Acessibilidade / Reportar erro

A bolsa na mediação "estar ostomizado" - "estar profissional": análise de uma estratégia pedagógica

The pouch mediating the relation between "being an ostomized person" and "being professional": analysis of a pedagogic strategy

La bolsa como mediadora entre "estar ostomizado" y "estar profesional": análisis de una estratégia pedagógica

Resumos

Este estudo analisou a (re)construção das significações sobre a ostomia, o ostomizado, o cuidar em enfermagem e o papel profissional de 30 enfermeiros que utilizaram bolsa coletora, em experiência pedagógica, durante os Cursos de Estomaterapia. A análise dos depoimentos revelou dois grandes eixos discursivos: "estar ostomizado" e "estar profissional". O enfermeiro, tendo por mediação o uso da bolsa coletora, vivencia o "estar ostomizado" por meio de violações da identidade e qualidade de vida, perpassadas por transformações desde papéis às relações com o outro. A mobilização de conteúdos simbólicos e afetivos acerca do "estar ostomizado" gera uma crise de significação do "estar profissional", até então caracterizado por um cuidar fragmentado. Re-conhecendo o cuidar passado como um fazer técnico voltado principalmente para a ostomia-bolsa, o aluno-enfermeiro projeta um cuidar futuro mais holístico do ser humano portador de uma ostomia, incorporando as dimensões afetivas, simbólicas e relacionais.

ostomia; ensino; relações enfermeiro-paciente; cuidados de enfermagem


This study aimed at analyzing nurses (re)construction process regarding the meanings of ostomy, ostomized patients, nursing care and the professional role after they wore an ostomy appliance. This activity is a teaching strategy applied at the Enterostomal Therapy Nursing Education Program. Two major units were identified after the analysis of students speeches: "being an ostomized person" and "being a professional". When students wore the pouches they felt as ostomized patients experiencing a violation of their identity and quality of life that promotes profound changes in daily life. These symbolic contents cause a crisis regarding the meaning of being a professional as until this experience, nursing care seemed fragmented to them. Recognizing a previous care performed as a technical action mainly directed to the ostomy and the pouch, students were able to visualize a future care, that is holistic and considers the ostomized human being, enabling them to incorporate affective, symbolic and relational dimensions.

ostomy; teaching; nurse-patient relationship; nursing care


El estudio es acerca de la (re)construcción de los significados sobre el estoma, el ostomizado, el cuidado de enfermería y el rol profesional, hecha por 30 enfermeros que usaran bolsas de drenaje, como una estrategia pedagógica en los Cursos de Terapia Enterostomal. El análisis de los discursos reveló dos grandes categorias: "estar ostomizado" y "estar profesional". El enfermero, teniendo por mediación la bolsa, vive el "estar ostomizado" con sentimientos de transgresión de la identidad, de la calidad de vida, cambios de roles y de sus relaciones sociales. La movilización de los contenidos simbólicos y afectivos acerca del "estar ostomizado" resulta en una crisis de significado del "estar profesional" caracterizado por el cuidar fragmentado. Reconociendo el cuidar pasado como un hacer técnico dirigido principalmente para el estoma-bolsa, el enfermero proyecta un cuidar futuro del ostomizado más humanizado, agregando las dimensiones afectivas, simbólicas y de las relaciones.

ostomía; enseñanza; relaciones enfermero-paciente; cuidados de enfermería


Artigo Original

A BOLSA NA MEDIAÇÃO "ESTAR OSTOMIZADO" - "ESTAR PROFISSIONAL" ANÁLISE DE UMA ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA1 1 Resumo de Tese de Doutorado, apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2 Enfermeira Estomaterapeuta. Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Coordenadora dos Cursos de Estomaterapia da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 3 Cientista Social. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP

Vera Lúcia Conceição de Gouveia Santos2 1 Resumo de Tese de Doutorado, apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2 Enfermeira Estomaterapeuta. Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Coordenadora dos Cursos de Estomaterapia da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 3 Cientista Social. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP

Bader Burihan Sawaia3 1 Resumo de Tese de Doutorado, apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2 Enfermeira Estomaterapeuta. Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Coordenadora dos Cursos de Estomaterapia da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 3 Cientista Social. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP

Este estudo analisou a (re)construção das significações sobre a ostomia, o ostomizado, o cuidar em enfermagem e o papel profissional de 30 enfermeiros que utilizaram bolsa coletora, em experiência pedagógica, durante os Cursos de Estomaterapia. A análise dos depoimentos revelou dois grandes eixos discursivos: "estar ostomizado" e "estar profissional". O enfermeiro, tendo por mediação o uso da bolsa coletora, vivencia o "estar ostomizado" por meio de violações da identidade e qualidade de vida, perpassadas por transformações desde papéis às relações com o outro. A mobilização de conteúdos simbólicos e afetivos acerca do "estar ostomizado" gera uma crise de significação do "estar profissional", até então caracterizado por um cuidar fragmentado. Re-conhecendo o cuidar passado como um fazer técnico voltado principalmente para a ostomia-bolsa, o aluno-enfermeiro projeta um cuidar futuro mais holístico do ser humano portador de uma ostomia, incorporando as dimensões afetivas, simbólicas e relacionais.

UNITERMOS: ostomia, ensino, relações enfermeiro-paciente, cuidados de enfermagem

THE POUCH MEDIATING THE RELATION BETWEEN "BEING AN OSTOMIZED PERSON" AND "BEING PROFESSIONAL": ANALYSIS OF A PEDAGOGIC STRATEGY

This study aimed at analyzing nurses (re)construction process regarding the meanings of ostomy, ostomized patients, nursing care and the professional role after they wore an ostomy appliance. This activity is a teaching strategy applied at the Enterostomal Therapy Nursing Education Program. Two major units were identified after the analysis of students speeches: "being an ostomized person" and "being a professional". When students wore the pouches they felt as ostomized patients experiencing a violation of their identity and quality of life that promotes profound changes in daily life. These symbolic contents cause a crisis regarding the meaning of being a professional as until this experience, nursing care seemed fragmented to them. Recognizing a previous care performed as a technical action mainly directed to the ostomy and the pouch, students were able to visualize a future care, that is holistic and considers the ostomized human being, enabling them to incorporate affective, symbolic and relational dimensions.

