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A cabeça do brasileiro no divã

RESENHA DE LIVROS

Jamille Mascarenhas Lima

A cabeça do brasileiro no divã

Coelho dos Santos, T.; Decourt, M.C.C. (Org.)

Rio de Janeiro: Sephora, 2008, 142p.

O livro A cabeça do brasileiro no divã traz uma reflexão atual sobre a responsabilidade política da interpretação psicanalítica e problematiza a ação do psicanalista na cidade.

Partindo do debate de soluções que favoreçam a integração dos sujeitos no pacto social democrático, as autoras problematizam a relação entre as mazelas da desigualdade no Brasil, a mentalidade do brasileiro, seus hábitos culturais e sua posição como sujeitos.

A análise parte de uma leitura, embasada na perspectiva psicanalítica, do livro A cabeça do brasileiro do antropólogo Alberto Carlos de Almeida, na qual o autor faz uma revisão das teses do Roberto DaMatta sobre a subjetividade do brasileiro. As autoras problematizam a relação entre nível de escolaridade dos sujeitos e sua adesão aos princípios norteadores da sociedade democrática, através de uma reflexão sobre a política do "jeitinho brasileiro".

Segundo Tania Coelho dos Santos, a existência de uma dupla moralidade na administração da cidade, na qual vigora uma dessimetria entre os direitos e deveres dos cidadãos, promove uma cisão entre os indivíduos mais escolarizados e, portanto, com melhores condições econômicas, e a grande massa de sujeitos sem escolaridade que se inserem na economia de maneira informal. Partindo dessa premissa, a autora adverte que não é possível pensar na categoria de "brasileiro médio", na medida em que a distribuição estatística da escolaridade brasileira não é igualitária.

Coelho dos Santos analisa duas limitações do conhecimento da subjetividade do brasileiro: no campo da psicanálise, a ideia de que o sujeito do inconsciente é universal; já no campo da antropologia, o ideal de uma sociedade igualitária que não leva em conta as diferenças geracionais e sexuais.

A partir da análise desses dois eixos, a autora tem por objetivo alertar os analistas - tanto nas suas pesquisas teóricas quanto na clínica - da importância das diferenças psíquicas relacionadas com o grau de escolaridade e questionar o pressuposto antropológico de que a modernização dos costumes possa erradicar completamente as desigualdades.

Cunha continua essa discussão analisando a política do "jeitinho brasileiro" através da correlação entre o gozo e a Lei. A partir das pesquisas de DaMatta, a autora ressalta o paradoxo apontado por essa análise do "jeitinho brasileiro".

Cunha acompanha a consideração de DaMatta de que, apesar de ser mais tolerado pelas classes inferiores, o "jeitinho" é mais utilizado por indivíduos de classes mais elevadas, e problematiza, a partir dessa consideração, a articulação entre o gozo e a Lei na subjetividade do brasileiro.

O artigo de Valéria Vanda Fonseca parte da influência da discursividade contemporânea na constituição do sujeito no laço social e aponta os efeitos do declínio da moral sexual civilizada. Tomando como ponto de partida o modelo individualista, que estimula a dicotomia entre o público e o privado, a autora ressalta que muitos brasileiros tendem a flexibilizar os preceitos da ordem social - instituída na relação com o público - em prol de soluções imediatistas e particulares. A partir dessas considerações, ela nos convida a refletir sobre a política do jeitinho como um modo de o sujeito reivindicar ser tratado como exceção, ou seja, não consentir em perder nada.

Maria Cristina Antunes dá continuidade a essa discussão analisando a posição de exceção pelo viés do "não ter" como fonte de poder. A autora faz uma análise da estratégia subjetiva do "eu não tenho" como fonte de satisfação pulsional e problematiza as relações de poder e prazer que atravessam os programas assistenciais.

A partir da consideração da pobreza enquanto conceito psicanalítico, a autora ressalta que ser pobre é essencialmente uma posição feminilizada de ser objeto ou sujeito prejudicado, isto é, engendra uma estratégia de reivindicar ao Outro uma reparação. O relato de acompanhamentos psicanalíticos a pacientes obesos crônicos - através de um projeto de atenção multidisciplinar em empresa estatal - leva Antunes a questionar de que pobreza se trata nesse contexto.

