Acessibilidade / Reportar erro

A PESTE: breves reflexões sobre psicanálise, arte e cultura

Em dezembro de 1908, Freud recebe pela primeira vez um convite para apresentar suas descobertas na Clark University, mas apenas no outono seguinte o convite, feito por Stanley Hall, foi concretizado quando então proferiu as cinco conferências sobre a psicanálise que inauguraram a primeira exposição sistemática de sua teoria. Momento histórico fundamental considerado um marco do reconhecimento de suas descobertas.

Lacan (1955/1998)Lacan, J. (1998). A coisa freudiana. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955)., 46 anos após esse fato, em uma confe- rência em Viena relata que em um encontro com Jung este lhe teria confessado ter ouvido um dito de Freud quando viajavam juntos, para a referida série de Conferências na Clark University. No instante em que avistavam o porto de Nova York e a célebre Estátua da Liberdade, Freud teria repentinamente afirmado: “Eles não sabem que estamos lhe trazendo a peste!”.

Lacan comenta não ter a certeza de que algo dessa ordem tenha ocorrido. De qualquer forma, chama a atenção para o engano de seu autor que teria acreditado que a psicanálise seria uma espécie de revolução para a América, quando, na realidade, a América é que acabou por devorar sua doutrina metamorfoseando-a no American way of life. Modo de vida marcado pelo consumismo, padronização social e crença libertária baseada nos valores liberais que cada vez mais se radicalizaram ao longo das últimas décadas. Pode-se mesmo afirmar que a psicanálise, especialmente, nesse território se expandiu pandemicamente como uma prática de adaptação e normalização social.

Destaca, nesse momento, os descaminhos, ou, como indica, o recalque, o esquecimento de um ensino, e de uma experiência, que em suas origens introduziu as marcas de uma verdadeira maldição para o status quo.

O fato é que o dito, mesmo que não tenha sido dito, retrata a marca que a psicanálise carrega desde suas origens. Marca, traço subversivo (...) ou ainda, como indica Freud (1932/1996d)Freud, S. (1996d). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXXIV: Explicações, Aplicações e Orientações. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1932).veneno que introduz mudanças na posição subjetiva de quem a inocula transformando o modo de viver a realidade em comum.

Lacan, em seu retorno a Freud, não cansou de alertar aos psicanalistas sobre a importância da convocação freudiana em prol da sustentação da ética da psicanálise - na clínica e na pólis de modo em geral - destacando a responsabilidade de cada um nessa empreitada. Trata-se de apostar na psicanálise mesmo nas condições mais adversas, não recuando, portanto, diante dos impasses, que são índices do real, que conclamam a simbolização (Lacan, 1972-73/1985Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).). Em outras palavras, os impasses demandam o novo, a criação de passagens que reafirmem o essencial nesse campo.

Num certo sentido, toda a obra de Lacan e seu legado se sustentam na insistência em direção ao resgate e à manutenção do traço disruptivo presente desde as origens do movimento psicanalítico (Freud, 1914/1996bFreud, S. (1996b). A história do movimento psicanalítico. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).). Insistência que tem seu início como retorno a Freud e que se expande nos avanços teóricos que renovaram o legado freudiano, viabilizando o acolhimento dos impasses clínicos atuais emergentes na cultura contemporânea.

A metáfora da psicanálise peste, como aquilo que subverte o mesmo conduzindo a torções subjetivas e, consequentemente, às transformações nos modos correntes de estar no mundo, me veio nesse momento da pandemia do coronavírus, que mudou radicalmente o cotidiano de todos nós. A peste em sua duplicidade significante permite ampliar os sentidos predominantes nesse momento da vida coletiva que tem no isolamento, nas perdas, assim como na ideia de funesto, seu significado principal.

