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Freud, materialista mecanicista às últimas consequências

Freud, mechanistic-materialistic to the ultimate consequences

Freud, matérialiste mécaniste aux ultimes conséquences

Freud, materialista mecanicista hasta las últimas consecuencias

Resumos

Este artigo traz uma reflexão sobre o estatuto epistemológico da psicanálise criada por Freud. Ela foi desenvolvida por meio de um confronto crítico ao enquadramento de sua metapsicologia no marco do que alguns autores chamaram vitalismo, que teria sido resultado de um desvio em relação à sua formação acadêmica ao retomar e atualizar o vitalismo do século XIX por meio da noção de Trieb. Em resposta, este artigo recoloca em discussão alguns temas como o ambiente de formação científica de Freud, o estatuto da noção de Trieb - que considera convencional e entrópica - e, por fim, recorrendo a Canguilhem, enquadra a metapsicologia de Freud no marco do materialismo mecanicista elevado às últimas consequências, o que teria sido de fato resultado de seu verdadeiro procedimento epistemológico além de sua mais ousada e refinada contribuição científica à época.

Palavras-chave:
Freud; metapsicologia; Trieb; mecanicismo; vitalismo


This paper proposes a reflection on the epistemological status of psychoanalysis created by Freud. It was developed through a critical confrontation of the insertion of his metapsychology within a framework some authors have called vitalism, which would have been the result of a deviation from his academic education when resuming and updating the 19th-century concept of vitalism with the notion of Trieb. In response, this article discusses some topics, such as Freud’s scientific training environment, the status of the notion of Trieb - which is considered conventional and entropic - and finally, resorting to Canguilhem, inserts Freud’s metapsychology in a framework of mechanistic materialism elevated to the ultimate consequences, which would have been the result of his true epistemological procedure, in addition to his most daring and refined scientific contribution at the time.

Key words:
Freud; metapsychology; Trieb; mechanicism; vitalism


Cet article apporte une réflexion critique sur le statut épistémologique de la psychanalyse créée par Freud. La réflexion s’est développée à travers un refus de cadrer sa métapsychologie dans le cadre de ce que certains auteurs ont appelé le vitalisme, ce qui aurait été le résultat d’un écart par rapport à sa formation académique quand il a repris et actualisé le vitalisme du XIXe siècle à travers la notion de Trieb. En réponse, cet article met en discussion certains thèmes tels que l’environnement de formation scientifique de Freud, le statut de la notion de Trieb - qu’il considère conventionnel et entropique - et, enfin, en utilisant Canguilhem, adapte la métapsychologie de Freud dans le cadre du matérialisme mécaniste élevé aux dernières conséquences, qui auraient en fait été le résultat de sa véritable procédure épistémologique, sa contribution scientifique la plus audacieuse et raffinée à l’époque.

Mots clés:
Freud; métapsychologie; Trieb; mécanisme; vitalisme


Este artículo reflexiona sobre el estado epistemológico del psicoanálisis creado por Freud. Fue desarrollado a través de una confrontación crítica con el fundamento de su metapsicología dentro del marco de lo que algunos autores llamaron vitalismo, que habría sido el resultado de una desviación de su formación académica al reanudar y actualizar el vitalismo del siglo 19 a través de la noción de Trieb. En respuesta, este artículo pone en discusión algunos temas, como el entorno de capacitación científica de Freud, el estado de la noción de Trieb - que es considerado convencional y entrópico - y, finalmente, recurriendo a Canguilhem, colocando a la metapsicología de Freud en el marco del materialismo mecanicista elevado a las últimas consecuencias, lo que habría sido el resultado de su verdadero proceder epistemológico, además de su contribución científica más atrevida y refinada de la época.

Palabras llave:
Freud; metapsicología; Trieb; mecanicismo; vitalismo


Apresentação

Refletindo sobre a vertente materialista mecanicista da ciência moderna, Georges Canguilhem, em La connaissance de la vie (1965/1971), lembra que o enfrentamento da questão O que é vida? pela biologia foi marcado por um fascínio pela física e pela química. Tal fascínio, segundo ele, teria justificado um tipo de desprezo que muitos biólogos nutriram pelo vitalismo, considerando-o uma ilusão do pensamento (p. 84). Para ele, o que teria reduzido a biologia ao papel de satélite delas (p. 83), cuja consequência mais grave teria sido a perda de autonomia em relação ao seu objeto de estudo, a vida. Isto, na medida em que passou a abordá-la do ponto de vista da força e do mecanismo. Isto porque tanto uma quanto o outro dizem respeito a apenas dois aspectos da vida: o movimento e a matéria.

Sua crítica se deu por uma reflexão sobre o estatuto das ciências da vida, assim como das ciências do homem, estrategicamente, levando justamente o vitalismo em conta. Inspirado nessa atitude, neste artigo também considero o vitalismo, como sugeriu Canguilhem, de um ponto de vista filosófico, mas não enquanto alternativa científica. O que não parece ser o caso de Felipe Henríquez Ruz (2019)Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116., em artigo intitulado “Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo”, em que, revisando a história e os fundamentos epistemológicos da psicanálise, Ruz concluiu, de maneira inusual, que a evolução da metapsicologia de Freud teria consistido no afastamento da influência inicial de mestres como Du Bois-Reymond, E. Brücke, H. Helmholtz, entre outros, enquanto se aproximava efetivamente de um tipo de vitalismo que teria adotado. Ruz lembra que esses mestres de Freud, em bloco, teriam feito oposição e tomado distanciamento de outro mestre, Johannes Müller, notório vitalista. Um distanciamento que não teria ocorrido da parte de Freud, pelo menos não tanto quanto eles. Ponto de vista que me coloco em relativo acordo quanto ao afastamento de Freud de seus mestres, contudo por motivos diferentes e visando objetivo distinto do alegado por Ruz.

Como entendo, Freud distanciou-se sim desses e de outros mestres, mas não para retomar o vitalismo, ainda que atualizado. Distanciou-se para, à sua maneira, levar às últimas consequências o próprio materialismo mecanicista compartilhado com eles. Para justificar esta tese, em primeiro lugar, coloco em discussão temas como o ambiente de formação científica de Freud. Em seguida, o estatuto da noção de Trieb, que considero convencional (de clara inspiração kantiana) e entrópica (regida pela segunda lei da termodinâmica). Por fim, recorrendo a Canguilhem, espero enquadrar com sucesso a metapsicologia de Freud no marco do que considerei um materialismo mecanicista às últimas consequências, esta sim sua primeira contribuição científica à época.

