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A violência intrafamiliar e a justiça

Resumos

O objetivo deste estudo foi analisar as dimensões estruturais, de desenvolvimento e funcionais das famílias em situação de violência, sob intervenção judicial, em um município do Estado de São Paulo, Brasil. Utilizou-se o referencial teórico centrado na visão do contexto ecológico do desenvolvimento humano. A metodologia adotada é de natureza qualitativa. A coleta de dados constituiu-se em análise dos processos forenses, mapas censitários, entrevista semi-estruturada, observação livre e fotografias produzidas pelos sujeitos. A análise dos dados inspirou-se na hermenêutica dialética. "Não tive" e "na rua" foram categorias empíricas que emergiram das falas dos sujeitos, evidenciando situações de insegurança e desamparo, a inserção em relações perversas, estabelecidas no universo do tráfico de drogas, a exploração, a violação de direitos e as privações econômicas. As famílias apresentaram alterações de um momento histórico para outro, sob distintas variáveis e com complexidade específica, quanto às capacidades de descobrir, sustentar ou alterar o seu desenvolvimento no ambiente.

família; violência; direito penal


This study aimed to analyze the structural, developmental and functional dimensions of families in situations of violence, under judicial intervention in the city of São Paulo, SP, Brazil. The theoretical reference utilized was centered on the perspective of the ecological context of human development. A qualitative methodology was adopted. Data collection was constituted in the analysis of the judicial lawsuits, census maps, semi-structured interviews, free observation and photographs produced by the subjects. Data analysis was inspired by dialectic hermeneutics. "I did not have" and "In the streets" were empirical categories emerging from the subjects' statements, evidencing situations of insecurity and despair, the insertion in perverted relations, established in the universe of drug dealing, exploitation, violation of rights and economic privations. Families showed changes from one historical moment to another, under distinct variables and with a specific complexity, regarding their capacity of discovering, maintaining or altering their development in the environment.

family; violence; criminal law


El objetivo de este estudio fue analizar las dimensiones estructurales, de desarrollo y funcionales de las familias en situación de violencia, bajo intervención judicial, en un municipio, en San Pablo, Brasil. Se utilizó el marco teórico centrado en la visión del contexto ecológico del desarrollo humano. La metodología adoptada es de naturaleza cualitativa. La recolección de datos se realizó sobre el análisis de los procesos judiciales, mapas de censos, entrevista semiestructurada, observación libre y fotografías producidas por los sujetos. El análisis de los datos se inspiró en la hermenéutica dialéctica. "No tuve" y "En la calle" fueron categorías empíricas que emergieron de los diálogos de los sujetos, evidenciando situaciones de inseguridad y desamparo, inserciones en relaciones perversas - establecidas en el universo del tráfico de drogas, explotación, violación de derechos y privaciones económicas. Las familias presentaron alteraciones de un momento histórico para otro, bajo distintas variables y con complejidad específica, en lo relacionado a las capacidades de descubrir, sustentar o alterar su desarrollo en el ambiente.

família; violência; derecho criminal


ARTIGO ORIGINAL

A violência intrafamiliar e a justiça

Eliana Mendes de Souza Teixeira RoqueI; Maria das Graças Carvalho FerrianiII; Marta Angélica Iossi SilvaIII

IDoutor em Enfermagem, e-mail: jkroque@uol.com.br

IIProfessor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: caroline@eerp.usp.br

IIIProfessor Doutor, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: maiossi@eerp.usp.br

RESUMO

O objetivo deste estudo foi analisar as dimensões estruturais, de desenvolvimento e funcionais das famílias em situação de violência, sob intervenção judicial, em um município do Estado de São Paulo, Brasil. Utilizou-se o referencial teórico centrado na visão do contexto ecológico do desenvolvimento humano. A metodologia adotada é de natureza qualitativa. A coleta de dados constituiu-se em análise dos processos forenses, mapas censitários, entrevista semi-estruturada, observação livre e fotografias produzidas pelos sujeitos. A análise dos dados inspirou-se na hermenêutica dialética. "Não tive" e "na rua" foram categorias empíricas que emergiram das falas dos sujeitos, evidenciando situações de insegurança e desamparo, a inserção em relações perversas, estabelecidas no universo do tráfico de drogas, a exploração, a violação de direitos e as privações econômicas. As famílias apresentaram alterações de um momento histórico para outro, sob distintas variáveis e com complexidade específica, quanto às capacidades de descobrir, sustentar ou alterar o seu desenvolvimento no ambiente.

