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Lugares: relações entre corpo e linguagem

Places: Relations between body and language

Figuras do espaço: sujeito, corpo, lugarMieli, Paola. São Paulo, SP: Annablume, 2017, 287 págs.

Em tempos de penúria, quando alguns continuam insistindo em vulgarizar a psicanálise e outros fazem avançar, com estardalhaço na mídia, a ideia de que o lugar do inconsciente na contemporaneidade não é mais aquele construído por Freud, um livro que contradiz tais afirmativas, muito bem definido, incisivo, e escrito em linguagem clara e precisa. Com a mesma honestidade intelectual e criatividade com que escreveu Sobre as manipulações irreversíveis do corpo (Rio de Janeiro, Contracapa), Mieli, uma das psicanalistas mais renomadas de Nova York, transforma a temática do espaço num instrumento de reflexão sobre a relação do sujeito com o mundo.

Esse móbil - o espaço - tão decantado nos debates filosóficos, religiosos e científicos - ganha um lugar inusitado na abordagem da autora às experiências comuns, cotidianas e ao mesmo tempo absolutamente estranhas que compõem sua escrita. É digno de nota que as hipóteses que Mieli enuncia são, desde o início do livro, embasadas pela exatidão de seu pensamento e escrita, o que cria anticorpos que coíbem a expansão de certo “psicanalês”, comum na literatura psicanalítica atual. Vejamos.

Começar um trabalho psicanalítico pelo resgate da obra de Freud não é sem consequências. Nos termos de Walter Benjamim, Mieli, com a intensidade daqueles que possuem a coragem de se afastar de um dito para introduzir um novo dizer, retorna às origens da psicanálise, sempre incompleta e inacabada, para obter o domínio de alguma coisa que considera perdida. O efeito da estratégia benjaminiana é reconhecer que as ideias originadas na história são em si mesmas intemporais, mas contêm, sob a forma de “história-virtual”, uma remissão à sua pré e pós-história. Este é um convite a percorrer as trilhas de fundação da “outra cena” - o inconsciente - e deixar de lado toda a empáfia contida nas expressões “eu já sei disso”; “isso é antigo”; “os tempos são outros”; “Freud já era”.

O que mais me interessa ressaltar nesta resenha é a maneira como Mieli consegue aberturas para alguns dos paradoxos freudianos. De modo poético, porque aquele que se dispõe a resgatar um “afogado”, como dizia Mário Quintana, termina fazendo poesia, Mieli realiza um “retorno” à teoria freudiana que, segundo ela, introduziu uma concepção de espaço suis generis, de acordo com o espírito cultural do início do século XX e dos avanços da geometria e da física, restituindo-a ao lugar que de fato pertence. A fidelidade de Mieli à letra freudiana fica ainda mais evidente no domínio explícito que demonstra exercer em relação à teoria lacaniana. Guiando o leitor passo a passo através do sistema conceitual de Lacan, nossa autora esclarece a teoria da subjetividade encontrada na obra do psicanalista francês.

O sujeito “emerge no centro do mundo” o que significa que ele surge como efeito de uma “relação transferencial com o que é outro”. Dessas afirmativas, Mieli extrai uma definição singular de lugar: espaço libidinizado e mediado pela relação significante pela qual o sujeito aborda o mundo. Definição que exige repensar o estatuto do corpo e da linguagem em psicanálise; tarefa que a própria autora se encarrega de facilitar tomando como ponto de partida algumas experiências banais como o andar, a higiene do corpo e as ferramentas psicanalíticas necessárias. Com erudição, a autora faz uso também da literatura e das artes incluindo nesse campo a própria arquitetura da “cidade mãe” da psicanálise. Leva a sério o que Freud afirmou e Lacan reiterou: “há coisas que só o escritor, o poeta e o artista com seus meios específicos podem nos oferecer”.