Introdução

Antes de tratar desses três temas propostos, considero útil apresentar os argumentos de Ruz, pelo menos em linhas gerais, de modo a esclarecer o leitor. Segundo ele, apoiado em Cranefield (1966)Cranefield, P. F. (1966). Freud and the “School of Helmholtz”. Gesnerus: Swiss Journal of the History of Medicine and Sciences, 23, 35-39., Freud teria ultrapassado o materialismo mecanicista, ou a fisiologia fisicalista, em direção a uma Naturphilosophie que, de fato, nunca teria sido efetivamente suprimida do rol de seus interesses de juventude. Solidário com esse argumento, Ruz revela a presença sutil dessa filosofia da natureza sob a forma de uma tensão entre materialismo e vitalismo no seio da própria obra de Freud. Uma tensão presente, por exemplo, na noção de Trieb, que seria uma manifestação de certo vitalismo que, dada sua condição, nomeou negativo, ou, ainda, um “vitalismo invertido” (Ruz, 2019Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116., p. 111). Evidentemente sem confundi-lo com o vitalismo animista de E. Stahl, por exemplo. De fato, o que buscou foi repensar a noção de Trieb, como disse, sob “el modelo de los conceptos vitalistas, de tal suerte de iluminar la relación de la metapsicología freudiana con los conceptos mayores del vitalismo científicomédico del siglo XIX” (p. 105).

Para tanto, também buscou apoio em Holt (1967/1989)Holt, R. (1989). Beyond Vitalism and Mechanism: Freud’s Concept of Psychic Energy. In Freud Reappraised. A Fresh Look at Psychoanalytic Theory (pp. 141-168). New York, NY: The Guilford Press. (Trabalho original publicado em 1967)., para quem a noção de energia psíquica de Freud seria o resultado de uma influência da noção de força vital,1 1 Possivelmente em referência ao conceito de força vital de Bichat ou de princípio vital de Barthez. de modo que seria um conceito similar e funcionalmente equivalente a ela. Indo além, Holt declara (apud Ruz, 2019Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116., p. 105) que elas são histórica e metodologicamente homólogas, que teriam brotado do mesmo tronco.

Ora, não posso deixar de considerar que a aproximação da concepção de energia psíquica à de força vital seria, como todos sabem, mais apropriada se atribuída a Jung, como pode-se verificar, por exemplo, em obras como A natureza da psique (1926) e A energia psíquica (1928). Também elas motivadoras do distanciamento de ambos, merece que recordemos alguns de seus argumentos.

Na primeira obra, Jung (1926/2000)Jung, C. G. (2000). A natureza da psique. Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1926). chamou a atenção para o fato de que a definição de corpo inclui uma componente que denominou entidade vital. De modo que um ser vivo não poderia perseverar sem a presença de um princípio vital. Desta forma, sendo o corpo um fenômeno de tal princípio, a psique seria sua objetivação.

Na segunda obra, Jung (1928/2002)Jung, C. G. (2002). A energia psíquica. Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928). acrescentou que o conhecimento dos fenômenos físicos pode sim ser obtido sob dois pontos de vista distintos, o mecanicista e o energético, acrescentando que considerava legítima a aplicação deles aos fenômenos psíquicos. No entanto, distinguiu a energia psíquica da energia física. Distinção que retira a psique da condição de simples secreção do cérebro (p. 6). O que vai ao par com a recusa de que a vida seria um epifenômeno da química do carbono. Jung distinguiu ainda a energia psíquica da força psíquica, sendo que a primeira indica algo da ordem do fundamento, das condições de uma dada experiência e a segunda de sua manifestação. Para ele, “ [...], a energia é sempre específica, manifestada no momento como movimento e força; [...]” (p. 12). Em suma, a energia psíquica equivale à energia vital (p. 13), como disse.

Como sabemos, foi sua iniciativa de identificar a libido à energia vital que provocou seu rompimento com Freud e evidenciou o quão distante Freud se manteve de qualquer tipo de fundamentação vitalista para sua própria noção de energia psíquica, que está muito mais vinculada à de força mecânica do que à de força vital, como sugeriu Holt. Uma energia que Freud considerou resultante de processos como excitação sexual (interna e externa) que impulsiona toda atividade do psiquismo. Processos que são medidas da exigência de trabalho feita à psique, cuja fonte seria a excitação no órgão e a meta imediata sua neutralização. Como se vê, longe de ser fundamento da vida, remete à condição de força, vale dizer, de impulso do instinto sexual.

Deste modo, penso que Ruz (2019)Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116. tentou, sem sucesso, afastar a metapsicologia de Freud da condição materialista mecanicista para aproximá-la da condição vitalista, ainda que, como bem definiu (p. 108), de um tipo de neovitalismo contemporâneo (de Driesch e Reinke) que, diante da insuficiência da fisiologia fisicalista, admitia uma estrutura mecânica em meio à qual os estímulos ou forças atuam e se desenvolvem.

Pois bem, para a tarefa da crítica ao artigo de Ruz e da defesa de meus argumentos, passo à apresentação dos três temas que mencionei acima.

Período de formação

O artigo de Ruz traz inúmeras informações biográficas de Freud em favor de suas conclusões. Evitando repetir algumas delas, retomarei apenas parte do que já apresentei (Bocca, 2016bBocca, F. V. (2016b). Contribuição para o debate acerca do “uso compartilhado” em psicanálise. In Psicanálise em perspectiva VI. Curitiba, PR: CRV.) com mais detalhes sobre sua formação acadêmica em medicina para, como Ruz, dar apoio às minhas conclusões.

Lembro ao leitor que foi ao estagiar por seis anos no Instituto de Fisiologia de Brücke que Freud se familiarizou com a pesquisa científica articulando a física com a fisiologia. Mesmo na troca do instituto pelo hospital de Meynert, e mais tarde pelo de Charcot, manteve contato com uma fisiologia sustentada no princípio termodinâmico de conservação da energia. Sustentada também no monismo, compartilhado por J. F. Herbart, Helmholtz entre outros.

Ruz admite que foi por influência dos cientistas citados que Freud construiu os pontos de vista econômico, dinâmico e tópico. Foi também por essa influência que adotou a noção de forças físico-químicas, mas sobretudo a expectativa de construção de uma psicologia científica. Nesses termos, Freud investigou a psique humana sob a condição de conflito representacional, como uma mecânica de representações. A essas e seus afetos deu o status de unidade de base do psiquismo e, assim, de objetos de investigação. Objetos sob a condição de unidades suscetíveis inclusive de medida, de quantificação, plenamente de acordo com uma exigência da psicologia científica do século XIX.

Trata-se de uma pretensão científica que Freud conheceu e compartilhou plenamente, como atestam inúmeras declarações bem apontadas por Ruz (2019)Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116.. No entanto, ele também nos adverte (p. 107) de que a noção freudiana de energia psíquica escapava à medição, um dos pilares da consideração físico-matemática. Fato que, para Ruz, teria sido o bastante para sua reconsideração epistemológica acerca da metapsicologia de Freud, para deslocá-la para o campo da “intuición o categoría metafísica, o, tal vez, un concepto vitalista” (p. 107), concluiu.

