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Da onipotência ao desgaste: as perspectivas do adolescente em quimioterapia

Resumos

Este estudo teve como objetivo compreender o significado do tratamento quimioterápico para o adolescente acometido pelo câncer. Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa, com referencial fenomenológico social de Alfred Schütz. Foram entrevistados sete adolescentes. Da análise dos discursos, emergiram quatro temas: impacto da doença em sua vida, o desconforto do tratamento, estratégias de enfrentamento e projeção para o futuro sem a doença. A fala dos adolescentes revelou que a experiência com o tratamento quimioterápico afeta as várias possibilidades do ser-no-mundo-com-os-outros. A equipe que cuida é parte fundamental na vida desses adolescentes, cuja relação ultrapassa o científico.

Adolescente; Neoplasias; Quimioterapia; Pesquisa Qualitativa


This study aimed at understanding the meaning of chemotherapeutic treatment for adolescents with cancer. It is a qualitative study using Alfred Schütz’s social phenomenology as a framework. Seven adolescents were interviewed. Four themes emerged from the analysis of their discourses: Impact of the disease on their lives; The discomfort of treatment; Coping strategies and Projection to the future without the disease. The statements of the adolescents revealed that the experience with the chemotherapeutic treatment affects several possibilities of being-in-the-world-with-the-others. The healthcare team plays a fundamental role in the lives of these adolescents, and this relationship goes beyond the scientific level.

Adolescent; Neoplasms; Drug therapy; Qualitative Research


Este estudio tuvo como objetivo comprender el significado del tratamiento quimioterápico para el adolescente acometido por cáncer. Se trata de investigación de naturaleza cualitativa, utilizando el referencial fenomenológico social de Alfred Schütz. Fueron entrevistados siete adolescentes. Del análisis de los discursos, emergieron cuatro temas: el impacto de la enfermedad en su vida; la incomodidad del tratamiento; las estrategias de enfrentamiento; y la proyección para el futuro sin la enfermedad. La declaración de los adolescentes reveló que la experiencia con el tratamiento quimioterápico afecta las varias posibilidades del ser-en-el-mundo-con-los-otros. El equipo que cuida es parte fundamental en la vida de esos adolescentes, cuya relación ultrapasa lo científico.

Adolescente; Neoplasias; Quimioterapia; Investigación Cualitativa


ARTIGO ORIGINAL

Da onipotência ao desgaste: as perspectivas do adolescente em quimioterapia1

Mariela Santos LombardoI; Regina Célia PopimII; Antonia Leonilda SumanIII

IEnfermeira. E-mail: marilombardo@gmail.com

IIEnfermeira, Doutora. Professora, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Botucatu, SP, Brasil. E-mail: rpopim@fmb.unesp.br

IIIEnfermeira, Hospital das Clinicas, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Botucatu, SP, Brasil. E-mail: leonildasuman@bol.com.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este estudo teve como objetivo compreender o significado do tratamento quimioterápico para o adolescente acometido pelo câncer. Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa, com referencial fenomenológico social de Alfred Schütz. Foram entrevistados sete adolescentes. Da análise dos discursos, emergiram quatro temas: impacto da doença em sua vida, o desconforto do tratamento, estratégias de enfrentamento e projeção para o futuro sem a doença. A fala dos adolescentes revelou que a experiência com o tratamento quimioterápico afeta as várias possibilidades do ser-no-mundo-com-os-outros. A equipe que cuida é parte fundamental na vida desses adolescentes, cuja relação ultrapassa o científico.

Descritores: Adolescente; Neoplasias; Quimioterapia; Pesquisa Qualitativa.

Introdução

A adolescência é o período entre 10 e 19 anos, de acordo com a OMS(1). É considerada fase de transformação da vida, marcada por mudanças corporais e mentais em que há aceleramento do desenvolvimento cognitivo e a formação da personalidade(2).

Os adolescentes se consideram seres onipotentes: o ego se torna engrandecido e ocorrem altivez e independência da experiência e do aconselhamento dos mais velhos. Com tantos "poderes", quando se deparam com forças contrárias, como as doenças, por exemplo, fazem o possível e quase o impossível para tentar vencer a disputa, levando dessas experiências valores positivos e negativos que são incorporados à sua identidade(3).

