Resumo:
Neste artigo, analiso as incertezas em torno das obras de Aleijadinho, com vistas a sublinhar como argumentos sobre expertise são acionados em elaborações acerca da atribuição de autoria. Inicialmente, apresento o artífice/artista e como o referencial da antropologia da admiração (Heinich 1991) é profícuo para entender os efeitos da mitificação de sua trajetória e a importância conferida às suas obras no campo da arte brasileira. Em seguida, mostro como tais obras e outras imagens são vinculadas a noções de autoria, de estilo e de originalidade. Destaco, por fim, que imagens de santos e outras obras de arte podem se configurar como artefatos que devem ser decifrados por um olhar particular e revelador de afinidades entre domínios artísticos e mágico-religiosos.
Palavras-chave:
Aleijadinho; expertise; arte sacra; atribuição de autoria; connoisseurship
Abstract:
In this paper, I analyze the uncertainties around the Aleijadinho’s works, with a view to emphasizing how arguments about expertise are triggered in elaborations about the attribution of authorship. I initially present the artificer/artist and how the reference of the anthropology of admiration (Heinich 1991) is useful to understand the effects of the mythification of his trajectory and the importance given to his works in the field of Brazilian art. Then, I show how such works and other images are linked to notions of authorship, style and originality. I point out, finally, that images of saints and other works of art can be configured as artifacts that must be deciphered by a particular look, that reveals affinities between artistic and magico-religious domains.
Keywords:
Aleijadinho; expertise; sacred art; attribution of authorship; connoisseurship
O Museu de Arte de São Paulo (MASP) dedicou o ano de 2018 às “histórias afro-atlânticas”. Uma das exposições que inauguraram a programação foi “Imagens do Aleijadinho”, aberta ao público entre março e junho do referido ano. Na apreciação de Jorge ColiCOLI, Jorge. (2018), “Os falsos Aleijadinhos do MASP”. Amável Leitor: Arte e Cultura, 30 maio 2018. Disponível em: Disponível em: http://amavelleitor.blogspot.com/2018/05/os-falsos-aleijadinhos-do-masp.html
. Acesso em: 06/2018.
http://amavelleitor.blogspot.com/2018/05...
, professor titular em História da Arte e História da Cultura da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a reunião de obras prestou “um desserviço à obra do Aleijadinho e ao público”, pois “não é preciso ser grande especialista para perceber imediatamente que, nessa mostra, nem todas as esculturas podem vir da mesma mão ou do mesmo ateliê”. Em outro trecho, temos: “Algumas [esculturas] são sublimes e de atribuição segura, outras nem tanto”1
1
Os falsos Aleijadinhos do MASP”, no blog Amável Leitor: Arte e Cultura. Disponível em: http://amavelleitor.blogspot.com/2018/05/os-falsos-aleijadinhos-do-masp.html. Acesso em: 06/2018.
.
A análise de Coli sobre a recente exposição “monográfica” realizada no MASP evidencia que não é preciso ser grande especialista para perceber que algumas obras não foram feitas por “uma mesma mão”, mas que a atribuição de autoria para outras é contestável. O fato de a autoria de algumas esculturas não ser autoevidente para todas as pessoas nos remete ao célebre texto de Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. (1994), “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense.) sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. O autor conceitua a presença que ultrapassa a concretude do objeto em termos de “aura”. A ideia de aura diz sobre a aparição única de uma coisa distante. Como uma centelha, é algo que ilumina uma presença singular e evoca um suposto halo luminoso que só os iniciados veem.
Na argumentação que desenvolvo adiante, aciono as incertezas em torno do corpus de obras do escultor, entalhador, arquiteto e carpinteiro Antônio Francisco Lisboa (1738-1814), o Aleijadinho, com vistas a sublinhar como argumentos sobre expertise são acionados em elaborações acerca da atribuição de autoria. Para tanto, analiso documentos, laudos, catálogos, reportagens e estudos que, alinhavados, dão a ver como os debates atributivos são bons para pensar. Quais são as centelhas que dão notícia que uma obra foi feita por Aleijadinho? E quais pessoas estão aptas a vislumbrá-las?
Inicialmente, apresento Aleijadinho e como o referencial da antropologia da admiração (Heinich 1991HEINICH, Natalie. (1991), La Gloire de Van Gogh: Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Éditions de Minuit.) é profícuo para entender os efeitos da mitificação da trajetória do escultor e a importância conferida às suas obras no campo da arte brasileira. Em seguida, mostro como tais obras e outras imagens são vinculadas a noções de autoria, de estilo e de originalidade, destrinchando, assim, os meandros da identificação e atribuição de autoria. Discuto a apreciação de obras de arte como atividade que envolve tanto treinamento quanto visão da aura da obra que se apresenta difusa para outras miradas. Descortino uma série de afinidades entre domínios artísticos e mágico/religiosos que vêm a lume por meio da análise de operações de identificação e atribuição de autoria.
Grande parte da produção de Aleijadinho foi de figuras bíblicas, como os profetas, e imagens de santo, ou seja, representações plásticas de divindades do panteão católico. O uso do termo imagem ou santo no texto que segue remete, na maioria dos casos, a essa última acepção. Destaco que o exercício de pensar o corpo de divindades em si (formato, materiais, técnicas, disposição em relação a outras coisas, etc.) e as relações que mobilizam em contextos específicos, ao invés de tomá-los apenas como símbolos religiosos que remetem a outras coisas, se conecta ao esforço de autores na dissolução da noção de arte alicerçada em critérios ocidentais de beleza e complexidade técnica. A problemática das imagens religiosas enquanto obras que portaram múltiplos significados mesmo antes da consolidação da atual acepção de “arte” (mais ligada à visualidade e abarcadora de uma matriz de relações sociais que começa a se delinear com o Renascimento) é inclusive um fértil terreno para reflexões sobre outros tipos de imagens, obras de arte e objetos contemporâneos que mobilizam valores não só estéticos. A interlocução com os trabalhos de Schmitt (2007SCHMITT, Jean-Claude. (2007), O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC.), Belting (2011BELTING, Hans. (2011), An anthropology of images. Princeton: Princeton University Press.), Gell (1998GELL, Alfred. (1998), Art and Agency: an anthropological theory. New York, London: Clarendon Press., 2001______. (2001), “A rede Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas”. Arte e Ensaios: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA, nº 8: 175-191., 2005) e, em especial, com o olhar de Heinich (1991HEINICH, Natalie. (1991), La Gloire de Van Gogh: Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Éditions de Minuit.) para a fortuna crítica de Van Gogh evidenciam que a presente análise não se restringe a um estudo linear no qual objetos religiosos se secularizam e se tornam obras de arte. Em vista disso, espera-se que a discussão sobre autoria de trabalhos de Aleijadinho também ilumine debates sobre atribuição de um espectro de obras mais amplo do que as imagens de santo.
Antropologia da admiração
Em minha tese de doutorado (Gomes 2017GOMES, Lilian Alves. (2017), A peregrinação das coisas - trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Antropologia Social, MN/UFRJ.), analisei as relações engendradas por imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção em situações nas quais estes são mobilizados para outros fins que não o culto religioso2 2 As primeiras elaborações das reflexões articuladas neste artigo estão presentes, sobretudo, no segundo e no terceiro capítulo da tese. . Apesar de não ter estabelecido os santos barrocos como objetos privilegiados de pesquisa, frequentemente as obras com as quais travei contato durante o trabalho de campo resvalaram nas qualidades intrinsecamente atribuídas a eles. Realizei observação participante em museus, órgãos estatais de proteção do patrimônio histórico e, em especial, junto a um colecionador de arte popular e religiosa3 3 As pesquisas de campo foram realizadas entre 2012 e 2014, em Natal e outras cidades do Rio Grande do Norte e em Belo Horizonte. . Além disso, analisei diversos livros e catálogos de coleções e exposições.
