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Como os profissionais da Atenção Básica enfrentam a violência na gravidez?

Resumos

OBJETIVO:

conhecer como os profissionais da Estratégia de Saúde da Família reconhecem e enfrentam o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres grávidas.

MÉTODO:

estudo de abordagem qualitativa, ancorado na Teoria de Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva. Foram entrevistados 14 profissionais de uma Unidade Básica de Saúde da zona leste de São Paulo, Brasil. Os dados empíricos foram analisados em grupos temáticos e discutidos com base na literatura e referencial adotado pelo estudo.

RESULTADOS:

a análise dos discursos identificou: invisibilidade da violência doméstica diante do baixo número de notificações de casos; falta de formação e capacitação dos profissionais de saúde com relação ao fenômeno; dificuldades desses profissionais no processo de identificação e intervenção devido a questões pessoais, a posturas preconceituosas e moralistas e ao método de trabalho pautado nos aspectos biológicos e, por fim, a análise identificou a importância do vínculo entre os profissionais da saúde e a mulher grávida no processo de identificação e intervenção da violência doméstica.

CONCLUSÃO:

há imediata necessidade de se desenvolver as competências dos profissionais e modificar os processos de trabalho para o enfrentamento da violência doméstica, prioritariamente nas adolescentes grávidas vítimas de violência.

Saúde da Mulher; Violência Doméstica; Pessoal de Saúde; Cuidado Pré-Natal


OBJECTIVES:

to determine how Family Health Strategy professionals recognize and deal with domestic violence in pregnant women.

METHOD:

qualitative study based on the Theory of Praxis Intervention in Collective Health Nursing (TIPESC). Fourteen professionals at a Basic Health Unit in the east side of Sao Paulo/Brazil were interviewed. Empirical data were categorized and discussed in thematic groups. For data analysis was used the technique of Discourse Analysis.

RESULTS:

we identified low number of reported cases of domestic violence; lack of education and training of health care professionals; failure in the identification and intervention process due to bias on their personal problems, moral attitudes and prejudice against these women. In addition, the study showed that their labor process was based entirely on the biological aspects of the women and to overcome this, they need of proper rapport between health care professionals and pregnant women to deal with of domestic violence.

CONCLUSION:

professionals should develop skills to intervene in violence against pregnant women and also modify labor processes considering women in their totality and part of society.

Women's Health; Domestic Violence; Health Personnel; Prenatal Care


OBJETIVOS:

conocer cómo los profesionales de la Estrategia de Salud de la Familia reconocen y enfrentan el fenómeno de la violencia doméstica contra las mujeres embarazadas.

MÉTODO:

estudio de abordaje cualitativo basado en la Teoría de Intervención Práxica de la Enfermería en Salud Colectiva (TIPESC). Se entrevistó a catorce profesionales de una Unidad Básica de Salud en la zona este de Sao Paulo - Brasil. En este estudio se utilizó la técnica de Análisis del Discurso. Los datos empíricos fueron categorizados en grupos temáticos y discutidos en base a la literatura y el marco teórico adoptado por el estudio.

RESULTADOS:

el análisis de las declaraciones identificó la invisibilidad de la violencia doméstica en base al bajo número de casos notificados, la falta de formación y capacitación de los profesionales de la salud sobre el fenómeno, las dificultades de estos profesionales en el proceso de identificación e intervención basado en los problemas personales, por prejuicios, por actitudes moralistas; y por el método de trabajo basándose en sólo los aspectos biológicos y, la importancia del vínculo entre profesionales de la salud y la mujer embarazada en el proceso de identificación e intervención de la violencia doméstica.

CONCLUSIÓN:

existe necesidad inmediata para el desarrollo de las competencias de los profesionales y modificación de los procesos de trabajo para hacer frente a la violencia doméstica como una prioridad en embarazadas adolescentes víctimas de esta violencia.