Descritores: família; violência; direito penal

INTRODUÇÃO

A realidade brasileira na contemporaneidade conta com vários dispositivos legais em atenção à criança e ao adolescente e modelos de gestão pública que, no foco da família, objetivam compromisso mais amplo com o desenvolvimento humano e social do país, justificados na partilha de ações intersetoriais e governamentais, na tentativa de enfrentar e superar a pobreza, as desigualdades sociais e econômicas. Tal moldura cria respostas teoricamente satisfatórias às questões colocadas, alterando também as incumbências de cada poder constituído, para que seus operadores e, especificamente, a ciência do Direito busquem auxílio nas Ciências Humanas e Sociais, com o objetivo de assessorar e subsidiar as decisões e os procedimentos jurídicos em situações nas quais o conhecimento técnico-científico é necessário.

Assim, se uma dada situação de violência entre a realidade familiar contra a criança ou o adolescente sofrer intervenção judicial o fato transforma-se num processo, sendo que a família em situação de justiça, diante de uma organização autoritária, centralizada, rígida e burocrática como o Tribunal de Justiça, desloca o fato violento, suas conseqüências e suas interfaces no tempo, trazendo importância a este estudo que, longitudinalmente, acompanhou o desenvolvimento de seus sujeitos durante dez anos.

Pode-se esperar que existam pais oriundos das classes populares, economicamente desfavorecidos, que cometeram violência contra os filhos e seus agravos, e ainda consigam exercer de forma adequada o papel de pais? Não se tem tais dados, aqui, e nem a pretensão neste trabalho de responder à questão, mas os resultados combinados indicam que a exposição a um meio ambiente não enriquecido com variáveis como status socioeconômico, instituição materna entre outros determinam tendência consistente para um trabalho empírico rigoroso nessa direção.

A literatura aponta que a estrutura hierárquica da família se fundamentou no poder advindo do patriarca e de seus direitos, até o de usar a violência para manter a ordem. Essa estrutura de dominação foi se cristalizando tanto na imagem como na realidade.

Os reflexos da autoridade paterna sobre os filhos e de adultos sobre as crianças construíram-se no padrão de educação de muitas gerações, inclusive daquelas que hoje são pais agressores de seus filhos, mediante violência.

MÉTODO

Para a realização deste trabalho, levou-se em conta as diretrizes e normas reguladoras de pesquisa envolvendo seres humanos, emanadas da Resolução 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos, e a aprovação do Conselho de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

A partir dessa etapa do projeto de pesquisa, foi solicitada autorização às autoridades responsáveis na esfera forense, ou seja, no Fórum do município pesquisado - São Paulo, Comarca de Primeira Instância, Vara Única, para ser realizada a coleta concernente aos processos judiciais. Fizeram parte do projeto nove famílias selecionadas aleatoriamente junto a 115 processos com história de violência, no período de 1995 a 2005, que tiveram intervenção judicial, totalizando 66 participantes.

Como parte da documentação prevista nessa legislação, elaborou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, obtendo assim o consentimento pós-informado dos sujeitos participantes da pesquisa.

O acompanhamento longitudinal deu-se por meio da análise documental (processos das famílias) e também foi realizado por meio de entrevistas programadas e observações sistemáticas pela pesquisadora, ao longo de 10 anos.

A metodologia adotada é de natureza qualitativa(1-2), aqui entendida como práticas interpretativas que contemplam os sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações, que permeiam o seu cotidiano. Para a coleta de dados, utilizou-se entrevista semi-estruturada, observação livre e material fotográfico produzido pelos sujeitos da pesquisa, com o objetivo de captar o olhar pessoal de membros das famílias sobre sua realidade familiar, mediante imagem fotográfica, técnica que trouxe elementos importantes à pesquisa. Para delinear a estrutura da família, ancorou-se no Modelo Calgary de Avaliação de Família (MCAF) que consiste numa estrutura multidimensional com três categorias principais: estrutural, de desenvolvimento e funcional, baseando-se em fundamento teórico que envolve sistemas, comunicação e mudança. Tal modelo foi adaptado a partir do modelo e avaliação de família(3).