Um dos referidos catálogos foi produzido por ocasião da mostra “Casa dos Milagres - Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques”. A certa altura da apresentação dos objetos expostos, lê-se: “A nave central da capela […] é presidida por uma imagem de Cristo de Ambrósio Córdula, esculpida em madeira, que de tão bonito lembra uma obra expressiva de Aleijadinho” (Carvalho Jr. 2013CARVALHO JR., Antonio Marques de. (2013), “A dimensão estética da religiosidade potiguar”. In: FJA. Casa dos Milagres - Santos e ex-votos na Coleção de Antônio Marques: catálogo. Natal: FJA/Secretaria Extraordinária de Cultura. (Col. Cultura Potiguar, nº 45).:17). No universo da arte popular, a semelhança com as peças de Aleijadinho e os santos barrocos não raro é tida como um ponto alto do desenvolvimento do trabalho escultórico de santeiros. Nesses casos, esculpir “como o” ou “inspirado em” Aleijadinho é um horizonte de trabalho, e são frequentes os relatos de artistas populares que apontam a comparação elogiosa com “o mestre” como uma clivagem em suas biografias. A título de ilustração, transcrevo o relato de Mestre Dezinho, considerado precursor da arte santeira no Piauí, hoje movimentada por dezenas de artistas: “Fiquei aliviado quando ele [o padre] me cumprimentou dizendo que eu era um escultor. Eu quis saber o que era um escultor. Ele disse que era um artista que fazia as semelhanças de uma pessoa em madeira ou pedra; e que se eu continuasse assim, ia ser um segundo Aleijadinho” (Dezinho 1999 apud Lima 2010LIMA, Lívia Ribeiro (org.). (2010), Arte em madeira do Piauí: santos e sertões do imaginário: catálogo. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP.:8).
A comparação e aproximação com a obra de Aleijadinho também está presente em leituras do trabalho “genial” de artistas e arquitetos modernistas, tais como Portinari e, principalmente, Oscar Niemeyer4 4 Paola Oliveira (2018) explora como a construção dessa conexão foi efetiva na sacralização, via patrimônio histórico, da Igrejinha da Pampulha, em Belo Horizonte. .
No imaginário daqueles que apreciam as imagens de santo brasileiras enquanto obras de arte, as peças barrocas ocupam o lugar de apogeu do virtuosismo técnico. Nessa direção, o barroco não é delimitado precisamente em termos estilísticos ou de suas respectivas periodicidades e variações dentro e fora do Brasil. Trata-se de referenciais diversos mobilizados de modo recorrente na relação com as obras que extrapolam sua concepção como um período histórico e artístico determinado, avultando-se como pervasivos na criação e na circulação de certas imagens. Não se trata de afirmar que todas as imagens sejam barrocas5 5 A imaginária religiosa erudita produzida no Brasil é enquadrada em três períodos estilísticos distintos: “uma fase maneirista, durante todo o século XVII, quando predominavam as oficinas conventuais; um período barroco propriamente dito, entre 1720 e 1770, e, finalmente, uma fase rococó, nas três décadas finais do século XVIII, com prolongamento no século XIX em algumas regiões” (Coelho e Quites 2014:34). , mas de explorar como elas, de certo modo, subsumem outras imagens de santos e o trabalho das pessoas que lhes dão forma. Essa subsunção é capitaneada pela figura de Aleijadinho.
Segundo Guiomar de Grammont (2008GRAMMONT, Guiomar de. (2008), O Aleijadinho e o aeroplano: o Paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), numerosos discursos biográficos e da História da Arte edificaram Aleijadinho como um “mito” que, como tal, confere unidade a uma trajetória ao mascarar uma miríade de fragmentos, anacronismos, contradições e versões. O alicerce de tal construção foi a primeira biografia do artista - escrita em 1858 por Rodrigo José Ferreira Bretas para um concurso instituído pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Bretas teria composto a biografia inspirado na história de Quasímodo, personagem de O Corcunda de Notre Dame.
Assim como o personagem de Victor Hugo, Aleijadinho, como indica sua alcunha, tinha o corpo deformado6 6 As desfigurações de monumentos, símbolos e corpos, como nos lembra Michael Taussig (1999), são particularmente reveladoras, uma vez que atraem ao passo que revelam interioridade. . Uma enfermidade atrofiou e semiparalisou seus membros a partir dos 30 anos. Devido a isso, o escultor amarrava as ferramentas de trabalho aos braços. Segundo Bretas (1984BRETAS, Rodrigo José Ferreira. (1984), “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa - distinto escultor mineiro mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho”. In: C. Meyer. Passos da Paixão - O Aleijadinho. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento/Livro Arte Editora.:14), a dor nos poucos dedos que sobraram foi ceifada com o próprio instrumento de trabalho de Aleijadinho: “colocava convenientemente o formão sobre o dedo que tinha de cortar e ordenava a um de seus escravos, que eram oficiais ou aprendizes de talha, que sobre ele desse uma forte panca de macete”.
Guiomar de Grammont (2008GRAMMONT, Guiomar de. (2008), O Aleijadinho e o aeroplano: o Paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) explorou ainda como a construção do mito ganhou feições nacionalistas variadas. Segundo a autora, Bretas teria falado de um pai branco para que o Quasímodo tropical fosse melhor aceito na época do segundo reinado brasileiro, tornando-o mestiço. A figura do artista “mulato” - autor de obras originais e não meras cópias de estilos europeus - é recuperada pelos modernistas nos anos 1920, no seio do movimento que se propunha justamente a pensar o Brasil mestiço. Nas palavras de Mario de Andrade, a obra de Aleijadinho “contém algumas das constâncias mais íntimas, mais arraigadas e mais étnicas da psicologia nacional” (Andrade 1965ANDRADE, Mario de. (1965), Aspectos das artes plásticas no Brasil. São Paulo: Martins.termos de Grammont (2008:33, grifo nosso): “Esta não é a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e outra. […] Aleijadinhos há muitos, não apenas nos museus e nas casas dos colecionadores, mas também na morada de uma nacionalidade constituída de imaginários diversos ao longo dos últimos dois séculos.”
Escavar as camadas de interpretações que recobrem a excepcionalidade do artista escapa aos objetivos deste artigo. Sublinho, entretanto, a pertinência de observar a multiplicação de “Aleijadinhos” nos museus e nas casas dos colecionadores aventada acima. É interessante perceber como o discurso totalizador característico das grandes narrativas nacionais que institui o trabalho de Aleijadinho como a verdadeira encarnação da estética barroca brasileira acaba por fazer proliferar as obras atreladas ao escultor.
Roger Bastide (1941BASTIDE, Roger. (1941), “O mito do Aleijadinho”. In: BASTIDE, Roger. Psicanálise do Cafuné e Estudos de Sociologia Estética Brasileira. Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro: Guaíra.:13) salientou o tom hagiográfico que permeia as narrativas sobre Aleijadinho: “assim como em torno do santo, flutua em torno do artista uma auréola de legenda”. Para o autor, o “mito” sobre o escultor compõe um conjunto de representações coletivas em torno dos grandes mestres das artes no Ocidente pautado no modelo do herói, do ser que “escapa à condição humana porque é um mensageiro dos deuses”, perseguido pela “Fatalidade” (Bastide 1941:15).
Ao discutir o “efeito Van Gogh”, Natalie Heinich (1991HEINICH, Natalie. (1991), La Gloire de Van Gogh: Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Éditions de Minuit.) argumenta que a glorificação do pintor holandês pode ser tomada como uma espécie de paradigma do artista moderno, ao passo que se tornou normal a associação intrínseca entre experiência de vida e criatividade do artista. Assim, a partir de Van Gogh, o reconhecimento de um conjunto de obras originais passa pelo engrandecimento de biografias e vice-versa. Vidas fora do comum, como as dos santos, deixam de ser exceção no domínio das artes (até então aplicável apenas aos grandes mestres, como na citação de Bastide). A autora sublinha que a utilização do termo legenda ou hagiografia não é metafórico, pois a celebração biográfica do artista recupera as principais características das vidas dos santos, abarcando tópicos de dimensão sacrificial e heroísmo, por exemplo.
Heinich não trata a trajetória mitificada de Van Gogh como mera ilusão ou ideologia a ser denunciada em termos de deformação da realidade. A descrição da diferença entre a imagem idealizada e a realidade vivida caberia à sociologia e sua conhecida aversão pela singularidade, pelos temas carregados de afetividade e pretensamente pré-construídos pelo senso comum. A antropologia, por sua vez, ficaria a cargo da especificidade da admiração e de como suas dimensões incitam práticas sociais. Diferentemente de desconstruir, trata-se de entender seu funcionamento ordinário e como ele mobiliza tanto especialistas quanto outros envolvidos na admiração.
A partir desse referencial, o “efeito Aleijadinho” diz respeito em menor medida ao deslocamento para o domínio das biografias de artistas de formas de vida consagradas como santificadoras; mas, sobretudo, e indo além dos textos, ao modo como a canonização em questão envolve formas e particularidades autorais capazes de nos colocar na presença de entidades e de especialistas reputados como hábeis para identificá-las.