Uma das enfermidades que acomete esses jovens é o câncer. A incidência de todos os tipos de câncer em crianças e adolescentes tem aumentado nas últimas décadas, sendo a terceira causa de morte entre as crianças brasileiras. As taxas de sobrevida relativa em cinco anos, para todos os tipos de câncer, passaram de 56%, no período 1974-1976, para 77%, em 1992-1998 (p<0,05)(4). O câncer infantil representa entre 1 e 3% de todas as neoplasias, na maioria das populações. O tipo de câncer mais comum na infância é a leucemia, correspondendo entre 25 e 35% de todos os outros tipos(5).

São muitos os tipos de cânceres na adolescência e, muitas vezes, o diagnóstico da doença se torna complexo e pode ocorrer a longo prazo, fato que leva a consequente atraso do início do tratamento, prejudicial à sobrevida do paciente(6).

Dentre os tratamentos para a doença, está a quimioterapia, que consiste no emprego de substâncias químicas isoladas, ou compostas, com o objetivo de tratar as neoplasias malignas, interferindo no processo de crescimento e divisão celular. A maioria dos agentes quimioterápicos não tem especificidade, pois age em todas as células do organismo, implicando, assim, em efeitos colaterais severos(7).

Em estudo anterior, realizado com adulto, pela autoria do atual estudo, descreveu-se que a quimioterapia é percebida pelo paciente como situação difícil de enfrentar, devido aos diversos efeitos colaterais. Porém, apesar da dificuldade, o paciente segue o tratamento com rigor, pois vê nesse tratamento a saída para se encontrar sem a doença(8).

Esse tratamento altera o corpo e o estado emocional, além da rotina do paciente. Muitas vezes, o tratamento é visto como fonte de preocupação e medo, já que é conhecido como tratamento estigmatizado, alta agressividade e quase que intolerável. Contudo, os efeitos colaterais do tratamento trazem a percepção de uma doença, que, apesar desses desconfortos, pode levar ao sucesso terapêutico(9).

A quimioterapia é tratamento reconhecido como proposta de cura do câncer, e seus efeitos colaterais não estão presentes apenas de forma aguda, mas têm repercussões tardias, envolvendo crescimento e desenvolvimento de adolescentes na fase da puberdade. Tais efeitos são ainda mais acentuados quando o indivíduo é submetido a radioterapia associada(10).

Os efeitos colaterais do quimioterápico são percebidos e relatados por acompanhantes de adolescentes em uso de antineoplásicos, e, embora esses acompanhantes não tenham grande conhecimento sobre o tratamento do câncer pela quimioterapia, identificam os efeitos adversos mais frequentes como fadiga, anorexia, náuseas, alopecia, perda de peso e dor(11).

O impacto do diagnóstico para o adolescente e a sua hospitalização gera mudanças dolorosas em vários aspectos. Há problemas de ordem emocional, social, comportamental e existencial, vivenciados por ele(12). A doença e o tratamento tiram a ideia do adolescente de onipotência e os faz reconhecer sua finitude. O câncer pode fazer com que a pessoa mude, redescobrindo nova forma de viver.

O desenho deste projeto se deu a partir do estágio supervisionado em enfermagem, no qual foi possível acompanhar e assistir o adolescente ao receber quimioterapia e ver seus desconfortos e perspectivas. Assim, este estudo tem como objetivo compreender o significado do tratamento quimioterápico para adolescentes acometidos pelo câncer e, através dos relatos desses, buscar subsídios para melhor planejar as ações assistenciais da equipe que cuida.

Percurso Metodológico

Neste estudo, de natureza qualitativa, optou-se pela fenomenologia social de Alfred Schütz. A trajetória fenomenológica entende que se faz necessária a construção de ciência que se preocupe com o mundo da existência vivida. Assim, o foco deve ser o sujeito da experiência, sendo o significado atribuído conforme sua perspectiva e como os fenômenos se mostram aos seus olhos. Logo, o pesquisador deverá focar o sujeito e seu contexto social(13). E é nesse contexto social, segundo Schütz, que o homem vive e se relaciona consigo mesmo, com os outros e com as coisas. De acordo com os relacionamentos, as experiências vividas e conhecimentos adquiridos, vão formando seu eu biográfico, que os diferencia dos outros, motivando-os em suas atitudes naturais(14).