Marcela Decourt, ao se perguntar "onde é que todo homem nasce livre e igual", faz uma análise crítica da relação entre as políticas assistenciais e a pobreza planejada. Segundo a autora, atualmente, os indivíduos não querem saber sobre suas responsabilidades, nem sobre as consequências de suas atitudes, muito menos sobre o preço a pagar por suas escolhas. Esses posicionamentos dos sujeitos contemporâneos são, ao mesmo tempo, causa e efeito das constelações familiares atuais. Segundo Decourt, a família contemporânea se vê dispensada de sua função mais essencial que é educar. O referencial de igualdade faz com que não haja mais nenhuma razão legítima para que uma criança esteja sob a orientação dos seus pais, na medida em que a família igualitária moderna apaga as diferenças sexuais e geracionais em prol de uma igualdade entre os indivíduos. A partir dessas considerações, a autora se questiona sobre o fracasso da família na transmissão da castração e aponta o paradoxo de que a família delega à escola o papel de educar as crianças, porém, recusa suas intervenções. Assim, ela nos propõe pensar em qual seria a possibilidade de integração do sujeito no pacto social, se a escola não cumpre o seu papel e a família se demite da sua função.

Rosa Guedes Lopes, ao analisar a política de adoção vigente no Brasil, nos alerta que o ato de adotar uma criança deixou de ser um modo de dar continuidade à família e passou a ser uma solução para a infância desassistida. A autora se pergunta quais as consequências subjetivas da política que prega essa inversão de perspectiva, na qual o que está em jogo na adoção não é mais dar filhos a pais que os desejam e sim dar pais a quem não os tem.

Lopes ressalta que a verdadeira causa em jogo na constituição familiar deve-se à economia do gozo sexual relativa ao que estrutura os humanos como macho ou fêmea, e não à economia providencial. Dessa maneira, a adoção não pode ser um meio de se passar ao largo da esterilidade do casal, nem um modo de resolver o problema político que permite que se dê luz a crianças que serão abandonadas. A parentalidade deve ser deduzida da genitalidade e não o contrário, isto é, a condição de pai e mãe é consequência e não causa da relação de um casal sexuado.

Lopes faz uma crítica consistente dessa inversão de perspectiva na política de adoção e ressalta os perigos de se tentar incluir, a qualquer custo, as crianças que foram geradas e descartadas por indivíduos que se acreditam credores do Outro social devido a sua condição de excluídos e sem recursos.

A política assistencialista deriva-se da cultura de vitimização dos sujeitos e promove um ideal de reparação, ao invés da responsabilização dos sujeitos pelos seus atos. Dessa maneira, a autora nos convoca a incluir na consideração da adoção o impossível estrutural que se coloca para os pais - enquanto a impossibilidade de gerar um filho - e, também, a impossibilidade que assola o sujeito adotado, isto é, a impossibilidade de saber sobre o desejo que o gerou.

Rachel Amin Freitas analisa a relação entre a desagregação familiar e a delinquência de menores. Ao supor que a má formação educacional dos pais e a desagregação familiar vão sendo transmitidas ao longo das gerações, a autora enfatiza a função de Lei que uma intervenção jurídica pode ter para essas crianças, na medida em que essa função não é transmitida por uma metáfora paterna consistente.

Freitas também chama a atenção para a diferença entre o desamparo das crianças pobres e a falta de limites das crianças ricas. No primeiro caso, o que está em jogo é a impossibilidade de transmissão da lei devido à desagregação familiar; já no segundo, está em jogo a disseminação do "é proibido proibir" que favorece a ilusão que se pode tudo.

A autora enfatiza também que, devido à desagregação familiar, a justiça é chamada a desempenhar um papel que não lhe cabe, isto é, dar limites aos sujeitos e uma referência de Lei que seja minimamente operacional.

Christiane Zeitoune continua essa discussão apontando os reflexos do descaso da transmissão da Lei pelas famílias e sua correlação com a delinquência infanto-juvenil. Segundo a autora, os efeitos da política assistencialista, somados à desagregação familiar, resultam no aumento da violência, na diminuição da articulação simbólica e no declínio da autoridade encarnada.

Enfim, o livro A cabeça do brasileiro no divã nos convoca a pensar nos efeitos da atual política assistencialista no Brasil e suas correlações com o aumento da violência, da corrupção e da pobreza planejada. As políticas públicas de reparação de danos favorecem a crescente vitimização dos indivíduos excluídos, promovendo a proliferação da desresponsabilização dos sujeitos pelos seus atos. Por outro lado, o livro também ressalta que, além das políticas sociais em jogo na promoção da educação como meio de se inserir na lógica moderna - que prega a igualdade de direitos e deveres no pacto social -, é necessário considerar a problemática do ideal veiculado por essa concepção.

Os autores alertam que a lógica democrática supõe a eliminação das diferenças, porém a própria estrutura na qual o sujeito se funda se baseia na impossibilidade de se erradicar a diferença sexual e geracional. Dessa maneira, o livro problematiza a sutil diferença entre a visão generalizante da antropologia e a posição da psicanálise que leva em conta a singularidade do sujeito.

JAMILLE MASCARENHAS LIMA

Psicóloga formada pela Universidade Federal da Bahia - UFBA (Salvador, BA, Brasil), mestranda do programa de Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil).

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e-mail: jamilleml@yahoo.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Set 2009
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