Dissecando o efeito
Em meu primeiro encontro com um colecionador e comerciante de arte, ouvi que se eu quisesse explorar um “campo novo” relacionado a imagens de santos eu precisaria me afastar da arte erudita e oficial produzida por Aleijadinho, consagrada na História da Arte e conservada nos museus de arte sacra. A despeito dessa colocação e de o colecionador em questão, chamado Antônio Marques, afirmar não ter peças “representativas” do período barroco, não raro a obra de Aleijadinho foi citada como parâmetro, seja pela sua talha “inconfundível”, seja pelo posto de destaque sem igual no rol de artistas que deram corpo a imagens sagradas no Brasil. Trago a lume um significativo extrato de nossa conversa:
Então isso é um campo que eu acho que já foi muito estudado, não sei se vale a pena você ir por aí, por que como é que você vai fazer uma tese hoje sobre Aleijadinho? É possível fazer? É, mas já tem tanta tese sobre o Aleijadinho que se você quer explorar um campo novo… a não ser que você pegue uma imagem dele, duas, três e vá dissecar até a alma da estátua. Talvez seria até interessante, mas já têm estudos (entrevista com Antônio Marques, 15/02/2012Entrevista com Antônio Marques, Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas, Natal/RN, 15 de fevereiro de 2012.).
A imagem da dissecação de uma obra até sua alma não parece metafórica nos laboratórios do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (CECOR), vinculado à Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG). O processo de restauração busca devolver a estabilidade física e estética dos santos. Para tanto, as imagens passam por processos de desinfestação, limpeza, remoção de repinturas e reintegração de camadas, que podem demandar o esquadrinhamento das peças por meio de exames de prospecção estratigráfica, raio-x, tomografia, endoscopia, etc.
Conversei a respeito desse trabalho com Beatriz Coelho, uma das idealizadoras do CECOR. A restauradora-autora de obras de referência sobre escultura devocional é, atualmente, presidente do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (CEIB)7 7 Associação científica vinculada ao CECOR/EBA/UFMG. , fundado por ela juntamente com a historiadora da arte Myriam Ribeiro de Oliveira, que se notabilizou como especialista em barroco e na obra de Aleijadinho. De acordo com BeatrizEntrevista com Beatriz Coelho, EBA/UFMG, 19 de fevereiro de 2015. 8 8 Para fins de distinção entre informações obtidas via entrevista (em 19/02/2015, na EBA/UFMG) e dados pesquisados em obras publicadas da restauradora, abordo as primeiras informando o primeiro nome de Beatriz e as segundas de acordo com as normas de citação, ou seja, como Coelho (2005); Coelho e Quites (2014); Coelho, Quites e Queiroz (2003). , a figura do escultor é tão paradigmática que “embaça” o estudo de outros bons artistas eruditos: “Tudo que é bom se pensa que é do Aleijadinho, mas tivemos outros, que não foram tão gênios quanto ele, mas existiram, e o CEIB existe justamente para mostrar que há outros com trabalho de alta qualidade. Não são populares, são eruditos desconhecidos”. Resumindo uma longa discussão para começar a tateá-la, nas palavras de Beatriz, dizer que um artista é erudito significa “Que ele produziu de acordo com o estilo e as técnicas de um período”.
A “dissecação” de um santo, nesse sentido, busca revelar técnicas construtivas, possível local de origem da fatura e o período cronológico de produção. A operação tem o potencial de trazer à tona dados e informações que ajudam a atribuir a autores obras não documentadas. Os autores das imagens são desconhecidos porque não eram vistos como artistas quando produziram os objetos que nos interessam, tampouco as peças que lavravam eram assinadas como obras de arte.
Os santos eram feitos por meio do trabalho de pessoas atentas a necessidades devocionais que passavam ao largo dos conceitos modernos de autoria, de estilo e de originalidade. A construção de vínculos das imagens com essas noções passou a ser feita posteriormente, quando começam a ser atribuídas a autorias específicas. Um dos caminhos para tanto é o cruzamento de suas características físicas com contratos, recibos, livros de tombo ou outras formas de documentação das irmandades, ordens terceiras e das igrejas que encomendaram as peças no passado.
Na falta dessas “comprovações”, as imagens são relacionadas a autores por meio da identificação de um estilo, das marcas pessoais que o artista imprimiu nas peças e que acabam por funcionar como sua assinatura. Nesse processo, o artista pode sair do anonimato sem que necessariamente tenha se descoberto seu nome próprio. A alcunha, em muitos desses casos, relaciona-se diretamente ao local onde as imagens presumivelmente feitas pela mesma pessoa - devido ao fato de reunirem um certo número de características peculiares - são encontradas.
É o caso de Mestre Piranga que, como ressaltam muitos profissionais, deveria ser chamado de Mestre de Piranga, assim como se passa com o Mestre de Barão de Cocais e com o Mestre de Jacuí. A inclusão da partícula “de”, nessa direção, deixaria nítido que Piranga não designa uma pessoa e sim a localidade no entorno da qual o artista teria atuado mais significativamente. Outra forma comum de nominação é inspirada pelas marcas impressivas que mais se destacam nas séries de imagens. A partir dessa lógica, o colecionador José Alberto Nemer (2008NEMER, José Alberto. (2008), A mão devota: Santeiros populares nas Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Bem-te-vi.) nos apresenta os artistas “Mestre do Cabelo Longo”, “Mestre do Leque”, “Mestre do Estilo Delicado”, “Mestre da Cara Larga”, “Mestre da Cara Simples” e outros.
Os nomes dos artistas são então produzidos pela associação dos traços formais de suas imagens ou da ligação com espaços regionais de produção. Tem-se, então, um princípio de identificação que ultrapassa a singularidade de cada obra para alcançar a particularidade do conjunto do trabalho de um artista. Este, quando identificado, passa a se fazer presente nas imagens que, nesse sentido, envolvem mais que a evocação de uma divindade do panteão católico.
Nesses termos, “um São Jorge” passa a ser “um São Jorge do artista tal”. Em linhas gerais, isso quer dizer que uma imagem específica foi atrelada a um repertório autoral mais amplo, no qual se verifica a recorrência de certas características. No caso de uma peça feita por aquele que é considerado o maior artista colonial brasileiro, um São Jorge pode ser chamado “simplesmente” de “um Aleijadinho”9 9 Como se pode ver, por exemplo, nas seguintes manchetes: “Quanto vale um Aleijadinho” e “O homem que esculpiu um Aleijadinho - O artista abaixo não sabia, mas uma obra sua apareceu num museu como se fosse de Aleijadinho – o escultor colonial favorito dos falsários e golpistas”; respectivamente disponíveis em http://istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847 e http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/o-homem-que-besculpiu-um-aleijadinhob.html. Acesso em: 12/2016. .
Se visto de relance, esse modo de tratamento parece não incidir na singularização da imagem, pois reduz a quantidade de informações sobre ela. Nesse contexto, entretanto, não dizer o nome do santo visa endossar uma autoria excepcional. Vejamos que a singularização, por conseguinte, se pauta em uma forma de personalização específica. Quem olha para um santo e percebe “um Aleijadinho” destaca que o artista imprimiu na imagem não só os elementos iconográficos que concorrem para dar a ver uma invocação específica, mas principalmente um conjunto de características formais que nos colocam na presença de seu trabalho notável:
[…] panejamentos angulosos, esculpidos em largos planos cortados por arestas vivas, os cabelos e barbas com deliberado efeito ornamental, os olhos amendoados com acentuação dos lacrimais, as sobrancelhas altas e ligadas visualmente ao nariz, os lábios de desenho sinuoso, os bigodes em linha contínua com o septo nasal, a articulação em V do pescoço e estrutura robusta dos corpos, com musculatura e veias evidentes (Oliveira 2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de. (2002), “O Aleijadinho, escultor de imagens devocionais”. In: M. A. R. de Oliveira; O. R. dos Santos Filho; A. F. B. dos Santos. O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais. São Paulo: Capivara. :24).
A especialista que elencou esses traços como típicos do estilo pessoal de Aleijadinho arrolou ainda outros - “o canon baixo das esculturas, a implantação paralela do polegar e os pés dispostos em ângulo reto” (Oliveira 2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de. (2002), “O Aleijadinho, escultor de imagens devocionais”. In: M. A. R. de Oliveira; O. R. dos Santos Filho; A. F. B. dos Santos. O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais. São Paulo: Capivara. :23) - como pertencentes a um repertório mais geral de gosto e estilo de época, que, apesar disso, rotineiramente é associado apenas ao famoso escultor. Além disso, certas especificidades - “como a barba bipartida deixando a parte central do queixo aparente, as barbas frisadas em rolos, as mechas em vírgula na testa, os malares salientes […]” (Oliveira 2002:24) - a despeito de se referirem, sobretudo, aos personagens de uma obra específica do escultor, os Passos da Paixão, são procuradas a todo custo em imagens que não fazem parte desse conjunto.