KEY WORDS: ostomy, teaching, nurse-patient relationship, nursing care

LA BOLSA COMO MEDIADORA ENTRE "ESTAR OSTOMIZADO" Y "ESTAR PROFESIONAL": ANÁLISIS DE UNA ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA

El estudio es acerca de la (re)construcción de los significados sobre el estoma, el ostomizado, el cuidado de enfermería y el rol profesional, hecha por 30 enfermeros que usaran bolsas de drenaje, como una estrategia pedagógica en los Cursos de Terapia Enterostomal. El análisis de los discursos reveló dos grandes categorias: "estar ostomizado" y "estar profesional". El enfermero, teniendo por mediación la bolsa, vive el "estar ostomizado" con sentimientos de transgresión de la identidad, de la calidad de vida, cambios de roles y de sus relaciones sociales. La movilización de los contenidos simbólicos y afectivos acerca del "estar ostomizado" resulta en una crisis de significado del "estar profesional" caracterizado por el cuidar fragmentado. Reconociendo el cuidar pasado como un hacer técnico dirigido principalmente para el estoma-bolsa, el enfermero proyecta un cuidar futuro del ostomizado más humanizado, agregando las dimensiones afectivas, simbólicas y de las relaciones.

TÉRMINOS CLAVES: ostomía, enseñanza, relaciones enfermero-paciente, cuidados de enfermería

1. INTRODUÇÃO

A educação pós-moderna é caracterizada pela ruptura. Ruptura com o velho, o convencional e o igual. Trata-se de incluir e trabalhar com as diferenças, com a singularidade, o que, certamente, implica em desenvolver uma "consciência crítica na forma de entender as coisas" (PILON, 1995).

Ao analisar o perfil dos especialistas estomaterapeutas (ETs) egressos dos Cursos de Especialização em Enfermagem em Estomaterapia da Escola de Enfermagem da USP nos primeiros anos de seu estabelecimento - a partir de 1990 - este revelava-se insatisfatório no que concerne à transformação da prática profissional vigente e à construção dessa nova especialidade dentro da Enfermagem (SANTOS et al., 1993).

Buscando uma coadunação com os preceitos e características dessa educação pós-moderna e embasando-nos nos resultados não só do estudo citado mas, também, no próprio processo avaliativo dos alunos - enfermeiros, propusemos uma dramatização acerca do significado do ser ostomizado como estratégia educativa que possibilitasse o que denominamos de "sensibilização" frente a essa clientela, sujeito - paciente de seu cuidar, em direção ao desenvolvimento da tão almejada "consciência crítica".

Identificada a bolsa coletora como elemento patognomônico do ostomizado, ao representar a extensão do próprio corpo, uma vez fixada ao estoma, e ao permitir a materialização da vivência do corpo alterado e a mediação da percepção da qualidade do sofrimento do ostomizado além de serem ambos - bolsa/ostomia - aspectos concretos do cuidar físico do enfermeiro, passamos à experiência de sua utilização como estratégia educativa. A avaliação desta atividade pedagógica relacionada especificamente à análise da (re)construção de significações sobre a ostomia, o ostomizado, o cuidar em enfermagem e o papel profissional, imagem corporal e qualidade de vida constituiu o objetivo deste estudo.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

Ao buscar sensibilizar os enfermeiros-alunos do Curso de Especialização com a vivência, por 24 horas, de um corpo afetado, deficiente, diferente, através do uso de uma bolsa coletora, tornava-se importante identificar como sentiram-se na "pele" ou "no corpo" de um ostomizado.

No estabelecimento de meus objetivos para este estudo foram essenciais os aspectos teóricos que apontam a significação e o simbólico como dimensões fundamentais do processo saúde-doença. No paradigma holístico da saúde, o corpo humano não constitui uma simples categoria biológica mas, sim, uma realidade simbólica, "um microcosmo que contém o universal, portanto, bio-psico-sócio-histórico" enquanto a saúde "deixa de ser não doença ou estado de pleno bem-estar, para tornar-se possibilidade objetiva de estar sempre buscando este estado" (SAWAIA, 1994, p. 109-10).

Numa concepção não reducionista da saúde-doença e do corpo onde relações e ações não são unicamente cognitivas ou sociais mas têm carga afetiva-simbólica, a literatura especializada em ostomia tem enfatizado as alterações de imagem corporal como elementos-chaves e determinantes de muitos aspectos da qualidade de vida do ostomizado nas diversas fases de seu processo reabilitatório. Da mesma forma, os depoimentos dos alunos que realizaram o curso e vivenciaram o uso da bolsa coletora, indicaram a dimensão do simbólico como aspecto fundamental à prática assistencial junto ao ostomizado. Estas reflexões remeteram-me a duas questões teóricas principais: a imagem corporal e a representação social do corpo.

Por um lado, tem-se a questão da imagem que os enfermeiros têm do próprio corpo, seu significado simbólico e como isso se evidencia na transformação suscitada pelo acréscimo de um dispositivo coletor: a saúde comprometida, a visibilidade da bolsa, o cuidado. Por outro lado, estão as representações sociais do corpo, sustentadas e divulgadas das mais diferentes maneiras em nossa sociedade (senso comum, propaganda, ciência, etc.) e que permeiam esse significado: o corpo saudável, a beleza, a deficiência e o estigma. Ambas questões estão imbricadas com a identidade.

Todos esses pontos tornam-se cruciais para a compreensão dos desafios do processo de cuidar em Enfermagem em Estomaterapia.

2.1. Imagem corporal: social-subjetivo

Sentir o próprio corpo, ver ou perceber o próprio corpo, compõem os aspectos centrais presentes na maioria das conceituações acerca de imagem corporal, tanto nas concepções psicanalíticas, comportamentalistas, como nas "orgânicas", mais ou menos abrangentes e embasadas, quase sempre, na definição clássica de Schilder (1923), para o qual a imagem corporal é a figura mental ou a percepção que alguém faz ou tem de seu corpo (CASTLEDINE, 1981; PENNA, 1990; COHEN, 1991; TOMASELLI et al., 1991; CAPISANO, 1992; IZZO, 1992). É um construto multidimensional, dinâmico, mutável e fundamentalmente social, formado a partir de uma combinação complexa de atitudes, sentimentos e valores, ancorada nas representações e estereótipos que os grupos sociais valorizam e veiculam através dos tempos e transformada por meio de subjetividade e cotidianidade que o indivíduo lhe impõe.

É através da imagem corporal que o indivíduo mantém um equilíbrio interno enquanto interage com o mundo (TOMASELLI et al., 1991) uma vez que ela é que lhe proporciona o senso de identidade e influencia na habilidade e no desempenho (MODEL, 1990).

Essa interação dinâmica entre o subjetivo e o social faz com que percebamos o nosso corpo de maneira semelhante àquela que todos percebem, mas, contrária e simultaneamente, de modo totalmente individualizado.