A despeito da dificuldade, diferentemente do que sustenta Holt (apud Ruz, 2019Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116.), o “Projeto de uma psicologia” (1885/1969a) não deixa dúvida quanto à inspiração nos ensinamentos de Fechner. Pelo menos pela presença de um princípio regulador do aparelho psíquico, pela expectativa de ser economicamente quantificado, mas fundamentalmente de ser materialmente descrito. A novidade é que nesta obra Freud postulou uma tendência fundamental dos neurônios a se desembaraçar de toda estimulação de fonte interna e externa e a tolerá-las apenas enquanto providencia seu escoamento total, visando o alcance do estado de inércia. Se admitido integralmente, seria o caso em que o repouso seria o próprio telos organizador da vida.

Como todos sabem, trata-se de um ponto de vista presente no “Projeto ...” que foi retomado em “Além do princípio do prazer”. Em ambas Freud concebeu uma condição fisiológica do sistema nervoso pela qual os estímulos trafegam de modo livre orientados por um mecanismo de escoamento chamado arco-reflexo, idealmente proporcionador do escoamento total da soma de excitação sofrida. Trata-se de um escoamento ideal porque, quando impossibilitado, decorre sua redução seguido de seu acúmulo, resultando num tipo de reserva energética regida pelo que, inspirado em Breuer, Freud (1900/1969b)Freud, S. (1969d). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1911). chamou de princípio de constância. Como entendo, esse segundo princípio orientaria seu funcionamento apenas secundariamente, pois as noções de constância e de homeostase, verdadeiros conteúdos do princípio de vida e, por isto, caras à grande parte dos cientistas da época, foram consideradas de maneira problemática por Freud.

Problemática foi também sua relação com o princípio de conservação da energia na aplicação aos fatos fisiológicos. Isto porque, nesse enquadre, a noção de força foi caracterizada por sua variabilidade, mas sobretudo por sua indestrutibilidade: uma força, enquanto causa dinâmica, se transforma sem se anular, segundo sua condição indestrutível e constante, executando sua tendência a permanecer em seu ser.

Tudo isto considerado, penso que Freud, na verdade, divergiu de seus mestres em certos princípios, como bem reconhece Ruz, mas não visando o objetivo por ele alegado, como assumir um tipo de vitalismo. Como entendo, sua metapsicologia implicou a abordagem científica do psiquismo levando em consideração fenômenos representacionais e afetivos orientados por princípios entrópicos. Isso deu à sua noção de força o estatuto de “força de morte” e de todo processo representacional e cultural o estatuto de produtor de neurose e de mal-estar.

Sendo assim, a contribuição de Freud para a história da psicologia, longe de consistir numa recuperação mesmo que mitigada de um vitalismo, foi a de fundamentar uma psicologia baseada num jogo de forças autosupressoras que visa evitar o desprazer que acompanha toda forma de excitação, de vida. A compreensão desta afirmação remete ao uso regulativo, mas principalmente ao estatuto inercial do Trieb, como veremos no próximo tópico.

Trieb, convenção e inércia

De início, tratarei do uso regulativo2 2 Consultar Loparic (2003a, 2003b) e Fulgêncio (2006, 2007, 2008). da noção de força para, em seguida, considerar seu caráter inercial. Como mostrei anteriormente (Bocca, 2016aBocca, F. V. (2016a). Freud e o programa científico kantiano. Natureza Humana, 20 (2), 7-28.), em algumas oportunidades Freud reconheceu seu apreço por Kant. Trata-se de um tipo de filiação autodeclarada que levou em conta sua recomendação acerca da construção de uma psicologia empírica. A adesão de Freud se deu pelo recurso a “princípios racionais” como guias para a descrição, observação e sistematização de fenômenos psíquicos visando a formulação de modelos explicativos de suas relações. Para melhor compreensão exporei em linhas breves e gerais o programa kantiano para as ciências da natureza, que inclui a pesquisa empírica dos objetos dados ao sentido interno, a psicologia. Após essa exposição, e supondo-a suficiente, retornarei a Freud.

Trata-se de um procedimento que foi apresentado nos capítulos dois e três de Princípios metafísicos da ciência da natureza. Nessa obra, Kant (1786/1990)Kant, I. (1990). Princípios metafísicos da ciência da natureza. Lisboa: Edições 70, (Trabalho original publicado em 1786). considerou duas forças, de atração e repulsão, operando entre os corpos, não como sendo as únicas, mas como as mais adequadas e favoráveis em vista dos resultados esperados da observação. Carecendo de conteúdo intuitivo, portanto de natureza metafísica, a ideia de força consiste numa ideia pura da razão cuja função é ser auxiliar na pesquisa empírica, no caso da física, por exemplo, servindo de instrumento na elaboração da experiência pelo entendimento.

Para compreendê-la melhor, acrescento que na Crítica da razão puraKant (1781/1983)Kant, I. (1983). Crítica da razão pura. São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1781). já havia definido os conteúdos puros da razão como “ficções heurísticas” (p. 378), ou ainda, como entes da razão, pensados problematicamente a fim de que permitam o uso sistemático do entendimento no campo da experiência. São especulativos a priori e assim tornam possível pensar, por exemplo, a totalidade e a causalidade absolutas da experiência. De modo que é a partir deles que o cientista pode levar adiante a construção de uma explicação conceitual dos fenômenos e de suas relações de determinação recíprocas alcançando a formulação de leis empíricas e, por meio delas, resolver problemas empíricos.

Esse procedimento, que visa construir uma explicação de fenômenos, por exemplo, sua causalidade, começa pela postulação de uma causa originária, cuja condição é ser incondicionada. Esta, disse Kant (1781/1993)Kant, I. (1983). Crítica da razão pura. São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1781)., consiste na “ideia de uma força fundamental” (p. 322), da qual muitas outras podem ser expressões, ou seja, da qual “uma multiplicidade pode ser derivada” (p. 323), continuo.3 3 Segundo Kant (1781/1993, p. 322), é o princípio lógico da razão que realiza toda unidade. Quanto mais idênticos os fenômenos de uma e de outra força, tanto mais verossímil serem pensados como diferentes manifestações de uma mesma força fundamental. Nesses termos, não sendo considerada ínsita na natureza, não tem origem na experiência, portanto não se trata de uma intuição. Trata-se, sim, de um ente racional que oferece a possibilidade de compreensão da totalidade das condições da experiência.

A partir daqui, sinto-me autorizado a relacionar o projeto científico de Freud aos ensinamentos de Kant no que tange à construção de seu ponto de vista dinâmico e sua noção de força expressa por meio do Trieb. Trata-se de relacionar sua metapsicologia à metafísica kantiana, à sua filosofia crítica. O que ocorreu, especialmente em obras como “Os instintos e suas vicissitudes” (1915/1969f) e “O inconsciente” (1915/1969g).