Freud (1915/1996c)Freud, S. (1996c). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)., em um importante artigo escrito seis meses depois de deflagrada a Primeira Guerra Mundial, faz algumas reflexões sobre os tempos de guerra e de morte que podem nos servir neste momento. Afirma não ser incomum em situações de grandes catástrofes que envolvem um grande número de mortes, sermos tomados por uma espécie de alheamento que ele relaciona a duas questões principais: a desilusão e a nossa atitude frente à morte. Com relação ao primeiro ponto, considera que somente quando somos atingidos diretamente por tais situações, o que inclui nosso círculo de familiares e amigos, é que nos deparamos de fato com a realidade trágica, pois tentamos, frequentemente, manter a ilusão de que estaremos protegidos. Sobre o segundo ponto, como ensina a psicanálise, devido às determinações do funcionamento inconsciente, não acreditamos em nossa morte. O mais comum é colocarmos a morte de lado, tentando eliminá-la da vida evitando, inclusive, falar a respeito desse assunto nas situações cotidianas. Ressalta, no entanto, que tal atitude produz um empobrecimento da vida que nos impede de vivê-la plenamente. As guerras, os grandes desastres quando atravessam as nossas vidas, restringem esse tratamento da morte, que ele chama de convencional, nos forçando a encará-la efetivamente de frente.

Freud conclui o texto indicando a necessidade radical de se dar um lugar adequado para a morte na vida ao invés de apenas tentar suprimi-la. Podemos dizer, a partir disso, que os grandes desastres sociais, por mais dolorosos que sejam, apresentam uma oportunidade para o enfrentamento coletivo de nossa finitude, fragilidade e desamparo. Pontos comuns a todas as pessoas independentemente de cor, credo, gênero ou classe social abrindo a possibilidade da instauração de novos laços sociais baseados na solidariedade e num sentimento de identificação.

Nesse artigo chama a atenção, ainda, para a importância das artes no enfrentamento desse processo:

Constitui resultado inevitável de tudo isso que passamos a procurar no mundo da ficção, na literatura e no teatro a compensação pelo que se perdeu na vida […] No domínio da ficção, encontramos a pluralidade de vidas de que necessitamos. Morremos com o herói com o qual nos identificamos; contudo, sobrevivemos a ele, e estamos prontos a morrer novamente, desde que com a mesma segurança, com outro herói. (Freud, 1915/1996cFreud, S. (1996c). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)., p. 301)

Mais tarde, no ano de 1933, em resposta a uma carta de Einstein que o interroga com a questão Por que a guerra? Freud vai retomar esse ponto indicando um importante caminho para se suportar as guerras e, podemos acrescentar, as catástrofes de modo geral. Afirma, modestamente, que não teria condições de oferecer respostas sobre assunto tão complexo mas considera, categórico que “[…] tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra” (Freud, 1933/1996eFreud, S. (1996e). Por que a guerra? In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1933).).

Sabemos que esta é a função da pulsão de vida, de Eros, que amalgamada à pulsão de morte possibilita a sustentação da vida civilizada. Nesse processo é indiscutível a importância das atividades culturais, artísticas e laborativas como referência fundamental no trabalho de recriação da vida. Vida que incluiu o outro, a cidade, a pólis.

Nesse momento de isolamento pode-se dizer: A cidade é a casa (Alzugaray, 2020Alzugaray, P. A cidade é a casa. Revista SeleCt, 29 de maio de 2020. Recuperado de: www.select.art.br
www.select.art.br...
). É dentro dos limites da casa que podemos reencontrar a cidade tão ansiada e desejada, tal como nos versos de Leminski “[...] deixa eu abrir a porta quero ver se a noite vai bem [...]”.

Um querer intenso pela cidade enquanto espaço de encontros afetivos, laborativos e como lugar privilegiado de exercício da função da política, no seu sentido lato, como indica Arendt (1958/1995)Arendt, H. (1995). A condição humana. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1958)..

Creio que essa falta radical tem paradoxalmente presentificado cada vez mais o ausente: a cidade. Falta que pode abrir as portas para novos modos, presentes e futuros, de habitar a vida coletiva.

Pela janela de nossas casas, de onde vemos a cidade, as ruas e pelas telas do celular, ou do computador, de onde vemos as pessoas, temos que reinventar muitas coisas, dentre elas o “estar junto” para que se sustente os pilares da vida civilizada.

