissionalizante, embora seja exigido, para ser cuidador, apenas o ensino fundamental completo. De sua carteira de trabalho consta o registro: "cuidador". Depois de contratados, muitos receberam, no próprio Instituto, capacitação para o cuidado de pacientes psiquiátricos em moradias. Entre as supervisoras, sujeitos secundários, três são psicólogas e uma é terapeuta ocupacional, todas com capacitação anterior para a assistência em moradias.

Quando se busca uma definição das características do trabalho do cuidador na assistência psiquiátrica, pouco se encontra. As Portarias nº106 e nº1220, ambas de 2000, criaram os Serviços Residenciais Terapêuticos como modalidade assistencial sem precisar, no entanto, como seria feito o trabalho. Sobre o cuidador, existe apenas lacônica citação: "O cuidador tem uma tarefa importante na moradia"(11), que traz implícito o acompanhamento de moradores pelo cuidador, mas nada define sobre a tarefa tão "importante" nem caracteriza o profissional que a concretizará.

De fato, "a tarefa importante na moradia" a cargo de cuidadores, ainda que pouco conhecida, pôde ser comprovada pela observação e entrevistas realizadas. O acompanhamento cotidiano dos moradores, pelos cuidadores, inclui atividades voltadas à reabilitação psicossocial que tenham como eixo norteador a moradia; isto é, as ações implícitas na "tarefa" envolvem as atividades da vida diária (AVD), destinadas à estimulação do autocuidado, à gestão domiciliar, ao lazer e trabalhos assistidos, entre outras. Essa não é, todavia, tarefa isolada; integra-se em uma equipe, conforme destacam os sujeitos principais e secundários deste estudo.

Nessa equipe, assume relevante papel o de supervisão: quando é muito urgente, eu peço socorro, né? Corro pra supervisora, se não encontrar a supervisora eu vou pra coordenadora, quando é uma coisa que dá pra resolver, eu faço (C1).

Observou-se que o acompanhamento das ações dos cuidadores, feito pela supervisão, promove a diretriz desse trabalho, sendo fator de grande relevância no desenvolvimento e, principalmente, na continuidade das ações propostas.

Para a maioria dos cuidadores, seu trabalho com os moradores exige atributos pessoais, como paciência, capacidade de inspirar confiança e manifestações de afeto, como se pode constatar neste trecho de entrevista de um cuidador: eles não tinham pra quem falar. Na chegada do cuidador, nós demos essa atenção a eles. Era uma dor no dedo, dor de cabeça, a gente se interessava, e saíamos com eles... Procurávamos hospitais fora, pra dar uma melhor qualidade de vida. Ah!... sim, a proximidade é importante, porque eles precisam ter em quem confiar. Mais que uma confiança, é um vínculo muito grande que eu acho muito importante ao portador de transtorno. E a chegada do cuidador já aproxima um pouco mais, porque ele sai da casa, da família, entra pra uma enfermaria e só encontra o pessoal que só vê procedimento. Cuidador fica mais próximo, com mais carinho com eles (C10).

Nessa entrevista, é possível identificar os sentidos predominantemente atribuídos a seu trabalho pelos sujeitos principais da pesquisa. Revelam concepção do cuidado estruturada sobre sentimentos, proximidade, confiança e construção de vínculo.

No trabalho dos cuidadores sem formação específica e portadores de um saber fundado essencialmente na experiência, é possível que suas vivências sejam trazidas e circulem pelos espaços de moradias e entre os moradores, como propostas de atuação. O "como fazer" e o "fazer com" parecem se mesclar e consagrar a via de trabalho desses profissionais. Isso resulta em ações potencialmente voltadas para o autoconhecimento, conhecimento, subjetivação, reabilitação dos moradores, mas que podem resvalar para o assistencialismo, quando o saber técnico não é adequado ao trabalho. Daí, observa-se a grande importância tanto da participação da supervisão no cotidiano do serviço como das discussões sistemáticas de equipe sobre a diretriz que se pretende dar ao trabalho, aspectos bastante valorizados pelas supervisoras e pela maioria dos cuidadores.

Os significados que se podem apreender, partindo dos depoimentos dos cuidadores, revelam compreensão do cuidado bastante comum entre os principais sujeitos da pesquisa (e que se afasta das concepções verbalizadas pelas supervisoras). Ao associarem o cuidado a carinho e paciência, os primeiros revelam o acionamento de uma lógica ordenadora que é construída, tendo por base o sentimento para a atribuição de sentido ao objeto de seu trabalho.

