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Editorial

Embora a relação entre pessoas e coisas possa ser considerada um tema fundamental das Ciências Sociais, constata-se que, nos últimos anos, a discussão de sua complexidade passa por uma espécie de avivamento, através da multiplicação de análises que colocam em foco objetos, peças, obras, artefatos, mercadorias, bens, materiais, materialidades, matérias, coisas. Os nomes variados que pontuam o debate espelham as diferentes tradições disciplinares e os distintos referenciais teóricos em jogo, a ponto de alguns estudiosos falarem de um material turn, uma virada material que desde os anos 1980/1990 estaria infletindo as perspectivas analíticas de várias disciplinas, formando uma espécie de onda que envolveria antropólogos, arqueólogos, historiadores, historiadores da arte, arquitetos, estudiosos do patrimônio, museólogos, geógrafos, especialistas de estudos culturais etc.

Para mapear o rebatimento desse debate nos estudos sobre religião, a revista Religião & Sociedade organizou o dossiê Materialidades do Sagrado, sob a editoria de Miriam Rabelo (UFBA) e Renata Menezes (UFRJ), aproveitando sua experiência na coordenação de um grupo de trabalho de mesmo nome durante a 29ª Reunião Brasileira de Antropologia (Natal, UFRN, 2014). A chamada lançada propunha uma vasta cobertura do tema: “a fim de ampliar as possibilidades analíticas e etnográficas, o dossiê estará aberto tanto a trabalhos voltados à análise de objetos em sentido estrito, como àqueles voltados a outras formas de expressão material do religioso, como música, dança, e gestos ou por meio da exibição e difusão de suas imagens”. Os oito artigos selecionados para este número, dos mais de vinte recebidos, deram respostas consistentes a essa provocação inicial, demonstrando o rendimento analítico de se considerar, nos debates sobre materialidades, os objetos (ou coisas?) religiosos, que muitas vezes apresentam um estatuto jurídico, político ou ontológico singular, ultrapassando fronteiras classificatórias rígidas e desafiando as categorias do conhecimento científico herdadas do cartesianismo e do iluminismo.

Tratar de coisas (ou objetos?) religiosas implica encarar alguns desafios. Um deles é que, para o senso comum, se pode aparentemente estar diante de um paradoxo, pois nada parece mais distante do mundo da matéria do que as religiões (a não ser em casos de denúncia por um excessivo interesse material...). No entanto, grande parte do tempo dedicado à religião, ou ao sagrado, relaciona-se à preparação, manipulação, consumo, contemplação e colocação em circulação de formas materiais, que podem ser acessórias, mas que podem mesmo ocupar um lugar central e imprescindível. Por outro lado, e isto seria um segundo desafio, muitas vezes o objeto sagrado possui uma grande tradição interpretativa “nativa” acumulada, envolvendo hierarquias, classificações e ontologias êmicas – que podem ser objeto de disputas –, com a qual o pesquisador precisará, de alguma forma, relacionar-se. Mas, como os artigos contidos neste dossiê bem exemplificam, o investimento em trazer as formas materiais para o foco da análise é capaz de produzir um importante rendimento, em termos de abertura de horizontes compreensivos, principalmente ao envolverem etnografias finas articuladas a debates teóricos de ponta.

Partindo de diferentes perspectivas teóricas e abordando distintas tradições religiosas, os textos aqui reunidos comungam de uma ênfase na prática como chave metodológica para se estudar as coisas. Entender os objetos na religião requer atenção aos eventos e práticas dos quais emergem, em que se estabilizam (ou desestabilizam) ou, ainda, em que se compõem com outros tipos de seres para dar lugar a entidades híbridas. Para os autores do dossiê, é preciso evitar tomar as coisas como dadas, de modo a privilegiar processos de formação, situações de uso e manipulação em que o estatuto de objeto ou pessoa atribuído a uma entidade qualquer é frequentemente indeterminado e sujeito a deslocamentos ao longo do tempo e de acordo com a situação.

