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Compulsão à repetição e regressão à dependência em Winnicott

Compulsión a la repetición y regresión a la dependencia en Winnicott

Compulsion de répétition et régression à la dépendance chez Winnicott

Compulsion to repeat and regression to dependence in Winnicott

Resumos

Neste artigo pretendo fazer uma análise da alternativa que Winnicott dá à compreensão do fenômeno clínico caracterizado por Freud como sendo o da compulsão à repetição. Defende-se que Winnicott substituiu a questão da repetição pela questão da regressão à dependência na situação analítica, o que colocaria o eu do paciente numa situação em que ele pode se desfazer de suas defesas, retornando a uma situação anterior ao trauma e à edificação de defesas.

Repetição; regressão; dependência; integração


El propósito de este artículo es analizar la visión de Winnicott del fenómeno clínico considerado por Freud como compulsión a la repetición. Sostenemos que Winnicott substituyó la noción de compulsión a la repetición por la regresión a la dependencia en la situación analítica, lo que colocaría el yo del paciente en una situación que le permite deshacerse de sus defensas, volviendo a una situación anterior al trauma y a la edificación de sus defensas.

Repetición; regresión; dependencia; integración


Le but de cet article est d'analyser la perspective de Winnicott sur la compréhension du phénomène clinique vu par Freud comme la contrainte à la répétition. Nous soutenons que Winnicott a remplacé la question de la contrainte à la répétition par celle de la régression à la dépendance dans la situation analytique. Le moi du patient se trouverait donc dans une situation où il peut se défaire de ses défenses, retournant ainsi à une situation précédant le trauma et l'édification des défenses.

Répétition; régression; dépendance; intégration


The purpose of this article is to analyze Winnicott's perspective on the understanding of the clinical phenomenon that Freud referred to as the compulsion to repeat. We sustain that Winnicott replaced this notion with that of regression to dependence in the analytical situation. This puts a patient's self in a situation that leads him to discard his defenses and return to a situation that existed prior to that of the trauma and to that of the construction of his defenses.

Repetition; regression; dependence; integration


ARTIGOS

Compulsão à repetição e regressão à dependência em Winnicott* * Este artigo se insere na linha de pesquisa em desenvolvimento no Centro Winnicott de São Paulo ( www.centrowinnicott.com.br).

Compulsion to repeat and regression to dependence in Winnicott

Compulsion de répétition et régression à la dépendance chez Winnicott

Compulsión a la repetición y regresión a la dependencia en Winnicott

Leopoldo Fulgencio

RESUMO

Neste artigo pretendo fazer uma análise da alternativa que Winnicott dá à compreensão do fenômeno clínico caracterizado por Freud como sendo o da compulsão à repetição. Defende-se que Winnicott substituiu a questão da repetição pela questão da regressão à dependência na situação analítica, o que colocaria o eu do paciente numa situação em que ele pode se desfazer de suas defesas, retornando a uma situação anterior ao trauma e à edificação de defesas.

Palavras-chave: Repetição, regressão, dependência, integração

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze Winnicott's perspective on the understanding of the clinical phenomenon that Freud referred to as the compulsion to repeat. We sustain that Winnicott replaced this notion with that of regression to dependence in the analytical situation. This puts a patient's self in a situation that leads him to discard his defenses and return to a situation that existed prior to that of the trauma and to that of the construction of his defenses.

Key words: Repetition, regression, dependence, integration

RESUMÉ

Le but de cet article est d'analyser la perspective de Winnicott sur la compréhension du phénomène clinique vu par Freud comme la contrainte à la répétition. Nous soutenons que Winnicott a remplacé la question de la contrainte à la répétition par celle de la régression à la dépendance dans la situation analytique. Le moi du patient se trouverait donc dans une situation où il peut se défaire de ses défenses, retournant ainsi à une situation précédant le trauma et l'édification des défenses.

Mots clés: Répétition, régression, dépendance, intégration

RESUMEN

El propósito de este artículo es analizar la visión de Winnicott del fenómeno clínico considerado por Freud como compulsión a la repetición. Sostenemos que Winnicott substituyó la noción de compulsión a la repetición por la regresión a la dependencia en la situación analítica, lo que colocaría el yo del paciente en una situación que le permite deshacerse de sus defensas, volviendo a una situación anterior al trauma y a la edificación de sus defensas.

