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Repensando paradigmas e criando novas possibilidades: a diversidade da produção das ciências sociais da religião na América Latina

RESENHA

Repensando paradigmas e criando novas possibilidades: a diversidade da produção das ciências sociais da religião na América Latina

César Pinheiro Teixeira

CERNADAS, César Ceriani e CAROZZI, Maria Julia (orgs.). Ciências Sociales y Religión en América Latina: perspectivas en debate. Buenos Aires: Editorial Biblios – Sociedad y Religión, ACSRM, 2007, 224pp.

O livro organizado por César Cernadas e Maria Carozzi nos mostra a pluralidade da produção acadêmica das ciências sociais da religião na América Latina. Trata-se de uma obra comemorativa, que celebra a existência das Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, um importante e inovador espaço de reflexão e debate que reúne há mais de quinze anos diversos cientistas sociais latino-americanos. A riqueza e a heterogeneidade desses debates e reflexões acerca do fenômeno religioso no Cone Sul são apresentadas no livro através da contribuição de autores de diversos países.

A heterogeneidade da produção acadêmica acerca dos fenômenos religiosos na América Latina é apresentada (nos prólogos de Jorge Soneira e Carlos Alberto Steil) como fruto da própria diversidade de práticas e crenças existentes no Cone Sul, mas também, e mais importante, enquanto resultado da criação de novas possibilidades a partir do questionamento de visões "modernocêntricas" e "catolicocêntricas". Diferentes autores colocam em jogo paradigmas e conceitos clássicos relativos aos estudos sobre religião, conduzindo-nos a novos espaços de reflexão.

O livro está divido em três partes. A primeira parte – paradigmas e conceitos – é composta pelos estudos de Pablo Semán, sobre o conceito de secularização; de Eloísa Martín, que problematiza a noção de religiosidade popular; e de Alejandro Frigerio, sobre a idéia de monopólio religioso. A segunda parte – dimensões históricas e políticas – é composta pelos textos de Virgínia Buarque, sobre as práticas de escrita das mulheres nos conventos no Brasil; e Natália Arce, acerca das intersecções entre organizações religiosas e movimentos políticos na Argentina. Por fim, a terceira parte do estudo, que se intitula campos disciplinares e fronteiras transnacionais, contém o texto de Alexandre Brasil e João Valença, que relaciona os temas religião e saúde; e o artigo de Ronan Pereira, sobre as religiões japonesas no Brasil.

Semán, Martín e Frigerio, analisam criticamente a utilização de paradigmas e conceitos clássicos das ciências sociais da religião: a secularização, a religiosidade popular e o monopólio religioso.

A primeira parte do livro está estruturada em torno do debate sobre o processo de secularização e de modernização na América Latina. A principal questão que está posta, de maneiras distintas, nesses artigos, é a seguinte: esses paradigmas e conceitos podem ser aplicados acriticamente à realidade latino-americana, visto que o fenômeno religioso continua fortemente presente no cone sul? Pablo Semán nos apresenta o argumento de Pierucci, ao mesmo tempo em que busca uma primeira alternativa de resposta a essa questão: a secularização não consistiria no desaparecimento da religião da vida social, um desaparecimento das formas mágicas, mas numa emancipação da vida social em relação à religião; significa uma reorganização social na qual a religião perde sua centralidade na vida social e sua capacidade de influenciar comportamentos e identidades de maneira totalizadora.

Entretanto, ainda que o argumento de Pierucci bem sustente a idéia de secularização, o caso latino-americano nos permite contestar esse paradigma. De acordo com Semán, uma identificação dos cientistas sociais com o mito da modernidade é o que levaria a desconhecer possíveis pontos de fuga relativos ao paradigma da secularização. Como aponta o autor, no caso do Uruguai, mesmo sofrendo um radical processo de laicização, há uma vitalidade de expressões religiosas; e no da Argentina, em diversos âmbitos da experiência religiosa, podemos encontrar um processo de pluralização e intensificação de carismas. O crescimento das religiões pentecostais, por exemplo, mostraria o peso que a religião continua a exercer na vida cotidiana.

Semán nos chama a atenção, dessa forma, para a necessidade de se compreender o processo singular de secularização na América Latina. Se de um lado há efeitos visíveis, como a separação entre Igreja e Estado, de outro, mesmo nos casos mais radicais de laicização (como no Uruguai), a Igreja continua a ocupar uma posição privilegiada, muitas vezes sendo o principal interlocutor do Estado em questões de interesse público.

Até que ponto a emancipação do Estado em relação à religião e a perda do monopólio religioso podem ser entendidas como manifestações da idéia clássica de secularização? Alejandro Frigerio, ao propor repensar o paradigma do monopólio católico na América Latina, questiona exatamente a idéia segundo a qual a hegemonia católica, mecanicamente, influenciaria comportamentos e identidades. O monopólio religioso teria sido capaz de moldar identidades e comportamentos num passado tradicional? O autor afirma que é preciso repensar essa questão a partir dos seus efeitos sobre variáveis como: crença, identidade e legitimidade. As identidades sociais utilizadas pelos indivíduos, como a de católico, por exemplo, podem não coincidir, e geralmente assim ocorre, com suas crenças particulares e suas identidades pessoais. Um indivíduo pode ir à missa nos finais de semana e freqüentar sessões espíritas em outros dias, como é comum no Brasil, e ainda assim assumir a identidade social de católico. Nesse sentido, não há uma relação direta entre identidade social, identidade pessoal e crença. O autor questiona o paradigma do monopólio católico pensando, por exemplo, a partir da "desregulação" do mercado religioso argentino e da institucionalização de crenças e práticas que antes de tal "desregulação" já existiam, mas que eram toleradas enquanto formas de "religiosidade popular". Nesse sentido, "religiosidade popular" consistiria num termo utilizado pela própria Igreja para se referir às práticas existentes divergentes das práticas oficiais. De dentro dessa idéia é que as formulações dicotômicas, que compreendem o conceito dentro de uma relação entre dominados e dominantes (religiosidade popular enquanto forma de resistência ao poder da Igreja) surgem. Em seu artigo, Martín revê criticamente os dualismos presentes na idéia, "catolicocêntrica", de "religiosidade popular". Na tentativa de superar esta dicotomia, ela sugere então a utilização de um novo aparato conceitual: pensar a religiosidade popular enquanto práticas de sacralização – uma abordagem processual que considera o sagrado como uma textura diferencial do mundo habitado, ao mesmo tempo reconhecida por sua autonomia e criada pela agência humana.