Vulgarmente, para um São Jorge ser “um Aleijadinho”, portanto, não basta possuir lança, armadura de soldado, etc., é preciso também conter a presença dos elementos diacríticos mencionados acima. Muitos deles se relacionam, entretanto, a imagens, como as dos Passos, feitas para atuarem em uma localização bastante específica. O conjunto dos Passos integra o adro da igreja para o qual foi esculpido entre 1800 e 1805, a Matriz de Matosinhos da cidade de Congonhas/MG. Essa integração é fundamental para compreender a gestualidade das imagens, exacerbada, feita para ser vista à distância e “incompreensível” se desligada do seu contexto. Não há comunicação direta com o observador: as relações se fazem entre os próprios personagens do grupo, subordinados à ação dramática da cena representada, a martirização de Cristo, comumente chamada de “Paixão”.
O santuário que abriga o conjunto em questão, considerado a obra-prima de Aleijadinho, foi tombado pelo então recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) em 1938 e declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1985. Como observou Márcia Chuva (2009CHUVA, Márcia. (2009), Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.), o rosto de um dos profetas de Congonhas compunha a logomarca do SPHAN nos anos 1940 e podia ser encontrado impresso no papel oficial utilizado pelo órgão, o que ressalta a proeminência da produção mineira colonial e, em especial, das produções de Aleijadinho como espécie de totem do patrimônio nacional. É válido lembrar que o primeiro presidente do SPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, era bisneto de Rodrigo José Bretas, o primeiro biógrafo de Aleijadinho (Aguiar 2016AGUIAR, Leila Bianchi. (2016), “Desafios, permanências e transformações na gestão de um sítio urbano patrimonializado: Ouro Preto, 1938-1975”. Estudos Históricos, vol. 29, nº 57: 87-106.).
As características das imagens do conjunto dos Passos frequentemente são generalizadas para todo o conjunto de obras de Aleijadinho, como se fossem detectáveis em qualquer peça do escultor, inclusive em imagens feitas para outras finalidades e contextos. Primeiramente, é preciso considerar a especificidade da localização dos Passos, da cena ali representada e também por que tais obras são representativas, ainda de acordo com Oliveira (2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de. (2002), “O Aleijadinho, escultor de imagens devocionais”. In: M. A. R. de Oliveira; O. R. dos Santos Filho; A. F. B. dos Santos. O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais. São Paulo: Capivara. ), da fase mais madura da trajetória do artista, caracterizada por uma maior estilização em contraposição ao naturalismo de quando estava formando seu próprio estilo10 10 Segundo Oliveira (2002), o caminho de Aleijadinho do naturalismo à estilização compreendeu três fases: Primeira fase (Formação do estilo - c. 1760-1774); Segunda fase (A realidade idealizada - c. 1774-1790); Terceira fase (A espiritualidade sublimada - c. 1790-1812). .
A partir de comparação com os problemas de autoria colocados por obras literárias, Guiomar de Grammont (2008GRAMMONT, Guiomar de. (2008), O Aleijadinho e o aeroplano: o Paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) critica o estabelecimento de convenções nas Artes Plásticas que levam à anacrônica construção de uma individualidade autoral. A autora discute ainda como as características do que seria o estilo Aleijadinho acabam por dificultar o trabalho das próprias pessoas que as alçaram ao caráter de “padrão”. Grammont cita o exemplo de Germain Bazin, historiador da arte e ex-curador do Museu do Louvre que visitou igrejas brasileiras a convite de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Bazin foi um dos primeiros especialistas a estabelecer alguns dos parâmetros que se tornaram praticamente cânones para o reconhecimento das imagens do artista. Ao defrontar-se com uma imagem de Cristo Flagelado que inicialmente havia atribuído ao escultor, hesitou por encontrar na peça a falta do furo no queixo e barba sem a famosa repartição que seria característica de qualquer “Aleijadinho”. Os chamados estilemas autorais não se faziam presentes na imagem, mas o autor sim. Afinal, como uma peça tão extraordinária não seria obra da persona artística mais extraordinária de que se tinha notícia em termos de esculturas de santos coloniais?
À luz dessas questões, Grammont argumenta que a construção da singularidade de Aleijadinho foi feita à custa de “um efeito de uniformização e empobrecimento do fundo, ou seja, dos outros artífices que viviam no período” (Grammont 2008:208). Esse efeito impede que o trabalho de outros artífices venha a lume e esfumaça o horizonte de possibilidades das obras do próprio escultor celebrado, pois tem como guia mental uma obra-padrão que diz respeito à produção estereotipada de um artífice e ao modo como certos lugares comuns sobre essa produção se constituíram como um dos alicerces da edificação do mito Aleijadinho.
A problematização da atribuição de autoria como empreitada anacrônica, uma vez que envolve noções - como as de artista e originalidade - estranhas aos sujeitos históricos envolvidos na produção de imagens, não deixa de ser válida, mas não recobre todas as questões suscitadas pela personalização e atual circulação de imagens de santos enquanto obras de arte. Como me disse Beatriz Coelho, a restauradora com quem dialogo no início desta sessão: “Todo mundo quer ter um Aleijadinho. Porque se for um museu, o museu cresce, o acervo do museu fica melhor. Se for um comerciante, algo que vale dez, se for do Aleijadinho vale cem. Ele teria que ter vivido três vidas para produzir tudo que dizem que é dele.”
A pretensa vastidão da obra do artista (e aqui não o chamar de artífice é uma forma de me aproximar dos meus principais interlocutores em campo) coloca em relevo uma série de aspectos. As imagens que fogem da tipologia esperada para uma peça do escultor contrariam especialistas ao passo que revelam outros. Exemplo ilustrativo é o do colecionador Renato Whitaker, que foi processado por ter afirmado que um Cristo de Aleijadinho pertencente a outro colecionador seria “ruim e bixiguento”11 11 “Aleijadinho, beleza & polêmica: Exposição reúne em São Paulo imagens comoventes do mestre do barroco mineiro e levanta a questão sobre a autoria de esculturas atribuídas a ele”. Revista Istoé, 25/07/2007. Disponível em: https://istoe.com.br/427_ALEIJADINHO+BELEZA+POLEMICA/. Acesso em: 12/2016. . A apreciação negativa foi feita por ocasião da exposição na mostra “Brasil Barroco - entre o céu e a terra”, apresentada no Petit Palais de Paris em 1999. De acordo com o proprietário da imagem, o comentário fez um potencial comprador desistir da aquisição da obra, apesar do Cristo em questão ter sido atribuído a Aleijadinho, no passado, por Germain Bazin.
O próprio colecionador, autor do diagnóstico fatal para a comercialização da peça, teve a autoria de vários Aleijadinhos de sua coleção contestada por especialistas na publicação O Aleijadinho e sua oficina - Catálogo das Esculturas Devocionais. Nesta obra, Myriam Ribeiro de Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Batista dos Santos (2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de. (2002), “O Aleijadinho, escultor de imagens devocionais”. In: M. A. R. de Oliveira; O. R. dos Santos Filho; A. F. B. dos Santos. O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais. São Paulo: Capivara. ), profissionais de longa atuação no IPHAN e reputados como grandes conhecedores da obra de Aleijadinho, afirmam que a maioria das peças atribuídas ao artista teriam sido feitas, na verdade, por seus aprendizes e auxiliares, tendo em vista que a confecção das imagens era realizada em oficinas que congregava artífices com diferentes ocupações e níveis de habilidades. O livro chegou a ser recolhido pela justiça a pedido de Whitaker, que alegou não ter autorizado o uso de fotografias de cinco obras da sua coleção e que, ainda assim, a editora as utilizou. Apesar de o colecionador negar que sua motivação tenha sido o fato de o estudo desqualificar as atribuições de obras de sua propriedade, uma delas inclusive feita por Rodrigo Mello Franco de Andrade, a ação nitidamente soou como cerceamento ao trabalho dos autores12 12 “A proibição do Aleijadinho”. Estadão, 08/05/2003. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-proibicao-do-aleijadinho,20030508p3582. Acesso em: 08/2017. .