Os quatro primeiros textos que abrem o dossiê, relacionados a tradições religiosas distintas, enfatizam lugares, objetos e percursos rituais. Roberta Guimarães analisa a atuação de uma entidade católica na reconfiguração de espaços, durante a reurbanização recente da região portuária carioca. Busca compreender as implicações políticas dessa intervenção, que pretende não apenas reformar prédios, mas também transformar os moradores em novas pessoas morais a partir de padrões ideais de conduta. Longe de tomar o processo como unilateral, Guimarães explora o jogo de interesses que então se conforma, o qual envolve conflitos mais ou menos declarados, mas também possibilidades de colaboração. Cauê Machado, retomando dados de sua dissertação de mestrado, demonstra como a manipulação, ou a apresentação, de objetos, imagens e lugares pode operar no aprendizado da hierarquia religiosa e de outras tradições dentro do batuque gaúcho, mais especificamente na Nação de Oyó, garantindo sua continuidade através da reverência aos ancestrais. O autor aproveita sua experiência de campo para destacar que, menos do que uma noção de transmissão religiosa, o aprendizado no batuque envolveria a promoção de contextos para o aprendiz desenvolver proficiência, o que passa pela mediação de objetos. Gisele Chagas, trazendo um olhar a partir de uma pesquisa sobre o islã em várias cidades brasileiras, analisa as práticas rituais em torno do corpo morto e as modalidades de enterramento e marcação da sepultura, demonstrando sua relação com concepções de vida e morte dessa tradição. Em seu artigo, procura explorar a ideia de que objetos e espaços funerários fazem o “morto muçulmano” em contextos nos quais o islã ocupa uma posição de minoria religiosa, como no Brasil. E Raquel Lima, tomando o viés de uma antropologia da devoção, utiliza a etnografia minuciosa que realizou numa paróquia do centro do Rio de Janeiro, dedicada à Santa Rita, para discutir as noções de presença e representação quanto às imagens tridimensionais de santos católicos. Ao complexificar concepções em torno do culto aos santos, a autora as articula a concepções de corpo e pessoa (do santo e do devoto), acionando contribuições da teoria antropológica sobre objeto, corpo e rituais e simbolismo.

Um segundo grupo de artigos aborda objetos em contextos rituais a partir da noção de performance. Cardoso & Head tratam de uma festa em honra aos exus (“o povo da rua”), ressaltando as dimensões ambíguas dos eventos que aí se desenrolam. Na festa de exu, argumentam, é preciso considerar coisas que perdem a qualidade de objetos e se convertem em “matérias nebulosas” (indeterminadas e em transição). O texto de Pereira transporta-nos para as celebrações da Paixão de Cristo em Ouro Preto, para tratar da performance da Verônica – que é tanto o pano que representa o sudário de Cristo quanto a personagem, Verônica, que o porta. Conforme mostra o autor, se a performance confere máxima visibilidade às mulheres que desempenham o papel de Verônica, constituindo, para elas, uma experiência transformadora, também lhes faz desaparecer, ocultas sob o sudário enquanto cantam, para dar lugar à voz do próprio Cristo. Tanto na festa de exu quanto nas celebrações da semana santa, os objetos, em movimento, transformam-se e ajudam a transformar aqueles que os manipulam.

O terceiro bloco de textos discute mais diretamente os processos e tecnologias de composição de que resultam pessoas, coisas e espíritos. Espírito Santo trata desses processos no contexto do Palo Monte e do Espiritismo cubano. Com base em uma cuidadosa etnografia, a autora sugere que a propensão analítica de tratar coisas e espíritos como agências diferentes e separáveis resulta improdutiva para o entendimento do universo religioso afro-cubano: é preciso falar não de coisas e espíritos, mas de compósitos de materiais, substâncias e forças. Se no texto de Cardoso & Head aprendemos que objetos podem perder sua estabilidade e fixidez temporárias, Espírito Santo mostra-nos como também podem ingressar em composições cujos ingredientes são impossíveis de separar totalmente. E ao descrever os eventos envolvidos em uma oferenda para o orixá Oxum, desde a preparação do balaio no terreiro até sua entrega nas águas, Rabelo discute as práticas de montagem que fazem (ou realizam) as coisas, os seres e o mundo no candomblé, explorando as dimensões éticas e estéticas dessas práticas. Em sua descrição, destaca o papel das práticas visuais na produção e consecução da oferenda.

O desdobramento latente do conjunto de questões apresentadas no dossiê é o de sua aplicação a outros domínios da vida social que não apenas o religioso, pois a aposta é que ambiguidades, ambivalências, modos de composição, modulações, lugares, percursos rituais, presentificações, simbolizações e transformações não sejam ações socialmente significativas apenas no que se convenciona chamar de “o campo das religiões”.

Além dos artigos que compõem o dossiê, este número é aberto por três trabalhos do fluxo contínuo da revista, que tem recebido crescentes contribuições. Cruzando Antropologia e História, Luis Nicolau Parés e Lisa Castillo trazem a vida do liberto africano José Pedro Autran, na Bahia e na África, no século XIX, recuperando suas redes de relações em comunidades de terreiro. Antônio Braga retoma um episódio de sua pesquisa de campo sobre as romarias a Juazeiro do Norte, no Ceará, em que uma de suas principais informantes manipula uma pedra durante o ritual de visita ao Horto, para refletir sobre a relação pesquisador-pesquisado em situações de afetação, num exercício de reflexividade. E Daniele Evangelista apresenta um estudo de caso sobre a fundação de um terreiro de candomblé, procurando demonstrar a articulação entre os eixos de sua construção material, de sua inserção na esfera legal e jurídica, enquanto uma associação religiosa, e de seu sentido ritual e espiritual.

Renata MenezesMiriam Rabelo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
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