O significado de imagem corporal está intimamente relacionado a outros como autoconceito, auto-estima, auto-imagem, conceito corporal e esquema corporal (COHEN, 1991; TOMASELLI et al., 1991), todos componentes da identidade.

2.2. Representações sociais: o belo e o corpo

A imagem corporal, imbricada nos construtos de identidade e auto-estima e marcada pela subjetividade, é permeada pelas representações sociais (RS) do corpo no processo de sua construção e significação pelo sujeito.

Quanto aos significados de um corpo ideal, cada raça, cultura e sociedade os possuem de maneira variável conforme as idiossincrasias, filosofias, valores e idéias de cada época e as influências da subjetividade na re-elaboração e re-significação dos mesmos conceitos para cada sujeito, na construção da própria imagem corporal. Não se trata, portanto, simplesmente de reproduzir, mas, de construir e re-construir, de modo significante (JODELET, 1985). É o fruto do diálogo permanente, da comunicação, do fluxo de trocas e interações entre os sujeitos e grupos e destes entre si, de que nos fala Moscovici, estando sempre o indivíduo como ativo modelador desse processo, isto é, como portador, usuário e criador dessas representações (MOSCOVICI, 1978; SPINK, 1989; SÁ, 1993).

Em nossa sociedade, as RS do corpo ideal estão ancoradas em significados de juventude, beleza, vigor e saúde. O corpo normal é aquele produtivo e saudável. O belo é bom e o feio é mau. A mídia perpetua a chamada "obsessão pela aparência" que essa própria sociedade construiu e torna-se, numa versão atual dos mitos clássicos, o "espelho mágico que reflete o mundo idealizado" (ROCHA, 1991; SALTER, 1992; FREEDMAN, 1994). Para qualquer tipo étnico ou época, no entanto, o elemento fundamental que universaliza os conceitos de beleza é a procura da harmonia (PITANGUY, 1992).

É a sociedade que estabelece os meios de categorizar os indivíduos e a qualidade e quantidade de atributos considerados comuns e naturais para os componentes de cada uma dessas categorias (GOFFMAN, 1982), o mesmo ocorrendo para os padrões de beleza e imagem vigentes. A procura da identidade com seu par ou grupo social, tem levado o homem à conformidade e aproximação com esses padrões: a busca da beleza ligada à semelhança com os pares, objetivando a harmonia ( PITANGUY, 1992).

A harmonia, o equilíbrio, a homeostase têm um valor simbólico intrinsecamente relacionado à saúde. Os conceitos de saúde, do corpo saudável e, portanto, belo, oriundos da Medicina, enquanto ciência, são veiculados para o senso comum pelos elementos da equipe de saúde, especialmente o médico (dono do saber), constituindo assim os chamados formadores de RS. Neste momento, é importante ressaltar que o enfermeiro, enquanto um desses agentes de saúde e educador, acaba por atuar como um dos principais intermediários entre a ciência e o senso comum, traduzindo ou decodificando, para a clientela, a linguagem pertencente ao mundo "retificado" do médico e sua tecnologia, transformando o estranho em algo familiar, ancorando conceitos e contribuindo para a construção e re-construção de novos significados, numa ação modificadora do outro e de si mesmo.

Assim, essa própria sociedade, constituída dos sujeitos que de todos os lados compartilham representações, estabelece expectativas normativas para o alcance dos padrões acerca do corpo belo e são. A imitação e identificação de imagens corporais que a vida social proporciona. É o enquadramento do sujeito em modelos estabelecidos socialmente, buscando a aceitação pelo grupo e posição de destaque, ou seja, a realização, sem, no entanto, descaracterizar sua participação ativa no processo de re-significação (a marca do psiquismo individual no social).

Segundo essas representações a beleza é, portanto, importante forma de poder social e fonte de forças motivacionais quando se trata da luta pelo aprimoramento ou manutenção da imagem social-subjetiva.

A sociedade atribui à beleza diferentes significados para os sexos masculino e feminino, valorizando, por conseguinte, também de maneira diferenciada, os atributos de uma imagem ideal para cada um.

Além do gênero, as representações existentes na classe social a que o indivíduo pertence, definirão, de certa maneira, "o uso" que ele faz do próprio corpo (BOLTANSKI, 1984).

2.3. Estigma: o corpo diferente

As representações vigentes acerca da imagem corporal e do corpo ideal, permeados pelo belo, saudável e forte, em uma sociedade capitalista e tecnocrata marcada por relações niveladas pelo mercado de consumo, massificação (imitação) e indiferenciação do produto, ou seja, uma realidade ideológica onde todos têm a mesma crença sobre identidade, induzem à representação da diferença ou desvio como algo intolerável e inútil.

"Desvio" é algo que transgride algum tabu ou rompe com algum valor da Norma vigente (ROCHA, 1991). É a quebra da harmonia.

"Indivíduo desviante" é aquele que não está fora de sua cultura mas faz uma leitura divergente, estando só ou compondo uma minoria (Velho apud ROCHA, 1991).

Assim, o portador de um corpo imperfeito - indivíduo desviante - ao vivenciar as incapacidades e impossibilidades corporais, pode afastar-se dos atributos de independência e eficiência, isto é, de produtividade (corpo-máquina) bem como dos padrões estéticos de beleza, consumo e prazer (corpo-objeto) acarretando-lhes sentimentos de inadequação e provocando sentimentos discriminatórios por parte dos outros. É o estigma.

A incongruência com os padrões ou estereótipos criados pela sociedade leva ao estigma, definido por GOFFMAN (1982) como "a situação de um indivíduo que é desqualificado para uma aceitação social plena, uma pessoa que tem uma fraqueza ou deficiência sendo visto pela sociedade como algo contagioso... reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída... sendo, algumas vezes, ele próprio considerado como um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem".

As relações que caracterizam o estigma, como reação emocional típica da sociedade burguesa, traduzem-se por manifestações de rejeição ao que é diferente, ou seja, o próprio processo de exclusão social que surge como um mecanismo de defesa da identidade adquirida, com vistas à manutenção da ordem existente (ROCHA, 1991; BAKIRTZIEF, 1994).

Todas essas concepções sobre as imagens valorizadas e desvalorizadas socialmente, impõem-nos reflexões sobre saúde e doença, respectivamente, também como representações que emanam do social e, portanto, o quanto é fundamental a compreensão dos conceitos de imagem corporal e autocuidado na perspectiva do processo de cuidar em Enfermagem e da atuação do enfermeiro como mediador: o significado de ter um corpo alterado, desviado dos padrões sociais vigentes na dimensão intra-psíquica do sujeito consigo mesmo e/ou nas relações com o outro.