As entrevistas foram realizadas após a obtenção de parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa, conforme Ofício nº465/2008-CEP-Botucatu. Os autores, adolescente e responsável, autorizaram a participação deste estudo, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido e respondendo à questão norteadora: como você se sente ao fazer este tratamento? Conte para mim. A entrevista foi gravada, transcrita na íntegra e, após, deletada.

A coleta de dados se deu na Unidade de Quimioterapia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp. As entrevistas foram feitas de forma individual, privativa e conduzidas segundo a abordagem fenomenológica, na qual o encontro com o outro acontece numa relação empática, podendo, assim, penetrar no mundo do outro e captar os aspectos subjetivos de sua maneira de vivenciar o mundo. Os dados foram colhidos de junho a setembro de 2009. Foram entrevistados sete adolescentes de 11 a 18 anos, que passaram ou estavam passando por tratamento quimioterápico; todos aqueles cadastrados no serviço até o momento. Com o intuito de preservar a identidade dos sujeitos, e de acordo com os princípios éticos, os adolescentes receberam codinomes de super-heróis.

A análise e interpretação dos dados seguiram os passos propostos por Parga Nina(15), onde, primeiramente, foi realizada leitura atenta dos depoimentos, enquanto material não estruturado, visando apreender os motivos relatados pelos sujeitos, e, na sequência, buscou-se identificar as categorias concretas que iam se apresentando, e, a seguir, procurou-se extrair trechos das falas que comportavam as ações dos adolescentes para, depois, buscar o típico da ação que havia nos depoimentos analisados.

Categoria concreta aqui não tem o sentido da lógica, definida a priori, mas, sim, daquela formulada pelo pesquisador a partir dos dados obtidos. Segundo Schütz, ela vai se dando sempre mediada pela situação biográfica do pesquisador. Finalmente, pode-se realizar a analise compreensiva desses temas, segundo as ideias de Alfred Schütz.

Resultados e discussão

O perfil dos adolescentes entrevistados, segundo a idade, o sexo, o tipo de câncer e a fase do tratamento em que se encontra está sintetizado na Figura 1.


Da análise atentiva dos depoimentos e da observância de suas convergências, emergiram quatro temas centrais: impacto da doença em sua vida, o desconforto do tratamento, estratégias de enfrentamento e projeção para o futuro sem a doença.

Segue diagrama demonstrativo (Figura 2), no qual se evidenciam, de forma sintética, os temas e as unidades de significados explicitados nas entrevistas.


Impacto da doença em sua vida

Ao refletir sobre o significado do tratamento, o adolescente também pensa sobre o impacto da doença em sua vida e quanto esse causa mudanças em seu modo de ser. Se antes se sentia "onipotente", agora teme por sua vida, restringindo seu cotidiano, deixando de praticar atividades rotineiras.

[...] deixei de praticar algumas coisas, handball [...]. Fazia boxe, parei de dançar [...] (Wolverine).

A quimioterapia é tratamento que contribui para a alteração da dinâmica social, influindo diretamente em seu estilo de vida. Além de modificar a rotina, percebe-se a inclusão do hospital no seu mundo, passando a fazer parte de sua vida. Esse impacto também foi relatado por outros autores(6,9).

Logo que descobri (a doença), já comecei a fazer tudo, daí o hospital começou a fazer parte da minha vida, [...]. Eu vinha todo dia (Thor).

Nesse cotidiano, as pessoas se direcionam, significam as coisas, comunicam-se, sofrem, têm alegrias, se relacionam, enfim, sempre pautadas em suas biografias. As experiências vividas permitem e direcionam seus motivos diante da vida(14). Devido ao impacto da doença, o adolescente se vê desvinculado de suas atividades anteriores e entregue a um novo mundo, agora, voltado à sua saúde.

Outra dimensão desse impacto é a relação câncer x morte e o medo do adolescente frente a essa dicotomia. O câncer pode ser associado à sentença de morte, além de o tratamento ser difícil, a doença é vista, por muitos, como impossível de ser curada(12,16). Assim, o adolescente se depara com uma situação complicada, onde a morte emerge como possibilidade. No entanto, essa temática ainda surge de forma sutil, velada.

[...] no começo eu pensei que fosse morrer [...] (Batman).

O adolescente se recolhe, afasta-se das pessoas com quem convivia, tem receio de sair de casa, levado pelo medo de que sua condição piore. Também é expresso nos discursos a vivência da dificuldade do diagnóstico.