Nessa perspectiva, o objetivo da apreensão foi barrar a circulação da argumentação de que um conjunto de peças relacionadas a Aleijadinho - posto que apresenta as características da obra do escultor e em função de seu nome constar em recibos - provavelmente foi uma criação de várias pessoas sob graus variados de sua influência. Desse modo, o catálogo apresenta peças de “Aleijadinho”, de “Aleijadinho e oficina” e da “oficina do Aleijadinho” (Oliveira, Santos Filho e Santos 2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de. (2002), “O Aleijadinho, escultor de imagens devocionais”. In: M. A. R. de Oliveira; O. R. dos Santos Filho; A. F. B. dos Santos. O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais. São Paulo: Capivara. ).
Essa classificação e a periodização da obra do artista remetem tanto a elementos objetivos, mensuráveis e comparáveis, tais como o cabelo, os olhos e as narinas características e relativas ao aprimoramento paulatino do trabalho do “mestre”; quanto à “força da obra aleijadiana” e às “peças de grande presença e força”. Execuções “canhestras”, “sem o apuro do mestre”, “sem o vigor e força inerentes à obra aleijadiana”, que “não impressionam o espectador”, “inexpressivas” e com “marcas de imperícia” são relegadas aos auxiliares do artista, confirmando sua genialidade “indiscutível”.
Vejamos um extrato da descrição de uma imagem (um Busto de Santo Franciscano):
A figura apresenta características formais da obra do Aleijadinho, como o tratamento dos cabelos, a conformação óssea do rosto muito saliente, o desenho das sobrancelhas, os olhos, o nariz, a boca e os lábios recortados, assim como os bigodes saindo das narinas, as barbas contornando o maxilar inferior e as rugas na fronte. Apesar dessas características, não tem a força da obra do mestre. O desenho um tanto canhestro das nuvens da base do busto, os concheados regulares e miúdos na parte inferior, e a expressão apática da figura fazem com que seja atribuída à oficina do Aleijadinho (Oliveira, Santos Filho e Santos 2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de. (2002), “O Aleijadinho, escultor de imagens devocionais”. In: M. A. R. de Oliveira; O. R. dos Santos Filho; A. F. B. dos Santos. O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais. São Paulo: Capivara. :288, grifo nosso).
A referência à “força” também pode ser encontrada em outro documento (Coelho, Quites e Queiroz 2003COELHO, Beatriz; QUITES, Maria Regina Emery; QUEIROZ, Moema Nascimento Queiroz. (2003), “Nossa Senhora da Piedade do Aleijadinho”. Imagem Brasileira - CEIB, nº 2: 41-48.) no qual analistas explanam os caminhos que justificam sua conclusão pela “confirmação de atribuição” de autoria a Aleijadinho:
As características formais e estilísticas, tanto da anatomia, quanto da indumentária, correspondem às conhecidas como do Aleijadinho. […] Encontramos, entretanto, um detalhe diferente: antes da restauração, a barba contornava o rosto, sem nenhuma separação, não terminando em duas espirais separadas, como em outros rostos masculinos do Aleijadinho. Durante a restauração foi verificado que a barba era unida por um acréscimo feito em gesso pintado. Essa peça foi retirada, tendo ficado o rosto do Cristo com todas as características do mestre Aleijadinho.
Mas o que mais impressiona a quem estuda a Nossa Senhora da Piedade de Felixlândia é a força de expressão que emana dessa escultura, o que nenhum discípulo ou falsificador seria capaz de conseguir (Coelho, Quites e Queiroz 2003COELHO, Beatriz; QUITES, Maria Regina Emery; QUEIROZ, Moema Nascimento Queiroz. (2003), “Nossa Senhora da Piedade do Aleijadinho”. Imagem Brasileira - CEIB, nº 2: 41-48.:46-47, grifo nosso).
O trecho acima foi retirado de uma publicação produzida no âmbito do CEIB, laboratório mencionado no início desse tópico como lócus de esquadrinhamento de imagens por meio de procedimentos técnicos diversos. Nota-se, entretanto, que a presença do artista-entidade se sobrepõe à visão de seu trabalho detectada em imagens obtidas a partir de raio-x, tomografia ou da lente de um microscópio. Ela “emana” da obra.
Como visto, ao simular as condições de execução da peça e entrever sua lógica de construção plástica, o especialista pode especular sobre a complementaridade da matéria e das técnicas empregadas, e, ao mesmo tempo, termina por ratificar que a imagem é um feito fora do comum, que discípulo ou falsificador nenhum seria capaz de copiar. A identificação traveste-se, nesses termos, do caráter de quase comunhão com a força transcendente de um gênio artístico. A captura dessa força constrói ainda a excepcionalidade de quem pode percebê-la. A atividade de identificação de autoria é, nesse sentido, também uma experiência visionária em que o observador de uma imagem não é um espectador passivo de algo inerte.
“Ter olho”
A despeito de todo o aparato tecnológico envolvido atualmente na confirmação da atribuição de uma obra, ouvi reiteradas vezes em campo que a palavra final é a de quem sabidamente “tem olho”. Esse olho que nem todo mundo tem é tratado por muitos apreciadores como “olho bom”, capaz de ver mais, aptidão marcada por aspectos não intelectivos, como intuição e sensibilidade. Nesse sentido, a avaliação de uma imagem de santo como “ruim e bixiguento” pode soar como imprecação de colecionador invejoso, mas também como alerta de quem tem um conhecimento específico de causa. O olho bom é tanto acionado quanto visto com desconfiança pelos próprios colecionadores, posto que enxergaria além em causa própria, atribuindo peças de suas próprias coleções particulares a grandes artistas. Nesses casos, o olho bom não passaria, portanto, de “olho grande”, que quem tem, obviamente, é sempre o outro.
Por isso mesmo, de modo geral, o ponto de vista de historiadores da arte, restauradores e outros profissionais do campo do patrimônio cultural baseia-se em um olho adjetivado de uma maneira que gera menos suspeita. Ao invés do olho sagaz que uma pessoa é afortunada por ter, é aquele que pode vir a sê-lo: o “olho treinado”. Trata-se do olho que foi exercitado, que se tornou apto a ver, ou seja, é o olho da experiência, que recorre a um estoque de imagens mentais construído ao longo de anos. O exercício da inteligência do olhar, nessa perspectiva, requer longa frequentação das obras e sua observação arguta em diferentes níveis: visão global; impressão do conjunto; exame dos detalhes; das técnicas e dos materiais empregados; do contexto sócio-histórico de fabricação, de uso e de comercialização das peças, etc.
O olho bom, mais do que exercitado, é o olho de alguém com capacidade acentuada de discriminar estímulos sensoriais. O elogio dessa acuidade é propalado e faz parte do ethos dos colecionadores, mas é pertinente explorar que tal capacidade não é acionada textualmente sem maiores constrangimentos pelos profissionais do campo do patrimônio mencionados acima. Como me disse um historiador da arte, “um especialista na obra de Aleijadinho nunca vai colocar isso em um laudo, mas, para nós, fala coisas do tipo: é obra dele porque eu sinto isso”.
Se a força criativa do artista sobre-humano arrebata, mensurá-la é uma habilidade que envolve alguma iluminação, uma sorte de esclarecimento sobre a fascinação. Assim, podemos concluir que quando especialistas - sejam eles colecionadores, historiadores da arte, sejam restauradores - reconhecem o artista na imagem de santo, generalizam a noção romântica do artista como individualidade criadora expressiva e, além disso, incutem sua lavra pessoal na obra, pois seus olhos enxergam parte da aura da obra que se apresenta difusa para outras miradas. A imagem configura-se assim como artefato hermético que deve ser decifrado por um olhar particular, vocacionado e hábil.
A noção de “olho da época” do historiador da arte Michael Baxandall (1991BAXANDALL, Michael. (1991), O Olhar Renascente. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) relaciona a leitura do significado cultural das imagens com a especificidade de certas formas. Desse modo, o caráter de convenção destas não é tratado como sintoma ou reflexo estático da sociedade. A visualidade imiscui-se na teia cultural de modo a também configurá-la. O que enxergamos, portanto, age sobre nossa percepção de mundo, não sendo apenas um mero produto dela13 13 A afirmação de que alguns afortunados têm olho também é discutida por autores que abordam o colecionamento de arte primitiva, seja em termos de gosto (De L’Estoile 2007:366-368), paixão (Derlon e Jeudy-Ballini 2008), seja evidenciando “a mística do connoisseurship” (Price 1989:7-22). Tais pesquisas problematizam como práticas em torno de objetos – utilizados, sobretudo, para colocar em relevo os limites entre “nós” e “eles” – reforçam certos estereótipos sobre os “outros”, mas também participam da recusa de aspectos da civilização ocidental, invocando, por exemplo, formas de relacionamento com as coisas atravessadas por aspectos mágico-rituais. .