Essas considerações quanto à imagem corporal, como um dos componentes fundamentais da identidade, particularmente quando alterada em conseqüência à mutilação do corpo - desvio da norma (como ocorre para o ostomizado); quanto à representação social do corpo ideal ancorada nos conceitos de beleza, harmonia e saúde e objetivada na aparência de deusas e musas do passado-presente; quanto às RS como forma de conhecimento prático - o saber do senso comum - estabelecida por um sujeito social com atividade simbólica e cognitiva (JODELET,1985) que não acumula informações mas re-significa, transforma e constrói novos conhecimentos, são todas essenciais para o entendimento a que me propus no início deste trabalho: os significados que o enfermeiro desvela-revela para o "ser ostomizado", por meio de vivência pedagógica do "sentir-se ostomizado".

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para o desenvolvimento do estudo utilizaram-se procedimentos metodológicos qualitativos que permitiram captar as nuances, as microdiferenças no processo de significação do que é ser ostomizado e o cuidado a ele prestado por 30 enfermeiros - alunos inseridos nos Cursos de Especialização em Estomaterapia, principalmente nos anos de 1992 e 1993, estes, por sua vez, constituindo o cenário/ ambiente natural do estudo.

Os depoimentos sobre os significados da vivência de utilização do dispositivo coletor, daqueles enfermeiros que optaram por realizar a experiência, foram colhidos através de entrevista aberta, em grupo, gravados e utilizados com a anuência de todos os participantes.

A análise dos discursos, feita através de sua leitura exaustiva, permitiu identificar duas grandes unidades de significado, ou seja, eixos discursivos da análise: o aluno - enfermeiro falando a partir de duas personagens, o ostomizado ("estar ostomizado") e o profissional ("estar profissional"), relacionando-se, respectivamente, ao sentir, pensar e agir do ostomizado e ao sentir, pensar e agir do enfermeiro que entendeu e mudou as concepções acerca do ostomizado e seu cuidar.

Para sistematizar o movimento de transformações dos alunos-enfermeiros sobre sua vivência do "estar ostomizado", mediada pela bolsa coletora e facilitar a compreensão da análise realizada segue-se o esquema das categorias extraídas dos discursos, apresentado na Figura 1.


4. USO DA BOLSA COLETORA: VIVENCIANDO UMA ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA DO COMEÇO AO FIM

Os enfermeiros que buscam o Curso de Especialização em Enfermagem em Estomaterapia são, predominantemente, mulheres jovens, nas terceira e quarta décadas de vida, formados há mais de 6 anos, atuando em unidades hospitalares de internação ou ambulatoriais. A maioria tem experiência clínica anterior voltada para a assistência a ostomizados, que vai desde cuidados esporádicos a clientes pouco freqüentes até um trabalho mais sistematizado em unidades de atendimento específico, e espera do Curso de Especialização, principalmente, um maior desenvolvimento teórico e prático e a melhora da qualidade assistencial, com vistas à ampliação e/ou implementação ou criação de programas e serviços especializados.

Este perfil permite que identifiquemos dois aspectos importantes desta população: primeiramente, que são profissionais portadores de representações acerca do ostomizado e de seu cuidar ancoradas em conhecimentos prévios já estabelecidos e oriundos de diversas fontes teóricas, mais ou menos específicos e da prática clínica, mais ou menos intensa, em conceitos e pré-conceitos sociais, estigmatizantes em maior ou menor monta, em crenças e vivências pessoais. Em segundo lugar, tem-se como relevante a motivação que levou os enfermeiros a procurarem o curso, com expectativas e perspectivas mais ou menos determinadas e determinantes, entre outros fatores, de seu processo de aprendizagem.

Ao depararem-se logo no início do Curso de Especialização, com a estratégia de utilização de bolsa coletora para ostomizados, são levados a experienciar sentimentos, emoções, reflexões, re-conceptualizações, re-apresentações e, porque não afirmar, transformações que indicam a necessidade de elementos, até então, não contemplados no cuidar do ostomizado.

Os depoimentos dos enfermeiros acerca do impacto que o anúncio da experiência causou revelam sentimentos negativos como ansiedade, desaprovação, relutância, constrangimento e agressividade, predominantes frente às respostas indicativas de normalidade e interesse, denotando significados similares àqueles experienciados pelo sujeito na doença, como ameaça, sofrimento, insegurança e limitação (BERLINGUER, 1988). Para SACKS (1995) "a doença é a ruptura de um ciclo que exige reorganização". Além disso, essas respostas marcam o grande conflito dos enfermeiros: participar e não participar da vivência.

4.1. Estar ostomizado: uma identidade violada

O auto-emprego da bolsa coletora traz ao enfermeiro a concretização do abstrato que até agora representava o ostomizado/a ostomia enquanto objeto de seu cuidar, ancorado nos conhecimentos teóricos e na vivência prática, já incorporados, além dos conceitos do senso comum acerca do controle sobre as eliminações fisiológicas, o corpo, a beleza e a saúde.

"Estar ostomizado", tendo por mediação a bolsa coletora, implica, portanto, em reflexões sobre a vivência com a ostomia.

O indivíduo ao tornar-se ostomizado, não perde somente uma parte, um segmento de seu corpo, mas altera sua conformação estética e deixa de ter capacidade ou competência para controlar seus processos excretórios, suas eliminações fecais e/ou urinárias, básicas dentro da evolução física e social da espécie. O estoma, portanto, embora como algo acrescentado ao sujeito, representa, paradoxalmente, violação e perdas: de continência, fronteiras corporais de parte do eu, de confiança, de independência, de dignidade, forma de vida e papel prévios.

A vivência da dor ou do desconforto surge no local onde o "ter" um corpo evolui para o "ser" um corpo (NOVAES, 1975).

O uso da bolsa coletora leva os enfermeiros à sensação de "estranheza" para consigo mesmo, a partir de sua diferença com os outros (bolsa-enfermeiro; ostomia - ostomizado), reforçada pela necessidade de cuidados locais, antes inexistentes (esvaziamento e retirada da bolsa) e pela dor, incômodo, desconforto e insegurança que a bolsa (ostomia) traz, caracterizando um primeiro aspecto da violação da identidade - a violação de papéis.

...de madrugada, não sei se acordei com dor de barriga (cólicas menstruais), eu me lembrei da bolsa, na verdade... Cheguei a tomar um susto, levantei de vez e fui logo com a mão na bolsa: mas que é que tá acontecendo?