Fiquei com medo de sair de casa [...], medo de pegar mais alguma coisa, de ficar doente. Daí eu fiquei trancado dentro de casa (Superman).

Começou como uma dor de torcicolo e foi aparecendo mais caroços no pescoço, daí esses caroços vinham, diminuíam e sumiam, daí quando tinha um foi feito punção, daí não deu nada, e depois foi feito a biópsia, internei e foi feito a biópsia e daí veio o resultado que era linfoma de Hodgkin (Batman).

Os adolescentes demonstram, em suas falas, o processo pelo qual passaram até chegar ao diagnóstico da doença. Lembrando que o atraso desse é fator importante no prognóstico do paciente, podendo, assim, encontrar a doença mais avançada.

Mas antes disso (da doença), me falaram que era sinusite daí eu comecei a tomar o remédio, mas não fazia nada (Superman).

Para Schütz, o homem está situado biograficamente no mundo vida, ou seja, sobre o qual e no qual ele deve agir. Dessa forma, possui conhecimento do seu mundo, expressão das experiências e dos conhecimentos outros adquiridos durante sua vida. Sua bagagem de conhecimentos disponíveis funciona como esquema de referência para toda interpretação(14). Dessa forma, ao passar por um momento peculiar de vida, o adolescente sente-se apreensivo, com medo do futuro, uma vez que o incerto não lhe permite estabelecer um esquema de referência seguro. Essa angústia é explicitada quando o diagnóstico é encontrado.

O câncer é visto pela sociedade como doença que vai destruindo o ser por dentro, de modo que os pacientes acometidos, por vezes, podem ser marginalizados pela sociedade(17). O câncer é tratado com mistificação pela população, traz consigo o preconceito. O senso comum sobressai ao que é elaborado e aquilo que é descrito sobre a doença, por especialistas.

[...] pra quem vê assim de fora, ninguém sabe o que é direito, tem pessoas que têm preconceito né, que olha meio de lado assim e fica pensando poxa aquela menina tem alguma coisa (Blade).

[...] eu não brincava porque a professora tinha medo que eu caísse (He-man).

A ignorância do outro frente ao câncer faz com que o adolescente se revolte, de maneira sutil, principalmente quando enquadrado na situação de doente. Lembrando que o seu mundo social se baseia num compartilhamento da vida com o outro, sendo assim, o ambiente é vivido por todos e um ser influencia na vida do outro.

[...] os outros me tratavam como doente, [...] o pessoal, se eu tava em pé alguém levantava pra eu sentar [...] (Wolverine).

Na minha cidade, foi meio difícil porque todo mundo ficava, ah ela tá careca, ela vai morrer [...] sempre tinha alguém falando assim (Blade).

Tal situação é percebida e expressa pelos adolescentes como incômoda. Revelam se sentirem diferentes dos demais, experienciam sentimento de isolamento. Com o passar do tempo e apropriação do tratamento. os adolescentes vão encontrando motivação para desmistificar conceitos pré-estabelecidos socialmente. Esse sentimento de incômodo e preconceito também foi descrito por outros autores(9,18).

O desconforto do tratamento

Os efeitos colaterais do tratamento são considerados difíceis pela maioria dos pacientes. Porém, também trazem consigo a esperança de cura. A primeira sessão de quimioterapia é considerada pelo adolescente como a mais agressiva para o organismo.

Na primeira químio, eu achei que fosse morrer, eu tava debilitada da cirurgia [...], emagreci 15kg daí eu tava muito fraca, passei muito malna primeira (Wolverine).

No começo, foi difícil, eu fiquei abalada [...] (Flash).

Os efeitos da quimioterapia são diversos, alguns atrelados à vida cotidiana do paciente e outros à alteração da sua imagem. As náuseas e os vômitos são os mais percebidos e, muitas vezes, trazem prejuízos metabólicos e psicológicos(7,11).

Comecei a quimioterapia, foi difícil, eu sentia muito mal, doía muito o corpo, as costas (Superman).

Outro aspecto que é modificado com o tratamento é a aparência. A mudança no corpo mais marcante para o adolescente é a alopecia, que está atrelada à sua autoestima(3). Os adolescentes, com a mudança da aparência, sentem-se fora dos "padrões de normalidade". A percepção do preconceito do outro incomoda e pode acarretar danos emocionais(18).

