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TRADUÇÃO, ADAPTAÇÃO CULTURAL E EVIDÊNCIA DE VALIDADE DE INSTRUMENTO PARA O EXAME MORFOLÓGICO APLICADO A CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

RESUMO

Objetivo:

Entre 100 crianças, não selecionadas, com diagnóstico de autismo, pelo menos 20 apresentam anomalias morfológicas, quase sempre associadas a síndromes. Não há no Brasil instrumento de exame físico morfológico padronizado e validado. O objetivo foi traduzir para o português do Brasil e adaptar culturalmente os sinais clínicos descritos no Autism Dysmorphology Measure, assim como procurar evidências de validade quando aplicado a uma amostra de crianças com autismo.

Métodos:

Foram feitas a tradução e a adaptação cultural do instrumento original, publicado na íntegra. Foram adotados os procedimentos tradicionais de tradução, retrotradução e adaptação da terminologia segundo a Nomina Anatomica. Foram incluídas na amostra 62 crianças com quociente de inteligência entre 50 e 69, de ambos os sexos, com idade cronológica entre três e seis anos, provenientes de estudo multicêntrico com os procedimentos metodológicos já publicados. O exame físico morfológico foi realizado por dois médicos geneticistas e consistiu na pesquisa de 82 características que avaliam 12 áreas corporais. Para avaliar a concordância entre os dois observadores foi utilizado o coeficiente Kappa de Cohen.

Resultados:

A versão final do instrumento traduzido e adaptado culturalmente ao português do Brasil mostrou alta concordância entre os dois observadores.

Conclusões:

O instrumento traduzido preenche todos os critérios propostos internacionalmente e o reconhecimento das anomalias menores e sua descrição clínica estão padronizados e são de fácil reconhecimento aos médicos não especialistas em genética.

Palavras-chave:
Transtorno do espectro autista; Anormalidades congênitas; Transtornos dismórficos corporais; Exame físico

ABSTRACT

Objective:

For every 100 random children diagnosed with autism, at least 20 have morphological abnormalities, often associated with syndromes. Brazil does not have a standardized and validated instrument for morphological physical examination. This study aimed to translate into Brazilian Portuguese and culturally adapt the clinical signs described in the Autism Dysmorphology Measure, as well as validate the instrument in a sample of children with autism.

Methods:

The original instrument was translated, culturally adapted, and published in full, following traditional procedures for translation, back-translation, and terminology adaptation according to the Nomina Anatomica. The sample included 62 children from a published multicenter study, with intelligence quotient between 50–69, of both genders, with chronological age between 3–6 years. Two clinical geneticists performed the morphological physical examination, which consisted of investigating 82 characteristics assessing 12 body areas. We used Cohen’s Kappa coefficient to evaluate the agreement between the two observers.

Results:

The final version of the instrument – translated into Brazilian Portuguese and culturally adapted – showed high agreement between the two observers.

Conclusions:

The translated instrument meets all international criteria, and minor anomalies and their clinical descriptions were standardized and are recognizable for physicians not specialized in genetics.

Keywords:
Autism spectrum disorder; Congenital abnormalities; Body dysmorphic disorders; Physical examination

INTRODUÇÃO

O transtorno do espectro autista (TEA) caracteriza-se por déficits persistentes na comunicação e na interação social e por padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento.11. American Psychiatry Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais — DSM-5. 5th ed. Porto Alegre: Artemed; 2013. Aproximadamente um em cada 58 crianças são diagnosticas com TEA.22. Baio J, Wiggins L, Christensen DL, Maenner MJ, Daniels J, Warren Z, et al. Prevalence of autism spectrum disorder among children aged 8 years — autism and developmental disabilities monitoring network, 11 sites, United States, 2014. MMWR Surveill Summ. 2018;67:1-23. https://doi.org/10.15585/mmwr.ss6706a1
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Compreender a genética do autismo não tem sido uma tarefa fácil diante da heterogeneidade etiológica e clínica do transtorno.