Salud de la Mujer; Violencia Doméstica; Personal de Salud; Atención Prenatal


Introdução

A violência, durante o período gravídico-puerperal, afeta a qualidade de vida das mulheres e preocupa os profissionais de saúde tanto pelas diversas consequências que gera como pela perpetuação do ciclo de violência doméstica( 11. Gomes NP, Diniz NMF, Araújo AJS. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul Enferm. 2007;20(4):504-8. - 22. Carvalho-Barreto A, Bucher-Maluschke JSNF, Almeida PC, De Souza E. Desenvolvimento humano e violência de gênero: uma integração bioecológica. Psicol Reflex Crit. 2009;22(1):86-92. ).

As mulheres vítimas de agressão durante a gravidez sofrem os piores tipos de violência dentre todas as que sofreram na vida( 33. Durant JG, Schraiber LB. Violência na gestação entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2007;10(3):310-22 ).

Um estudo realizado com 1.922 mulheres entre 15 e 49 anos, em 14 serviços públicos de saúde da Grande São Paulo, demonstrou que 60% das mulheres que engravidaram já haviam sido vítimas de violência (sexual, psicológica e física), infringida pelos seus companheiros íntimos; dentre essas, 20% disseram que durante a gravidez sofreram violência física grave, envolvendo socos, queimaduras, ameaça ou uso de arma( 33. Durant JG, Schraiber LB. Violência na gestação entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2007;10(3):310-22 ). Cerca de uma em cada cinco mulheres afirmam ter sofrido violência durante a gestação( 44. Audi CAF, Corrêa AMS, Turato E, Santiago SM, Andrade MGG, Rodrigues MSP. Percepção da violência doméstica por mulheres gestantes e não gestantes da cidade de Campinas-SP. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(2):587-94 ).

No município de São Paulo, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) desenvolve ações do Programa Mãe Paulistana( 55. Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Encarte Técnico Assistência Obstétrica e Perinatal. São Paulo: Prefeitura da Cidade de São Paulo; 2007. ), que tem por objetivo assistir a gestante durante a gravidez, desde as consultas de pré-natal (no mínimo sete), o parto e o puerpério até o primeiro ano de vida do bebê. O programa segue as diretrizes do Ministério da Saúde, que determina aos profissionais "promover a atenção obstétrica e neonatal, qualificada e humanizada para mulheres e adolescentes", bem como "promover a atenção às mulheres e adolescentes em situação de violência doméstica e sexual"( 66. Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e Diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. ).

Apesar disso, a violência contra a mulher ainda não ganhou espaço nos serviços de saúde, pois está remetida a conceitos de saúde concentrados na doença e no corpo biológico, ao mesmo tempo que é vista apenas como um dano físico( 77. Granja E, Medrado B. Homens, violência de gênero e atenção integral em saúde. Psicol Soc. 2009;21(1):25-34. ).

Considerando-se os indicadores epidemiológicos apresentados anteriormente, ocorreu, de forma indiscutível, o crescimento da violência, e as diversas estratégias implementadas até a presente data mostram ineficácia na resolução dessa problemática no Brasil. Além disso, a reduzida produção científica é ratificada, inclusive, pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde, o qual identificou que, no Brasil, até a década de 90, somente 3% da produção acadêmica sobre violência eram anteriores ou da década de 60, 11% eram dos anos 70 e 86% da década de 80, quando então os estudos tomaram uma direção de crescimento em número e abrangência( 33. Durant JG, Schraiber LB. Violência na gestação entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2007;10(3):310-22 ).

As evidências trazidas por alguns estudos e depoimentos mostraram a necessidade da existência de profissionais capazes de reconhecer as necessidades das mulheres grávidas e, principalmente, de estarem sensibilizados em relação aos processos protetores e destrutivos aos quais elas estão submetidas.

Diante disso, este estudo teve como objetivo conhecer como os profissionais da ESF reconhecem e enfrentam o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres grávidas.

Caminho metodológico

Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, sustentada pela Teoria de Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva (TIPESC). A TIPESC adota a concepção de determinação social do processo saúde/doença como teoria interpretativa dos fenômenos e a intervenção sistematizada e dinâmica na realidade dos processos de trabalho( 88. Egry EY. Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo: Ícone; 1996 ).