Palabras clave: Repetición, regresión, dependencia, integración

Considerando que Freud descreveu alguns comportamentos repetitivos como impulsionados por uma compulsão à repetição, associando a esta compulsão a ideia metapsicológica de uma pulsão de morte, e que Winnicott rejeitou a teorização especulativa (cf. Fulgencio, 2007), avaliando a pulsão de morte como um erro de Freud (Winnicott, 1987b, p. 42)1 1 . Estarei citando Winnicott a partir da classificação feita por Knud Hjulmand (2007), considerando que a publicação das obras completas de Winnicott seguirão este padrão (cf. Abram, 2008). e um conceito a ser abandonado (Winnicott, 1989xa, p. 242), poder-se-ia perguntar como Winnicott compreenderia2 2 . O uso dos termos explicação e compreensão correspondem a uma escolha epistemológica. George Henrik Von Wright (1971), em seu livro Explanation and Understanding, faz uma distinção entre a procura de explicações - referindo-se à procura de relações causais para explicar os movimentos (por exemplo, as explicações de causas que levam uma máquina a funcionar de tal e tal maneira, numa sequência finita e sem lacunas de relações de determinação entre suas partes) - e de compreensões - referindo-se à procura dos sentidos, intenções, que estariam colocados como estado na gênese dos movimentos (por exemplo, no que se refere às ações humanas ou do ser vivo como movidas por sentidos ou intenções, e não como uma sequência de causas e efeitos do tipo mecânico ou dinâmico). estes comportamentos explicados por Freud sem o auxílio do conceito de Pulsão de Morte?

1. O protótipo da situação de repetição para Freud

Freud (1920) toma a situação na qual uma criança repete uma brincadeira com um carretel (fazendo-o desaparecer e aparecer, a seu comando, no seu campo de visão), como um protótipo da atividade do brincar, mas também como um modelo para explicar a repetição de uma situação traumática (a mãe desaparece) vivida passivamente, numa encenação desta mesma situação agora experimentada sob seu controle, de forma ativa e não mais passiva (p. 284-285).3 3 . Estarei citando Freud a partir da classificação feita por James Strachey na Standard Edition. Ao comentar sobre o que ocorre com os neuróticos de guerra, com os pesadelos que se repetem, ao "destino demoníaco" (que leva alguns indivíduos a repetirem inúmeras vezes o mesmo tipo de sofrimento), ele também considera que, em todos os casos, trata-se de uma repetição de situações traumáticas, mais ou menos explícitas, que visam livrar a pessoa de uma situação que permanece como uma excitação não descarregada no interior do aparelho psíquico.

A "compulsão à repetição" seria a expressão metapsicológica de uma tendência para um retorno à situação traumática, ela mesma, visando uma descarga de excitação não ocorrida.

2. Referências para compreensão winnicottiana da "compulsão à repetição"

Ao caracterizar como funcionaria o tratamento psicanalítico, Winnicott (1945h) diz:

No exemplo mais simples possível, uma pessoa que está sendo analisada consegue corrigir uma experiência passada, ou uma experiência imaginária, ao revivê-la em condições simplificadas nas quais a dor pode ser tolerada porque está distribuída ao longo de um período de tempo; tomada, por assim dizer, em pequenas doses, num meio ambiente emocional controlado. (p. 36)

Ele considera que o tratamento consiste em dar condições para que o paciente possa cuidar do seu passado traumático, retomando uma coisa de cada vez (cf. Winnicott, 1958f, p. 275). O objetivo a ser alcançado é o amadurecimento da pessoa, amadurecimento que, na saúde, significa um estado de independência relativa, de possibilidade de adaptação ao mundo exterior sem perda demasiada da espontaneidade: "O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida, responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de atribuírem a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso" (Winnicott, 1971f, p. 30). É com este telos em mente que poderemos entender como Winnicott soluciona o problema da repetição sem hipotetizar uma compulsão à repetição (construção auxiliar de natureza metapsicológica).