A mesma lógica, fundada em sentimento, preside, entre os cuidadores, os significados atribuídos às condições necessárias para que o cuidado se concretize. Ambiguamente, o cuidado concebido como trabalho de equipe, para ser realizado, depende de atributos pessoais do cuidador, o que se revela na vinculação entre a confiança na pessoa do cuidador e o estabelecimento do vínculo necessário ao cuidado, assim como na priorização de qualidades pessoais e relações diretas, em sobreposição às relações mediadas por trabalho e competência técnica.

Apenas uma supervisora, diferentemente, estabelece, em entrevista, relação entre cuidado e afeto; todas elas, entretanto, falam como deveria se reger o trabalho dos cuidadores e a necessidade de saber técnico raras vezes encontrado entre eles. As supervisoras destacam a necessidade de se criar uma dinâmica de equipe suficientemente fortalecida, para suportar a ausência do suposto "apoio institucional" dado antes, quando a tutela da instituição determinava as ações com os moradores.

Cuidadores e supervisoras ressaltam os avanços conseguidos a partir do trabalho mais individualizado nas moradias, como a apropriação de espaços e objetos pelos moradores, retomada de vida social na comunidade, valorização de questões clínicas e psíquicas a serem trabalhadas ou tratadas diferenciadamente.

Entre as convergências destacadas nas concepções dos cuidadores, principalmente daqueles que já tiveram uma experiência anterior em enfermarias, estar numa casa, ou num ambiente estruturado, para aproximar-se disso, pode fazer grande diferença no trabalho voltado à reabilitação, como se pode constatar pelo que diz um deles: é boa porque nós temos que desconstruir o espaço manicomial, não é isso? Ele [o morador] tem direito de dizer o que tá ruim... se não quer essa comida... não é? E ter liberdade... Na enfermaria, era aquilo: só remédio, comida, banho e acabou. Aqui, eles questionam: onde é que eu vou tomar banho? Agora não (C3).

Os sujeitos secundários também mencionam a maior liberdade conquistada pelos pacientes nos novos serviços e valorizam o poder de expressão, mas acrescentam, de maneira eloquente, a aquisição de autonomia pelos pacientes, entendendo-a como a capacidade de administrar seu cotidiano e de tomar decisões.

Morar em uma casa, não mais ser paciente em enfermaria hospitalar, participar das decisões que o afetam, não sem dificuldades, encontram acordo quase unânime, entre os grupos de entrevistados, como garantias de assistência de melhor qualidade e estimuladoras da reabilitação dos moradores, qualificadas, por muitos (cuidadores e supervisores), como maior liberdade e participação. Entre os supervisores aparece, com frequência, a valorização da autonomia dos moradores. Liberdade, participação e autonomia se atrelam, nas concepções dos supervisores, ao sentido de ter o morador como interlocutor, negociador de suas condições de existência, mesmo que muitas vezes de maneira mais limitada do que se desejaria. A participação do morador em uma rede de negociação constitui modelo que "põe no centro das questões não a autonomia, mas a participação, de modo que o objetivo não seja aquele de fazer com que os fracos deixem de ser fracos para poder entrar no jogo com os fortes e sim que sejam modificadas as regras do jogo, de maneira que desse participem fracos e fortes, em trocas permanentes de competências e de interesse"(2).

Algumas das dificuldades apontadas por cuidadores e supervisores, que refletem aquelas que atingem qualquer cidadão (acesso à saúde, necessidades materiais etc.), vão além da estruturação espacial do ambiente de moradia, seja ele dentro de uma instituição ou inserido na comunidade, e que são inerentes à construção do novo. Aproximam-se da dificuldade de muitos em reconhecer a cidadania e direitos dos ex-pacientes, agora moradores de uma comunidade, como esclarece uma supervisora: então, são limites que a gente enfrenta e acaba pedindo algumas entradas... É horrível isso... Mas, os cuidadores pedem por eles... "Ah, são pacientes, será que não tem uma vaguinha?", ou por cuidadores que já conheceram os médicos da rede, conseguem encaixar outro paciente... A gente já teve questões graves com isso (S4).

Ao identificar vários dos impasses e problemas observados ou relatados como manifestações peculiares de um trabalho novo, ainda em construção, pretende-se demonstrar, aqui, que o contingente, o inesperado e até mesmo velhas limitações conhecidas requerem a invenção de condutas, diante da inexistência de regras e de planos de ações que cubram a ampla gama de acontecimentos gestados no cotidiano das novas experiências em diferentes espaços de moradia.

