Acessibilidade / Reportar erro

Peritonite bacteriana espontânea

Spontaneous bacterial peritonitis

Resumos

A peritonite bacteriana espontânea ocorre em 30% dos cirróticos com ascite e, neste grupo, apresenta altas taxas de morbidade e mortalidade. Os fatores predisponentes incluem a diminuição da defesa imunológica encontrada no homem nas fases avançadas da cirrose, o supercrescimento da flora intestinal e a translocação bacteriana da luz dos intestinos aos linfonodos mesentéricos. As manifestações clínicas variam de graves a leves ou ausentes, sendo sempre necessária a análise do líquido ascítico. O diagnóstico de peritonite bacteriana espontânea se faz pela contagem de neutrófilos > 250/mm³ no líquido ascítico associado ou não ao crescimento de bactéria na cultura. As enterobactérias predominam como causa da infecção, sendo a Echerichia coli a bactéria mais freqüentemente isolada. O diagnóstico precoce e o tratamento adequado provocaram a queda das taxas de mortalidade nas duas últimas décadas. O uso endovenoso de cefalosporinas de terceira geração mostra-se eficaz em 70% a 95% dos casos. A recorrência de peritonite bacteriana espontânea é comum e pode ser prevenida com norfloxacina oral, de uso contínuo. O surgimento de resistência bacteriana tem estimulado a procura de novas opções para a profilaxia da peritonite bacteriana espontânea; os probióticos constituem nova abordagem promissora, mas que necessita melhor avaliação. Recomenda-se a profilaxia primária de curta duração aos cirróticos com ascite que apresentem episódio de hemorragia digestiva alta.

Peritonite; Bactéria; Cirrose; Ascite; Cefalosporinas


Spontaneous bacterial peritonitis occurs in 30% of patients with ascites due to cirrhosis leading to high morbidity and mortality rates. The pathogenesis of spontaneous bacterial peritonitis is related to altered host defenses observed in end-stage liver disease, overgrowth of microorganisms, and bacterial translocation from the intestinal lumen to mesenteric lymph nodes. Clinical manifestations vary from severe to slight or absent, demanding analysis of the ascitic fluid. The diagnosis is confirmed by a number of neutrophils over 250/mm³ associated or not to bacterial growth in culture of an ascites sample. Enterobacteriae prevail and Escherichia coli has been the most frequent bacterium reported. Mortality rates decreased markedly in the last two decades due to early diagnosis and prompt antibiotic treatment. Third generation intravenous cephalosporins are effective in 70% to 95% of the cases. Recurrence of spontaneous bacterial peritonitis is common and can be prevented by the continuous use of oral norfloxacin. The development of bacterial resistance demands the search for new options in the prophylaxis of spontaneous bacterial peritonitis; probiotics are a promising new approach, but deserve further evaluation. Short-term antibiotic prophylaxis is recommended for patients with cirrhosis and ascites shortly after an acute episode of gastrointestinal bleeding.

Peritonitis; Bacteria; Cirrhosis; Ascites; Cephalosporins


ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

Peritonite bacteriana espontânea

Spontaneous bacterial peritonitis

Edna Strauss; Wanda Regina Caly

Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo e Hemocentro - Fundação Pró-Sangue, São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dra. Edna Strauss Divisão de Anatomia Patológica Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 155/10º andar 05403-000 São Paulo, SP E-mail: edna.strauss@hcnet.usp.br