As únicas duas vezes em que Winnicott usa a expressão "compulsão à repetição" correspondem a comentários laterais, que não a tomam como um operador teórico significativo, remetendo este tipo de dinâmica de funcionamento psicoafetivo muito mais à questão da necessidade de regressão do que à expressão da "pulsão de morte".

Em 1955, no seu "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico", Winnicott (1955d) diz:

Um exemplo simples seria o do menino cuja primeira infância havia sido normal, e ao qual foi aplicado um enema por ocasião de sua tonsilectomia, inicialmente por sua mãe e depois por um grupo de enfermeiras que tinham que segurá-lo à força. Tinha então dois anos de idade. Posteriormente teve problemas intestinais, e aos nove anos (idade da consulta) aparece com um caso grave de constipação. Entrementes, havia ocorrido uma séria interferência em seu desenvolvimento emocional no âmbito das fantasias genitais. Neste caso aconteceu uma complicação, pois o menino reagiu ao enema como se este fosse uma vingança da sua mãe por sua homossexualidade, acabando por ser reprimida a homossexualidade e junto com ela o potencial de erotismo anal. Na análise desse menino poder-se-ia esperar que ocorressem atuações com as quais seria necessário lidar, uma compulsão à repetição associada ao trauma original. Está claro também que as mudanças no menino não acompanharão a simples reencenação do trauma, mas sim a interpretação do complexo de Édipo comum dentro da neurose de transferência. (p. 379)

Trata-se, aqui, de uma criança já amadurecida a ponto de ter um eu integrado que pode estabelecer relações interpessoais no quadro do cenário edípico. Pode-se esperar que, para Winnicott, no tratamento deste menino podem ocorrer atuações impulsionadas pela necessidade de retomar o trauma original, não apenas para reencená-lo, repetindo a cena traumática, mas para reviver estas relações traumáticas de outro modo, que não traumático, que não leve à construção das defesas tal como ocorreu no passado. A isto Winnicott caracterizou como "interpretação do complexo de Édipo, comum dentro da neurose de transferência". A maneira de reinterpretar (experienciar) o complexo de Édipo na relação analítica pode, então, estar acompanhada das atuações deste menino, mas o objetivo não é explicitado metapsicologicamente como tendência para descarregar uma tensão, e sim como uma necessidade de recolocar-se nas relações interpessoais ou, dizendo de outra maneira, trata-se da necessidade de interpretar o passado integrando-o na história do paciente, tornando, então, o passado efetivamente em passado.

Em 1951, na sua resenha sobre o livro de Fairbairn, Psychoanalytic Studies of the Psychoanalysis, escrita em parceria com Masud Khan, Winnicott (1953i) se refere à compulsão à repetição como uma necessidade do paciente de retomar a situação penosa em condições de poder integrá-la na sua área de controle:

É possível obter algo do trabalho de Fairbain sobre os sonhos, considerando o relacionamento de seu conceito de introjeção do objeto mau ao trabalho de Freud sobre a compulsão à repetição. Se o objeto mau introjetado (a fim de ser coagido ou controlado) constitui uma experiência penosa, isto é, algo percebido, mas não tolerado, então a experiência introjetada repetidamente clama por atenção e dá origem a um tipo específico de sonho. O conceito de compulsão à repetição nos faz atravessar período que precisamos para a compreensão de que, para chegar atrás da compulsão à repetição, o paciente tem de redescobrir a situação penosa externa tal como foi originalmente percebida, embora na ocasião não pudesse ser tolerada como um fenômeno situado fora do controle onipotente. (p. 318)

É fundamental salientar que Winnicott, nessa resenha, está criticando Fairbain porque este último não considerou adequadamente a imaturidade do bebê, que não teria a possibilidade de relacionar-se com objetos bons ou maus, o que só seria possível, para Winnicott, se cuidados suficientemente bons tivessem sido dados na primeira infância, levando a criança à maturidade que caracteriza a integração da pessoa como uma unidade e a possibilidade de estabelecer relacionamentos também com pessoas inteiras (cf. Winnicott, 1953i, p. 318). Esse autor avalia que a situação à qual Fairbairn está se referindo é a situação inicial na qual há um bebê que não pode, ainda, diferenciar entre si mesmo e os objetos (p. 320). É por isso que ele diz ser necessário ir para trás do período em que pensamos em pessoas inteiras. É a compreensão deste período que nos possibilitará entender o que ele quer dizer com colocar a situação penosa dentro do controle onipotente.