Nesse sentido, a leitura do testemunho de Primo Levi em É isso um homem? sobre o horror indizível dos campos de extermínio, é primorosa. Levi transmite a história de homens torturados, destituídos de qualquer “singularidade subjetiva” num esforço de, através da linguagem, exprimir o inominável, o inassimilável do trauma de seu próprio povo e geração. É da escrita de Levi que Mieli retira elementos necessários para demonstrar que o projeto nazista de destituição do “pudor que sustenta a dignidade humana” e da paisagem libidinal do sujeito encontrou resistência nos campos: alguns prisioneiros reconstituíram, ainda que temporariamente, um lugar, uma aparência de lugar para si, num lugar construído justamente para assassiná-los.

Mieli atinge o coração do debate psicanalítico atual sobre corpo e a exigência de confrontação com o Real. Tanto Freud quanto Lacan insistem que mesmo quando o sujeito quer negá-lo ou desmenti-lo, o corpo não cessa de não fazer fracassar a linguagem. Mieli propõe apreender esse fato de estrutura fazendo um percurso no último ensino de Lacan que apresenta o trauma do corpo por uma língua anterior à linguagem: Lalíngua. O bebêé mergulhado em sua entrada no mundo no “banho de lalíngua”, a língua do Outro que atende às suas primeiras necessidades e o introduz no reino da linguagem. O “Próximo” na conceituação freudiana - objeto ambíguo por excelência, pois se constituirá, para o bebê, como único objeto capaz de lhe prestar socorro e, ao mesmo tempo, um objeto hostil que o impregna de linguagem. Dessa matriz freudiana - Complexo do Próximo - e de Lalíngua, a autora retirará consequências do significante lacaniano falasser que designa a relação entre sujeito e corpo e a constituição do espaço da transmissão psíquica entre as gerações. Somos, assim, reconduzidos a refletir sobre o espaço da transmissão psíquica, mais além do que cada ramo da ciência de nossa época insiste em dizer: o mundo repousa sobre entidades sutilíssimas - as mensagens do DNA e os impulsos neurônicos que vagam pelo espaço mental desde o começo dos tempos. Um encontro entre o corpo e a fala é a particularidade do humano no que “encarna o gozo que forma um saber inconsciente que o causa, mas que resta inacessível”. Maneira de reafirmar que a psicanálise possui uma contribuição absolutamente singular para se pensar as origens do sujeito e da cultura.

Existem vários ensinamentos clínicos e teóricos em Figuras do espaço, assim como referências generosas aos trabalhos de vários autores. Ao final do livro, três casos são apresentados, cada um deles inserido em diferente momento histórico, deixando transparecer a convicção da autora de que por mais que uma análise diga respeito aos sujeitos em suas particularidades, por estar ligada à linguagem a história privada faz parte da grande História, da história pública. Isso vale para o íntimo de cada um, qualquer que seja sua biografia, pois não existe espaço interior que não seja afetado pelo lugar.

Nesse ponto, Mieli retorna à problemática da transmissão. Dessa vez para reiterar o fato de que a psicanálise detém uma gloriosa apreensão de tempo de modo a fazer conviver passado e presente no mesmo lugar; o que assegura que o humano é impregnado pela “dívida simbólica” que provém das gerações precedentes. A defesa de Mieli pelas noções freudianas de temporalidade e de verdade histórica na apresentação dos três casos resume de forma definitiva sua adesão à máxima de Goethe registrada por Freud em Totem e tabuFreud, S. (1973). Totem und Tabu (12ª ed.). Frankfurt, Germany: Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1913). - “Aquilo que herdastes de teus ancestrais, conquista para fazê-lo teu”. Assim, ainda que de modo oblíquo, o livro se torna o retrato do desejo da autora de conjugar a complexidade psicanalítica à reescritura do que vem a ser espaço e lugar, tornando-os uma potente ferramenta de trabalho do analista na clínica e na crítica à cultura que testemunha.

Referências

  • Benjamin, W. (1985). Magia e técnica, arte e política São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Freud, S. (1973). Totem und Tabu (12ª ed.). Frankfurt, Germany: Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1913).
  • Levi, P. (1988). É isto um homem? Rio de Janeiro, RJ: Rocco.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D'Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2019
  • Aceito
    10 Jan 2020
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