Para analisar os dados e melhor compreender os significados, utilizou-se a proposta do método hermenêutico-dialético(4-5) e as bases da Teoria dos Sistemas Ecológicos(6).

A trajetória analítico-interpretativa seguiu os seguintes passos: (i) ordenação e classificação dos dados, (ii) leitura exaustiva e compreensiva, visando a impregnação, visão de conjunto e busca das estruturas de relevância, (iii) constituição do corpus de comunicações, unidades de registro e refinamento da classificação, (iv) identificação e problematização das idéias explícitas e implícitas no texto, (v) definição das categorias empíricas e busca de sentidos mais amplos (socioculturais) que articulam as explicações dos sujeitos da pesquisa, (vi) análise final, movimento do diálogo entre as idéias problematizadas, informações provenientes de outros estudos acerca do assunto, o referencial teórico do estudo e elaboração de síntese interpretativa, procurando articular o objetivo do estudo, a base teórica adotada e os dados empíricos.

RESULTADOS / DISCUSSÃO

A análise das dimensões estruturais, de desenvolvimento e funcionais das famílias de crianças e adolescentes em situação de violência, sob intervenção judicial, traz resultados que a qualificam enquanto espaço de desintegração social e mecanismos de risco de todas as espécies com eventos negativos, fazendo a história de vida das pessoas em experiências focadas em perdas de entes próximos, mediante homicídios, prisões e condenações por extensos períodos de violência intra e extrafamiliar.

Apurou-se que as pessoas são pertencentes a baixo nível social e pobres, incapazes de suprir as necessidades mais básicas de seus integrantes. Apresentam realçado retraimento social, embora vivam na rua. Os contextos parental, institucional e social dos participantes não guardam lógicas inclusivas, o que permite descrevê-las como excluídas(7). Há lacunas nos seus graus de constância e diferenciação da organização estrutural do sistema familiar, com uso abusivo de álcool e substâncias entorpecentes, instabilidade profissional e parco funcionamento interpessoal. Dados que são corroborados na comparativa quantitativa distribuição de violência física, negligência e sexual no mesmo período(8).

As crianças e os adolescentes definem socialização bastante precarizada, demonstrando falta de conhecimento das normas sociais e culturais, o que se observa ao potencializar os conflitos com o meio familiar e sua maior exacerbação fora dele. Assinala-se dificuldades severas e incompetência na integração aos sistemas externos, apurando-se ser a escola o local onde há maior visibilidade dessa ocorrência. Registra-se que, embora avancem na série escolar cursada, permanecem sem alfabetização, pois encontrou-se, neste estudo, várias crianças em adiantada série escolar que não sabiam ler nem escrever.

Verifica-se diluição do processo familiar nos sistemas sociais, uma vez observada a transferência de funções da família para os serviços sociais.

As famílias são compostas por 80% de pessoas do sexo feminino. Com relação à idade, verifica-se que a faixa etária dos 30 aos 39 anos é aquela que inclui número superior de sujeitos (30%), seguindo-se entre 40 e 49 anos (16%). Constata-se, também, aumento do desemprego, instabilidade profissional e emprego precário.

Essas dimensões, colocadas à luz da percepção sobre intervenção judicial na perspectiva de seus membros, se mostram inócuas e desprovidas de efetividade.

A violência se posta como um continuum, uma vez que há um construto social que a define desde a infância dos membros dessas famílias. Configura-se, ainda, o trabalho infantil no uso de infantes para o tráfico de drogas, entre tantas outras situações de violação de direitos, onde a universalidade da infância não se sustenta, conforme ilustra a Figura 1.


Pode-se, então, observar que o peso dos papéis que cabem à família é bastante significativo no desenvolvimento de seus membros e que, dependendo do modo como se constitui e se relaciona, pode-se promover maior e melhor desenvolvimento de seus membros, ou mesmo não potencializar as suas capacidades. A família pode ser desde fonte de suporte emocional e social, auxiliando no desenvolvimento saudável de seus membros, até fonte de risco, conflitos e estresse. Quanto ao ajustamento emocional e comportamental de crianças e adultos, está associado com a qualidade das relações familiares(9).