A compreensão das relações sociais de produção e o acesso aos bens materiais de consumo determinam a vida em sociedade, mas não são suficientes para explicar determinados fenômenos ocorridos na construção dos sujeitos sociais. A categoria gênero é capaz de iluminar o fenômeno da violência, trazendo grandes avanços para o âmbito teórico e prático da saúde e da enfermagem. Vista como práxis norteadora da atenção à saúde, a perspectiva de gênero possibilita superar as contradições e transformar a realidade( 99. Fonseca RMGS, Guedes RN, Zalaf MRR, Venâncio KCMP. The gender research in nursing production: contributions of the Gender, Health and Nursing Research Group from the University of São Paulo School of Nursing. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(spe 2):1690-5. ), além de dar maior alcance às questões peculiares no âmbito da saúde coletiva, sobretudo às relações sociais, e estudar as forças que determinam as formas masculinas e femininas de ser, existentes dentro da família e da sociedade

O cenário de estudo foi uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada na zona leste de São Paulo, Brasil. A população adscrita ao território da UBS é de 28.000 habitantes e o atendimento médio na UBS é de 150 gestantes/mês.

Os dados empíricos foram coletados durante os meses de janeiro a março de 2010 - após a aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa -, pelas sete equipes da ESF, totalizando 14 profissionais (sete médicos e sete enfermeiras), entrevistados por meio de roteiro semiestruturado, que norteou questões sobre as facilidades e dificuldades encontradas no atendimento às mulheres grávidas, vítimas de violência doméstica. Para integrar o estudo, o profissional deveria ter cursado nível superior e estar atuando nas equipes de saúde local, com tempo de atuação mínima de seis meses. Cabe apontar que a UBS conta com sete equipes e foram convidados a participar deste estudo dois profissionais de cada equipe, isto é, um médico e uma enfermeira, perfazendo o total de 14 profissionais de saúde. Os profissionais que participaram assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Os dados obtidos através da entrevista em profundidade foram analisados segundo a Análise de Discurso dos temas contidos nos depoimentos.

Essa técnica de análise e tratamento do material de fonte primária teve por base a proposta de decodificação de dados fundamentando-se na Teoria do Discurso( 1010. Fiorin JL. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto; 2005. ) - organização da narrativa e do discurso - dentro da perspectiva da dialética materialista, o mesmo que foi adaptado para serem utilizadas falas na íntegra com o intuito de captar as contradições dialéticas sem perder a essência em questão.

A análise e tratamento do material consistem, de início, na depreensão dos temas contidos nos depoimentos, procurando a articulação entre os temas e figuras, suas congruências e ambiguidades e análise e interpretação para a apreensão dos conteúdos-chave contidos em seus discursos.

Todos os preceitos éticos foram observados e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP (Processo nº834/2009) e da Secretaria de Saúde do município de São Paulo (Parecer 17/10 CAAE: 0188.0.162.162-09).

Após a análise, emergiram as seguintes categorias empíricas: violência doméstica contra adolescente grávida; processo de trabalho dos profissionais da saúde; necessidade de saúde das grávidas no contexto familiar; gravidez e aborto, e migração e gravidez.

Resultados e discussão

Os profissionais entrevistados tinham idade entre 28 e 62 anos, a maioria era do sexo feminino. Todos se formaram em instituições privadas de ensino do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro.

O tempo de trabalho na Atenção Básica variou entre dois e trinta e cinco anos e quanto ao local da pesquisa variou entre seis meses e sete anos.

Os profissionais relataram que não tiveram formação relacionada ao enfrentamento da violência doméstica durante a graduação. Na formação pós-graduada, relataram ter feito cursos de especialização em Saúde da Família, Saúde Pública, Medicina do Trabalho e Pediatria e Neonatologia. Nenhum desses cursos abordou a questão da violência, apesar da proximidade dessas áreas com o tema.