Destas, destacarei o estatuto do que chamou de Trieb sob a condição de ideia norteadora de sua pesquisa empírica, confiando nos resultados que por seu meio poderia obter. Em nenhuma outra oportunidade como em “Os instintos e suas vicissitudes”, Freud (1915/1969f)Freud, S. (1969f). Os instintos e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). foi tão explícito quanto ao seu ideal científico kantiano. Iniciou sua apresentação declarando que uma ciência, qualquer que seja, necessita estar assentada em conceitos básicos, claros e bem definidos. Admitiu que o trabalho científico consistia na “descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação” (p. 123), para o qual reconheceu que não se pode evitar certa aplicação de ideias que em si mesmas são da natureza das “convenções” (p. 123). Essas, sem serem arbitrárias, mas dotadas de relações significativas com o material empírico, como disse Freud, são concebidas alhures e aplicadas sobre o material observado. Na verdade, atendem à intenção de organizá-lo cientificamente segundo conceitos cada vez mais abrangentes.

Assim, certo grau de indefinição inicial deve ser tolerado e, logo que possível, superado. A demarcação do estatuto e da meta de uma ciência, quando refletida em toda sua extensão, mostra aos cientistas que seus conceitos fundamentais são sempre projeções e sua pretensa objetividade uma ilusão. Assim refletindo, eles teriam a oportunidade de se convencerem de que suas elaborações conceituais são, de fato, orientadas por entes da razão, o que revela o próprio limite da experiência possível. Assim refletindo, eles teriam a oportunidade de concluir que toda organização de dados empíricos só pode ser orientada por uma convenção e ser sempre provisória em seus resultados, o que equivale dizer, assintótica em relação à verdade.

Corroborando esse ponto de vista, Freud (1915/1969f)Freud, S. (1969f). Os instintos e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). reconheceu que na pesquisa científica partimos de noções que “parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente” (p. 123). Uma noção desse tipo seria uma “hipótese de trabalho, a ser conservada enquanto se mostrar útil, e pouca diferença fará aos resultados do nosso trabalho de descrição e classificação se for substituída por outra” (Freud, 1915/1969gFreud, S. (1969g). O Inconsciente. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)., p. 129), concluiu mais tarde.

Por conta disso, sustentou, como Kant, que o conhecimento, enquanto convencional, tem sua condição de possibilidade efetivada, como dito acima, desde que haja uma relação significativa do conceito com seu material empírico. Pois, se o entendimento produz conceitos quando se aplica sobre o material da sensibilidade, o conhecimento depende da conjugação necessária e eficiente entre conceitos e intuições. Um conceito deve permitir encontrar dentre os fenômenos relações correspondentes ou será conceito vazio. Desse modo, a formulação de leis empíricas decorre do uso bem-sucedido de ideias auxiliares especulativas, como Trieb, que permitiu a Freud produzir conceitos, por exemplo, pela observação dos conflitos do Eu e da sexualidade nas psiconeuroses. Essa prática permitiu a Freud também construir modelos explicativos de processos psíquicos, como sabemos, sob a forma de tópicas psíquicas. Assim é que o Trieb, em sua metapsicologia, ganhou estatuto de conceito básico convencional (Freud, 1915/1969fFreud, S. (1969f). Os instintos e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)., p. 123), de Grundbegriff, conceito que dá unidade sistemática às forças diversas.4 4 Fonseca (2016) declara que “Freud sempre tentou encontrar, por trás das definições parciaisdos numerosos impulsos, aqueles que fossem irredutíveis e fundamentais. É a isso que ele se refere como algo “sério e grandioso”, dando origem às suas definições tópicas. As suas formulações gerais articulam modelos dualistas de impulsos fundamentais (justificados a partir da noção clínica de conflito entre forças opostas dentro do psiquismo), a partir dos quais todos os outros impulsos derivados se articulam” (p. 41).

Sobre o Trieb, o leitor de Freud sabe que sempre esteve envolto em imprecisões. Em diferentes ocasiões definiu-o como da ordem de uma fronteira, isto é, de uma posição limítrofe da relação do somático com o psíquico ou, para manter fidelidade aos seus termos, dos estímulos somáticos endógenos com seus representantes ideacionais. Pois foi sua condição fronteiriça que acabou por revelar seu limite enquanto conceito, ou seja, seu próprio estatuto convencional, ficcional. Fato que reiterou mais tarde, na Conferência XXXII, ao reconhecer que sua teoria dos instintos outra coisa não era do que uma mitologia (1933/1969j, p. 98).

O que parece certo é que agindo dessa forma, e sem deixar de ser materialista mecanicista, Freud reduziu a compreensão dos processos psíquicos a um jogo de estímulos e representações, a uma possibilidade instintual manifestada psiquicamente. No entanto, uma novidade nos chama a atenção.É que em sua feição final, seu ponto de vista dinâmico empalideceu uma das expectativas presente em seus mestres: a da conservação da vida. Isso porque um componente de agressividade, de autodestruição e de exaustão foi por Freud atribuído ao homem e à natureza. Assim, sua noção de força, distante da espontaneidade e da perseverança de uma força vital, revelou uma tonalidade entrópica, cuja finalidade seria exaustiva e autosupressiva, visaria ao repouso e ao prazer na quietude. Afinal, quem não se lembra dos argumentos finais de Freud em “Além do princípio do prazer” (1920/1969i)de que “o princípio de prazer parece, na realidade, servir ao instinto de morte” (p. 74)?

É verdade que se trata de um ponto de vista, enquanto convencional e entrópico, em si mesmo problemático.5 5 Pois o fechamento absoluto de um sistema seria impossível ao aparelho psíquico, exceto nos casos patológicos graves, como a psicose. Contudo foi esclarecido por Freud quando, ao se aproximar do fim da Conferência XXXII (1933/19969j), declarou que “temos argumento a favor de um instinto agressivo e destrutivo nos homens, não por causa dos ensinamentos da história, ou da nossa experiência de vida, mas com base em razões gerais, às quais fomos levados ao examinar os fenômenos do sadismo e do masoquismo” (p. 106). Declaração que esclarece as duas teses, tanto relativa ao convencional quanto ao entrópico; a de que é o ponto de vista que organiza os dados observados e a de que o esgotamento admitido não tem comprovação empírica. Na mesma conferência exorbitou na aplicação das duas teses ao declarar que “os instintos regem não só a vida mental, mas também a vida vegetativa, e esses instintos essenciais exibem uma característica que merece o nosso mais profundo interesse [...] eles revelam uma propensão a restaurar uma situação anterior” (p. 108). Assim, eles executariam a finalidade de uma natureza hipoteticamente conservadora, vale dizer, inercial.

Quanto à consideração da condição inercial do Trieb, lembro que além de representar um distanciamento de seus mestres, também representou uma divergência em relação a Kant, pois a condição inercial do Trieb permitiu a Freud considerar em diversas ocasiões (1915/1969h, p. 295; 1920/1969i, p. 52 e 1929/1969k, p. 61) a própria história da humanidade sob um ponto de vista involutivo, que em outros lugares (Bocca, 2010Bocca, F. V. (2010). Civilização, finalidade com exaustão. Revista Kant e-Prints, 5(1), 89-117, série 1.; 2012Bocca, F. V. (2012). Do que depende a vida em sociedade? Transformação, 35(3), 113-132; 2019aBocca, F. V. (2019a). Princípio do prazer como regulador de uma civilização em declínio. Transformação, 42(1), 123-152. e 2019bBocca, F.V., & Perez, D. O. (2019b). O pêndulo de Epicuro. Curitiba, PR: CRV.) considerei também declinista.