De acordo com Carlo Ginzburg (1989GINZBURG, Carlo. (1989), Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras.), o reconhecimento da autoria de uma obra de arte inscreve-se em um modelo cognitivo que possui diversas manifestações e remonta a modos de saber muito antigos. O autor aborda desde sua forma venatória, passando pela medicina hipocrática, pela filologia, pela invenção da impressão digital, até sua configuração oitocentista. O modelo cognitivo em questão não é evolutivo ou dicotômico. Ao descrevê-lo, Ginzburg não opõe religião/magia e ciência, tampouco objetividade e subjetividade. Segundo o historiador, o método “emergiu no final do século XIX - mais precisamente, na década de 1870-80 - e começou a se firmar nas ciências humanas como um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica. Mas as suas raízes eram muito antigas” (Ginzburg 1989:151). E, conforme argumenta, são
[…] formas de saber tendencialmente mudas - no sentido de que […] suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento, entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição (Ginzburg 1989GINZBURG, Carlo. (1989), Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras.:179).
A ideia de connoisseurship, um conhecimento de alto nível adquirido por conhecedores de arte que, dentre outras astúcias, distinguem originais das cópias, funda-se nos “fulminantes diagnósticos” de médicos que, com rápidos olhares, detectam a doença. Nesse quadro de referência, o olho do conhecedor é olho clínico que enxerga na realidade opaca “zonas privilegiadas”, acessadas por meio da atenção a certos sinais. As pistas a serem seguidas, no caso de Sigmund Freud, são sintomas; no caso de Sherlock Holmes, indícios; e signos pictóricos no caso do crítico de arte italiano Giovanni Morelli. A trama de saberes indiciários é deslindada por Ginzburg (1989GINZBURG, Carlo. (1989), Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras.:151) através de suas raízes na semiótica médica: “Freud era um médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico.”
Foi seguindo pistas infinitesimais que Morelli identificou os verdadeiros autores de quadros que tinham sido atribuídos a autores errados e outros tantos falsificados.
Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros… Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de orelha própria de Botticelli, a de Cosme Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas cópias (Ginzburg 1989GINZBURG, Carlo. (1989), Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras.:144).
Um catálogo de formato de orelhas, nesse sentido, pode ser mais precioso para captar a realidade mais profunda do conjunto da obra de um autor do que suas marcas impressivas mais evidentes. A atenção aos “vícios” e “cacoetes” dos artistas desmistificava falsários e corrigia atribuições errôneas, porque os pormenores em questão eram negligenciados, mas… E quando a obra de um artista já foi tão estudada que até o formato que ele dava às unhas das estátuas que esculpia é conhecido?
Nesse caso, pode-se pensar no esquadrinhamento de autoria como uma fonte de informação que tanto facilita a revelação de golpes, quanto promove a possibilidade de reproduções fiéis à integridade do conjunto de características particulares de um autor. Contudo, como já foi exposto, conhecer a fórmula não é necessariamente saber fazer. Se a obra é considerada um feito extraordinário, para simulá-la com precisão é preciso mais do que expertise. O manipulador precisa também ser um pouco mágico e conseguir se comunicar com um gênio artístico difícil de ser alcançado por qualquer um.
Ter olho para certas astúcias técnicas não significa ser capaz de produzir como gênios artísticos. É nessa decalagem, segundo Gell (2005______. (2005), “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia”. Concinnitas, ano 6, vol. 8, nº 1: 41-63.), que reside o “encanto da tecnologia”. Quando os espectadores de uma obra se indagam sobre os procedimentos empregados para produção de efeito (de vida, movimento, etc.) e, mesmo assim, não conseguem reconstruí-la mentalmente, o artista alcançou um ideal mágico. A maestria reside, assim, na habilidade de produzir imagens que maravilham a ponto de personificarem os processos técnicos que lhe dão forma, dispensando a necessidade de explicação sobre eles e certos tipos de perícia.
Técnicas, falsificações e atestados
O fato de especialistas concluírem que a “força de expressão” da escultura de Aleijadinho não poderia ser conseguida por um discípulo do artista ou falsificador nos aproxima da problemática da autoria não só das obras em tese produzidas na oficina do artista, ou seja, aquelas concebidas pelo escultor, porém realizadas fisicamente por auxiliares diretos, mas também daquelas relacionadas ao seu trabalho por meio de fraude. Se, como já foi mencionado, “todo mundo quer ter um Aleijadinho” e as peças realizadas pelo artista são altamente valiosas14 14 O lance mínimo para arrematar um lote de sete peças atribuídas ao escultor colocado a leilão no Rio de Janeiro em 2003 foi estimado em R$ 2,05 milhões, segundo a matéria “Quanto vale um Aleijadinho”, 06/08/2003, disponível em http://istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847. Acesso em: 12/2016. , é presumível que a grande demanda por essas mercadorias caras tenha estimulado a produção de Aleijadinhos.
É sabido que catálogos sobre a obra de Aleijadinho são inflados por peças relacionadas a ele e que não resistem a um exame mais minucioso de pessoas reputadas como especialistas, mas também ouvi em campo que algumas imagens, entretanto, quase mereceriam a atribuição, de tão bem artificiosamente fabricadas. Nessa direção, um restaurador já falecido e cuja astúcia é considerada incomparável por colecionadores, comerciantes de arte e profissionais do patrimônio era conhecido como “Aleijadinho do Mal”. A alcunha torna explícita a relação entre poder da técnica e fabricação de malefício. Ao modificar imagens de modo a torná-las identificáveis como Aleijadinhos, o restaurador em questão tinha o poder não só de incutir os “cacoetes” já inventariados do escultor colonial nas obras, mas também a “força” característica do artista emulado.
De acordo com Bruno Latour (2008LATOUR, Bruno. (2008), “O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?”. Horizontes Antropológicos, nº 29: 111-150.), a identificação da mão humana na construção de objetos é tabu, porque dessacraliza a imagem e anula a transcendência característica das divindades. Por isso, os ícones acheiropoiète, aqueles não feitos pela mão do homem - faces de Cristo, retratos da Virgem, o véu de Verônica -, são celebrados e cultuados como verdadeiras imagens divinas, produzidas sem a intermediação humana. Se pensarmos a essência da imagem brasileira a partir do que caracterizei como efeito Aleijadinho, temos obras que foram produzidas por mãos estropiadas e, (também) por isso, sobre-humanas. Sendo assim, a licença para a realização de manipulações em Aleijadinhos pode ser concedida se o produto final homenagear e enaltecer a autoria em questão (ao invés de tentar se passar por ela).
São muitos os artistas que produzem santos como “o mestre”, mas deixam claro que o trabalho é uma “inspiração” e não uma fraude deliberada, tanto que assinam suas obras. Em 2014, o escultor Elias Layon requisitou a autoria de duas imagens que constavam em um “Catálogo Geral da Obra” de Aleijadinho. O artista inclusive apontou que as peças originais nas quais teria se inspirado também constavam na publicação. Quem realizou as adulterações para criar a ilusão de tempo transcorrido se valeu de recursos tais como a raspagem da assinatura do artista da base das imagens; alteração da policromia; a amputação de um braço e a introdução de um olho de vidro no globo ocular de uma delas (Bortoloti 2014BORTOLOTI, Marcelo. (2014), “O homem que esculpiu um Aleijadinho”. Revista Época, 11 jul. 2014. Disponível em: Disponível em: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/o-homem-que-besculpiu-um-aleijadinhob.html
. Acesso em: 12/2016.
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014...
).
O autor do referido catálogo geral, Márcio Jardim, já expediu “laudos de autenticidade” que ratificam a autoria de Aleijadinho a um número bem maior de obras em relação às atribuídas ao escultor por outros especialistas. À denúncia de Layon, somou-se a de Márcio Bernardes, que identificou uma peça de sua autoria arrolada como obra do artista colonial em um catálogo de uma exposição realizada na Caixa Cultural de Brasília. Myriam Oliveira chegou a afirmar que tal exposição não contava com nenhuma obra de Aleijadinho.