Os novos serviços assistenciais, apesar dos problemas, dificuldades, impasses enfrentados, possibilitam a lenta e progressiva conquista de liberdade e autonomia pelos moradores, em sua caminhada na direção da reabilitação psicossocial. Isso resulta, basicamente, do trabalho do cuidador, por meio da realização das atividades da vida diária.

Alguns dos exemplos de progressos dos pacientes, citados durante as entrevistas, como agora eles cuidam da higiene, podem parecer valorizar demais as ações normativas e de adequação na forma de vestir-se, cuidar-se ou se comportar. Entretanto, aqueles que conhecem o cotidiano das antigas enfermarias, que silenciam radicalmente os pacientes de qualquer grande hospital psiquiátrico, sabem que a descaracterização do ser humano, a perda da identidade e a incapacitação para ações simples do cotidiano e para as relações pessoais, após longa permanência, são, na maioria das vezes, totais.

Assim, é importante ressaltar que as mudanças de condutas dos moradores, detectadas pelos cuidadores, supervisores e observadas durante a pesquisa, vão além de mudanças simples ou pequenas; elas fazem partem da conquista de possibilidades de expressão, de vida e de resgate de uma existência mais digna e múltipla, dentro ou fora da instituição.

Essas ações podem parecer muito pequenas aos olhos daqueles que circulam pelos ambientes urbanos e os dominam; todavia, para pacientes "cronificados" e longamente institucionalizados, o trabalho que visa a construção de novas possibilidades de vida precisa ser diário, regular, constante, de longo prazo, talvez para sempre.

As condutas e concepções dos cuidadores, somadas aos relatos das supervisoras, apontam para a necessidade de reflexão contínua sobre o serviço residencial, serviço novo, acionado por tarefa que produz constantes mudanças, por isso mesmo, desafiador e exigente de inovações introduzidas pelos próprios trabalhadores.

Percebe-se que a mudança no olhar já é capaz de potencializar modificações importantes no trabalho, como disseram vários cuidadores: eu trabalho com moradores e não pacientes. Aí se estabelecem os contornos do cuidado direcionado à promoção de postura mais ativa dos não pacientes.

Conclusões

Ao se optar pela temática e pelo acompanhamento do trabalho do cuidador, buscou-se levar o foco para a importância da tarefa designada a ele e para as consequências efetivas das ações diárias na vida dos moradores.

A implantação de diversas decisões, portarias e estratégias para a mudança definitiva no modelo de Saúde Mental brasileiro, a partir da Reforma Psiquiátrica, tem envolvido a participação de vários grupos de profissionais, de áreas diferentes, e não apenas da saúde, entre eles o grupo singular de novos trabalhadores cuidadores. Ao considerar os dados colhidos nesta pesquisa, cria-se mais uma tarefa para aqueles que pensam a reforma no interior das instituições: a de olhar para essa categoria recentemente surgida e para as consequências de seu trabalho.

Conhecer a tarefa dos cuidadores nos serviços residenciais terapêuticos implica reconhecer a importância de um trabalho ao qual falta definição e melhor capacitação, mas que revela um tipo de disponibilidade e de potencial de relacionamento com os pacientes psiquiátricos, aparentemente capaz de dar novas perspectivas às perdas que, à primeira vista, podem parecer irreversíveis. As diretrizes deste trabalho, por um lado, estão atreladas às dos serviços residenciais terapêuticos; por outro, são promovidas, no ambiente de atuação, pela supervisão, função de grande importância para o desenvolvimento e a continuidade das ações propostas.

A despeito da exigência de ensino fundamental como único requisito prévio para a inserção desses cuidadores nos dispositivos residenciais, existe tendência de que a própria instituição promova a capacitação de seus trabalhadores, por meio de cursos ou palestras informativas. Todavia, verifica-se que seus conhecimentos sobre doença mental, serviços residenciais e até mesmo sobre o cuidado resultam muito mais da experiência direta com esses fenômenos do que da capacitação promovida pela instituição.

Em síntese, as mudanças detectadas com os moradores das moradias assistidas e RTs pesquisadas muito devem ao trabalho dos cuidadores e fazem parte da conquista de possibilidades de expressão, de identidade, de liberdade e de sentidos da vida. Seu sentido maior, ainda que pouco consciente para os cuidadores, é o de orientar-se pelos objetivos da reabilitação, reinserção na comunidade e construção da cidadania de doentes mentais.

Referências

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  • Corresponding Author:
    Maria Cristina Silva Costa
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Aceito
      15 Ago 2011
    • Recebido
      03 Jul 2010
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