Depois de 2 semanas, começou a cair cabelo, daí meu pai teve que raspar de qualquer jeito. No começo, eu usava boininhas, mas agora nem uso mais, nem ligo mais (Blade).

[...] o cabelo foi a situação mais difícil, nem tanto de vaidade, mas o que as pessoas iam pensar [...] (Batman).

Com a mudança de aparência, após o período de autoaceitação, o jovem aprende a valorizar outros predicados que possam compensar a alopecia, caracterizando essa fase como transitória. O tratamento se mostra ao paciente como marco que separa os acontecimentos em antes e depois da doença(3). O jovem demarca o período da doença, sabe há quanto tempo está se tratando e tira proveito dele fundamentando seus conhecimentos sobre a enfermidade.

[...] depois de uns 3, 4 meses de químio. [...] já daí eu terminei faz 8 meses (He-man).

Ah, faz um ano e sete meses que estou fazendo o tratamento (Wolverine).

O adolescente verbaliza acompanhar o seu estado de saúde/doença. O tempo todo vai exercendo reflexão ampla sobre as dificuldades e as facilidades do tratamento: "Onde está? O que já passou e o que está por vir?". Sempre norteado pelos motivos que compõem o seu eu biográfico(14). Por meio de sua vivência com o tratamento, o jovem percebe que, inicialmente, é bem difícil, mas com o decorrer do tempo torna-se mais ameno. O jovem se familiariza com a rotina, com o tratamento e, então, se prepara psicologicamente(6).

[...] tem gente que faz e acha que é meio difícil no começo e tal, mas é normal, às vezes passa mal, às vezes não, mas no começo sempre é meio difícil, né, o organismo reage e tal, mas depois é [..] acostuma (Blade).

[...] tá sendo difícil (o tratamento) porque eu tô acamada, mas agora melhorou, porque já acostumei com os medicamentos e vai ficando bom (Batman).

A familiarização, para Schütz, se dá pelos relacionamentos com contemporâneos, a partir das experiências indiretas ou diretas e imediatas, do tipo face a face(13). Essa familiarização com o tratamento faz com que o indivíduo adquira e sedimente as experiências ao longo de sua trajetória, facilitando a compreensão.

Estratégias de enfrentamento

O apoio da família é apontado como fundamental nesse enfrentamento. O papel da família parece ser permanecer junto ao adolescente, tentando aliviar o presente, auxiliando-o no enfrentamento desse momento tão peculiar(3). O olhar de todas as pessoas próximas se volta para o doente, os irmãos compartilham desse momento.

[...] em casa minha mãe sempre ficava comigo, minha família tava sempre presente [...] (Thor).

Na família, assim eu sou o caçula, tenho mais seis irmãos - e nossa!- fui muito mimado (Superman).

A comunicação efetiva desempenha papel importante na compreensão do outro e na interação social, e experimenta-se o mundo em graus de maior ou menor familiaridade, intensidade, intimidade e mesmo anonimato(13). A família é percebida no seu "papel social" como apoio fundamental perante uma doença de cunho desgastante, o que a coloca como fonte de sustentação e estímulo para o adoecido. Também, os amigos exercem seu apoio ao jovem adoecido no cotidiano, tratam-no da mesma forma que antes e, além disso, apoiam-no nesse caminhar.

Na minha vida fora, eu tive que trancar a matrícula da faculdade, mas, com os amigos, normal, eles me tratam do mesmo jeito, tenho apoio do meu namorado (Batmam).

É em período conturbado como esse que o jovem consegue ver quem, realmente, está de seu lado. Geralmente, pessoas com vínculo não próximo ao jovem demonstram apoio e solidariedade nesse momento(19).

Assim, quanto às pessoas, aos amigos, sei lá, bastante gente assim que você não esperava, tava mais presente, ficou mais presente, eles me ajudaram bastante (Thor).

O mundo da escola, também, é o local em que se tem maiores relacionamentos, e esses se fazem presente no período do adoecimento do adolescente, estimulando-o a não desistir.

Na escola, foi legal também porque no final do ano, quando eu comecei a fazer o tratamento, todo mundo da minha sala mandou carta, falando que não era pra eu desistir e tal, achei meio legal (Blade).