A presença de um artefato - a bolsa [ostomia] - é um atributo distinto que, para o ostomizado, necessita ser incorporado, reconstruindo a imagem corporal, num processo ao mesmo tempo subjetivo e coletivo/ social.

A violação da imagem corporal revela-se através de vários acontecimentos. Fenômenos sensoriais novos e estranhos começam a emergir, relacionados ao odor, ao som, à visão e ao tato. Símbolos de poluição, sujeira e perda de controle envolvem a transgressão de limites corporais e a percepção do estoma-bolsa como invasão física e sexual. Restrições de autocuidado relativas às atividades mais simples como banho, sono, repouso até as mais complexas como o trabalho, o lazer e o enfrentamento na intimidade sexual também estão presentes. Somam-se a essas manifestações da violação da imagem corporal, as exigências de alterações no vestuário, código fundamental, especialmente para a mulher, nas representações de gênero caracterizadas pela fragilidade, delicadeza e beleza.

...Acontece que eu tive um sonho. Eu sonhei que eu estava na minha casa e que eu estava me preparando para ir à piscina com minha filha e na hora que eu me levantei de biquini, a minha barriga inteirinha estava cabeluda entendeu? ... e eu levei um susto quando vi aquilo ... mas eu fiz depilação para ir à piscina! Fiquei naquela coisa, não sabia se eu ia para a piscina ou se ia para a depilação de novo ... mas se eu for ao clube ... ninguém vai entender. Então eu vivi alguns momentos no sonho de muito sofrimento entre decidir se eu ia ou não para a piscina com a barriga cabeluda ...

O discurso apresentado revela que "estar ostomizado", ou seja, estar com o corpo alterado pela presença de uma bolsa, representante simbólico da diferença e desvio da norma, constitui ameaça para a integridade da imagem corporal em função da discrepância entre a forma como o indivíduo se percebe e a sua realidade atual. A auto-imagem presente não combina com aquela construída ao longo dos anos e que é sustentáculo da identidade pressuposta e representada. Essa violação desvela-se também nos sentimentos de impotência ou falta de poder e de controle, redução ou ausência de significado, de competência e de valor, ou seja, na profunda alteração da auto-estima, como um terceiro aspecto da violação da identidade.

...eu sempre fico me imaginando como que seria se ele (o médico) estivesse falando isto (precisar de uma ostomia) para mim, que eu tenho certeza que eu ia simplesmente desorientar, né... se fosse eu, eu também estaria fazendo isso (arrancar a bolsa grotescamente como uma paciente sua ) talvez pior ainda...

"Estar ostomizado" representa estar com uma diferença aparente, embora nem sempre visível, que, mesmo não gerando, necessariamente, um corpo frágil, incapaz, incompetente, dependente e improdutivo, viola os padrões de beleza, conformação, função e harmonia corporais que a sociedade apregoa, enquanto valores simbólicos essenciais; viola os papéis prévios, imprimindo novos e viola o senso de competência, valor e significado pessoal, compondo a violação maior: da identidade.

Todas as concepções expressas até agora implicam no aprofundamento de três outros aspectos essenciais para a compreensão do significado da vivência dos enfermeiros acerca do "estar ostomizado", que se imbricam com a auto-estima e imagem corporal e remetem à questão de gênero: a sexualidade, o estigma e o suporte social.

A sexualidade consiste num aspecto fundamental da imagem corporal, de identidade e de auto-estima no que tange à representação social de masculinidade e feminilidade, especialmente com o parceiro e determinada pela ideologia de gênero.

"O modo como (o indivíduo) vê o seu corpo afeta o modo como o usa" (FREEDMAN, 1994).

As mudanças corporais associadas à presença de um artefato que acentua a(s) diferença(s) - a bolsa- transformam-se em barreiras psicológicas no relacionamento sexual. A auto-percepção da violação da sexualidade e da "atratividade" sexual como qualidade pessoal e definidora do papel de gênero e identidade, além da ruptura da ligação com o mundo geram grande ansiedade que pode induzir à cessação ou redução importante dos contatos íntimos (KELLY, 1992; VAN OOJJEN, 1995). "É fazer do estoma um cinto de castidade" (FREITAS, 1994).

... de madrugadinha, eu acordei com o meu marido me tocando, ele estava mexendo na bolsa, sentindo a bolsa, então eu me senti mal, eu tive vontade de tirar aquilo, né.

O ostomizado embora se apresente normal e comporte-se como normal perante os outros, ocultando sua diferença, passa a ter que revelá-la e a natureza não normal do seu corpo perante o seu parceiro sexual, de uma forma contumaz. Sobrevêm os medos centralizados na possibilidade de negação da legitimidade do eu como ser sexual, repetindo-se aqui o mesmo que pode ocorrer com os demais papéis sociais, ameaçados pelo papel de ostomizado (KELLY, 1992).

Daí a importância do parceiro atual ou potencial na determinação do ostomizado como indivíduo doente, não normal e como um parceiro sexual não legítimo. A rejeição manifesta é uma negação semi-pública dos direitos do indivíduo de ser tratado como uma pessoa normal e comum.

...Ele (o marido) olhou e não gostou muito. Até brincou: não, hoje é só um beijo porque você está de bolsinha...

Elemento crítico na perspectiva do eu para o ostomizado é a tensão entre a apresentação do eu privado e a identidade pública construída socialmente, após a intervenção que originou seu estoma. Se de um lado a ostomia é uma deficiência oculta (invisível) propiciando-lhe representar-se socialmente como normal, a consciência do corpo alterado (visibilidade virtual), e muitas vezes a própria presença da bolsa, tornam inadequada tal atitude (KELLY, 1992). Esta situação ocasiona a chamada "síndrome de Cinderela", atribuída por GOFFMAN (1982), ou a "vida entre correntes" por SALTER (1995), onde o ostomizado acaba por tornar-se "preso", "acorrentado" a lugares ou pessoas onde ou com quem possa sentir-se no controle dos fatos e informações acerca de si mesmo, evitando o estigma.

A "manipulação da informação social" sobre o desvio/diferença ou seu "encobrimento" segundo GOFFMAN (1982), constitui uma estratégia de preservação da identidade social prévia. É nesse aspecto que surge um elevado nível de ansiedade entre os ostomizados quanto a existir ou não o estoma, contar ou não, mentir ou não e para quem, quando, como e onde (GOFFMAN, 1982; KELLY& HENRY, 1993).

... tava com um shortinho assim meio largo e saiu ( a bolsa) por fora do short e a Tania caiu numa gargalhada e aquilo me deixou um pouco constrangida... aí eu escondi, depois da risada da Tânia, botei pra dentro da calcinha...