Para Martín, pensar em termos de práticas de sacralização, dentre outras coisas, permite-nos evitar concepções dualistas que definem o popular em contraposição ao institucional, bem como nos permite compreender melhor os "híbridos": as práticas nativas que combinam religião com política, arte, música, economia – e que põem em questão uma visão "modernocêntrica" da divisão da vida social em esferas.

Dessa forma, tanto Semán quanto Martín demonstram os efeitos de uma crítica à secularização: a revisão da própria idéia de modernidade, bem como a necessidade de se produzir um novo aparato conceitual para a compreensão dos fenômenos religiosos latino-americanos. Como aponta Cernadas (:14), "Semán y Martín coinciden en advertir que una crítica a la secularización nos conduce a una redefinición de la noción de modernidad y, dentro de ella, al equívoco lugar de la denominada 'religiosidad popular'."

Na segunda e terceira partes do livro, há artigos de pesquisadores que tratam dos mais variados objetos de investigação. Estes artigos reforçam as principais críticas realizadas às visões "secularizantes", "modernocêntricas" e "catolicocênctricas" abordadas na primeira parte.

O artigo de Virgínia Buarque trata de um tema bastante original: a prática de escrita de mulheres consagradas em conventos católicos no Brasil. Trata-se de um estudo realizado com dados históricos e fontes documentais (sobretudo autobiografias) acerca do cotidiano nos conventos brasileiros. Buarque procura mostrar a maneira como essas práticas incidiram na construção da subjetividade das mulheres. Ao mesmo tempo em que tais práticas serviam para reforçar os valores religiosos e o próprio controle dentro dos conventos, também eram uma forma de subversão. Através de cartas, as mulheres consagradas relatavam suas insatisfações em relação à realidade vivida. Mesmo dentro dos conventos, a Igreja não conseguia influenciar de maneira totalizadora as identidades e os comportamentos – para retomar umas das principais idéias de Frigerio.

Natália Arce apresenta uma análise sócio-histórica do catolicismo argentino dos anos 1960 e 70. A autora mostra, com base numa pluralidade de estudos sociológicos e teológicos, além de fontes documentais como biografias e testemunhos, as intersecções entre o catolicismo pós-conciliar, a ação política e a luta armada. A análise da autora revela a centralidade da questão do poder e das intersecções entre política e religião (apresentando, assim, dados que questionam também uma visão "modernocêntrica" da separação da vida social em esferas distintas): seja nas análises das relações do catolicismo com o Estado, nos debates em torno do modo de relação com o secular ou no discurso que nasceu da confluência entre o catolicismo e a luta armada.

O conjunto de textos analisados por Alexandre Brasil e João Valença demonstra a relevância que a dimensão religiosa possui no âmbito da saúde. Entretanto, reconhecem os possíveis limites e equívocos contidos nessa intersecção. Assim, em relação aos estudos que procuram mesclar os temas religião e saúde, priorizar o racionalismo científico ou deter-se somente na dimensão religiosa significa empobrecer uma realidade rica e complexa idéia essa que também reforça a crítica a uma visão "modernocêntrica" e "secularizante" que prevê a perda da centralidade da religião em esferas da vida social onde a técnica e a ciência prevaleceriam.

Ronan Pereira trata de maneira criativa do processo que ele mesmo chama de transnacionalização ignorada – referindo-se ao pouco interesse por parte dos cientistas sociais da religião em relação à presença (significativa) das religiões japonesas no Brasil. O trabalho consiste em uma abordagem histórica do processo de transnacionalização e na apresentação de um panorama das investigações dos cientistas sociais sobre as religiões japonesas no Brasil. Dessa forma, o autor procura mostrar complexos processos de reconfigurações identitárias e a adaptação das religiões japonesas ao contexto brasileiro.

O livro organizado por César Cernadas e Maria Carozzi nos oferece, assim, um panorama da vasta produção das ciências sociais da religião na América Latina. Partindo da proposta de repensar paradigmas clássicos das ciências sociais da religião, podemos, de novos ângulos, refletir sobre antigos e novos temas. Fica bastante evidente que a realidade latino-americana apresenta desafios à utilização de conceitos e paradigmas clássicos das ciências sociais. É necessário problematizá-los, utilizá-los criticamente, não só para melhor dar conta de uma realidade distinta daquela sobre a qual eles foram construídos, mas também para ampliar os horizontes da produção de conhecimento nas ciências sociais da religião.

César Pinheiro Teixeira

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ. (cesarcpt@hotmail.com)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Jul 2008
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