No decorrer do tratamento, o adolescente cria vínculo com a equipe que dele cuida, incentivado na vida cotidiana e no tratamento, e esse vínculo faz com que o jovem acredite nos profissionais, tenha confiança neles. Mas, além disso, cria-se relação afetiva.

Aqui todo mundo é ótimo, médico, enfermeiro, sempre quando a gente precisou, eles tavam aqui (Thor).

A relação com o profissional se dá face a face, o que possibilita troca de experiências, fazendo com que haja verbalização de medos, angústias, frustrações ou sonhos. Nesse contexto, o profissional pode amenizar o desconforto do paciente.

Ah, quanto aos médicos e enfermeiros, assim são todos muito bons, foi tudo legal assim, muita gente assim próxima sabe, vê a gente como pessoa assim [...] (Wolverine).

Para cuidar de jovens adoecidos, é fundamental que se construa vínculo, que se utilize a empatia, e, também, se colocar no lugar deles(19-20). Além do envolvimento empático, o que é visto nas falas dos pacientes é que há compaixão de quem cuida para o ser cuidado, porém, não se deve tratá-lo como doente, mas compartilhar o sofrimento, presente em determinado momento, e cuidar integralmente dele, para englobá-lo numa esfera biopsicossocial(20-21).

Aqui na químio, não tem do que reclamar; as pessoas daqui se colocam no lugar da gente e acabam vendo as nossas necessidades e trata a gente bem (Batman).

O cuidado prestado pelos profissionais, durante a sessão de quimioterapia, se torna diferenciado, desejado pelos pacientes que ali estão. Há troca de experiências nas relações vividas, troca de afetos. Essa relação de afetividade foi descrita em estudo anterior(22).

A religião é a outra vertente de apoio ao jovem, no processo saúde/doença. A crença existe, ultrapassa as barreiras físicas, demonstrando que há confiança em um ser superior. Nas falas a seguir, fica explícito o pensamento do adolescente de que nada na vida acontece por acaso, que tudo tem um propósito, e isso, para eles, envolve Deus.

Confiei em Deus (Superman).

[...] foi Deus que me deu muita força [...] por isso que fiquei tão calma Ele me ajudou (Wolverine).

Os adolescentes revelam que Deus dá a confiança fundamental para que tenham esperança para continuar lutando e se verem livre da doença.

Projeção para o futuro sem a doença

Diante das novas situações, o adolescente vai interpretando o mundo, sedimentando conhecimentos, motivando-se, direcionando suas ações e se projetando para o futuro(13). É comum o afastamento das atividades durante o período do tratamento, pois o adolescente, na maioria das vezes, apresenta efeitos colaterais e tem sessões seguidas de tratamento(23). Os adolescentes têm motivações para continuar as atividades anteriores, e, muitas vezes, conseguem essa força na esperança trazida ao longo do tratamento e assim vão retomando suas rotinas(24). Eles falam com entusiasmo sobre as atividades que voltaram a desenvolver como os outros e buscam o que deixaram para trás com o episódio do tratamento.

Agora eu vou na escola, me divirto e brinco bastante no recreio e levo uma vida normal (He-man).

Agora já voltei a fazer karatê, tô pra pegar a faixa preta já. E na escola, tô no 1o colegial. Penso em fazer faculdade, tudo, quero fazer medicina (Flash).

Os jovens se mostram apressados como se não quisessem perder mais tempo em suas vidas. A reinserção deles nas atividades se torna fundamental para a continuação do seu desenvolvimento cognitivo, de suas relações humanas(23). Pela convivência instalada entre o adolescente e os outros, há a superação do medo e o tratamento se torna menos assustador. Os adolescentes tornam-se seres resilientes, apresentando adaptação positiva dentro de contexto de adversidade e se tornam capazes de recuperar seu padrão funcional normal(25).

No começo, pensei que fosse morrer, agora que tá chegando ao final, creio que tudo passou (Batman).

Ao longo da jornada, o jovem vai se apropriando do tratamento e diferenciando o que acontecia no começo e o que ele vive ao seu término.

[...] não tô nem aí, não, eu não preciso saber o que os outros pensam, o que eu penso é o que importa [...]. Então o tratamento é difícil no começo, mas tem que pensar que é pra você ficar boa, pra sarar (Blade).