Para saber o que Winnicott entende por "fora e dentro do controle onipotente" é necessário explicar: 1) o que ele considera como sendo a situação de ilusão de onipotência vivida no período mais primitivo do amadurecimento, caracterizada também como sendo a fase da dependência absoluta ou da primeira mamada teórica; e 2) a questão da maturidade pessoal (afetiva e cognitiva) necessária para que os acontecimentos vividos possam ser efetivamente experienciados (registrados, diferenciados, catalogados, relacionados e colocados em conexão com outros elementos vivenciados pelo self), em cada uma das idades ou maturidades.

Winnicott, reconhecendo a profunda imaturidade do bebê, diz que no início não há lugar para uma realidade não self (1988, cap. IV, cap. V), do que decorre que, do ponto de vista do bebê, é ele que cria aquilo que atende às suas necessidades, ainda que faça parte desta imaturidade não saber exatamente o que se quer ou se precisa. Winnicott diz: "Não se pode dizer que o bebê saiba, de saída, o que deve ser criado" (1955c, p. 27). O bebê, então, procura algo em algum lugar, a partir de suas necessidades. Neste momento inicial o bebê "está preparado para encontrar algo em algum lugar, mas sem saber o quê" (1988, p. 120), devido à sua imaturidade. Winnicott diz que nesta situação inicial "o bebê está pronto para criar, e a mãe torna possível para o bebê ter a ilusão de que o seio, e aquilo que o seio significa, foram criados pelo impulso originado na necessidade" (p. 121).

Do ponto de vista do observador o mundo é oferecido ao bebê, mas do ponto de vista do bebê o mundo é criado (cf. Winnicott, 1988, p. 131). A adaptação ambiental fornecerá a ilusão de que de suas necessidades decorre - como uma consequência que nem mesmo precisa de uma ação específica do bebê - o surgimento de um objeto adequado para satisfazê-las (Winnicott, 1953c, p. 12).

Para o bebê, os objetos advêm diretamente de suas necessidades, como se delas fossem criados, ainda que do ponto de vista do observador uma miríade de adaptações do ambiente esteja em jogo. Do seu ponto de vista, o bebê mama em si mesmo: "Psicologicamente, o bebê recebe de um seio que faz parte dele" (p. 27).

Winnicott (1988) sabe que há uma divergência entre o que foi criado e o que foi oferecido, mas, do ponto de vista do bebê, isto não tem importância: "Obviamente, na condição de filósofos sofisticados, sabemos que aquilo que o bebê criou não foi aquilo que a mãe forneceu, mas a mãe, por sua adaptação extremamente delicada às necessidades (emocionais) do bebê, está em condições de permitir que ele tenha esta ilusão" (p. 121).

É a esta situação, na qual os objetos surgem como decorrência das necessidades do bebê - sem que ele tenha nem mesmo que fazer a ação (sentida como uma ação como tal) de criar os objetos -, que Winnicott caracteriza como sendo uma experiência de ilusão de onipotência.

Tudo o que ocorresse nesta fase, fora desse quadro adaptativo do ambiente "suficientemente bom" (ou seja, do ambiente que realiza esta comunicação e a apresentação adequada de objetos às necessidades do bebê, num espaço de tempo que não decepciona o bebê na sua procura), estaria fora do controle onipotente do bebê, destruindo sua ilusão de onipotência e obrigando a reagir.

É justamente esta ilusão que fornece a base para que a realidade externa possa ser reconhecida e aceita como tal: "O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência de um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a onipotência inicial transformada em fato pela técnica adaptativa da mãe" (1988, p. 126). Certamente, quando ele diz que um paciente precisa voltar a uma área de controle onipotente, é em relação a esta área da ilusão de onipotência que ele está se referindo.

