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“Todos os homens, por natureza, desejam conhecer”(Aristóteles)

“All men by nature desire to know” (Aristotle)

Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentaisDalgalarrondo, Paulo. Porto Alegre, RS: Artmed, 2019, 3ª ed., 505 págs.

A terceira edição do livro Psicopatologia e semiologia dos trans-tornos mentais, de Paulo Dalgalarrondo, publicada em 2019, é muito bem-vinda. Desde a primeira edição, em 2000, o livro tornou-se uma referência para todos os estudiosos de psicopatologia em nosso país. Ao seu rigor conceitual, alia-se uma escrita clara e agradável, acompanhada de citações preciosas de obras literárias de língua portuguesa e em sua maioria brasileiras, o que dá ao livro um frescor e uma brasilidade muito interessantes.

Passados vinte anos da primeira edição, estamos diante de uma obra completamente renovada. A nova edição foi atualizada em relação à décima primeira Classificação Internacional de Doenças (CID 11) e à quinta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5), havendo também uma preocupação em integrar o conhecimento mais atual em termos de psicopatologia e neurociências, incluindo o Research Domain Criteria (RDoC) do National Institute of Mental Health (EUA), que define novas linhas para pesquisa dos transtornos mentais.

O objetivo do livro permanece inalterado, qual seja, integrar e dispo-nibilizar para os seus leitores a tradição da psicopatologia com a neurociência cognitiva moderna. Dentro desse objetivo, há ampliação e atualização dos conteúdos referentes às neurociências. Na primeira parte do livro, “Aspectos Gerais da Psicopatologia”, o capítulo que analisava o conceito de normalidade em psicopatologia nas edições anteriores foi acrescido da discussão, extremamente relevante nos tempos atuais, sobre a medicalização, psiquiatrização e psicologização da vida. Além disso, o capítulo destinado às contribuições de algumas áreas do conhecimento à psicopatologia desdobrou-se em dois capítulos distintos: “Contribuições das Neurociências à Psicopatologia” e “Contribuições da Filosofia à Psicopatologia”. No capítulo sobre as neurociências há informações sobre genética molecular, e no capítulo sobre as contribuições da filosofia à psicopatologia encontramos a discussão atualíssima a respeito da medicina/psicopatologia baseada em valores (Fulford, 2004Fulford, K. W. M. (2004). Facts/values: ten principles of values-based medicine. In J. Radden (Ed.), International perspectives in philosophy and psychiatry. The philosophy of psychiatry: A companion (pp. 205-234). New York, NY: Oxford University Press.), ambos temas que não estavam contemplados anteriormente.

A segunda parte do livro se aprofunda na questão sobre a avaliação direta do paciente, através da anamnese, exame físico e exame psíquico. Nota-se ainda que foram mantidas as ênfases na parte do exame “não mental”, consideradas por alguns clínicos apenas como “acessórios” dispensáveis no exame completo. A insistência do autor no exame neurológico e sugestões de avaliações físicas dos pacientes como essenciais à boa clínica nos parece muito acertada. Este nos lembra, recorrentemente, que o paciente é uma unidade, não podendo ser dividido em funções ou segmentos específicos.

O autor segue o modelo de psicopatologia descritiva utilizado pela psicopatologia brasileira (Rocha Neto et al., 2019Rocha Neto, H. G., Estellita-Lins, C. E., Lessa, J. L. M., & Cavalcanti, M. T. (2019). Mental state examination and its procedures - Narrative review of Brazilian descriptive psychopathology. Frontiers in Psychiatry 10 (March), 1-12. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2019.00077.
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). Dalgalarrondo mantém o nome “exame mental”, utilizado em versões anteriores de seu livro, como equivalente ao conjunto de ações realizadas pelo clínico ao examinar o paciente. Os capítulos introdutórios trazem uma análise detalhada das condições para a realização do exame, assim como importantes considerações a respeito da comunicação não verbal e como avaliá-la.

O autor mantém a segmentação do exame mental em 14 funções mentais, divididas em 11 “funções elementares” (consciência, orientação, atenção, memória, sensopercepção, pensamento, linguagem, juízo de realidade, vida afetiva, volição e psicomotricidade) e três “funções compostas” (inteligência, consciência do eu e personalidade). Embora não sejam descritos como “funções psíquicas”, destaca-se que o registro e análise adequada da noção de morbidade, do desejo de ajuda e dos sentimentos transferenciais são parte fundamental de um exame mental bem realizado.

Nos capítulos em que detalha cada função psíquica, o autor segue um padrão de abordagem muito interessante, realizando uma excelente contextualização histórica e recuperando análises de antigos psicopatologistas até o momento atual. Atualiza então o leitor quanto à abordagem dessas funções no modelo de caracterização de doenças utilizado pelo RDoC, seguida da apresentação das bases biológicas e neurotopográficas de acordo com pesquisas recentes. Os capítulos se encerram com a descrição das anormalidades que podem ser observadas durante o exame, complementados por ferramentas psicométricas validadas, que podem ser utilizadas para quantificação de sinais e sintomas.