NA RUA, categoria empírica desvelada, define desproteção, solidão, revelando ainda que, no ideário desses sujeitos, o modelo idealizado de família (aquele baseado no parentesco, na família nuclear, onde predomina a estrutura do pai, mãe e filhos) é o único capaz de prover as condições necessárias para o desenvolvimento de uma criança.

Para compreender o funcionamento familiar, são necessárias análises de amplo espectro que passem pela perspectiva sociocultural, na qual poderiam ser observadas as transformações das funções da família ao longo da história(10). Para tais autores, o estudo da diversidade cultural favorece o desenvolvimento de teorias mais claras e a construção de conceitos mais válidos de família, o que a pesquisa em tela traz com vigor bastante interessante, onde a instituição familiar pode ser entendida, ao ter seus membros NA RUA, como um princípio de construção da realidade coletiva. A família, na atualidade, enquanto construção social, pode ser entendida como espaço ao mesmo tempo físico, relacional e simbólico aparentemente mais conhecido e comum, a ponto de ser usado como metáfora para todas as situações que têm a ver com espontaneidade e com a naturalidade. A família revela-se como um dos lugares privilegiados de construção social da realidade, a partir da construção social dos acontecimentos e das relações aparentemente mais naturais(11).

Além de estarem NA RUA, as famílias em estudo estão contextualizadas entre as últimas décadas do século XX e início do século XXI, ressaltando-se que nesse período o Brasil passou por profundas alterações econômicas, demográficas e sociais que modificaram a estrutura etária e a composição familiar como um todo. A estrutura familiar brasileira continua predominantemente nuclear, mas o tamanho das famílias diminuiu, e cresceu o número de uniões conjugais sem vínculos legais e arranjos monoparentais aqueles caracterizados pela presença do pai (ou da mãe) com os filhos, contando ou não com outros parentes habitando junto(12). As maiores transformações ocorrem no interior da família, devido a alterações da posição da mulher e por novos padrões de relacionamento entre os membros da família.

Deve-se considerar que, em termos operacionais, o macrossistema está manifestado nas continuidades de forma e conteúdo reveladas pela análise de dada cultura, pois a análise da família requer algumas informações sistemáticas em relação à sua estrutura e ao nível ecológico em que ocorreram os comportamentos de seus membros.

Apenas afirmar que esses sujeitos são pais ou crianças brasileiras de baixa renda e não famílias pertencentes às camadas médias é oferecer apenas um marcador, um sinal na porta do contexto ambiental que deixa inesperada a sua natureza. Assim, no contexto das estruturas do macrossistema, é necessário que se imagine o desenvolvimento humano como ocorrendo dentro de um sistema ambiental dinâmico: "O desenvolvimento acontece num trem em movimento e este trem é o que podemos chamar de 'macrossistema em movimento' "(13).

As respostas desta pesquisa deixam claro a concepção da pessoa e sua relação com as forças da mudança social e econômica, como protagonista e como sujeito consciente de que nada teve, e com a percepção sobre a intervenção judicial na família como ineficaz e que quer, precisa, ou movimenta-se NA RUA, que também tem o céu da liberdade, ou o distanciamento do Estado como instituição de proteção e acolhimento para as suas necessidades, como se pode observar nas Figuras 2 e 3.



A perspectiva ecológica utilizada no presente estudo constituiu-se numa abordagem teórica que aqui auxiliou, não só na compreensão da amplitude e complexidade do universo estudado, mas em sua descrição e explicação quanto aos efeitos do ecossistema em cada pessoa que compõe a família(6).

Neste início de século XXI, na realidade do Brasil, há um contexto bastante complexo e específico, exigindo respostas sociais e culturais diferenciadas, das pessoas como um todo e, muito especificamente, das famílias.