Na continuidade do processo de amadurecimento, sustentado pelo ambiente, esta experiência de onipotência deixa de ser o padrão de relação com a realidade, ou seja, desta realidade totalmente subjetiva do início, o bebê, na saúde, passa a relacionar-se com uma realidade transicional (a dos fenômenos e objetos transicionais) em direção à integração que permite o reconhecimento de uma realidade não Eu objetivamente dada. A onipotência é perdida ou destruída, mas a ilusão de relacionar-se com um mundo que diz respeito a ele, um mundo que ele pode operar a partir dele mesmo, permanece (1988, p. 131). Na saúde, esta área da ilusão, área dos fenômenos subjetivos, pode ser sobreposta à área objetiva da realidade externa, pode ser vivida em conjunção com a realidade criada-encontrada dos fenômenos transicionais. É justamente porque o indivíduo teve a experiência de onipotência (cujas conquistas dizem respeito à temporalização, espacialização, alojamento da psique no corpo, origem da constituição do si-mesmo, desenvolvimento da capacidade de ter fé, sentimento de ser real, de confiança no mundo etc.) que ele teria conquistado uma capacidade inicial para começar a lidar com uma realidade não self.

Com o desenvolvimento e amadurecimento do bebê e/ou da criança também surgem outras conquistas, as quais dependerão certamente da sustentação ambiental. A integração contínua implica em aumento nas capacidades de lidar com os diversos tipos de realidade (a subjetiva, a transicional e a objetivamente dada), o que também implica dizer que em cada ponto deste processo há também limites na capacidade de lidar com o mundo. Da mesma maneira que nós, adultos, temos limites, por exemplo, na nossa capacidade imaginativa (tentem imaginar objetivamente 1.932.437,8 bolas de bilhar), o bebê e/ou a criança também os teria.

Quando alguma coisa ocorre para além desta capacidade, o que certamente dependerá de cada pessoa em cada momento e em cada ambiente específico, então teríamos uma quebra na continuidade do ser; teríamos um acontecimento que interrompe o processo de amadurecimento. Certamente isto tem consequências díspares se tal fato ocorre no início do processo ou mais para frente no processo de amadurecimento.

Consideremos uma falha do ambiente num momento precoce do amadurecimento: algo acontece, mas não existe a capacidade, por falta de sustentação ambiental ou por imaturidade, deste vivido ser abarcado pela pessoa. Este tipo de acontecimento, onde algo foi vivido, mas não foi experienciado, é comentado por Winnicott (1974) no artigo "Fear of Breakdown":

Segundo minha experiência, existem momentos em que se precisa dizer a um paciente que o colapso, do qual o medo destrói-lhe a vida, já aconteceu. Trata-se de um fato que se carrega consigo, escondido no inconsciente. [...] Neste contexto especial, o inconsciente quer dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área da onipotência pessoal. (p. 73)

Nestas condições, o que foi vivido não foi experienciado, ficando, por assim dizer, "guardado" ou "congelado", à espera de melhores condições ambientais e pessoais para ser, então, de fato experienciado e, assim, integrado à personalidade. Winnicott (1974) diz, nestes casos, que algo do passado não foi vivido e o paciente procura este não vivido no seu presente e no seu futuro: "Em outras palavras, o paciente tem de continuar procurando o detalhe passado que ainda não foi experienciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro" (p. 73). Este tipo de procura pode ser confundido com uma "compulsão à repetição", mas não é a repetição da situação traumática que está em jogo, e sim a regressão necessária para que uma experiência possa ser vivida e, então, integrada na história de vida do paciente.