A morfologia clínica permite identificar indivíduos cujo desenvolvimento estrutural foi interrompido durante a embriogênese precoce.33. Rodier PM, Ingram JL, Tisdale B, Nelson S, Romano J. Embryological origin for autism: developmental anomalies of the cranial nerve motor nuclei. J Comp Neurol. 1996;370:247-61. https://doi.org/10.1002/(SICI)1096-9861(19960624)370:2%3C247::AID-CNE8%3E3.0.CO;2-2
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O papel da morfologia clínica na delineação das centenas de síndromes que causam deficiência intelectual sugeriu também que o detalhamento do exame morfológico poderia ser útil no autismo.44. Miles JH, Hillman RE. Value of a clinical morphology examination in autism. Am J Med Genet. 2000;91:245-53.,55. Miles JH, Takahashi TN, Bagby S, Sahota PK, Vaslow DF, Wang CH, et al. Essential versus complex autism: definition of fundamental prognostic subtypes. Am J Med Genet A. 2005;135:171-80. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.30590
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De fato, a variabilidade fenotípica que ocorre em uma significante porcentagem de indivíduos com autismo pode ser utilizada para identificar pacientes com TEA etiologicamente distintos. Foi proposto que um subgrupo de crianças com autismo pode ser identificado por meio de características físicas que retratam processos anormais que ocorreram durante a embriogênese, sendo definidos dois subgrupos: autismo essencial e autismo complexo.44. Miles JH, Hillman RE. Value of a clinical morphology examination in autism. Am J Med Genet. 2000;91:245-53.,55. Miles JH, Takahashi TN, Bagby S, Sahota PK, Vaslow DF, Wang CH, et al. Essential versus complex autism: definition of fundamental prognostic subtypes. Am J Med Genet A. 2005;135:171-80. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.30590
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O subgrupo autismo essencial conta com a maior taxa de recorrência na irmandade (4 versus 0%), maior número de parentes com autismo (20 versus 9%) e maior relação homem versus mulher (6,5:1 versus 3,2:1). O modelo etiológico que o explica o autismo essencial é o multifatorial ou de herança complexa. Esse modelo pressupõe causas genéticas, epigenéticas e ambientais.65. Zanolla TA, Fock RA, Perrone E, Garcia AC, Perez AB, Brunoni D. Autism spectrum disorder: genetic, environmental and epigenetic causes. Cad Pos-Grad Disturb Desenvolv. 2015;15:29-42. O subgrupo autismo complexo apresenta indivíduos com evidências de anormalidades que ocorreram no início da morfogênese, manifestadas por anomalias significativas (dismorfias) ou microcefalia.55. Miles JH, Takahashi TN, Bagby S, Sahota PK, Vaslow DF, Wang CH, et al. Essential versus complex autism: definition of fundamental prognostic subtypes. Am J Med Genet A. 2005;135:171-80. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.30590
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Ele compreende 20% do total da população estudada e identificou-se que indivíduos classificados nesse grupo apresentavam piores resultados comparados ao subgrupo autismo essencial: quocientes de inteligência (QIs) mais baixos, convulsões, eletroencefalogramas alterados (46 versus 30%) e alterações em ressonância magnética de crânio (28 versus 13%).55. Miles JH, Takahashi TN, Bagby S, Sahota PK, Vaslow DF, Wang CH, et al. Essential versus complex autism: definition of fundamental prognostic subtypes. Am J Med Genet A. 2005;135:171-80. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.30590
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Nesse grupo, via de regra, os pacientes apresentam um quadro sindrômico e são identificados fatores causais diretamente responsáveis pelo fenótipo, genéticos ou ambientais.55. Miles JH, Takahashi TN, Bagby S, Sahota PK, Vaslow DF, Wang CH, et al. Essential versus complex autism: definition of fundamental prognostic subtypes. Am J Med Genet A. 2005;135:171-80. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.30590
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Miles et al.76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
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identificaram e validaram sinais morfológicos para serem utilizados na classificação de subgrupos de pessoas com autismo por clínicos que não são especialmente treinados na avaliação morfológica. No presente estudo, o exame físico morfológico está baseado no Autism Dysmorphology Measure (ADM) e a definição dos sinais dismórficos segue o London Dysmorphology Database (LDDB).87. Winter RM, Baraitser M. The London Dysmorphology Database. J Med Genet. 1987;24:509-10. https://doi.org/10.1136/jmg.24.8.509
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O ADM é semiestruturado, de fácil execução, pois não é necessário despir as crianças para realizar o exame físico, e possibilita ao profissional não especialista em genética identificar fenotipicamente os subgrupos distintos do TEA e classificar os indivíduos como dismórficos ou não dismórficos. Tal definição direcionará a pesquisa etiológica ao grupo dismórfico. Espera-se, também, morbidade maior entre essas crianças.

O objetivo deste trabalho foi traduzir para o português do Brasil e adaptar culturalmente os sinais clínicos descritos no ADM, assim como procurar evidências de validade quando aplicado a uma amostra de indivíduos com autismo.