RESUMO

A peritonite bacteriana espontânea ocorre em 30% dos cirróticos com ascite e, neste grupo, apresenta altas taxas de morbidade e mortalidade. Os fatores predisponentes incluem a diminuição da defesa imunológica encontrada no homem nas fases avançadas da cirrose, o supercrescimento da flora intestinal e a translocação bacteriana da luz dos intestinos aos linfonodos mesentéricos. As manifestações clínicas variam de graves a leves ou ausentes, sendo sempre necessária a análise do líquido ascítico. O diagnóstico de peritonite bacteriana espontânea se faz pela contagem de neutrófilos > 250/mm3 no líquido ascítico associado ou não ao crescimento de bactéria na cultura. As enterobactérias predominam como causa da infecção, sendo a Echerichia coli a bactéria mais freqüentemente isolada. O diagnóstico precoce e o tratamento adequado provocaram a queda das taxas de mortalidade nas duas últimas décadas. O uso endovenoso de cefalosporinas de terceira geração mostra-se eficaz em 70% a 95% dos casos. A recorrência de peritonite bacteriana espontânea é comum e pode ser prevenida com norfloxacina oral, de uso contínuo. O surgimento de resistência bacteriana tem estimulado a procura de novas opções para a profilaxia da peritonite bacteriana espontânea; os probióticos constituem nova abordagem promissora, mas que necessita melhor avaliação. Recomenda-se a profilaxia primária de curta duração aos cirróticos com ascite que apresentem episódio de hemorragia digestiva alta.

Palavras-chaves: Peritonite. Bactéria. Cirrose. Ascite. Cefalosporinas.

ABSTRACT

Spontaneous bacterial peritonitis occurs in 30% of patients with ascites due to cirrhosis leading to high morbidity and mortality rates. The pathogenesis of spontaneous bacterial peritonitis is related to altered host defenses observed in end-stage liver disease, overgrowth of microorganisms, and bacterial translocation from the intestinal lumen to mesenteric lymph nodes. Clinical manifestations vary from severe to slight or absent, demanding analysis of the ascitic fluid. The diagnosis is confirmed by a number of neutrophils over 250/mm3 associated or not to bacterial growth in culture of an ascites sample. Enterobacteriae prevail and Escherichia coli has been the most frequent bacterium reported. Mortality rates decreased markedly in the last two decades due to early diagnosis and prompt antibiotic treatment. Third generation intravenous cephalosporins are effective in 70% to 95% of the cases. Recurrence of spontaneous bacterial peritonitis is common and can be prevented by the continuous use of oral norfloxacin. The development of bacterial resistance demands the search for new options in the prophylaxis of spontaneous bacterial peritonitis; probiotics are a promising new approach, but deserve further evaluation. Short-term antibiotic prophylaxis is recommended for patients with cirrhosis and ascites shortly after an acute episode of gastrointestinal bleeding.

Key-words: Peritonitis. Bacteria. Cirrhosis. Ascites. Cephalosporins.

A peritonite bacteriana espontânea (PBE) é uma das principais complicações que acomete pacientes cirróticos com ascite, com elevadas taxas de morbi-mortalidade6 12. Entende-se porPBE a infecção bacteriana do líquido ascítico, caracterizada pelo crescimento de uma bactéria associada a número aumentado de neutrófilos neste líquido (>250/mm3) na ausência de foco intra-abodminal de infecção45. Deve-se, portanto, estabelecer o diagnóstico diferencial com as peritonites secundárias, em que a cultura pode demonstrar o crescimento de duas ou mais bactérias.

A prevalência de PBE em pacientes cirróticos hospitalizados com ascite foi avaliada em estudos prospectivos e variou de 7 a 25%, enquanto o conjunto de infecções bacterianas atinge prevalências de 15% a 47%. Por outro lado, no grupo controle de infecções hospitalares, em não-cirróticos, a taxa de infecção varia em torno de 5% a 10%. Os cirróticos descompensados, particularmente na classe C da classificação de Child-Pugh, são mais propensos a desenvolver infecções do que os compensados. Outros fatores como icterícia, desnutrição e, principalmente, a hemorragia digestiva alta, predispõem ao desenvolvimento de PBE. E mais, a infecção do líquido ascítico propicia o surgimento de insuficiência renal, quer do tipo funcional e reversível, quer a verdadeira síndrome hepato-renal do tipo I, com sobrevida média de 15 dias1. As taxas de mortalidade na PBE eram elevadas quando de sua caracterização clínica na década de 1970, com queda significativa já na década de 1990, devido tanto ao diagnóstico precoce como à eficácia do tratamento empírico (Fígura 1). Em estudo recente demonstramos que, ao longo das últimas décadas, as taxas de mortalidade permaneceram estáveis nas diferentes infecções bacterianas que acometem o cirrótico, com exceção apenas da PBE, que caiu de 67% para 37%41.