Para fornecer um conteúdo mais intuitivo a tal fato, em que algo ocorreu mas não foi experienciado, Winnicott (1989vl) faz uma analogia com o que ocorre com o bulbo e a flor à qual dará origem:

Tentando encontrar uma analogia, vi um bulbo de jacinto a ser plantado em uma tigela. Pensei: há um odor maravilhoso trancado naquele bulbo, embora soubesse, naturalmente, não existir um lugar no bulbo em que o odor se ache trancado. A dissecação do bulbo não proporcionaria a quem a fizesse, a experiência de uma fragrância de jacinto, se o lugar apropriado estivesse por ser alcançado. Apesar disso, existe no bulbo um potencial que acabará se tornando um perfume característico, quando a flor se abrir. Isto não passa de uma analogia, mas poderia transmitir um retrato do que estou tentando enunciar. (p. 99-100)

O descongelamento da situação da falha ambiental corresponde ao descongelamento das defesas e o retorno a uma fase anterior à da falha, para que, então, o amadurecimento possa ser retomado (Winnicott, 1988, p. 141).

3. Repetição e regressão para Winnicott

Neste quadro amplo que caracteriza a saúde, bem como a diferença entre a neurose e a psicose, caberia perguntar: de que tipo é a experiência traumática a ser retomada? Que tipo de defesas estão disponíveis para lidar com as situações traumáticas em quais momentos do amadurecimento? Grosso modo, devemos distinguir duas situações: aquela dos pacientes que tiveram cuidados suficientemente bons no período da primeira infância e aqueles que não tiveram estes cuidados (cf. Winnicott, 1989vk, p. 96).

Tanto num caso como noutro trata-se de, no tratamento, corrigir a experiência passada revivendo-a. Trata-se, pois, de explicar qual é o sentido disto para Winnicott (1988). Ao diferenciar o tratamento de neuróticos e psicóticos, ele diz:

Deve ser assinalado que a análise da psicose de tipo esquizoide é essencialmente diferente da análise do psiconeurótico, porque a primeira exige que o analista seja capaz de suportar a regressão real à dependência, enquanto a segunda necessita de algo diferente: da capacidade para tolerar ideias e sentimentos (amor, ódio, ambivalência etc.) e para compreender processos, e também para demonstrar essa compreensão pela expressão adequada através da linguagem (a interpretação daquilo que o paciente está justamente em condições de admitir conscientemente). Uma interpretação correta e oportuna no tratamento analítico produz uma sensação de estar sendo fisicamente seguro, que é mais real (para o não psicótico) do que se ele estivesse sendo concretamente embalado ou posto no colo. A compreensão penetra mais fundo, e através da compreensão demonstrada pelo uso da linguagem, o analista embala o paciente fisicamente no passado, ou seja, na época em que havia necessidade de estar no colo, quando o amor significava adaptação e cuidados físicos. (p. 99)

Na neurose, o paciente alcançou a integração que torna possível relacionar-se consigo e com os outros como pessoas inteiras, vivendo estas relações no quadro do cenário edípico (p. 67). Na situação e vivência do complexo de Édipo, a pessoa passará por conflitos e emoções relacionais que podem ser intoleráveis, levando-a a reprimi-las como um mecanismo de defesa, o que gerará um inconsciente reprimido que, por sua vez, permanece como uma situação presente "drenando recursos do Ego" (p. 74).

Para Winnicott (1975d), a situação analítica, com pacientes neuróticos, não visa propriamente reencenar a situação edípica traumática, mas interpretá-la (p. 379), retomar o inconsciente reprimido de modo que o paciente possa experienciar o reprimido de uma maneira em que consiga diferenciar entre a realidade e a fantasia, tendo condições de sustentação ambiental que lhe deem a possibilidade de agir a partir de si mesmo (com um ego assim fortalecido) na reencenação das relações interpessoais na neurose de transferência. Não há nenhuma descarga sendo procurada, mas sim a busca da integração de efetivas relações interpessoais que, ao se atualizarem na experiência relacional com o analista, corrigem a experiência passada vivida como intolerável, como não integrável ao seu ego total.

No entanto, este tipo de paciente que tem a possibilidade de estabelecer relações interpessoais, reconhecendo-se a si mesmo e aos outros como pessoas inteiras, não abarca todos os casos, ao contrário, parece ser cada vez mais raro este tipo de caso. Já, em 1955, o próprio Winnicott (1955d) comenta: "... seria muito agradável se pudéssemos aceitar pacientes cujas mães foram capazes de proporcionar-lhes condições suficientemente boas no início e nos primeiros meses. Mas esta época da psicanálise vem rumando firmemente para um fim" (p. 388).