Ah [...] eu não lembro. Eu acho que não, tinha bastante matéria na escola de Enfermagem sobre a saúde da mulher, mas sobre violência não lembro não.(E2)

Quando questionados se haviam recebido algum tipo de capacitação em relação ao atendimento de mulheres grávidas vítimas de violência, apenas uma entrevistada participou de um curso e de uma oficina com carga de 8h e 12h, respectivamente, sobre violência contra mulheres em geral.

A maioria dos cursos da saúde como a Medicina, Odontologia e Enfermagem, entre outros, não contempla em seus currículos e nem em seus programas de formação continuada conteúdos relacionados à violência doméstica. Os profissionais da saúde não estão preparados para atender as mulheres vítimas de violência doméstica( 1111. Jaramillo DE, Uribe TM. Rol del personal de salud en la atención a las mujeres maltratadas. Invest Educ Enferm. 2001;19(1):38-45. ).

Especificamente sobre a enfermagem, profissão que trabalha diretamente com mulheres e famílias, destaca-se que, apesar disso, são reconhecidas dificuldades no atendimento de famílias vítimas de violência; os profissionais sentem-se impotentes para superar tais dificuldades; e a falta de abordagem do tema da violência nos cursos preparatórios bem como a falta de capacitação profissional podem constituir lacunas de conhecimento que dificultam o enfrentamento dessa temática( 1212. Salcedo-Barrientos DM, Gonçalves L, Oliveira Junior M, Egry EY. Violência doméstica e enfermagem: da percepção do fenômeno à realidade cotidiana. Avanc Enferm. 2011;29(2):353-62. ).

Além da falta de formação e capacitação, as dificuldades dos profissionais da saúde em lidar com as questões que perpassam a violência doméstica parecem estar atreladas ao modelo de formação biologicista e fragmentado, desconsiderando os aspectos biopsicossociais e a própria determinação do processo saúde/doença.

[...] é que a gente corre muito, não dá tempo para, por exemplo, quando eu acho que o caso precisa de um pouco de atenção especial, eu já falo para a enfermeira, esse casinho aqui. (M6)

[...] no serviço público a gente não tem tempo para pensar se houve alguma doença ou não.(M6)

Nas falas dos profissionais percebe-se quanto o conceito de saúde adquirido nas escolas formadoras ainda se sustenta em questões biológicas e de doença, deixando as mulheres que sofrem violência sem atendimento integral que busque compreender as necessidades de saúde. A fragmentação da ação e do objeto de trabalho reduz a atenção apenas em seus aspectos biomédicos( 1313. Lettiere A, Nakano AMS, Rodrigues DT. Violence against women: visibility of the problem according to the health team. Rev Esc Enferm USP. 2008; 42(3):467-73. ).

Na verdade essa história (de violência) a gente sabe pela agente de saúde.(E7)

Esse olhar pouco abrangente do profissional recorta um objeto de trabalho muito menor do que aquele sobre o qual poderia de fato atuar, tornando determinados fenômenos invisíveis à assistência. Ao serem indagados sobre a presença de casos de violência contra grávidas, identificados na prática cotidiana, responderam como sendo quase inexistentes, relatando apenas casos de idosos abandonados e de crianças com pais drogaditos.

Identifico algum risco patológico sim, mas risco de violência não consigo não. (M6)

Essa invisibilidade da violência foi constatada em um estudo americano sobre mulheres que vivenciam situações de violência doméstica, que apontou percentual de 24%, entre mulheres que procuram o serviço de urgência e percentual de 28% entre mulheres que procuram o serviço de atenção básica; mas somente 6% dessas são identificadas nesses serviços( 1414. Warshaw C, Ganley AL. Improving the health care response to violence. A resource manual for health care providers. San Francisco: Family Violence Prevention Fund; 1998. ). No Brasil, esse problema também foi identificado; observou-se que entre os profissionais da saúde há tendência ao reducionismo biologicista e fragmentado na atenção à saúde da mulher( 1313. Lettiere A, Nakano AMS, Rodrigues DT. Violence against women: visibility of the problem according to the health team. Rev Esc Enferm USP. 2008; 42(3):467-73. ).