MÉTODO

O instrumento original está publicado e sobre ele não há direitos autorais.76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
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A tradução e a adaptação cultural foram realizadas de acordo com os procedimentos tradicionais adotados para instrumentos na área da saúde: tradução, avaliação da tradução inicial (back translation) e revisão por grupo consenso.98. Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976). 2000;25:3186-91. https://doi.org/10.1097/00007632-200012150-00014
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A tradução para o português foi realizada por três médicos geneticistas especialistas em avaliação do fenótipo morfológico (grupo consenso). A adequação à Nomina Anatomica109. Sociedade Brasileira de Anatomia. Terminologia anatômica. São Paulo: Manole; 2001. foi realizada por médico anatomista. Um cirurgião dentista foi consultado para esclarecer dúvidas quanto ao posicionamento, à forma e ao número de elementos bucais decíduos e permanentes. Uma médica geneticista brasileira, também especialista em dismorfologia, trabalhando em hospital geral nos Estados Unidos, fluente em inglês e sem conhecer o instrumento original traduziu a versão consenso para a língua inglesa (back translation). O grupo consenso realizou diversas reuniões presenciais, obtendo uma versão preliminar. A avaliação da equivalência referencial consistiu na comparação da versão retrotraduzida (back translation) com o original. Um avaliador externo, cujo idioma original é o português e é fluente em língua inglesa, avaliou a correspondência literal entre os termos da versão original e retrotraduzida, classificando-os em: semelhante, aproximado ou diferente. A adaptação cultural do conteúdo foi avaliada através da equivalência geral, para isso foi composto um comitê com 6 candidatos para realizarem uma avaliação composta por um teste com 40 questões de múltipla escolha baseadas em fotos de 40 dos 82 sinais morfológicos selecionados aleatoriamente. Após a realização do teste, o grupo consenso avaliou as questões que apresentaram baixa concordância e revisaram as terminologias que mais se aproximavam da descrição dos sinais dismórficos no ambiente cultural brasileiro. Dois médicos geneticistas especialistas em avaliação do fenótipo morfológico, não participantes do grupo consenso, aplicaram essa versão do instrumento, de maneira independente, em uma amostra de 62 crianças com TEA. Após completar essas etapas, chegou-se à versão final em português do Brasil do exame físico morfológico para pacientes com TEA.

Assim, foram incluídas na amostra 62 crianças com diagnóstico de TEA, de ambos os sexos, com idade cronológica entre 3 anos e 6 anos e 11 meses. Essa amostra (conveniência) pertence a um estudo multicêntrico realizado pelas três clínicas especializadas em TEA na cidade de São Paulo, Brasil: Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, Clínica de Cognição Social — Transtorno do Espectro Autista Marcos Mercadante – TEAMM), Universidade de São Paulo (Programa dos Transtorno do Espectro Autista — PROTEA) e Universidade Presbiteriana Mackenzie (Clínica TEA-MACK), que ocorreu nos meses de fevereiro a novembro de 2014; e que apresenta como principal critério de inclusão crianças com diagnóstico de TEA e deficiência intelectual. Os diagnósticos foram realizados por equipe interdisciplinar utilizando critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)11. American Psychiatry Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais — DSM-5. 5th ed. Porto Alegre: Artemed; 2013. e com a aplicação da versão brasileira do Autism Diagnostic Interview (ADI-R).1110. Becker MM, Wagner MB, Bosa CA, Schmidt C, Longo D, Papaleo C, et al. Translation and validation of Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R) for autism diagnosis in Brazil. Arq Neuro-Psiquiatr. 2012;70:185-90. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2012000300006
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Todas as crianças apresentam deficiência intelectual. A avaliação neuropsicológica completa está detalhada no estudo realizado pelos três centros universitários informados.1211. Bagaiolo LF, Mari JJ, Bordini D, Ribeiro TC, Martone MC, Caetano SC, et al. Procedures and compliance of a video modeling applied behavior analysis intervention for Brazilian parents of children with autism spectrum disorders. Autism. 2017;21:603-10. https://doi.org/10.1177/1362361316677718
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O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP (CAAE: 32193714.4.0000.5505, parecer n° 697.973).

Os exames físicos morfológicos dos 62 pacientes, realizados pelos dois médicos geneticistas, foram introduzidos em uma planilha do Microsoft ExcelÓ de maneira independente e cada sinal foi indicado como presente ou não presente.