Para melhor compreender a hipótese da involução, lembro que segundo Freud (1920/1969i)Freud, S. (1969i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)., a força instintual orientada pelo princípio do prazer, quando se manifesta pela repetição, o faz para restabelecer um estado pretérito. Portanto, não se trataria de um simples fenômeno de repetição monótona e sem finalidade. Ao contrário, visaria restabelecer um estado original, “já dado de antemão e que serve como finalidade (interna) da atividade repetitiva”, conclui Monzani (2014, p. 179)Monzani, L. R. (2014). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas, SP: Edunicamp.. Trata-se de uma mobilização do aparelho psíquico para bloquear, fixar e ligar os estímulos recebidos. Trata-se, na verdade, de um trabalho de repetição e de ligação que, de início, parecem, como admitiu Freud, contradizer o princípio do prazer, já que ao bloquear, fixar e vincular prolonga as excitações em vez de escoá-las imediatamente. Seria o caso de considerarmos que a repetição e a ligação teriam a finalidade de evitar a descarga completa? Mesmo considerando que todo desejo é uma tentativa de retorno às experiências de descarga? Se sim, torna-se legítimo perguntar, como fez Freud (1920/1969i)Freud, S. (1969i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)., se a repetição não seria mais primitiva e, portanto, independente do princípio do prazer.

Na verdade, Freud considerou que a repetição e a ligação que ela oportuniza constituem atos preparatórios e criadores de condições para o escoamento futuro. Assim, mesmo quando causa desprazer ao Eu, por mantê-lo ocupado, “não contradiz o princípio de prazer: desprazer para um dos sistemas e, simultaneamente, satisfação para outro” (1920/1969i, p. 31), ponderou Freud. Tal argumento, creio, define o modo de existência da força instintiva e o modo de funcionamento do aparelho psíquico visando alcançar o estado originário de repouso por meio do escoamento total, ainda que postergado. Trata-se de uma tendência que Freud considerou, mais do que uma resistência da matéria bruta aos estímulos, um atributo dos organismos vivos em geral e que se manifesta no psiquismo humano. Em todos os casos, uma verdadeira expressão conservadora da vida dos organismos que visa ao estado inorgânico mineral, estado que foi perturbado em algum momento desconhecido, de modo que a meta de seu esforço seria algo originário, pretérito.

Antes de dar esta questão por definida, insisto sobre a possibilidade do princípio do prazer ser considerado o guia do escoamento apenas do excesso de excitação, funcionando como princípio regulador dos processos psíquicos, como anunciado por Freud no capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900/1969b). Insisto nessa consideração pois, se aceita, seria a porta de abertura para a admissão de um princípio de vida no sistema de Freud e, por consequência, de um tipo de vitalismo. Foi o caso e o momento em que o princípio do prazer recebeu identificação com o princípio de constância, o qual expressa a tendência do aparelho psíquico de se conservar homeostaticamente.

O fato é que as coisas nem sempre se passaram assim. Mais tarde, no primeiro capítulo de “Além do princípio do prazer”, a noção de prazer e de seu princípio ordenador recuperou o estatuto de 1895. Nessa obra, Freud retirou novamente sua condição de guardião da saúde psíquica, de responsável pela sustentação de um nível adequado de tensão. Ao contrário, pensou-o novamente sob a condição de orientador das forças instintivas de morte. Diante disso, seria correto dizer que em alguma ocasião Freud teria assumido uma posição contraditória? Talvez não.

A resposta é não, se considerarmos que em 1920, o princípio do prazer apenas recuperou seu estatuto e sua função pretérita, de manter o aparelho psíquico livre de excitações que, por meio do mecanismo do arco-reflexo as removeria prontamente, libertando-se de sua presença. Em poucas palavras, em 1920 Freud suprimiu a identidade entre o princípio do prazer e o princípio de constância associando-o novamente ao princípio de inércia. Como indica Monzani (2014)Monzani, L. R. (2014). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas, SP: Edunicamp., nesse momento Freud de fato expôs o caráter paradoxal do prazer, pois trouxe a questão de saber se ele seria o guarda-costas da vida ou o lacaio da morte (p. 191).

Monzani esclarece que no “Projeto...” a questão já estava presente em favor da noção de lacaio da morte. Segundo ele, nessa obra Freud já havia levado em conta a inércia como princípio diferenciando-o da lei da inércia, que não representa uma tendência ao repouso, mas à continuidade de um estado, seja de repouso ou movimento. Trata-se de uma noção moderna elaborada como lei por Newton que deriva do princípio metafísico da conservação do movimento, pensado ademais como indestrutível. Já o princípio da inércia, enquanto ficção teórica, para além de expressar a ausência de acelerações, expressa a ausência de movimento.

Assim, o que justificou, no “Projeto...”, a inclusão de noções como repetição e ligação, foi a perspectiva de supressão da condição livre de toda excitação, a possibilidade de aquiescê-la, vinculá-la, representá-la a fim de que dela possa então se desvencilhar, evitando o desprazer do movimento. Sendo o Eu o responsável por promover vinculações de excitações livres, o faz inclusive promovendo inibição do escoamento ao instaurar processos sofisticados que, no entanto, visam e servem à descarga total.

Em outros termos, elas têm a função de, ao promover vinculação, inibir o que Freud nomeou processo primário, enquanto instauram o processo secundário. Desse modo, por caminhos alternativos o aparelho psíquico executa sua função de regulação inercial, impulsionando a tendência ao repouso. Na verdade, um fato, se admitido, que permite considerar a constância apenas uma concessão momentânea e nunca a deposição da inércia.

A reflexão sobre o estatuto do princípio do prazer demanda ainda a reflexão sobre a relação de continuidade entre o mundo orgânico e o inorgânico, mais ainda, entre a natureza e a civilização. Ela permite esclarecer as analogias que Freud estabeleceu entre os instintos, o funcionamento do aparelho psíquico e os sistemas físicos termodinâmicos. Analogias que ficam mais claras quando Ritvo (1990)Ritvo, L. B. (1990). A influência de Darwin sobre Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago . lembra que foi o biólogo alemão Claus quem ensinou a Freud que o evolucionismo de Darwin rompeu definitivamente a dependência de doutrinas que até então fundamentavam e dominavam a biologia. Em seu lugar forjou uma explicação físico-mecânica do desenvolvimento orgânico, inclusive dos instintos, por gradação e continuidade a partir do inorgânico, tudo por relações (de forças) causais dos seres vivos com o meio ambiente, vale dizer, da síntese de compostos orgânicos a partir de elementos inertes.