Essa dificuldade para identificar e intervir nos casos de violência contra a mulher se acentua quando as mulheres estão grávidas.

Existe dificuldade em encontrar isso, porque violência é complicado, violência na mulher [...], dirá na gestante, eu nunca tive caso de violência na gestante.(E7)

Essa postura indica que os serviços de saúde estão se afastando da responsabilidade de enfrentar a problemática e as mulheres gestantes se apresentam ainda mais vulneráveis diante da fragilidade demonstrada por esses serviços.

Muitas são as dificuldades dos profissionais de saúde para identificar e assistir os envolvidos em casos de violência doméstica. Dentre as causas atribuídas a essas dificuldades estão a falta de visibilidade do problema e a não qualificação desses profissionais para a tarefa.

Outros aspectos como a história de vida, a postura e as atitudes profissionais, potencializam as dificuldades dos profissionais em assistir os usuários vítimas de violência doméstica. Isso aponta para a necessidade urgente de se discutir os dilemas ético-legais que envolvem a temática, inclusive em relação à obrigatoriedade de notificação( 1515. Apostólico MR, Nóbrega CR, Guedes RN, Fonseca RMGS da, Egry EY. Characteristics of violence against children in a Brazilian Capital. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2012; 20(2):266-73. ).

Sabe, não dá para ir mais profundo, a gente atende muita gente... não dá. (M6)

A ESF deve funcionar como um espaço propício à reflexão e promoção da saúde, articulando estratégias para o enfrentamento do problema( 1616. Andrade CJM, Fonseca RMGS. Considerations on domestic violence, gender and the activities of family health teams. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):591-95. ).

Os profissionais referem não se sentirem preparados para lidar com questões como gravidez na adolescência e ainda menos com violência doméstica contra adolescentes grávidas.

Dificuldade é a tensão, mesmo das mulheres, que elas acham que têm que suportar [...] e você vê que, às vezes, vai um ano, entra outro ano, a mesma coisa, não toma atitude; é, principalmente as mulheres que dependem do marido ou do parceiro. (E12)

Mas caso de violência eu não sei, a enfermeira que sabe, acho que é porque a gente é clinico, não conhece bem a área de obstetrícia.(M6)

Aliados ao despreparo para o enfrentamento da temática estão os atendimentos dessa população que, de acordo com os profissionais entrevistados, são permeados por uma postura preconceituosa e moralista, por exemplo, ao questionarem o papel de "ser mãe". Além disso, apresentam uma noção distorcida do que é violência e, consequentemente, as suas importantes implicações para a vida das mulheres. Tais julgamentos podem ser evidenciados nas frases a seguir.

As meninas (adolescentes) não têm uma perspectiva de vida, um sonho, não pensam em estudar, construir uma carreira, o sonho delas é em ser mãe. (M9)

É uma violência uma adolescente ser mãe cedo, ela não tem maturidade. (M9)

As adolescentes são consideradas pelos profissionais como meninas imaturas, sem projeto de vida e responsáveis pela ocorrência da gravidez. Aponta-se, entretanto, uma importante contradição na fala dos profissionais, pois, ao passo que não percebem a consulta como uma oportunidade de aprofundar-se em questões que envolvem os momentos de produção e reprodução social dessas adolescentes, atribuem julgamentos amparados pelo senso comum.

Também foi observado julgamento dos profissionais que realizam pré-natal em relação à família das adolescentes grávidas: consideram essas famílias como desestruturadas e culpabilizam não só a adolescente, mas, também, sua família, pela gravidez.