A questão é que a participação na mostra e, consequentemente, em catálogos e outras formas de divulgação não deixa de ser uma instância (de consagração, diria Bourdieu) que ratifica a autoria controversa. Nos casos em que a dúvida sobre a autoria e a procedência das obras ganha a esfera judicial, com frequência, o Estado recorre a centros de pesquisa e seus arsenais para análise de pigmentos e de suportes, datação isotópica e outras ferramentas que podem auxiliar no consenso sobre a “idade” do material utilizado em uma obra. Contudo, a “paternidade” do trabalho escultórico permanece como empreitada de especialistas que decifram traços expressivos particulares. Afinal, como aponta Latour (2008LATOUR, Bruno. (2008), “O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?”. Horizontes Antropológicos, nº 29: 111-150.:139-140, grifo nosso):
A cascata de imagens é ainda mais impressionante quando se olha para a série reunida sob o rótulo de ciência. Uma imagem científica isolada não tem significado algum, não prova coisa alguma, não diz nada, não mostra nada, não tem referente. Por quê? Por que uma imagem científica, até mais do que uma imagem religiosa cristã, é um conjunto de instruções para alcançar outra mais além. Uma tabela de números leva a um gráfico que leva a uma fotografia que irá levar a um diagrama que irá levar a um parágrafo que irá levar a uma afirmação. A série como um todo tem um significado, mas nenhum de seus elementos tem qualquer sentido.
A ideia de “cascata de imagens” é interessante para perceber como a tentativa de enxugar o número de obras atribuído a Aleijadinho acaba por pluralizar Aleijadinhos por catálogos, processos, exames, reportagens, laudos, pareceres, etc. Não cabe aqui explorar as complexas redes sociotécnicas em que se imiscuem as aventadas controvérsias. As contendas entre historiadores da arte, técnicos do patrimônio, antiquários, restauradores e colecionadores tornam evidente que a obra do artista em questão não contém apenas elementos “inconfundíveis”. A alegada excepcionalidade de formas precisa ser validada em laboratórios de físico-química, ultrassonografia, etc., comprovada por documentação histórica, chancelada por especialistas e, muitas vezes, ratificada em tribunais.
Os episódios de escultores que reivindicaram obras catalogadas como Aleijadinhos narrados acima motivaram a formação de uma comissão do IPHAN e do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) com vistas à elaboração de uma lista oficial - uma espécie de catálogo raisonné15
15
“Expressão francesa utilizada internacionalmente para designar o catálogo completo da produção de determinado artista, com indicações, como origem, medidas, técnica, natureza do suporte, detalhes de assinatura e datação, bibliografia e ainda outros dados que caracterizem perfeitamente cada obra, da qual é também fornecida uma ilustração fotográfica” (Leite 1988:115).
- do que teria sido de fato esculpido por Aleijadinho. A comissão, formada em 2014 por “voluntários”, conta com a consultoria da historiadora Myriam Ribeiro, o restaurador Antônio Fernandes, ambos já citados anteriormente, e ainda com a técnica Lucienne Elias e o promotor Marcos Paulo de Miranda para assessoria jurídica. Lucienne estudou as obras de Aleijadinho tanto no mestrado quanto no doutorado em Artes recém-concluído na UFMG, além de ter atuado em projetos de restauração delas em Congonhas. Marcos Paulo de Miranda é coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico do Ministério Público de Minas Gerais e conhecido por ações em torno da restituição de bens culturais mineiros que foram deslocados de seus locais de origem. Nessa “missão quase obsessiva [visando] a recuperação de imagens que sumiram de igrejas barrocas” (Martí 2014MARTÍ, Silas. (2014), “Ministério Público move ações para devolver peças de Aleijadinho a MG”. Folha de São Paulo, 13 out. 2014. Disponível em Disponível em https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/10/1531426-ministerio-publico-move-acoes-para-devolver-pecas-de-aleijadinho-a-mg.shtml
. Acesso em: 12/2016.
https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/201...
:não paginado), uma das complicadas tarefas do promotor é comprovar a autoria e também a proveniência mineira das peças consideradas patrimônio nacional.
A dificuldade de se encontrar um árbitro neutro entre os especialistas para compor uma listagem arrazoada de obras de um autor explica a complexidade envolvida na empreitada do Estado quando ele toma para si a palavra final que estabelece o que é ou não é um Aleijadinho.
Quem atesta a validade do atestado? Aquele que assinou o título que licencia para atestar. Mas quem deu licença a este? Somos levados a uma regressão ao infinito, ao final da qual “é preciso parar” e podemos, como os teólogos, escolher atribuir o nome de Estado ao último (ou ao primeiro) anel da longa cadeia dos atos oficiais de consagração. […] Ao enunciar, com autoridade, que um ser, coisa ou pessoa, existe em verdade (veredicto) em sua definição social legítima, isto é, é o que está autorizado a ser, o que tem direito a ser, o ser social que ele tem o direito de reivindicar, de professar, de exercer (por oposição ao exercício ilegal), o Estado exerce um verdadeiro poder criador, quase divino (Bourdieu 1996BOURDIEU, Pierre. (1996), Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus.:113-114, grifo nosso).
Se pensarmos a burocracia patrimonial em termos weberianos, podemos afirmar que a comissão de especialistas formada com vistas à catalogação “oficial” da obra de Aleijadinho conta com profissionais que tiveram seu carisma rotinizado. Não é pautada, portanto, no fervor da devoção, mas não deixa de se valer do resfriamento dela, pois recorre à expertise de pessoas dotadas de um olho agraciado. O caráter racional, abstrato e impessoal da justiça e da administração conjuga-se à pessoalidade específica de profissionais que, mais do que atuar como peritos autênticos, podem fazer revelações, pois possuem um dom não acessível a todos.
Segundo Natalie Heinich (1991HEINICH, Natalie. (1991), La Gloire de Van Gogh: Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Éditions de Minuit.), não é a ausência de qualidade artística que coloca o falso em descrédito, mas a falta de autenticidade. Por isso, a questão dos falsos é por excelência reveladora da presença de pessoas por meio de objetos e da conexão entre disposições de domínios religiosos e o mundo artístico. Não se trata de dizer que o amor pela arte é ilusão que mistifica sua natureza religiosa. Na opinião da autora, é preciso cuidado para não “jogar fora o bebê da veneração junto com a água do banho da religião” (Heinich 1991:221, tradução nossa). Cumpre, portanto, compreender quais são as afinidades entre os domínios artístico e religioso, suas formas particulares - institucionais ou não - de consagração, veneração, etc.
A categoria de autenticidade traz em seu bojo a de falsificação (Heinich 2010______. (2010), “La falsificación como reveladora de la autenticidad”. Revista de Occidente, nº 345: 5-27.). Essas categorias são operativas não só no campo da arte, mas também se estendem a outros seres e representam valiosos indicadores dos domínios de atividade em que aparecem. Um grupo de coisas, obras de arte ou pessoas autênticas necessariamente tem como correspondente um de falsas. Assim, só existe autenticidade se há procedimentos de autenticação, e só pode haver falsificação se um suposto autor goza de status valorizado e singularizado em um tempo.
A análise dos procedimentos de autenticação nos permite detectar nas obras de arte modos de operatividade próprios das relíquias, objetos sagrados que contêm partes dos corpos dos santos ou de coisas que estiveram em contato com eles (as chamadas relíquias de contato), tidos como formas de presença das próprias divindades. Por seu caráter singular, as relíquias circulavam como mercadorias de prestígio, ou seja, eram extremamente valorizadas e muito frequentemente roubadas. As relíquias obtidas por meio de roubo ou furto eram consideradas como mais poderosas em relação àquelas ganhadas ou compradas, pois se entendia que o próprio santo havia autorizado a subtração bem-sucedida. Na lógica do Furta Sacra, as coisas difíceis de encontrar, mas que se deixam apanhar, são aquelas que de alguma forma entraram em comunicação com os autores da façanha e não ofereceram resistência, atribuindo-se poder ao próprio objeto e ao modo de obtê-lo (Geary 1990GEARY, Patrick. (1990), Furta Sacra: thefts of relics in the Central Middle ages. Princeton: Princeton University., 2008______. (2008), “Mercadorias sagradas: a circulação de mercadorias medievais”. In: A. Appadurai (org.). A Vida Social das Coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF.). É, portanto, o funcionamento do objeto em relação a certas pessoas que ratifica sua autenticidade.
A magia da expertise
Meu objetivo ao pensar o efeito Aleijadinho não foi reiterar o esforço de colocar em evidência o fato de o artista ter trabalhado sobre pouquíssimas imagens dentre o grande número que é atribuído à sua mão maculada. Atentei-me às consequências da admiração que torna sua obra uma espécie de essência presente nas imagens brasileiras. O escultor “participa” dos corpos dos santos ao modo teorizado por Lucien Lévy-Bruhl (2002LÉVY-BRUHL, Lucien. (2002), Carnets. Les classiques des sciences sociales. Disponível em: Disponível em: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html
. Acesso em: 02/2015.
http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classi...