Nestas condições o sistema coletor deixa de ser característica do eu privado para tornar-se pública interferindo, negativamente, na atividade funcional e performance social do sujeito (KELLY, 1992).

Assim como o outro (indivíduo ou grupo) pode representar o "marcador" do estigma social, ou seja, aquele que estigmatiza, conforme exposto antes, em contrapartida ele pode constituir um elemento significativo dentro do chamado suporte social.

Então eu vivi alguns momentos no sonho de muito sofrimento entre decidir se eu ia ou não para a piscina com a barriga cabeluda... a vontade dela (minha filha) ir para a piscina e o carinho que eu sentia dela, minha filha, foi tão grande comigo que eu consegui ir para a piscina com a barriga cabeluda...

Dessa forma, enquanto se processa a re-construção da identidade violada, o suporte social, representado principalmente pela família, o outro significante e os grupos de auto-ajuda, constitui-se em importante mecanismo para a identificação de papéis, mesmo que seja o de ostomizado: é reconhecer que não se está só em uma sociedade marcada pelo estigma ao diferente.

As representações do "estar ostomizado" mediadas pelo uso da bolsa coletora para o enfermeiro que assim, "esteve ostomizado" por um período de 24 horas, revelaram um amplo e profundo significado de violação de diferentes aspectos de sua subjetividade (identidade, imagem corporal, auto-estima e sexualidade), bem como de sua inter-subjetividade, na relação com o outro. O espectro dessas violações, constatado nos fragmentos dos discursos expostos, pode ser visualizado, claramente, na problemática e qualidade de vida do próprio ostomizado.

4.2. Crise: a interface entre o "estar ostomizado" e o "estar profissional"

O estoma ao apresentar-se como uma dicotomia de ganho-perda, isto é, "ganho" exterior: ostomia-bolsa-diferença-excretas, a partir de perdas internas: segmento intestinal ou urinário - controle sobre as exonerações, apresenta um sujeito que ao "ganhar" um grande número de importantes perdas: de independência, de confiança, de dignidade, de estilo de vida, de auto-estima, de imagem prévia, de papel e de tantas outras que caracterizam a violação da identidade, só podem levá-lo ao sofrimento e luto. Luto necessário para que possa recanalizar sua energia emocional para a adaptação e sobrevivência (WILSON, 1981; MODEL, 1990; COHEN, 1991; GOLDBERG,1991; SALTER, 1991; KELLY, 1994a). Estabelece-se, então, a crise.

A crise revela-se em duas dimensões imbricadas: a vivência das perdas geradas pela ostomia (aqui imageificada pela bolsa) e a re-apresentação do papel profissional que começa a emergir quando ele retoma o papel de enfermeiro vivendo a experiência de "estar ostomizado".

A crise por que passa o aluno-enfermeiro, desencadeada pela experiência do uso da bolsa coletora, revela-se como aquela vivenciada pelo ostomizado após a intervenção que origina sua ostomia, sendo caracterizada por uma série de respostas emocionais intensas que têm sido descritas como enquadradas na teoria da perda e tristeza de Lindemann (1944), baseada na Psicologia Freudiana. Esta focaliza a separação e perda como aspectos centrais, o que levaria o ostomizado a passar por um padrão similar à privação, o luto (LINDEMANN, 1944; KELLY & HENRY, 1993).

Dentre os 5 aspectos patognomômicos que caracterizam a síndrome descrita por LINDEMANN(1944), três aparecem marcadamente nos discursos dos alunos-enfermeiros evidenciando a força da bolsa na aproximação da vivência do ostomizado: distresses somático e sensorial, raiva e hostilidade e perda de padrão prévio de conduta.

...Agora, pensando na vida toda com aquilo realmente é uma coisa assim para elouquecer, eu acho brutal, terrível. Isso é uma coisa bárbara...

Nesse depoimento não só sobressaem sentimentos de alarme, pesar e angústia mas há também a conotação do conflito de representações entre o "estar ostomizado" e o "estar profissional". O aluno-enfermeiro abandona a postura neutra e fria do "mundo reificado" e científico (MOSCOVICI, 1978) para partilhar do mundo consensual dos que vivem a ostomia.

A "crise" experienciada pelo aluno-enfermeiro refere-se ao processo de transformação e re-construção de significados acerca do cuidar do homem com ostomia - através do "estar ostomizado" - no confronto com o "estar enfermeiro".

Esse processo de crise é permeado por conflitos de natureza diversa e constitui um processo de "encontro de significado" tal como definido por KELLY (1994b), envolvendo, para sua resolução, diferentes mecanismos de enfrentamento, defesa e proteção.

"A mudança tende a acontecer somente quando se chega à crise" (MENZIES, 1974).

A existência de estressores como a perda real ou potencial de "objetos" psíquicos (relações pessoais, funções corporais, imagem e papéis sociais); o dano ou ameaça à integridade do corpo (dor e mutilação) e a privação ou insucesso de satisfação biológica (crescimento e libidinal) bem como de descarga da agressividade, todos contendo como eixo central a perda de controle, podem levar o sujeito a empregar recursos que visem estabelecer o equilíbrio da unidade psíquica e aliviá-la de tensões, procurando vencer e contornar as dificuldades impostas pelo meio ambiente. São os chamados mecanismos de "coping" e de defesa (NOVAES, 1975; MILLER, 1992).

Nos fragmentos dos discursos dos alunos-enfermeiros, verifica-se um misto de estratégias de "coping" e defesa, ora enfrentando a realidade estressante - a vivência de estar ostomizado com a bolsa coletora - ora evitando-a. Utilizam, assim, reafirmação de sua(s) diferença(s) em relação ao ostomizado; negação sugerida por comportamentos isolados de esquecimento (repressão); idealização ou fantasia de um mundo de ostomia sem a bolsa; respostas de identificação com a clientela perpassadas por racionalização; compensação (Polliana); relaxamento através de auto-distração e propostas de enfrentamento e resolução. Exemplificando:

...acho que o mais importante mesmo é a vida, porque dá para se adaptar...é difícil mas não é o fim do mundo, dá para adaptar sim, dá para adaptar.