Uma continuidade que, sustentada por Darwin também em A expressão das emoções no homem e nos animais (1872), permite considerar que também os processos psíquicos e culturais teriam derivado da evolução do mundo orgânico em vista das condições ambientais, de uma trajetória evolutiva cuja aquisição esteve apoiada numa linha de continuidade e coexistência entre processos físicos, biológicos e sociais. Uma consideração que coloca materialismo e vitalismo em campos opostos. Solidário ao primeiro ponto de vista, Freud (1920/1969i)Freud, S. (1969i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920). reconheceu:

Os instintos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num estado particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se esforçou para neutralizar-se e, desta maneira, surgiu o primeiro instinto; o instinto de retornar ao estado inanimado. (p. 49)

Uma consequência desse ponto de vista pode ser encontrada em “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908/1969c). Completamente alheia a qualquer ideal vitalista, esta pequena obra é ilustrativa da vinculação entre o ponto de vista dinâmico e a entropia da física. Tratei desse assunto (Bocca, 2019aBocca, F. V. (2019a). Princípio do prazer como regulador de uma civilização em declínio. Transformação, 42(1), 123-152. e 2019bBocca, F.V., & Perez, D. O. (2019b). O pêndulo de Epicuro. Curitiba, PR: CRV.) considerando que nela Freud levou em conta precocemente os aspectos sociológicos e, com eles, a hipótese de que o processo civilizatório coloca seus próprios objetivos em risco, atentando contra si mesmo. De modo que seria sempre confrontado com a iminência de seu fracasso, dado pela emergência da doença nervosa moderna. Isto porque o mecanismo que possibilita os resultados culturais é o mesmo que os põem em risco.

Nessa obra, o materialismo mecanicista de Freud, longe de constituir o mito que, alega Ruz (2019, p. 101)Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116., se manifestou mais uma vez, como disse acima, por uma analogia com os sistemas físicos. Por meio dela Freud redefiniu a própria noção de sublimação, até então um tipo especial de conversão instintual operado pelo aparelho psíquico. Freud revisou seu estatuto, mas sobretudo reconheceu os limites de sua aplicação. Retirou dela a condição de processo de reciclagem constante e eficaz da vida instintual humana, que permitiria evitar seu desgaste e mantê-la provida de sua quantidade e qualidade. Ainda mais, enfraqueceu sua condição de instrumento de reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, submetendo-a à regência do primeiro.

Descreveu o modus operandi da sublimação por analogia com um sistema termodinâmico pois, como disse, ela opera “da mesma forma que em nossas máquinas não é possível transformar todo o calor em energia mecânica” (Freud, 1908/1969cFreud, S. (1969c). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1908)., p. 174). Em outras palavras, considerou que o trabalho da sublimação compartilha da incapacidade de uma máquina em converter toda quantidade de calor recebido em trabalho. Nesse caso, como nos artefatos mecânicos, a sublimação também provocaria uma perda inevitável de sua quantidade, uma dissipação de energia como a que ocorre em mecanismos não reversíveis.

Desse modo, relembro, contrariou o princípio de conservação da energia de seus mestres, mais especialmente de J. R. Mayer, autor de Bemerkungen über die Kräfte der unbelebten Natur (1842)Mayer, J. R. (1842). Bemerkungen über die Kräfte der unbelebten Natur. Annalen der Chemie und Pharmacie, 42(2), 233-240. doi:10.1002/jlac.18420420212.hdl:2027/umn.319510020751527.
https://doi.org/10.1002/jlac.18420420212...
, a quem se atribui a prioridade no processo de formulação da primeira lei da termodinâmica que sustenta que o calor produzido através de uma ação mecânica qualquer é proporcional ao trabalho efetivo realizado. Para Mayer, as forças podem assumir diversas formas sem variar sua quantidade, de modo que nas máquinas a vapor, por exemplo, ocorreria uma conversão plena de calor (da queima da madeira) em trabalho (locomotiva a vapor). Como se vê, trata-se de um caso particular da lei geral da conservação da energia.

Por sua vez, Freud manteve-se solidário ao princípio de degradação de energia presente no conhecido ciclo de Carnot-Clausius. Assim, revelou a face mais crua de sua filosofia da natureza, bem distante da velha e conhecida homeostase como reguladora da vida psíquica. Em seu lugar reconheceu um tipo de monismo energético que tem no Nirvana, vale dizer, na inércia, o princípio por excelência que orienta o funcionamento psíquico.

Dito isto, retoma agora a tese de que Freud articulou o ponto de vista físico entrópico ao ponto de vista biológico evolucionista, criando um tipo de evolucionismo declinista, atribuindo à natureza, ao homem e à civilização uma história cuja finalidade seria o desgaste energético e o seu consequente declínio. O fez (1920/1969i) assumindo um modo em continuidade de evoluir da natureza física para a biológica e desta de volta para a física, vale dizer, do inorgânico ao orgânico e deste de novo ao inorgânico. Vale lembrar que o vitalismo clássico se caracteriza justamente pela distinção ontológica entre o que é da ordem do orgânico e do inorgânico.

Por fim, a continuidade admitida entre os sistemas permitiu-lhe considerar que nem mesmo a emergência da ordem biológica seguida da ordem social constituiu uma oportunidade de emancipação das leis da física. Foi nesses termos que assumiu de maneira mais contundente a contradição interna que anima a relação dos homens em sociedade regidos pela moral sexual civilizada produtora de desordem. A sociedade e o aparelho psíquico como usinas de caos.

Mecanismo inepto, Eu inerme e Trieb inerte

Para finalizar a crítica ao artigo de Ruz retomo parte dos argumentos que desenvolvi em 2019b, acrescentando as reflexões de Canguilhem (1965/1971Canguilhem, G. (1971). La connaissance de la vie. Paris, FR: J. Vrin. (Trabalho original publicado em 1965)., 196/1971Canguilhem, G. (1971). La connaissance de la vie. Paris, FR: J. Vrin. (Trabalho original publicado em 1965)., 1987)Canguilhem, G. (1987). La décadence de l´idée de progrès. Revue de metaphisique et de morale, 92(4), 437-454. acerca das relações entre materialismo mecanicista e vitalismo.

Vitalista de inspiração bergsoniana, Canguilhem (1966/2013)Canguilhem, G. (2013). Le normal et le pathologique. Paris, FR: PUF. (Trabalho original publicado em 1966), em Le normal et le pathologique, o toma por uma disposição de organização da vida. Concebe a ordem vital “como uma atividade de oposição à inércia e à indiferença” (p. 224, T. A.).6 6 Comme activité d´opposition à l´inertie et à l´indifférence. Ponto de vista que diverge do de seu conterrâneo André Lwoff (1969)Lwoff, A. (1969). L’ordre biologique. Paris, FR: R. Laffont., para quem, “a simples manutenção da ordem biológica comporta uma degradação de energia” (p. 161),7 7 Le simple maintien de l`ordre biologique comporte une degradation de l`energie. assim como do de Freud (1920/1969iFreud, S. (1969i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920). e 1929/1969k)Freud, S. (1969k). O mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1929)., para quem os homens, como as civilizações, degradam por razões e causas internas. Já Canguilhem (1966/2013)Canguilhem, G. (2013). Le normal et le pathologique. Paris, FR: PUF. (Trabalho original publicado em 1966) considera que toda ordem biológica, como as civilizações, resistem à morte perseverando em seu ser e assim se afastam da entropia do mundo físico, já que, como disse, “a vida joga contra a entropia crescente” (p. 224, T. A.).8 8 La vie joue contre l´entropie croissante.