[1938-1939]), ou seja, de acordo com princípios de simultaneidade e consubstancialidade entre seres e coisas. Essa possibilidade de associação é importante para não excluir o entendimento da natureza de elementos aparentemente opostos.
Tal caminho analítico leva ao domínio da magia, no qual os seres, no presente caso, obra(s) e artista, não se distinguem substantivamente entre si. Imagino que o enveredamento por essa seara não seja uma surpresa para o leitor, uma vez que abordei objetos que têm a “força de expressão” característica de um artista como fator constituinte de sua excepcionalidade enquanto obra de arte.
A percepção da “força de expressão” em questão dota também as pessoas de capacidades excepcionais. Podemos aproximar as características da visão do apreciador com o poder do olhar do mágico de que falam Mauss e Hubert (2003MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. (2003), “Esboço de uma teoria geral da magia”. In: M. Mauss. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify.). Os autores lembram que as pessoas com inteligência considerada anormal são especialmente propensas a serem vistas como mágicas e, em geral, têm um “olhar vivo, nervoso, pisco e falso” (Mauss e Hubert 2003:64). Estes olhos diferenciados concretizam sentimentos abstratos e enxergam além e, por serem particulares, podem evitar o infortúnio (como a compra de uma peça falsa ou a atribuição de autoria equivocada).
Em vista do exposto, sublinho a rentabilidade de pensar não apenas os empréstimos da arte ao repertório da religião, mas lembrar como este abarca práticas estudadas pela ótica da magia. Como afirmaram Mauss e Hubert (2003MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. (2003), “Esboço de uma teoria geral da magia”. In: M. Mauss. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify.), no imaginário que a humanidade formou sobre a magia, as ações tendem para o malefício, são feitas às escondidas e são potentes na geração de efeitos físicos negativos. Os autores ressaltam, entretanto, que é preciso relativizar a distinção entre as práticas mágicas e religiosas, uma vez que a diferenciação entre elas tem fundo mais teológico do que socioantropológico.
Nesse sentido, destaco que a magia é potente para iluminar não apenas a reflexão sobre a criação artística, mas também a análise a respeito dos processos de identificação e atribuição de autoria. Pensar a dimensão mágica destes não significa tomá-los como falsos ou enganosos, e sim como constitutivos de ações sociais complexas que relacionam entidades e pessoas aptas a vê-las. Afinal, a hagiografização da biografia de Aleijadinho pode até ter tornado vulgar sua legenda de sofrimentos físicos, mas as centelhas que dão notícia da presença do artista em certas obras não são autoevidentes, e a visão delas é requerida enquanto competência de especialistas.
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Os falsos Aleijadinhos do MASP”, no blog Amável Leitor: Arte e Cultura. Disponível em: http://amavelleitor.blogspot.com/2018/05/os-falsos-aleijadinhos-do-masp.html. Acesso em: 06/2018.
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As primeiras elaborações das reflexões articuladas neste artigo estão presentes, sobretudo, no segundo e no terceiro capítulo da tese.
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As pesquisas de campo foram realizadas entre 2012 e 2014, em Natal e outras cidades do Rio Grande do Norte e em Belo Horizonte.
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Paola Oliveira (2018OLIVEIRA, Paola Lins de. (2018), “Religião, arte e política na controvérsia pública da Igrejinha da Pampulha”. Revista de Antropologia, vol. 61, nº 1: 241-268.) explora como a construção dessa conexão foi efetiva na sacralização, via patrimônio histórico, da Igrejinha da Pampulha, em Belo Horizonte.
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A imaginária religiosa erudita produzida no Brasil é enquadrada em três períodos estilísticos distintos: “uma fase maneirista, durante todo o século XVII, quando predominavam as oficinas conventuais; um período barroco propriamente dito, entre 1720 e 1770, e, finalmente, uma fase rococó, nas três décadas finais do século XVIII, com prolongamento no século XIX em algumas regiões” (Coelho e Quites 2014:34).
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As desfigurações de monumentos, símbolos e corpos, como nos lembra Michael Taussig (1999TAUSSIG, Michael. (1999), Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Stanford: Stanford University Press.), são particularmente reveladoras, uma vez que atraem ao passo que revelam interioridade.
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Associação científica vinculada ao CECOR/EBA/UFMG.
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Para fins de distinção entre informações obtidas via entrevista (em 19/02/2015, na EBA/UFMG) e dados pesquisados em obras publicadas da restauradora, abordo as primeiras informando o primeiro nome de Beatriz e as segundas de acordo com as normas de citação, ou seja, como Coelho (2005COELHO, Beatriz. (2005), Devoção e Arte: Imaginária Religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EdUSP.); Coelho e Quites (2014COELHO, Beatriz e QUITES, Maria Regina Emery. (2014), Estudo da Escultura Devocional em Madeira. Belo Horizonte: Fino Traço.); Coelho, Quites e Queiroz (2003).
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Como se pode ver, por exemplo, nas seguintes manchetes: “Quanto vale um Aleijadinho” e “O homem que esculpiu um Aleijadinho - O artista abaixo não sabia, mas uma obra sua apareceu num museu como se fosse de Aleijadinho – o escultor colonial favorito dos falsários e golpistas”; respectivamente disponíveis em http://istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847 e http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/o-homem-que-besculpiu-um-aleijadinhob.html. Acesso em: 12/2016.
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Segundo Oliveira (2002OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro de; SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos; SANTOS, Antônio Fernando Batista dos. (2002), O aleijadinho e sua oficina: catálogo das Esculturas Devocionais . São Paulo: Capivara . ), o caminho de Aleijadinho do naturalismo à estilização compreendeu três fases: Primeira fase (Formação do estilo - c. 1760-1774); Segunda fase (A realidade idealizada - c. 1774-1790); Terceira fase (A espiritualidade sublimada - c. 1790-1812).
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“Aleijadinho, beleza & polêmica: Exposição reúne em São Paulo imagens comoventes do mestre do barroco mineiro e levanta a questão sobre a autoria de esculturas atribuídas a eleCLAUDIO, Ivan. (2007), “Aleijadinho, beleza & polêmica”. Revista Istoé, 25 jul. 2007. Disponível em: Disponível em: https://istoe.com.br/427_ALEIJADINHO+BELEZA+POLEMICA/ . Acesso em: 12/2016.
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“A proibição do AleijadinhoESTADÃO. (2003), “A proibição do Aleijadinho”. Estadão, 8 maio 2003. Disponível em: Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-proibicao-do-aleijadinho,20030508p3582 . Acesso em: 08/2017.
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A afirmação de que alguns afortunados têm olho também é discutida por autores que abordam o colecionamento de arte primitiva, seja em termos de gosto (De L’Estoile 2007DE L’ESTOILE, Benoite. (2007), Le goût des autres: De l’Exposition coloniale aux Arts premiers. Paris: Flammarion.:366-368), paixão (Derlon e Jeudy-Ballini 2008DERLON, Brigitte e JEUDY-BALLINI, Monique. (2008), La passion de l’art primitif: Enquête sur les collectionneurs. Paris: Éditions Gallimard.), seja evidenciando “a mística do connoisseurship” (Price 1989PRICE, Sally. (1989), Primitive art in civilized places. Chicago: Chicago University Press.:7-22). Tais pesquisas problematizam como práticas em torno de objetos – utilizados, sobretudo, para colocar em relevo os limites entre “nós” e “eles” – reforçam certos estereótipos sobre os “outros”, mas também participam da recusa de aspectos da civilização ocidental, invocando, por exemplo, formas de relacionamento com as coisas atravessadas por aspectos mágico-rituais.
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O lance mínimo para arrematar um lote de sete peças atribuídas ao escultor colocado a leilão no Rio de Janeiro em 2003 foi estimado em R$ 2,05 milhões, segundo a matéria “Quanto vale um AleijadinhoISTOÉ DINHEIRO. (2003), “Quanto vale um Aleijadinho”. Istoé Dinheiro, 6 ago. 2003. Disponível em: Disponível em: http://istoedinheiro.com.br/noticias/estilo/20030806/quanto-vale-aleijadinho/19847 . Acesso em: 12/2016.
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“Expressão francesa utilizada internacionalmente para designar o catálogo completo da produção de determinado artista, com indicações, como origem, medidas, técnica, natureza do suporte, detalhes de assinatura e datação, bibliografia e ainda outros dados que caracterizem perfeitamente cada obra, da qual é também fornecida uma ilustração fotográfica” (Leite 1988LEITE, José Roberto Teixeira. (1988), Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre.:115).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2018
Histórico
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Recebido
30 Jun 2018 -
Aceito
31 Dez 2018