Ah [...] elas (adolescentes grávidas) são totalmente desestruturadas, nenhuma tem uma família estruturada, nenhuma delas. (M8)

Alguns textos legais e normativos discutem as condições da gravidez e gravidez na adolescência. Para o Ministério da Saúde não há uma idade ideal para a mulher engravidar e afirma que "a gravidez em adolescentes e jovens, embora nem sempre desejada, pode ser uma etapa tranquila da vida, desde que a gestante seja acompanhada por uma equipe de saúde responsável pelo pré-natal. Nessa etapa da vida, a mulher sofre diversas transformações hormonais, físicas e psicológicas, por isso é necessário esse acolhimento diferenciado"; ainda afirma que, em alguns casos, "a gravidez faz parte dos projetos de vida de adolescentes, sendo até um elemento reorganizador da vida e não desestruturador"( 1717. Ministério da Saúde (BR). Saúde da Família: Uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 1997. ). Importante ressaltar que a concepção ministerial não aponta as peculiaridades da adolescência em relação ao momento social e historicamente determinado vivido pelos jovens.

Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é assegurado à gestante o acesso universal através do Sistema Único de Saúde ao atendimento pré e perinatal( 1818. Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990 (BR). [Internet]. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. 13 jul 1990. [acesso 6 ago 2012]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Aponta ainda a obrigatoriedade de se comunicar ao Conselho Tutelar a suspeita ou confirmação de casos de violência.

Diante disso, cabe aos profissionais de saúde, juntamente com a família, proporcionar assistência integral às adolescentes, para a compreensão dos valores individuais de cada uma, bem como da necessidade social e de saúde dessas. O profissional de saúde deve ainda assumir o papel de mediador entre a sociedade e as necessidades de saúde, identificadas no momento da assistência. Cabe a ele fornecer atendimento cada vez mais cuidadoso, visando atender as necessidades que permeiam o meio onde a adolescente está inserida e a condição epidemiológica particular dela.

O companheiro quase nunca é citado, reforçando a concepção dos profissionais de saúde a respeito das questões de gênero, concepção essa disseminada em torno do poder masculino e da valorização da mulher no processo reprodutivo. Em situações de violência, predomina a visão estereotipada da mulher desprotegida e submissa ao homem, enquanto ele é visto como poderoso e forte( 1313. Lettiere A, Nakano AMS, Rodrigues DT. Violence against women: visibility of the problem according to the health team. Rev Esc Enferm USP. 2008; 42(3):467-73. ).

Isso explicita as diferenças de gênero que emergem dentro da sociedade capitalista em relação à maternidade e à paternidade, ressaltando os diversos conflitos que precisam ser discutidos sobre essa realidade. Para os adolescentes, a paternidade significa aumento da responsabilidade, a obrigatoriedade do trabalho e a perda da liberdade( 1919. Almeida AFF, Hardy E. Vulnerabilidade de gênero para a paternidade em homens adolescentes. Rev Saúde Pública. 2007;41(4):565-72. ). Muitos companheiros que gostariam de participar desse processo percebem-se impedidos pela jornada de trabalho no qual precisam estar inseridos. É importante que os profissionais de saúde possam repensar a sua prática, propondo novas estratégias para aproximar o pai no decorrer do processo da gravidez e do nascimento, levando em consideração, fundamentalmente, as expectativas do próprio casal.

Os profissionais entrevistados também relataram que a aproximação com as gestantes possibilitou estabelecer uma relação de vínculo, onde estão presentes a confiança e o respeito e que, consequentemente, facilitou o processo interventivo em favor das adolescentes e suas famílias.

A principal facilidade é o vínculo. (E12)

Havia desconfiança, mas a gente conseguiu superar, conversando bastante, mostrando pra ela que eu era uma amiga, uma profissional. (E2)

Uma pesquisa realizada em Alfenas, MG, com 24 profissionais de enfermagem, mostrou que o desenvolvimento das competências essenciais em obstetrícia, durante a formação básica do enfermeiro - as quais destacam o manejo da melhor posição para a mulher na hora de parir, cuidado com o manejo da apresentação no períneo e sua busca para assumir seu modelo intervencionista e humanizado - pode facilitar sua maior inserção na assistência obstétrica( 2020. Leite EPRC, Clápis MJ. A participação dos profissionais de enfermagem na assistência às parturientes no município de Alfenas, Minas Gerais. Cogitare Enferm. 2010;15(4):757-8. ).