Observa-se que as famílias vivem situações em seu contexto com contornos de intensa dificuldade, estando em constante situação de vulnerabilidade, seja pelo traficante do local que ameaça, seja por situação socioeconômica extremamente comprometida que se sustenta, na sua maioria, por subsídios sociais oriundos de ação governamental como Bolsa Escola e, por isso, não se observa acentuada evasão escolar, posto que o benefício tem como padrão de elegibilidade a assiduidade escolar. Ademais, além de tais subsídios, apropriam-se também de ajudas comunitárias ou institucionais, muitas das vezes acrescidas de produtos de roubo, atividades ilegais, sendo que as crianças têm participação em rendimentos de égide obscura que, embora com tentativa de ocultá-los, afloraram de forma bastante clara nas falas demonstrando produção da desintegração.

Quando u Tonho era assim di menor, ele trabalhô como aviãozinho, a senhora sabe? Pru tráfico de drogas, fiz isso pra pagá o meu vício, eu num tive infância, num me lembro nunca de ter brincado cum nada (F9).

Estudos pertinentes a famílias multiproblemáticas demonstram estruturas bastante similares a essas, sendo que descrevem e justificam a escassez na capacidade de enfrentar crises e resolver problemas, em que as tentativas implementadas, no sentido de melhorar qualquer situação mais estressante, terminam em conflitos. A falta de apoio mútuo e padrões enviesados de alianças induzem estados afetivos negativos nos membros da família, em relações que eles chamam desmembradas, nas quais qualquer processo adaptativo como negociação, resolução de problemas e de conflitos mostra-se menos efetivo(11-12).

Embora os dados, no rigor do quantitativo, sejam bastante claros, a análise qualitativa salienta que a situação face à conjugalidade não apresenta a mesma clareza, em bases das categorias tradicionais, por exemplo, numa das famílias em que existe o casal vivendo junto com os filhos, com casamento realizado no civil há mais de 30 anos, verifica-se que, em termos legais, o estado civil de ambos é casado, mas a esposa vive na mesma casa com outro companheiro há mais de cinco anos, numa convivência cujas circunstâncias coadunam-se como união estável entre o homem e a mulher, conforme o Art 226 § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil(13), ou outra ocorrência em que uma senhora casada vive com um senhor há 12 anos, que não o esposo.

Não tive escola corrobora os dados do survey, realizado em pesquisa anterior junto a processos forenses relativos à infância vitimizada(14), que declinam uma porcentagem onde a maioria das pessoas é analfabeta, nunca freqüentou a escola, ou mesmo terminou a 4ª série, sendo que níveis de escolaridade mais elevados não foram encontrados.

O trabalho infantil ocorreu em todas as famílias pesquisadas, com relatos na vida de 100% dos avós, 85% dos genitores e 15% dos descendentes. O trabalho infantil, realizado em idades abaixo dos dezoito anos, encontra-se bastante relacionado com as baixas qualificações escolares, observando-se ao longo das gerações, decréscimo de tal ocorrência, o que se pode relacionar com o advento da Lei 8069 de 13/7/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente(15), suas garantias à infância e a proteção, constantes do Art. 60, de tal dispositivo legal: "É proibido qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis anos) de idade, salvo na condição de aprendiz".

As famílias parecem viver em crise permanente, com múltiplos problemas que se renovam com as novas gerações, guardando e por vezes excedendo-se em suas especificidades, além do que os mais jovens assumem papéis bastante idênticos aos vividos pelas gerações anteriores.

Suas habitações bastante precárias são concentradas em cortiços, em cujos reduzidos espaços moram muitas pessoas de diferentes pertencimentos.

As ações criminosas perpassadas no universo do tráfico de drogas, assaltos à mão armada, homicídios, latrocínios, e outros atos infracionais cometidos por adolescentes, estabelecem dinâmica bastante interessante com a justiça e sua processualidade dentro do ambiente forense. Todo esse conjunto citado pode ser analisado como situações do microssistema, com raízes no macrossistema de ordem mais elevada e em suas estruturas institucionais e ideologias associadas.

Ainda, sob os eixos pessoa/tempo e os diferentes acontecimentos que envolvem a pessoa em desenvolvimento, observou-se famílias que apresentam vários problemas crônicos, onde o ciclo de multiproblematicidade se renova no nível geracional, por mecanismo que se pode denominar hereditariedade relacional, desenvolvida mediante dois eixos, no tempo e no espaço.