Nesses termos, Canguilhem atribui à vida um caráter de esforço e de superação cuja meta é a sua conservação por meio da produção contínua e criativa de normas, de regulação. Há que se considerar que se trata de um esforço que além de oportunizar a reprodução fiel dos organismos, oportuniza também as monstruosidades, as aberrações, sempre no objetivo de combater a desordem entrópica do mundo físico. Trata-se, se assim quisermos, de um tipo de vitalismo, mas apoiado na noção bergsoniana de élan original (Bergson, 1907/2008Bergson, H. (2008). L´évolution créatice. Paris, FR: PUF. (Trabalho original publicado em 1907)., p. 51, 53, 54 e 88), um movimento propulsor da vida que atua enquanto causa profunda das variações, que lhe permite pensar um processo evolutivo segundo a espontaneidade da vida que se manifesta por contínua criação de formas que se sucedem umas às outras, ensejando a cada momento algo de novo e assim sustentando a vida a partir de um regime normativo contingente.

Não admitindo a inércia e a desordem como presentes no interior da reprodução de seres vivos, Canguilhem (1966/2013)Canguilhem, G. (2013). Le normal et le pathologique. Paris, FR: PUF. (Trabalho original publicado em 1966) concebe seu dispositivo de regulação como decorrente das próprias necessidades de alimento, de energia, de movimento e até de repouso. Dispositivo responsável pela tentativa de construção do que chamou de “um estado operacional ótimo, determinado como constante. Uma regulação orgânica ou homeostase” (p. 243, T. A.),9 9 Un état optimum de fonctionnement, déterminé sous forme d´une constante. Une régulation organique ou une homéostasie. concluiu.

Apesar disso, assim como o de Bergson (1907/2008, p. 6)Bergson, H. (2008). L´évolution créatice. Paris, FR: PUF. (Trabalho original publicado em 1907)., seu vitalismo compartilha com o princípio de entropia a noção de irreversibilidade do tempo da vida, de sua duração. Isto porque sua démarche decorre da produção de normas que dão a condição de possibilidade da criação diferenciada e contínua de formas de vida. Para Canguilhem (1966/2013)Canguilhem, G. (2013). Le normal et le pathologique. Paris, FR: PUF. (Trabalho original publicado em 1966), “existe uma irreversibilidade da normatividade biológica” (p. 204, T. A.)10 10 Il y a une irréversibilité de la normativité biologique. ) justificada por uma finalidade contingente, a de criar vida. Assim, se recusa a reversibilidade do tempo, é para colocar em seu lugar um processo aberto e imprevisível de criação de vida. À entropia positiva ele opõe a normatividade biológica.

Apesar disso, em capítulo intitulado “Aspects du vitalisme” (1965/1971), ele evita considerá-lo alternativa científica, embora sugira nos aproveitarmos de sua “vitalidade” enquanto conceito para, por exemplo, produzirmos uma reflexão filosófica acerca das ciências modernas. Uma reflexão que nos permitiu concluir que Freud de fato não produziu uma teoria da vida. Uma reflexão que nos permitiu concluir que Freud, em sua metapsicologia, não foi além de explicar os fenômenos da vida em termos materiais e mecânicos. Que permitiu compreender que mesmo as ditas funções vitais do aparelho psíquico consistem em reações (efeitos) aos estímulos que sobre ele incidem. Nesse sentido, pode-se concluir que sua metapsicologia nem mesmo contém uma teoria da morte, mesmo que a tenha colocado no interior da vida, ou considerado que a vida a contenha em potência, como sugere Ruz (2019, p. 1 e 17)Ruz, F. H. (2019, mar.). Freud, la pulsión y lo viviente. En búsqueda de un vitalismo negativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(1), 95-116.. O fato é que, em termos metapsicológicos, o que Freud considerou foi o repouso no interior do movimento, a inércia no interior da ação. Desse modo, também Freud, diria Canguilhem, fez de sua metapsicologia um “satélite” da física e da química entrópicas.

Nestes termos, creio que o materialismo mecanicista de Freud, assim como sua metafísica convencional, não podem, de modo algum, ser identificados a algum tipo de metafísica vitalista, uma vez que esta considera a vida como ontologicamente imanente ao vivente e que o torna capaz de uma atividade marcada por uma identidade, por um impulso de vida a ser transmitido pela reprodução. Não há em Freud (1920/1969i)Freud, S. (1969i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920). uma metafísica que reivindica a atividade como espontaneidade da vida, mas sim como efeito reativo a estímulos, como ilustrada por ele com recurso à vesícula indiferenciada (p. 36); um organismo suscetível de estimulação e organização derivada de sua relação com os raios solares.

Ademais, foi em perfeita harmonia com sua noção de força que Freud concebeu seu lugar de circulação, o aparelho psíquico. A própria expressão “aparelho” já supõe a presença de componentes interconectados, uns agindo sobre os outros, todos nutridos e estimulados do seu exterior. Muito se esclarece se recorrermos ao argumento de Canguilhem (1965/1971)Canguilhem, G. (1971). La connaissance de la vie. Paris, FR: J. Vrin. (Trabalho original publicado em 1965)., de que “un mécanisme ne crée rien” (p. 87). Isso porque, como definiu, uma máquina é essencialmente um instrumento de “mediação” (p. 87), instrumento de interface com suas fontes, com dois sistemas que não poderiam ser conectados diretamente. Justamente como foi constituído e a que se presta o aparelho psíquico de Freud. Trata-se, portanto, em estrito sentido, de um aparelho mediador nutrido de seu exterior e inerte (inars).

Recorro ao esquema elaborado por Freud, sua segunda tópica, para mostrar mais uma vez que a sua prática especulativa não excetuou sua metapsicologia do âmbito do materialismo mecanicista. Muito semelhante ao esquema de 1923, publicado em “O ego e o id”, ele ilustrou em 1933 as “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, no caso, a Conferência XXXII. Nessa, Freud declarou, mais uma vez, pretender retratar as relações estruturais da mente enquanto mecanismo. Esse esquema pode muito bem ser descrito com empréstimo aos argumentos de Canguilhem (1965/1971)Canguilhem, G. (1971). La connaissance de la vie. Paris, FR: J. Vrin. (Trabalho original publicado em 1965). em capítulo intitulado “Machine et organisme”, onde explica que uma máquina transmite movimentos comunicados, que são em si deslocamentos geométricos e mensuráveis. Além disso, ele diz também que “mecanismo não é motor” (p. 103),11 11 Mécanisme n`est pas moteur. porque, continua adiante, “uma máquina, no sentido já definido, não é suficiente por si mesmo, pois recebe do exterior um movimento que transforma. Só podemos representá-la em movimento por associação com uma fonte de energia” (p. 104).12 12 Une machine, au sens déjà défini, ne se suffit pas à elle-même, puisqu`ele doit recevoir d`ailleurs un moviment qu`ele transforme. On ne se la represente en mouvement, par conséquent, que dans son association avec une source d`énergie.

