Acessibilidade / Reportar erro

Desambiguar Freud de Lacan: um retorno com consequências

To desambiguate Lacan of Freud: a return with consequences

O livro organizado por Sander Machado e Luciana Nunes conta com oito capítulos nos quais os autores defendem uma proposta de leitura da obra lacaniana que busca desfazer uma suposta equivalência entre Lacan e Freud, ideia comum no campo psicanalítico. Cada autor sustenta o argumento por uma via própria e com seu estilo, sem perder de vista o rigor necessário para tal empreitada.

A cada capítulo o leitor é convidado a acompanhar um percurso proposto em torno de temas fundamentais para a psicanálise. É surpreendente o caminho que os achados dos autores percorrem, uma vez que é na própria esteira do texto lacaniano que encontraremos proposições conflitantes com o que é difundido em meios psicanalíticos, ou seja, a própria desambiguação proposta no livro, onde Lacan não necessariamente coincide com Freud. A qualidade da escrita que temos em mãos não se dá sem a capacidade de uma leitura atenta e perspicaz dos referidos autores. Sendo assim, somos contemplados com uma obra potente, que não se pretende superior a outras leituras, mas que nos coloca um horizonte menos nebuloso na psicanálise.

A necessidade de uma desambiguação da teoria lacaniana da teoria freudiana surge questionando a naturalização da equivalência entre os autores que acaba por fomentar o obscurantismo teórico e dificultar a própria compreensão da psicanálise com malabarismos epistemológicos e conceituais, colocando a transmissão mais próxima de um exercício de poder onde a hierarquia das transferências inibe a capacidade do avanço da psicanálise. Lacan (1960/1998c)Lacan, J. (1998c). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 807-842). Zahar. (Trabalho original publicado em 1960). em “A subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” ao argumentar sobre a necessidade de uma teorização do sujeito para a psicanálise diz que:

Uma carência da teoria, reforçada por um abuso em sua transmissão, os quais, por não deixarem de ser perigosos para a própria práxis, resultam, tanto um quanto o outro, numa ausência total de status científico. Formular a questão das condições mínimas exigíveis para tal status não era, talvez, um ponto de partida desonesto. (p. 808)

Portanto, a proposta do livro aqui em questão reitera a ideia de que a psicanálise exige condições fundamentais que acabam se perdendo na insistência de uma tautologia prejudicial ao campo psicanalítico, fomentando fixação da mestria, dificultando os giros necessários para a produção de um discurso analítico na cultura. A ambiguidade é sustentada na transmissão por processos de esquecimentos, negações e apagamentos em ambas as teorias, produzindo uma leitura chamada de freudolacaniana. Curioso caso de exclusão de um intervalo entre esses nomes, ou seja, um tamponamento da própria lógica significante, que é único justamente por não operar só (Lacan, 1955/1998bLacan, J. (1998b). O seminário sobre “A carta roubada”. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 13-66). Zahar. (Trabalho original publicado em 1955).).

Os autores reconhecem as diversas correspondências entre as teorias. Seria ingênuo dizer que não existem, uma vez que Lacan se volta justamente para o que Freud escreveu. Porém, não se trata de uma repetição mais complexa do que já foi dito; se assim fosse, estaríamos diante do cenário incansável e estagnado da repetição. A lógica e a coerência epistemológica de cada teoria são os eixos condutores dessa proposição.

A epistemologia com a qual Lacan retorna a Freud é o tema do capítulo de abertura do livro escrito por Luciana Nunes. Nele a autora argumenta que o retorno a Freud proposto por Lacan é um retorno de ruptura e descontinuidade, uma vez que não é sem efeitos que a linguística, a antropologia, a topologia e a matemática encontram a psicanálise. O conceito de sujeito lacaniano, convertido na ideia de indivíduo freudiano, é trabalhado por Sander Machado no capítulo seguinte, tendo em vista que Freud não desenvolve em sua obra um conceito de sujeito como propõe Lacan, e sim uma noção de indivíduo. Dessa forma, a psicanálise perderia espaço no debate contemporâneo interdisciplinar. No terceiro capítulo, Alfredo Eidelsztein analisa os desdobramentos da psicanálise lacaniana onde seus seguidores fariam desaparecer o próprio paradigma que Lacan propôs, criando um outro completamente diferente. No capítulo seguinte, Martín Mezza aborda como cada teoria trata a divisão do sujeito (Spaltung). Tendo Freud feito um paralelismo entre realidade interna e externa e Lacan trabalhando com as noções de objeto a e Grande Outro barrado (Ⱥ). O problema da responsabilização subjetiva como a imputação de algo, ou seja, como uma condenação é explorado no capítulo subsequente, por Camila Kushnir. A autora discorre sobre como a psicanálise incorporou essa noção corroborando como uma lógica neoliberal da individualização.

Inclui-se no corpo do livro um capítulo de Ricardo Goldenberg que se propõe a uma crítica à ideia da desambiguação. O autor afirma que a psicanálise não existe sem um ponto de origem e que Lacan é um autor de incertezas e ambiguidades, sendo problemática a tentação de encontrar um Lacan puro. Nesse sentido, ressalta-se o cuidado dos organizadores ao tratar do tema marcando a posição de que a desambiguação não se propõe a elencar uma teoria como mais acertada, nem mesmo colocar a desambiguação como a única leitura, incluindo no conjunto de textos esse capítulo.

No capítulo seguinte, Flávia Dutra discorre sobre a compreensão da Coisa (das ding) e como ela teria influenciado os lacanianos a reincorporar a noção biológica na psicanálise. Situando o gozo e o corpo inscrito no Real como a negação do paradigma lacaniano. Por fim, Marta D’Agord trata da diferença entre a etologia onde Lacan se apoia para teorizar o inconsciente e a teoria da evolução que inspira Freud, diferenciando os autores em pontos cruciais.

É com esse fôlego que somos convocados a acompanhar a lógica do projeto lacaniano para a psicanálise, pautada em um retorno à descoberta freudiana, o que implica um retorno crítico a Freud. Os autores de Desambiguar Lacan de Freud, nos fornecem uma chave de leitura, possibilitando e corroborando com Lacan (1953/1998a)Lacan, J. (1998a). Função e campo da fala e da linguagem. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 238-324). Zahar. (Trabalho original publicado em 1953). quando afirma que “os conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala” (p. 247). Ou seja, a coerência epistemológica e o entendimento dos diferentes paradigmas científicos de Freud e Lacan se mostram imprescindíveis para a continuidade do debate psicanalítico, tal como sua permanência e relevância na cultura.

Referências

  • Lacan, J. (1998a). Função e campo da fala e da linguagem. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 238-324). Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).
  • Lacan, J. (1998b). O seminário sobre “A carta roubada”. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 13-66). Zahar. (Trabalho original publicado em 1955).
  • Lacan, J. (1998c). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Jacques Lacan, Escritos (pp. 807-842). Zahar. (Trabalho original publicado em 1960).
  • Machado S., & Nunes, L. (Orgs.) (2023). Desambiguar Lacan de Freud Artes e Ecos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2023
  • Aceito
    23 Ago 2023
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com