Embora se tenha interpretado essa gama de ocorrências familiares, elegendo termos como multiproblematicidade e instabilidade para compor algumas de suas muitas características, deve-se salientar, no entanto, que tais marcas não parecem ser compartilhadas pelas famílias, uma vez que nas entrevistas se manifestaram a respeito como algo natural, mesmo quando verificadas no tempo, ao longo das gerações, como vivências bastante importantes de instabilidade, desespero, abandono, violência, permeadas de circunstâncias como medo e necessidade de autoproteção, essas colocadas como formas de distanciar e retirar coesão à família, favorecendo a conservação de padrões relacionais disfuncionais. Os achados permitem, dentro dos núcleos do sistema ecológico pessoa, processo, contexto e tempo, afirmar estar-se diante de famílias cujas pessoas que as integram foram perdendo recursos ao longo das gerações e, por isso, tornaram-se cada vez mais vulneráveis, não conseguindo romper essa precária hereditariedade relacional .

As famílias em tela apresentam mobilidade geográfica interessante e constantes alterações dos locais de moradia, associadas à estratégia por melhoria de vida, mas com pouco êxito, o que corrobora os achados de pesquisas anteriores(16). A análise das entrevistas mostra que a média das famílias já teve algum momento de trabalho na área agrícola, seja no corte de cana em safras específicas, ou mesmo nas entressafras, arrancando o que eles denominam "coronhão", sempre com trajetórias instáveis, desprovidas de vínculo empregatício, com queixas de problemas de saúde dificultando a inserção no trabalho.

Na infância eu trabalhei foi muito, agora perdi as força, num tenho mais condição de trabalhá .O médico falou que eu tenho ursa, por isso que meu istumagu dói tanto, é também pur causu da bibida (F9).

Panorama bastante amplo de problemas de saúde é constatado, sendo o alcoolismo aquele que mais se destaca, aparecendo em membros de todas as famílias tanto no homem, quanto na mulher, nas crianças e nos adolescentes. Foram verificadas associação do álcool com situações de maus-tratos no contexto da família.

Embora constatada toxicodependência em membros de todas as gerações dessas famílias, encontrou-se nas gerações mais novas sua maior incidência, sendo que, na maioria das famílias, observa-se um ou mais filhos toxicodependentes, esses na faixa etária entre oito e 17 anos.

Os casos de toxicodependência associam-se ainda à prática de ato infracional, a desaparecimentos temporários e a roubos praticados por membros adultos, o que resulta em várias prisões. Nas famílias, alguns membros já estiveram presos, e outros estão presos cumprindo penas de períodos variados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se afirmar que houve modificações na estrutura dessas famílias com o passar do tempo, considerados os quatro núcleos do sistema ecológico, pessoa, alterações quanto às características biológicas, físicas, psicológicas em interação com o ambiente, processo, referente ao modo de interpretação das experiências vividas, oriundas das propriedades mutantes dos ambientes imediatos em que a pessoa em desenvolvimento estava inserida, e ainda pertinente ao tempo. Nesse último, enquanto cronossistema, a primeira alteração diz respeito ao modo relacionado à pessoa e aos seus processos proximais que avançam com o tempo, e o segundo referente à passagem do tempo no sentido do contexto histórico.

A definição dos contornos que delimitam as famílias deste estudo fala de mudanças de padrões difusos de relacionamentos, abalos internos, interferências externas que dialogam com a contemporaneidade.

A abordagem ecológica do estudo inspira reorientação no avanço das pesquisas com famílias e na implementação de políticas públicas em sua direção.

Conclui-se que as famílias apresentam alterações de um momento histórico para outro, sob distintas variáveis e com complexidade específica, quanto às capacidades para descobrir, sustentar ou alterar as propriedades de seu desenvolvimento no ambiente. A intervenção da justiça em casos de violência na família necessita considerar os novos dispositivos legais em outras bases processuais. A percepção das famílias, sobre a intervenção da justiça, conforma-se na não-resolubilidade, considerada como hermética, lenta e arbitrária.

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  • Intrafamily violence and justice

    Eliana Mendes de Souza Teixeira RoqueI; Maria das Graças Carvalho FerrianiII; Marta Angélica Iossi SilvaIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Recebido
      15 Maio 2007
    • Aceito
      08 Ago 2008
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