O conjunto de respostas descritas até este momento, que mostra diferentes formas de enfrentamento da doença e suas conseqüências, parece tipificar uma população dotada de um "locus externo de controle", que é o da profissão - Enfermagem. Os sujeitos viveram a experiência do uso da bolsa sem serem ostomizados mas, sim, como enfermeiros com todas as funções, imagens - estereótipos, atributos e representações advindas do senso comum e reelaboradas por sua subjetividade. Desse modo, esses discursos, a maioria caracterizando mecanismos defensivos, parecem, por outro lado, desvendar parte de um sistema social de defesa utilizado enquanto profissionais e ainda implícito quando discursam como ostomizados. Tais mecanismos apontados por MENZIES (1974) e que, neste estudo, englobam a despersonalização do cliente, a diluição de responsabilidades, a fragmentação do cuidar e outros, tornam-se mais presentes e fortalecidos à medida que o aluno-enfermeiro fala como profissional.

... fazer com que os outros profissionais da equipe vivenciassem um dia com o uso da bolsa, principalmente o profissional médico que não vê muito o lado do doente, do sentir, do sentir o incômodo, de não demarcar corretamente, né...

Enfim, o que se viu até este momento, do processo vivido pelo aluno-enfermeiro e que englobou a utilização de inúmeros mecanismos pessoais de enfrentamento e a explicitação de menor intensidade e variedade de mecanismos institucionalizados de defesa, foi a sua re-apresentação como um sujeito despojado de sua "armadura profissional" e "sensibilizado" com o sofrimento do ostomizado. Este parece constituir o momento de re-significação do ser profissional, num amplo processo de transformação que apenas se inicia.

4.3. Estar profissional: o (re) encontro de significado

A maior parte dos alunos-enfermeiros tem alguma experiência prévia no atendimento da clientela ostomizada, o que pressupõe a sua familiaridade com o tema, isto é, a existência de representações ancoradas nos conhecimentos teórico-práticos, nos conceitos e preconceitos sociais acerca da beleza, corpo e saúde e mediadas pelas forças institucionais sobre o trabalho em enfermagem, conforme discutidos anteriormente.

Para esses alunos o não familiar está, então, na vivência do estar ostomizado - colocar-se no papel do ostomizado - através do uso de uma bolsa coletora, que ao suscitar o sofrimento provocado pela marca da diferença-violação da identidade, faz emergir o confronto entre o que se fez ou se faz como profissional e o que deveria ser feito, pontuando o início da trajetória da re-construção de significados e representações. Transformações estas acerca não só desse cliente na sua subjetividade e interação com o(s) outro(s), sujeito ativo que é da intervenção - cuidado, mas desse próprio profissional, cuja prática agora se volta para a formação especializada: vir-a-ser enfermeiro estomaterapeuta com sua missão, atuação e identidade coletiva bem estabelecidas (STEGINGA, 1993).

O re-encontro de significado para a prática profissional ocorre a partir das lembranças - memórias - do passado: o que se fez, como se pensou e se sentiu, desencadeadas pela vivência do presente em direção ao futuro.

Experienciar o uso da bolsa coletora como algo inédito, estranho e concreto do ser ostomizado (vivido) implica em mobilizar conteúdos simbólicos e afetivos, dentre os quais, as memórias referentes ao fazer sem pensar e sentir, que possivelmente caracterizava sua prática anterior (concebido).

Eu nunca orientei o paciente a passar qualquer coisa para retirar (a bolsa). Eu simplesmente ia segurando a pele e retirando...

Re-significar o passado representa constatar, vivificar a fragmentação entre o fazer técnico, o pensar reflexivo e o sentir humano (PADREDI, 1993) na prática em qualquer uma das áreas de atuação do enfermeiro, assistencial, docente ou gerencial, podendo levar ao restabelecimento do nexo entre o "concebido" e o "vivido" (PADREDI, 1993).

O presente dos alunos-enfermeiros é vivenciar as perdas resultantes de uma ostomia por intermédio da bolsa coletora, o que desencadeia todo um processo reflexivo (pensar), permeado por sentimentos, conflitos e emoções (sentir), que "passeia" pela história de cuidar de cada um (fazer), com um passado e um futuro. Este projetar o futuro pode ser considerado como um outro indício do processo de transformações que surge e urge no "estar profissional", apontando para a adequação e efetividade da vivência do "estar ostomizado" mediada pela bolsa coletora, como estratégia educativa para a formação especializada, segundo o que me propus no início deste estudo.

O cuidar futuro envolve dois conjuntos de depoimentos: o primeiro, que enfatiza o fazer técnico, mais pontual, restrito às atividades relacionadas à bolsa, embora já demonstrando preocupações com o imbricamento entre o agir, pensar e sentir, e o segundo, que o apresenta como mais holístico, transcendendo o fazer puramente técnico, incorporando-o a concepções de um cuidar mais global interessado no homem e não apenas na doença, permeado pela afetividade e voltado para a qualidade de vida do ostomizado. O seguinte depoimento ilustra essa preocupação emergente:

... eu fiquei pensando: meu Deus, o que que a gente pode fazer como estomaterapeuta para melhorar as condições ou qualidade de vida dos pacientes ostomizados?

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estratégia pedagógica de vivenciar a utilização de um dispositivo coletor, ao suscitar o sentido e valor individuais de cada aluno-enfermeiro atribuídos ao corpo sadio (norma-padrão) e ao corpo deficiente (desviante-estigmatizado) e ao provocar a emergência de conflitos sobre o "estar profissional" (como formador de RS e mediador entre a ciência e o senso comum) e o "estar ostomizado" -doente- seqüelado (como portador de um sofrimento que transcende a esfera física), encaminhou às reflexões sobre as RS que ancoram não só esses significados como também os papéis sociais no processo de cuidar em enfermagem, especificamente da clientela ostomizada.

Tais reflexões evidenciaram que a estratégia pedagógica de utilização da bolsa coletora levou os enfermeiros à resignificação do "estar profissional" projetando transformações no cuidar futuro, a partir da vivência do "estar ostomizado", no seu processo de violação da identidade, permeado, principalmente, pela violação da imagem corporal e auto-estima, que compromete as relações sociais, especialmente na esfera da sexualidade, todos marcados pela (in)visibilidade do estigma.