Para estes pacientes que sofreram falhas ambientais significativas em momentos precoces do amadurecimento, também é o caso de corrigir uma experiência traumática passada, porém agora a situação muda de foco, pois a atenção recai "no desenvolvimento do ego e na dependência, e neste caso quando falamos da regressão estaremos imediatamente falando da adaptação do ambiente com seus êxitos e suas falhas" (p. 380).

No artigo "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico", Winnicott se refere à situação de regressão à dependência como algo que só pode ocorrer se o paciente tiver uma organização egoica. Ele descreve, então, este processo e suas condições, indicando tanto o que ocorreu na situação traumática quanto o que deve ocorrer idealmente na situação analítica (cf. 1955d, p. 384): no momento em que ocorreu uma falha do ambiente no passado, quando o paciente já havia conquistado certa integração do seu eu, este reage protegendo este verdadeiro eu com o desenvolvimento de um falso eu para fazer frente à falha ambiental; nestas condições ocorre também o surgimento da esperança de que no futuro, quando encontrar uma situação ambiental confiável, ele poderá retornar à situação traumática para corrigir esta experiência; nestes casos o paciente pode, então, retomar o seu desenvolvimento que havia sido interrompido.

Winnicott está, ao fazer este tipo de descrição, introduzindo uma ideia nova na compreensão do processo de amadurecimento: "... a ideia de que é normal e saudável que o indivíduo seja capaz de defender o eu contra falhas ambientais específicas através do congelamento da situação da falha" (1955d, p. 378). A isto deve-se acrescentar que tal operação é acompanhada de uma concepção e uma esperança de que "em algum momento futuro haverá oportunidade para uma nova experiência, na qual a situação da falha poderá ser descongelada e revivida, com o indivíduo num estado de regressão dentro de um ambiente capaz de prover a adaptação adequada" (idem). No trabalho analítico trata-se, pois, de criar as condições de sustentação ambiental para que o paciente possa regredir em busca de corrigir uma experiência passada. Diz Winnicott: "A cura só chega se o paciente pode chegar à ansiedade em torno da qual as defesas foram organizadas. Pode haver muitas versões subsequentes disto, e o paciente chega a uma após outra, mas a cura só chega se o paciente atingir o estado original de colapso" (1989vk, p. 126).

Quando o indivíduo, nestes casos, regride, não é propriamente à situação da falha ambiental, ele regride à dependência, retomando uma situação anterior à da falha, o que possibilitaria que ele descongelasse as suas defesas contra a falha ambiental, estando, assim, livre para retomar seu processo de amadurecimento a partir de um ego fortalecido pela sustentação ambiental. Para Winnicott, o processo de tratamento psicanalítico precisa dar condições para que o paciente possa voltar a um "momento anterior àquele em que as intrusões tornaram-se múltiplas e impossíveis de controlar" (1958f, p. 275).

Winnicott descreve este processo (1955d, p. 384) afirmando a seguinte sequência de fatos clínicos: a situação de confiabilidade ambiental torna possível que o paciente regrida à dependência (do analista) percebendo o risco envolvido nesta regressão, e que isto faz com que o paciente sinta seu eu de uma maneira diferente, um eu que até então estava oculto em função da paralisação do seu processo de amadurecimento no passado, e isto leva ao descongelamento da situação da falha original, as defesas são desfeitas tornando possível que o paciente possa continuar seu processo de amadurecimento a partir desta nova posição do seu eu (o que implica também na possibilidade de sentir raiva relativa à situação da antiga falha, sentida no presente e explicitada), isto tudo torna possível a retomada do processo de amadurecimento transformando-o em um processo organizado e protegido do setting analítico, tendo em vista a conquista de uma maior independência, chegando, então, a uma nova situação na qual as necessidades e desejos instintuais são integrados como experienciáveis com vigor e vitalidade genuínos.