Todos os capítulos trazem novidades significativas quando comparados à edição anterior e aos manuais disponíveis na literatura brasileira atual. As principais inovações se dão dentro das teorias utilizadas como hipótese geradora dos sinais e sintomas, mas também na forma de observar algumas alterações previamente descritas, porém ignoradas em muitos manuais, tais como as alterações na consciência de si analisadas na EASE (Examination of Anomalous Self-Experience, Parnas et al., 2005Parnas, J., Møller, P., Kircher, T., Thalbitzer, J., Jansson, L., Handest, P., & Zahavi, D. (2005). EASE: Examination of anomalous self-experience. Psyhopathology, 38(5), 236-258. https://doi.org/10.1159/000088441.
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), a expansão dos conceitos de inteligência, insight, consciência, entre outros. As funções psíquicas descritas por Dalgalarrondo devem continuar sendo um dos modelos mais importantes na semiologia psiquiátrica nacional (Rocha Neto et al., 2019Rocha Neto, H. G., Estellita-Lins, C. E., Lessa, J. L. M., & Cavalcanti, M. T. (2019). Mental state examination and its procedures - Narrative review of Brazilian descriptive psychopathology. Frontiers in Psychiatry 10 (March), 1-12. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2019.00077.
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).

Na terceira parte, temos uma mudança de nomenclatura, “As grandes síndromes psiquiátricas” passam a se chamar “Psicopatologia e as grandes síndromes e transtornos psicopatológicos”, deslocando-se a ênfase da psiquiatria para a psicopatologia. Há um capítulo (28) nomeado como “As síndromes da psicopatologia, os transtornos e os modos de proceder em relação aos diagnósticos” que traz uma questão fundamental: “apesar dos sistemas classificatórios descreverem os transtornos mentais de forma clara, considera-se útil clinicamente a abordagem inicial dos quadros mentais por meio da perspectiva sindrômica” (p. 341). Com o predomínio corrente do diagnóstico a partir dos sistemas classificatórios e o empobrecimento do estudo da psicopatologia, reforçar este modo de proceder em relação aos diagnósticos e esse deslocamento da psiquiatria para a psicopatologia, do transtorno mental para a síndrome, é estratégico e crucial para o campo dos estudiosos e práticos da psiquiatria.

Em relação às síndromes propriamente ditas, o capítulo das “Síndromes Ansiosas” foi bastante ampliado e acrescido de síndromes com importante componente de ansiedade, incluindo sintomas sem explicação médica, fibromialgia, entre outros, anteriormente descritos em um capítulo dedicado às síndromes neuróticas, que deixou de existir. Em relação ao capítulo de síndromes alimentares e ao de síndromes relacionadas a substâncias psi-coativas, seus nomes foram alterados para dar ênfase à questão do comportamento alimentar e dos comportamentos aditivos. O capítulo “Sexualidade e psicopatologia” (37) (antes denominado “Síndromes relacionadas à sexualidade”) foi estendido e passou a incluir uma ampla discussão sobre as variabilidades da sexualidade humana.

Assim, a terceira edição do livro Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, de Paulo Dalgalarrondo, é essencialmente um novo livro, sem perder em nada a qualidade das edições anteriores, que fizeram deste tratado de psicopatologia um dos mais utilizados pelos psiquiatras e profissionais de saúde mental brasileiros. Entre suas maiores qualidades estão sua amplitude, profundidade e atualidade, sempre em linguagem acessível e apontando os caminhos e bibliografia para os leitores que desejarem avançar em seus conhecimentos. Na versão atual, foi desenvolvido também um hotsite com materiais complementares: escalas, modelos de histórias clínicas, textos históricos citados no livro, atlas com imagens neuroanatômicas, instrumentos padronizados para avaliação psicológica e psicopatológica, questões de revisão e um glossário de denominações populares relacionadas a comportamentos, estados e transtornos mentais, substâncias psicoativas e psicopatologia em geral.

O fato de termos um texto em português com a qualidade do livro de Dalgalarrondo, que apresenta uma pesquisa histórica extremamente cuidadosa, aliada a princípios psicopatológicos claros e conteúdo atualizado, acessível a estudantes e indicador de caminhos de aprofundamento para profissionais mais experientes e estudiosos do campo, só pode ser motivo de júbilo e agradecimento de todos nós que militamos no campo da psiquiatria brasileira. Agradecimento estendido a todos os que contribuíram para a excelência do livro e que são generosamente citados no prefácio da terceira edição. Por fim, gostaríamos de fazer referência às ilustrações de Gilnei da Costa Cunha, que dão ao livro uma beleza a mais, tornando a leitura ainda mais prazerosa.

Referências

  • Fulford, K. W. M. (2004). Facts/values: ten principles of values-based medicine. In J. Radden (Ed.), International perspectives in philosophy and psychiatry. The philosophy of psychiatry: A companion (pp. 205-234). New York, NY: Oxford University Press.
  • Parnas, J., Møller, P., Kircher, T., Thalbitzer, J., Jansson, L., Handest, P., & Zahavi, D. (2005). EASE: Examination of anomalous self-experience. Psyhopathology, 38(5), 236-258. https://doi.org/10.1159/000088441
    » https://doi.org/10.1159/000088441
  • Rocha Neto, H. G., Estellita-Lins, C. E., Lessa, J. L. M., & Cavalcanti, M. T. (2019). Mental state examination and its procedures - Narrative review of Brazilian descriptive psychopathology. Frontiers in Psychiatry 10 (March), 1-12. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2019.00077
    » https://doi.org/10.3389/fpsyt.2019.00077
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2019
  • Aceito
    26 Jul 2019
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