Ao incorporar tais reflexões, vividas e concebidas no "estar ostomizado", o aluno-enfermeiro redefine o "estar profissional" através da re-significação do cuidar passado que se transforma de um fazer técnico, desintegrado do pensar e sentir, para o cuidar holístico, voltado para a qualidade de vida do ser humano ostomizado, onde o simbólico e o afetivo são re-conhecidos e valorizados, passando a fundamentar sua atividade profissional na visão do indivíduo que particulariza, na sua experiência singular, o universal humano.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 6.4.1999

Aprovado em: 19.10.1999

  • 01. BAKIRTZIEF, Z. Águas passadas que movem moinhos: as representações sociais da hanseníase. São Paulo, 1994. 131 p. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica.
  • 02. BERLINGUER, G. A doença São Paulo: Hucitec, 1988.
  • 03. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
  • 04.CAPISANO, H.F. Imagem corporal. In: MELLO FILHO, J. de et al. Psicossomática hoje Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. cap. 17, p. 179-92.
  • 05. CASTLEDINE, G. In the mind's eye... Nurs. Mirror, v. 153, n. 20, p. 16, 1981.
  • 06. COHEN, A. Body image in the person with a stoma. J.Enterostomal. Ther., v. 18, n. 2, p. 68-71, 1991.
  • 07. FREEDMAN, R. Meu corpo... meu espelho: aprendendo a conviver com seu corpo, a aceitar seu visual e a gostar cada vez mais de você. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.
  • 08. FREITAS, M.R.I. de. Subsídios para a compreensão da sexualidade do parceiro do sujeito portador de colostomia definitiva Ribeirão Preto, 1994. 211p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
  • 09. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
  • 10. GOLDBERG, M.T. Promoting positive self-concept in patients with stomas: nursing interventions. Progressions, v. 3, n. 1, p. 3-11, 1991.
  • 11. IZZO, H. Convivendo com a velhice: efeitos da atividade física grupal no bem-estar físico e psicológico dos idosos. São Paulo, 1992. 133 p. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica.
  • 12. JODELET, D. La representación social: fenômenos, concepto y teoria. In: MOSCOVICI, S. Psicologia social Barcelona: Paidós, 1985. v. 2, cap. 13, p. 469-94.
  • 13. KELLY, M.P. Self, identity and radical surgery. Sociol. Health Illness, v. 14, n. 3, p. 390-415, 1992.
  • 14. KELLY, M.P. Mind and body. Nurs.Times, v. 90, n. 42, p. 48-51, 1994a.
  • 15. KELLY, M.P. Patient's decision making in major surgery: the case of total colectomy. J. Adv. Nurs., v. 19, n. 6, p. 1168-77, 1994b.
  • 16. KELLY, M.P.; HENRY, P. Open discussion can lead to acceptance: the psychosocial effects of stoma surgery. Prof. Nurse, v. 9, n. 2, p. 101-10, 1993.
  • 17. LINDEMANN, E. Symptomatology and management of acute grief. Am. J. Psychiatry, v. 101, n. 2, p. 141-8, 1944.
  • 18. MENZIES, I.E.P. Técnicas defensivas en el servicio de enfermeras. In: MENZIES, I.E.P.; JACQUES, E. Los sistemas sociales como defensa contra la ansiedad 2. ed. Buenos Aires: Hormé, 1974.
  • 19. MILLER, J. F. Coping with chronic ilness: overcoming powerlessness. 2. ed. Philadelphia: Davis, 1992. cap. 2, p. 19-49: Analysis of coping with ilness.
  • 20. MODEL, G. A new image to accept: psychological aspects of stoma care. Prof. Nurse, v. 5, n. 6, p. 310-6, 1990.
  • 21. MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
  • 22. NOVAES, M.H. Psiclogia aplicada à reabilitação Rio de Janeiro: Imago, 1975. cap. 4, p. 33-8: Deficiência física: imagem corporal e autoconceito.
  • 23. PADREDI, F.S.M. O bom-senso ao invés da teoria e o improviso ao invés da administração: uma análise do fazer, pensar e do sentir no cotidiano do enfermeiro. São Paulo, 1993. 94p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
  • 24. PENNA, L. Imagem corporal: uma revisão seletiva da literatura. Psicol.USP, v. 1, n. 2, p. 167-74, 1990.
  • 25. PILON, A.F. Educação ambiental, uma nova forma de estar no mundo. Jornal da USP, São Paulo, 25 set., p. 2, 1995.
  • 26. PITANGUY, I. Aspectos filosóficos e psicossociais da cirurgia plástica. In: MELLO FILHO, J. et. al. Psicossomática hoje Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. cap. 25, p. 264-6.
  • 27.ROCHA, E.F. Corpo deficiente: em busca da reabilitação? Uma reflexão a partir da ética das pessoas portadoras de deficiência física. São Paulo, 1991. 323 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia, Universidade São Paulo.
  • 28. SÁ, C.P. de. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M.J. (org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1993. cap. 1, p. 19-45.
  • 29. SACKS, O. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • 30. SALTER, M.J. Coming to terms with a change in body image. World Counc.Enterostom.Ther. J., v. 11, n. 3, p. 16-9, 1991.
  • 31. SALTER, M.J. Aspectos of sexuality for patients with stomas and continent pouches. J. ET Nurs., v. 19, n. 4, p. 126-30, 1992.
  • 32. SALTER, M.J. Some observations on body image /Editorial/. World Counc.Enterostom.Ther. J., v. 15, n. 3, p. 4-7, 1995.
  • 33. SANTOS, V.L.C. de G. et al. Enfermeiros estomaterapeutas (ETS) no Brasil. In: CONGRESSO LATINO AMERICANO DE COLOPROCTOLOGIA, 13, Isla de Margarita, Venezuela, 1993. Resumen Isla de Margarita, Venezuela, 1993. p. 9.
  • 34. SAWAIA, B.B. Análise psicossocial do processo saúde-doença. Rev. Esc. Enfermagem USP, v. 8, n. 1, p. 105-10, 1994.
  • 35. SPINK, M.J.P. As representações sociais e sua aplicação em pesquisas na área de saúde. /Apresentado no 2º Congresso Brasileiro de Saúde Pública e 3º Congresso Paulista de Saúde Pública, São Paulo, 1989/.
  • 36. STEGINGA, S. Stomalterapy: specialty nursing or special nursing? World Counc. Enterostom.Ther. J., v. 13, n. 4, p. 8-9, 1993.
  • 37. TOMASELLI, N. et al. Body image in patients with stomas: a critical review of the literature. JET Nurs., v. 18, n. 3, p. 95-9, 1991.
  • 38. VAN OOJJEN, E. How ilness may affect patient's sexuality. Nurs. Times, v. 91, n. 23, p. 36-7, 1995.
  • 39. WILSON, D. Changing the body's image. Nurs. Mirror, v. 152, n. 14, p. 38-40, 1981.
  • 1
    Resumo de Tese de Doutorado, apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo;
    2
    Enfermeira Estomaterapeuta. Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Coordenadora dos Cursos de Estomaterapia da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo;
    3
    Cientista Social. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2000

    Histórico

    • Aceito
      19 Out 1999
    • Recebido
      06 Abr 1999
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br