A proposta de avaliação de Miles76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
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consiste de 82 características morfológicas que avaliam 12 grandes áreas corporais: estatura, padrão de crescimento dos cabelos, estrutura, tamanho e posicionamento das orelhas, tamanho do nariz, tamanho da face e estrutura, filtro, boca e lábios, dentes, mãos, dedos e polegares, unhas e pés. A LDDB87. Winter RM, Baraitser M. The London Dysmorphology Database. J Med Genet. 1987;24:509-10. https://doi.org/10.1136/jmg.24.8.509
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enumera aproximadamente duas mil características separadas em códigos. Essa normatização da terminologia tem sido utilizada pelas últimas duas décadas por médicos geneticistas e promove uma lista não ambígua de definições de características. Em todos os pacientes foram realizadas medidas do perímetro cefálico, estatura, tamanho das orelhas, mãos e dos dedos médios das mãos e pés. O ponto da distribuição normal das medidas realizadas foi obtido em curvas de distribuição habituais, por sexo e idade.1312. Hall JG, Froster-Iskenius UG, Allanson JE. Handbook of physical measurements. New York: Oxford University Press; 1989. Foram consideradas dismórficas as medidas situadas dois desvios padrões abaixo da média. Acrescentou-se ao exame físico a documentação audiovisual.

Para avaliar a concordância entre os dois observadores foi utilizado o coeficiente Kappa de Cohen.1413. Cohen J. A coefficient of agreement for nominal scales. Ed Psycol Meas. 1960;20:37-46. https://doi.org/10.1177/001316446002000104
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A concordância é uma medida de confiabilidade e valores entre 0,20 e 0,40 indicam baixa concordância; entre 0,4 e 0,6 indicam concordância moderada; e Kappa maior do que 0,6 indica concordância alta.1413. Cohen J. A coefficient of agreement for nominal scales. Ed Psycol Meas. 1960;20:37-46. https://doi.org/10.1177/001316446002000104
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RESULTADOS

A primeira tradução dos 82 sinais descritos e da breve descrição desses sinais76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
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foi realizada por uma médica geneticista com experiência de mais de cinco anos no atendimento a pacientes com síndromes genéticas, que tem o português como a primeira língua e é fluente na língua inglesa. Praticamente todos os sinais tiveram a tradução literal e foram aceitos.

Estratégias como adição de palavras, omissão, substituição e provisão de exemplos foram utilizadas para explicar as variadas realidades socioculturais e educacionais da população brasileira, assegurando ao mesmo tempo que as palavras e expressões traduzidas permanecessem fiéis a cada situação específica medida pelo instrumento original (Tabela 1).76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
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A descrição do sinal referente ao “mento com fosseta ou sulco” na versão original em inglês é exemplificada com uma comparação com o queixo do ator cinematográfico norte americano Kirk Douglas. Esse ator não é muito conhecido no território brasileiro e dificultaria a interpretação do sinal se mantivéssemos a descrição original. Por esse motivo, o grupo consenso acordou em descrever o sinal como “uma fosseta (covinha) ou um sulco na região mediana do mento”.

Tabela 1
Descrição dos sinais morfológicos que sofreram adaptação cultural na tradução do inglês para o português.

Nos sinais que descrevem a estrutura, tamanho e posicionamento das orelhas, também tivemos o cuidado de acrescentar, em alguns itens, em uma breve descrição do sinal morfológico, a posição do paciente em relação ao observador para melhor descrever o sinal. Esse exemplo pode ser melhor entendido no item “orelhas de baixa implantação”, que na tradução literal seria “A inserção superior da orelha está abaixo de uma linha traçada horizontalmente entre o canto interno do olho e o ponto superior de inserção da orelha. A orelha deve ser avaliada com a cabeça em posição vertical” e o grupo consenso decidiu que para melhor entendimento deveria ser descrito da seguinte forma: “A inserção superior da orelha está abaixo de uma linha traçada horizontalmente entre o canto interno do olho e o ponto superior de inserção da orelha. A orelha deve ser avaliada com a cabeça em posição vertical (paciente em vista frontal). Considerar também uma linha horizontal traçada entre o canto externo do olho e o ramo da hélice (paciente posicionado em vista lateral)”.