O que se vê no esquema de Freud corresponde prontamente ao argumento de Canguilhem. Como diz na conferência, o Superego se funde no Id [...] ele tem íntimas relações com o Id [...] ele é mais remoto que o Ego do sistema perceptual [...] o Id tem comunicação com o mundo externo apenas através do Ego [...] etc. Ora, se Freud não deixou dúvidas sobre suas relações mecânicas, tampouco deixou dúvidas sobre as fontes endógenas e exógenas de estimulação que trafegam no aparelho psíquico. O que enfatizou no seu esquema foi sua debilidade e inépcia no exercício da mediação entre as suas duas fontes de estimulação. Duas fontes que, jorrando continuamente (pelo menos a endógena) condena-o ao fracasso, submete-o ao desprazer da existência e não lhe deixa outra alternativa do que o prazer do escoamento.

Ao considerá-lo inerme, indefeso e dotado de uma precariedade que se manifesta como desamparo (que inclusive foi reconhecido, no “Projeto...”, como a fonte de todos os motivos morais), repito, condena-o ao escoamento, dado que seu dispositivo de defesa contra estímulos é o próprio mecanismo do arco-reflexo. Para além disso, como diz Porchat (2005)Porchat, P. (2005). Freud e o teste de realidade. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., trata-se de início de “um aparelho que tende à alucinação e não ao reconhecimento da realidade externa” (p. 43), o que o faz apenas a contragosto. Por fim, sem a possibilidade de espontaneidade, sem vitalidade própria, reage às suas fontes de estimulação submetendo-se às suas “leis” (leis físico-químicas que governam o mundo material), incorporando seus “princípios” e, assim, ainda que postergando, caminha na direção do repouso e da inorganicidade.

Como visto, a tematização filosófica do vitalismo sugerida por Canguilhem nos permitiu ver com clareza que a metapsicologia de Freud reduziu o psiquismo ao mecanismo e a vida ao movimento inercial. Por isto, creio que considerar o Trieb como vitalismo (mesmo que) invertido consiste em equivocadamente ignorar seu próprio estatuto. Além disso, equivale a esquecer que considerar a morte como objetivo da vida não é suficiente para conceder à vida primazia. Afinal, recusando as teses de Weismann, Freud (1920/1969i, p. 57)Freud, S. (1969i). Além do princípio do prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920). considerou que a morte não é aquisição tardia da vida. O fato é que embora seja verdade que esteja em seu centro (como disse Ruz), para Freud a morte não surgiu com a vida ou dela, mas a precede e luta para destitui-la. Ponto de vista que ecoa a tese de Schopenhauer em O mundo como vontade e como representação, em razão do privilégio do primeiro ocupante.

Nesses termos, considero sua metapsicologia sob a condição de um materialismo mecanicista levado às últimas consequências, à entropia. De fato, Freud criou uma metapsicologia para compreender o homem em seu funcionamento e resolver seus problemas práticos e não explicar a vida em seus fundamentos.

Felizmente não se limitou a ela, pois no conjunto a psicanálise se ocupa de um vivente que escapa às pretensões científicas de metrificação. Quero dizer que nem sempre Freud pensou “as coisas da vida” no mesmo enquadre da matéria bruta, por conta do que produziu mais do que metapsicologia. Produziu uma clínica que permite compreender como os fatos pessoais se organizam, mas sobretudo como eles são vividos e reorganizados em um tempo qualitativo. Esta foi a segunda, e talvez a melhor, contribuição de Freud para nossa época.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.
  • 1
    Possivelmente em referência ao conceito de força vital de Bichat ou de princípio vital de Barthez.
  • 2
    Consultar Loparic (2003aLoparic, Z. (2003a). De Kant a Freud: um roteiro. Kant e-Prints, 2(9), 1-12., 2003b)Loparic, Z. (2003b). Kant e as especulações metapsicológicas em Freud. Kant e-Prints, 2(9), 1-31. e Fulgêncio (2006Fulgêncio, L. (2006, jan./jun.). O lugar da psicologia empírica no sistema de Kant. Revista Kant e-prints, 1(1), 89-118, série 2., 2007Fulgêncio, L. (2007). Fundamentos kantianos da psicanálise freudiana e o lugar da metapsicologia no desenvolvimento da psicanálise. Revista Psicologia USP, 18(1), 37-56., 2008)Fulgêncio, L. (2008). O método especulativo em Freud. São Paulo, SP: Educ..
  • 3
    Segundo Kant (1781/1993, p. 322)Kant, I. (1983). Crítica da razão pura. São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1781)., é o princípio lógico da razão que realiza toda unidade. Quanto mais idênticos os fenômenos de uma e de outra força, tanto mais verossímil serem pensados como diferentes manifestações de uma mesma força fundamental.
  • 4
    Fonseca (2016) declara que “Freud sempre tentou encontrar, por trás das definições parciaisdos numerosos impulsos, aqueles que fossem irredutíveis e fundamentais. É a isso que ele se refere como algo “sério e grandioso”, dando origem às suas definições tópicas. As suas formulações gerais articulam modelos dualistas de impulsos fundamentais (justificados a partir da noção clínica de conflito entre forças opostas dentro do psiquismo), a partir dos quais todos os outros impulsos derivados se articulam” (p. 41).
  • 5
    Pois o fechamento absoluto de um sistema seria impossível ao aparelho psíquico, exceto nos casos patológicos graves, como a psicose.
  • 6
    Comme activité d´opposition à l´inertie et à l´indifférence.
  • 7
    Le simple maintien de l`ordre biologique comporte une degradation de l`energie.
  • 8
    La vie joue contre l´entropie croissante.
  • 9
    Un état optimum de fonctionnement, déterminé sous forme d´une constante. Une régulation organique ou une homéostasie.
  • 10
    Il y a une irréversibilité de la normativité biologique. )
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    Mécanisme n`est pas moteur.
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    Une machine, au sens déjà défini, ne se suffit pas à elle-même, puisqu`ele doit recevoir d`ailleurs un moviment qu`ele transforme. On ne se la represente en mouvement, par conséquent, que dans son association avec une source d`énergie.

Referências

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Editora/Editor: Profa. Dra. Ana Maria G. R. Oda

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2019
  • Revisado
    19 Maio 2020
  • Aceito
    24 Maio 2020
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