O descongelamento da situação traumática não significa exatamente a repetição da situação traumática, e sim uma regressão à situação de dependência que recoloca o eu (do paciente) numa situação anterior à situação traumática, em condições nas quais ele pode se desfazer das suas antigas defesas, e retomar o processo de amadurecimento integrando o que foi vivido no passado à sua pessoa total.

Recebido/Received: 19.1.2010 / 1.19.2010

Aceito/Accepted: 25.3.2010 / 3.25.2010

LEOPOLDO FULGENCIO

Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Campinas, SP, Brasil).

Rua Ministro Godoi, 679/53 - Perdizes

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Fone: (11) 8140-2103

e-mail: ful@that.com.br

Citação/Citation: FULGENCIO, L. Compulsão à repetição e regressão à dependência em Winnicott. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 96-109, mar. 2011.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Financiamento/Funding: Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Apoio e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp/This research has been funded by Fundação de Apoio e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp

Conflito de interesses/Conflict of interest: O autor declara que não há conflito de interesses/The author declares that has no conflict of interest.

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  • ____ . (1953). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: O brincar e a realidade Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Na classificação feita por Hjulmand: 1953c).
  • ____ . (1953). Resenha de Psychoanalytic Studies of the Personality, de W. R. D. Fairbairn. In: Explorações psicanalíticas Porto Alegre: Artes Médicas, 1994a. (Na classificação feita por Hjulmand: 1953i).
  • ____ . (1955). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In: Da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro: Imago, 1978b. (Na classificação feita por Hjulmand: 1958f).
  • ____ . (1958). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In: Da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro: Imago, 1978a. (Na classificação feita por Hjulmand: 1958f).
  • ____ . (1971). O conceito de indivíduo saudável. In: Tudo começa em casa São Paulo: Martins Fontes, 1989. (Na classificação feita por Hjulmand: 1971f).
  • ____ . (1974). O medo do colapso. In: Explorações psicanalíticas Porto Alegre: Artmed, 1994b. (Na classificação feita por Hjulmand: 1974).
  • ____ . O gesto espontâneo São Paulo: Martins Fontes, 1990b. (Na classificação feita por Hjulmand: 1987b).
  • ____ . (1988). Natureza Humana Rio de Janeiro: Imago, 1990a. (Na classificação feita por Hjulmand: 1988).
  • ____ . (1989). Psiconeurose na infância. In: Explorações psicanalíticas Porto Alegre: Artes Médicas, 1994c. (Na classificação feita por Hjulmand: 1989vl).
  • ____ . (1989). A psicologia da loucura: uma contribuição da psicanálise. In: Explorações psicanalíticas Porto Alegre: Artes Médicas, 1994c. (Na classificação feita por Hjulmand: 1989vl).
  • ____ . O uso do objeto no contexto de "Moisés e o monoteísmo". In: Explorações psicanalíticas Porto Alegre: Artes Médicas, 1994b. (Na classificação feita por Hjulmand: 1989xa).
  • *
    Este artigo se insere na linha de pesquisa em desenvolvimento no Centro Winnicott de São Paulo (
  • 1
    . Estarei citando Winnicott a partir da classificação feita por Knud Hjulmand (2007), considerando que a publicação das obras completas de Winnicott seguirão este padrão (cf. Abram, 2008).
  • 2
    . O uso dos termos
    explicação e
    compreensão correspondem a uma escolha epistemológica. George Henrik Von Wright (1971), em seu livro
    Explanation and Understanding, faz uma distinção entre a procura de
    explicações - referindo-se à procura de relações causais para explicar os movimentos (por exemplo, as explicações de causas que levam uma máquina a funcionar de tal e tal maneira, numa sequência finita e sem lacunas de relações de determinação entre suas partes) - e de
    compreensões - referindo-se à procura dos sentidos, intenções, que estariam colocados como estado na gênese dos movimentos (por exemplo, no que se refere às ações humanas ou do ser vivo como movidas por sentidos ou intenções, e não como uma sequência de causas e efeitos do tipo mecânico ou dinâmico).
  • 3
    . Estarei citando Freud a partir da classificação feita por James Strachey na
    Standard Edition.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      19 Jan 2010
    • Aceito
      25 Mar 2010
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