Sendo os sinais menores subjetivos, o grupo consenso determinou que os sinais mensuráveis que apresentam tabelas específicas1110. Becker MM, Wagner MB, Bosa CA, Schmidt C, Longo D, Papaleo C, et al. Translation and validation of Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R) for autism diagnosis in Brazil. Arq Neuro-Psiquiatr. 2012;70:185-90. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2012000300006
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de acordo com a idade e o gênero deveriam ser utilizadas para melhor interpretação clínica, como aparece na descrição das mãos e pés. “As mãos grandes” seriam descritas literalmente, mas subjetivamente, como “mãos grandes/hipertrofiadas”; como essa descrição é ampla, optou-se por descrevê-la como “mãos alongadas, comprimento total da mão >2 desvios padrão ou >percentil 97 ou alargadas (subjetiva)”. O mesmo ocorreu para as “mãos pequenas”, descritas originalmente como “minúsculas, delicadas ou mãos finas”, na qual manteve-se a descrição original e acrescentaram-se os critérios baseados nas tabelas “minúsculas, delicadas ou mãos finas com comprimento total da mão <2 desvios padrãi ou <percentil 3”.

O grupo consenso padronizou as 12 grandes áreas corporais descritas de acordo com a Nomina Anatomica.109. Sociedade Brasileira de Anatomia. Terminologia anatômica. São Paulo: Manole; 2001. Como a utilização de termos anatômicos é padronizada, tal medida deve permitir que médicos não geneticistas e de diferentes regiões brasileiras possam compreender a descrição dos sinais dismórficos.

A back translation foi realizada por uma médica geneticista brasileira residente nos Estados Unidos, que tem o português como primeira língua e é fluente em inglês. Obviamente, a back translation nesses casos foi alterada, pois os sinais já haviam sido adaptados culturalmente e suas descrições modificadas para melhor compreensão por clínicos não especialistas.

A avaliação da equivalência referencial foi baseada na comparação dos termos e expressões da versão original com a versão retrotraduzida em cada uma das questões. Cada quesito foi classificado como semelhante, quando as duas versões estavam completamente iguais; aproximado, quando palavras ou expressões eram diferentes, mas sem mudar o contexto; e diferentes, quando havia alteração no sentido literal entre a versão retrotraduzida e a original. Dos 82 sinais analisados, 80 foram considerados semelhantes (97,5%); dois, aproximados (2,5%); e nenhum foi diferente. A partir dessa classificação, mantivemos as modificações realizadas no texto original.

Na realização da avaliação da equivalência geral foi levado em consideração o resultado do teste. Os itens foram revistos e o grupo consenso acredita que parte da alta taxa de erro em alguns desses itens se deu pelas fotos de baixa qualidade utilizadas durante o teste ou fotos que geraram dúvidas quanto ao sinal solicitado. As suas descrições foram revistas, um novo consenso foi estabelecido e a versão final foi elaborada.

Após concluir a versão final, dois médicos geneticistas realizaram o exame físico morfológico elaborado em 62 pacientes com TEA em duas ocasiões distintas com a finalidade de verificar a concordância interobservadores de cada item. Todas as medidas antropométricas foram obtidas por ambos os examinadores. Para avaliar a concordância entre os examinadores foi aplicado o índice Kappa. Dos 86 itens avaliados, 83 (96%) apresentaram índice Kappa acima de 0,4 (a maioria deles acima de 0,6), o que traduz uma concordância interobservadores entre moderada e alta. Os itens mensuráveis apresentaram índice Kappa=1. Apenas um item mostrou discordância entre os observadores (anomalia de esmalte dentário, Kappa=-0,022), podendo esse fato ser atribuído à dificuldade de examinar os dentes de crianças com TEA, as quais apresentam aversão ao contato. O item “dismórfico” apresentou alta concordância entre observadores, assim como as 12 áreas corporais. Resultados do índice Kappa estão presentes na Tabela 2.

Tabela 2
Exame morfológico indicado para crianças com diagnóstico de transtorno do espectro autista. Concordância entre dois observadores.