Assim, o tempo é o que leva o jovem a absorver a situação difícil pela qual passa e que a desmistifica de acordo com o caminhar. Eles olham para o futuro com otimismo, acreditam que a doença foi vencida e poderão retomar sua vida cotidiana como antes.

Vou ver se faço cursinho, tentar arquitetura ou engenharia civil (Wolverine).

O adolescente refere-se à doença, e que essa não o impede de pensar no futuro, realizar seus sonhos e retomar atividades interrompidas. Ao se vir sem a doença, se lança para o futuro. Revelam, em seus depoimentos, crescimento pessoal. O processo de adoecer e de se deparar com uma situação complexa pode fazer com que o jovem mude, de modo que a doença possa ser entendida como sinal de alerta para melhor aproveitamento da vida, o sofrimento pode ajudar o indivíduo a se redescobrir(16). Além disso, o crescimento pessoal passa a ser ímpar nessa fase, pois o adolescente passa a valorizar mais sua vida, dando importância agora às pequenas coisas.

Ter câncer é uma experiência inexplicável, eu amadureci bastante; tenho outra visão de tudo. (Thor).

Eu era meio criançona, agora já dá pra pensar de outro jeito (Flash).

As escolhas são feitas por meio de processos, de etapas. A cada nível existem alternativas menores a serem consideradas, escolhidas ou rejeitadas. Algumas decisões, às vezes, levam de volta às primeiras etapas, solicitando reflexões e decisões(13). Ao longo da jornada do tratamento, o jovem passa por diversas situações, algumas que o favorecem e outras, não; assim, nesse caminho, ele vai amadurecendo e supera a situação de adversidade.

Considerações finais

A fala dos adolescentes revelou que a experiência com o tratamento quimioterápico afeta as várias possibilidades do ser-no-mundo-com-os-outros. Ao refletir sobre o tratamento quimioterápico, o adolescente expressa, também, sua condição de estar com câncer e quanto a doença impacta sua existência. Enfrenta o tratamento, o qual lhe traz desconfortos físicos em seus efeitos colaterais, tais como queda do cabelo, supressão da medula óssea, dores corporais, mas, também, é ele que lhe traz a possibilidade da cura. Por meio do câncer e do tratamento se faz presente a associação mental entre a doença e possibilidade de morte, bem como o medo frente a essa dicotomia apresentada. Outro aspecto observado foi, no decorrer do tratamento, a apropriação de seus efeitos adversos, familiaridade com as pessoas, com as coisas e consigo mesmo, nessa nova situação de vida, que torna o tratamento menos assustador, possibilitando a superação de preconceitos e modificações em seus medos e modo de enfrentamento, demonstrando uma tipicidade de ação.

A relação que se instala, entre o adolescente e equipe, vai além do científico. O adolescente nomina o profissional que dele cuida, dá-lhe identidade, e, nessa relação interpessoal que se instala, durante o processo de cuidado, o exigido do profissional é a possibilidade de ida ao outro, de estar-com-ele de forma segura, com domínio do conhecimento científico e, também, com afeto. Para o adolescente, o cuidar efetivo passa por questões de natureza humana, afetiva, religiosa e ética. Nessa perspectiva, novos horizontes se abriram com respeito a importantes pontos relacionados ao cuidado com esse ser, em situação de fragilidade.

Em suas falas, desvelam o enfrentamento da doença com vivacidade, apresentam estratégias de enfrentamento, buscam apoio em um tripé: família, equipe e religião. Reconhecem os momentos difíceis, se deparam com situações de morte, mas não se deixam entregar, retomam as atividades e têm boas perspectivas para o futuro sem a doença.

Enfim, identificar os sentimentos dos adolescentes, acerca do tratamento quimioterápico, conhecer o mundo vida desses indivíduos possibilita aos profissionais que deles cuidam elaborarem e direcionarem suas ações com mais adequação na prática profissional.

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  • Corresponding Author:
    Regina Célia Popim
    Universidade Estadual Paulista Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
    Faculdade de Medicina de Botucatu
    Departamento de Enfermagem
    Rua Dr. Ranimiro Lotufo, 299
    Vila Sônia
    CEP: 18607-050 Botucatu, SP, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Supported by Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), process # 08/57666-2.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Jul 2010
    • Aceito
      04 Abr 2011
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