Dessa forma, é importante que a equipe de saúde estabeleça um vínculo com a adolescente grávida e com a família, formando uma rede de apoio, criando confiança para que se estabeleça um relacionamento terapêutico que a auxilie no processo de cuidado do filho( 2121. Tomeleri KR, Marcon SS. Mãe adolescente cuidando do filho na primeira semana de vida. Rev Bras Enferm. 2009;62(3):355-61. ).

A relação entre os profissionais da saúde e as mulheres vítimas de violência só acontecerá de forma efetiva a partir do momento em que houver mudança organizativa no sistema e no atendimento, pois tanto profissionais quanto serviços não estão preparados para uma intervenção adequada e de qualidade( 1616. Andrade CJM, Fonseca RMGS. Considerations on domestic violence, gender and the activities of family health teams. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(3):591-95. ). Para compreender o significado da violência doméstica como um fenômeno complexo que necessita ser analisado na sua singularidade e multidimensionalidade, é necessário construir um cuidado de enfermagem ampliado e integrador( 2222. Backes DS, Viero M, Paim C, Carrêa E, Bopp J, Soldera N. A violência familiar na perspectiva do pensamento complexo. Avanc Enferm. 2011;29(2):225-33. ).

Considerações finais

O presente estudo demonstrou que a falta de formação e capacitação dos profissionais de saúde sobre questões referentes à violência doméstica, bem como as próprias questões pessoais de cada um em lidar com esse assunto potencializam as fragilidades desses profissionais no processo de identificação e intervenção nos casos de violência doméstica nos serviços de saúde.

A dificuldade que os profissionais da saúde têm em identificar e intervir em casos de violência contra a mulher pôde ser percebida nos próprios relatos dos profissionais, mas também diante do baixo número de registros de violência doméstica feito por esses profissionais, o que confere ao fenômeno a característica de ser invisível à sociedade, embora esteja presente nela. Percebeu-se, também, que essa dificuldade se acentua quando a mulher está grávida e principalmente quando a grávida é uma adolescente. Acrescentam-se a essa dificuldade o preconceito e os valores morais desses profissionais.

Além disso, alguns profissionais atendem e prestam assistência por meio de métodos de trabalho que priorizam os aspectos biológicos dos sujeitos e se isentam de identificar integralmente as necessidades de saúde.

Um dos aspectos interessantes que foi pontuado pelos profissionais e que contribui para o atendimento integral e voltado para atender as necessidades que envolvem as gestantes foi o estabelecimento do vínculo da família, da adolescente e da mulher grávida com a equipe de assistência pré-natal. Esse tipo de atendimento poderia contribuir para o processo de identificação e intervenção dos profissionais de saúde nos casos de violência doméstica.

Esse não foi o foco deste estudo, mas faz-se importante que outros estudos possam ser desenvolvidos nessa perspectiva.

Diante do exposto, esse estudo possibilitou o aprofundamento em uma questão de grande importância dentro da assistência à saúde da mulher, que é a questão da violência doméstica. Possibilitou, também, conhecimento e compreensão sobre as práticas de trabalho dos profissionais, especificamente no caso do trabalho médico e do trabalho de enfermagem integrantes da Estratégia de Saúde da Família, que ainda focalizam o seu quefazer no aspecto biológico e evidente invisibilidade do fenômeno da violência, especificamente nesse grupo etário vulnerável.

Cabe ressaltar que o processo de trabalho dos profissionais de saúde precisa de reformulação quanto à coerência dos objetivos da Estratégia de Saúde da Família; sendo assim, instituições de ensino, serviços e os próprios profissionais precisam pensar novas estratégias para fortalecer os princípios do Sistema Único de Saúde do Brasil e, então, viabilizar atendimento integral e de qualidade para todos os cidadãos.

Compete às instituições repensar a formação dos futuros profissionais de saúde e a capacitação daqueles que estão atuando nos diversos âmbitos da saúde, bem como ao Estado a responsabilidade de elaborar e implementar políticas públicas que visem a melhora do atendimento das mulheres vítimas de violência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2013
  • Aceito
    13 Jan 2014
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