DISCUSSÃO

Na literatura brasileira não se encontram estudos para orientar a pesquisa de características morfológicas em indivíduos com autismo, assim como inexistem pesquisas que tenham realizado a tradução e adaptação cultural de métodos publicados na literatura. Nesse sentido, a presente pesquisa é original. Com ela complementa-se a disponibilidade, entre nós, de instrumentos validados, já que diversos estudos traduziram e adaptaram culturalmente escalas psicométricas.87. Winter RM, Baraitser M. The London Dysmorphology Database. J Med Genet. 1987;24:509-10. https://doi.org/10.1136/jmg.24.8.509
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,1514. Losapio MF, Pondé MP. Translation into Portuguese of the M-CHAT Scale for early screening of autism. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2008;30:221-9. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082008000400011
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,1615. Pereira A, Riesgo RS, Wagner MB. Childhood autism: translation and validation of the Childhood Autism Rating Scale for use in Brazil. J Pediatr (Rio J). 2008;84:487-94. http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572008000700004
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A tradução e a adaptação cultural do instrumento76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
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utilizam métodos padronizados e critérios judiciosos para desenvolver versões apropriadas de instrumentos estrangeiros para uso em países com diferentes idiomas.1716. Jorge MR. Adaptação transcultural de instrumentos de pesquisa em saúde mental. Rev Psiquiatr Clin. 1998;25:233-9. Este estudo seguiu os estágios preconizados por diretrizes internacionais,98. Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976). 2000;25:3186-91. https://doi.org/10.1097/00007632-200012150-00014
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,1110. Becker MM, Wagner MB, Bosa CA, Schmidt C, Longo D, Papaleo C, et al. Translation and validation of Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R) for autism diagnosis in Brazil. Arq Neuro-Psiquiatr. 2012;70:185-90. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2012000300006
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resultando no desenvolvimento da versão traduzida do instrumento “Measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification”, que incorpora a realidade e a cultura brasileiras. Espera-se, com isso, a compreensão por médicos não especialistas, em diferentes regiões do território brasileiro, dos sinais menores, desvios fenotípicos discretos, que na grande maioria das vezes passam despercebidos e estão presentes em muitas síndromes de microdeleção e microduplicação cromossômicas. O não reconhecimento desses sinais por médicos não especialistas implica o não encaminhamento ao especialista e, com isso, o diagnóstico etiológico e o aconselhamento genético podem ficar comprometidos.

Crianças nascidas na América do Norte foram avaliadas por Flor et al.,1817. Flor J, Bellando J, Lopez M, Shui A. Developmental functioning and medical co-morbidity profile children with complex and essential autism. Autism Res. 2017;10:1344-52. https://doi.org/10.1002/aur.1779
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os quais questionaram se há diferenças entre os indivíduos classificados como autismo complexo e autismo essencial baseado em avaliações fenotípicas (funcionamento cognitivo, comportamento adaptativo, gravidade do autismo, qualidade de vida e problemas comportamentais) e comorbidades médicas. O estudo revelou que autismo complexo e autismo essencial podem ter perfis distintos de desenvolvimento baseados no funcionamento cognitivo, comportamento adaptativo, gravidade do autismo, qualidade de vida, problemas comportamentais e comorbidades médicas. Assim, é necessário ressaltar a importância de pesquisar a microcefalia e sinais dismórficos na avaliação da criança com TEA.

Conclui-se que o instrumento traduzido preenche todos os critérios propostos internacionalmente e o reconhecimento dos sinais menores e sua descrição clínica estão padronizados e são de fácil reconhecimento. Tal padronização certamente facilitará, aos médicos não geneticistas, a realização do exame físico em crianças autistas para determinar se são ou não dismórficas. Tal resultado tem implicações diretas na investigação causal desse transtorno.

Dados o extenso tamanho do país e as diferenças culturais e linguísticas de cada região brasileira, deve-se considerar como limitação do presente estudo o fato de que o grupo consenso foi constituído apenas por médicos residentes na cidade de São Paulo. É possível que alguns termos para descrição de dismorfias não sejam uniformes em todas as regiões brasileiras.

Está em andamento, pelo nosso grupo, o processo de validação do instrumento proposto76. Miles JH, Takahashi TN, Hong J, Munden N, Flournoy N, Braddock SR, et al. Development and validation of a measure of dysmorphology: useful for autism subgroup classification. Am J Med Genet A. 2008;146A:1101-16. https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244
https://doi.org/10.1002/ajmg.a.32244...
para classificar os pacientes em dismórficos e não dismórficos. Além de diversas determinações, tais como sensibilidade e especificidade do ADM, já foram obtidas as frequências dos sinais morfológicos em crianças com desenvolvimento típico.1918. Perrone E, Zanolla TA, Fock RA, Perez AB, Brunoni D. Determining the frequency of morphological characteristics in a sample of Brazilian children. J Pediatr (Rio J). 2017;93:592-600. http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2016.12.010
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Fonte de financiamento

  • Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Processo n° 47658, e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Processo n° 2012/51584-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2018
  • Aceito
    13 Jan 2019
  • Publicado
    20 Dez 2019
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