O fato é que toda peste marca um antes e um depois. Apesar de não sabermos exatamente aonde tudo isso vai dar, esse depois nos convoca à invenção e é a voz do poeta e a ação do artista que nesse momento se nos coloca como referência fundamental. Como indica Fernanda Montenegro numa entrevista recente: Sem a cultura das artes não tem país, não tem assinatura de país. Não existe nada sem cultura das artes.

Não vou me deter, aqui, nas tentativas de destruição e desmonte das áreas da arte e da cultura no país. Sabemos das centenas de demissões ocorridas desde o final de maio nas redes de museus e teatros, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro. A redução de receitas que já vinha cavalgando em trotes largos, pelo vírus titular, como sugere Fernanda, foram agravadas pela determinação do necessário isolamento social devido à pandemia. Um governo que não valoriza a riqueza e diversidade artística e cultural de seu país, expõe por si só a rudeza e a incapacidade de identificação com sua nação.

Prefiro concluir este editorial falando de um trabalho fantástico chamado Projetemos, exemplo de invenção de novas luzes neste momento de trevas. Um verdadeiro chamado à possibilidade de construção de novas linguagens, e da insistência na palavra humanizadora que se dirige ao Outro. Esse Outro, que Lacan define como campo da linguagem, tesouro do código, que emerge na própria epiderme da cidade, transformando o cimento silencioso dos prédios em superfícies falantes.

O coletivo Projetemos, nasceu no Recife, e rapidamente se espalhou para várias cidades do país. Quem está por trás dessas ações são VJs (vídeo jockeys). Criadores e operadores de performances visuais que inclusive criaram generosamente uma ferramenta que auxilia e possibilita que outras pessoas possam se apropriar desse surpreendente modo de comunicação.

São postadas diariamente dezenas de frases e imagens feitas sempre ao anoitecer com as mais variadas mensagens. A projeção nos prédios constrói efetivamente um outro modo de estar nas ruas, ampliando e transformando a nossa relação com o espaço ao nos conectar moebianamente com os outros.

Sublinho o tempo verbal - subjuntivo presente - da palavra projetemos. Se o verbo projetar indica atirar à distância, arremessar, arrojar, o projetemos, associa o presente com o futuro numa forma que inclui uma suposição, uma possibilidade, mas, fundamentalmente, uma vontade, um desejo. Um convite ao lançamento de palavras, frases, que alcance o outro em seu isolamento social e que no exato instante de seu arremesso permite romper, imediatamente, com tal distanciamento. A palavra que chega como imagem produz e afirma, simultaneamente, a possibilidade do encontro.

Lacan (1955-56/1988)Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-56)., indica que a fantasia é uma estrutura que como um quadro delimita uma realidade passível de ser vivida, nos protegendo do encontro com o real mortífero. É dentro dessa perspectiva que ele considera a fantasia uma janela para o real. Marca, assim, sua função de recorte, de delimitação da realidade, constituindo um modo possível de apropriação daquilo que é o insuportável para cada um de nós.

Que de nossas janelas limitantes possamos arremessar as melhores palavras nos alimentando com aquilo que de melhor a arte e a cultura da diversidade nos ensina!

Referências

  • Alzugaray, P. A cidade é a casa. Revista SeleCt, 29 de maio de 2020. Recuperado de: www.select.art.br
    » www.select.art.br
  • Arendt, H. (1995). A condição humana Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1958).
  • Freud, S. (1996a). Cinco lições de psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1910).
  • Freud, S. (1996b). A história do movimento psicanalítico. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).
  • Freud, S. (1996c). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).
  • Freud, S. (1996d). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXXIV: Explicações, Aplicações e Orientações. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1932).
  • Freud, S. (1996e). Por que a guerra? In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1933).
  • Leminski, P. (2013). Toda poesia São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 20. Mais ainda Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).
  • Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 3. As psicoses Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-56).
  • Lacan, J. (1998). A coisa freudiana. In Escritos Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955).
Editoras/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Galdini R. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2020
  • Aceito
    13 Jun 2020
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com