A PBE é considerada, pela maioria dos autores, a infecção mais comum observada em cirróticos, tendo sido a primeira infecção espontânea descrita, embora hoje sejam admitidas também a bacteriemia e o empiema espontâneos18. Além da PBE, a infecção urinária, a pneumonia, as infecções de pele e tecido subcutâneo, bem como as septicemias, constituem o elenco mais freqüente de infecções bacterianas que surgem na evolução clínica da cirrose, ocasionando piora da função hepática e encurtando a sobrevida do paciente. Dentre elas, tanto a PBE, como a infecção urinária, destacam-se pela recorrência dos episódios infecciosos. De fato, estudos recentes demonstraram que no prazo de 12 meses, as probabilidades de novo episódio de PBE variaram de 47% a 69%13 43.

Vários fatores são considerados como favorecedores da infecção na cirrose, entre eles citamos aqueles intrínsecos como as alterações da flora intestinal, do sistema macrófago-monocitário, da função dos neutrófilos bem como da imunidade humoral e celular. Entre os fatores circunstanciais incluem-se ainda o alcoolismo, a desnutrição, a hemorragia digestiva alta e a ruptura de barreiras naturais através da realização de exames invasivos, diagnósticos e terapêuticos, aos quais esses pacientes são freqüentemente submetidos12 25.

Os agentes bacterianos mais freqüentemente isolados na PBE são provenientes da flora intestinal, sendo constituídos por bactérias aeróbicas Gram negativas em cerca de 70% dos casos, o que torna os intestinos a mais provável fonte para as infecções espontâneas do cirrótico (Tabela 1). Questionou-se por muito tempo a passagem destas bactérias desde a luz intestinal até o líquido ascítico. Os conhecimentos sobre translocação bacteriana, definida como a passagem de bactérias viáveis da luz intestinal para sítios extra-intestinais, vieram dos estudos realizados em pacientes em choque, com obstrução intestinal, endotoxemia, pancreatite aguda e, são atualmente plenamente aceitos como o mecanismo fisiopatogênico da PBE34. Estudos experimentais demonstraram a presença de bactérias intestinais viáveis nos linfonodos mesentéricos de ratos com cirrose14. A partir dos linfonodos elas alcançam o líquido ascítico, quer por via linfática quer por via hematológica, onde podem ou não ser destruídas pelas defesas naturais do organismo (Figura 2).


DIAGNÓSTICO

O diagnóstico da PBE pode ser clínico e/ou laboratorial. Clinicamente o paciente pode apresentar sintomas típicos como febre e dor à descompressão brusca do abdomen ou mesmo quadro compatível com infecção sistêmica grave, com choque séptico. Entretanto, a ausência de sintomas típicos é relativamente freqüente, sendo importante a observação da piora repentina dos parâmetros de função renal ou surgimento de encefalopatia hepática, como formas veladas de manifestação inicial de PBE. Outras vezes faz-se o diagnóstico exclusivamente pelos exames laboratoriais, em formas clínicas totalmente assintomáticas8 9.

A avaliação laboratorial do líquido ascítico (LA) é a base fundamental para o diagnóstico da PBE, confirmado pelo encontro de >250 polimorfonucleares (PMN) por mm3 no LA, com ou sem isolamento bacteriano em sua cultura e/ou na hemocultura25 31. Ressalve-se que a técnica para obter melhores resultados de cultura exige a colocação do LA nos frascos de hemocultura para germes aeróbios logo após a punção, de preferência à beira do leito32.

Alguns estudos demostraram, entretanto, que mesmo utilizando-se esse método de coleta do LA, as culturas ainda se mostram negativas em aproximadamente 30-50% dos pacientes que apresentam contagem > 250 PMN por mm3 no LA20 23. Esta condição é conhecida como uma variante da PBE, denominada de ascite neutrofílica cultura-negativa (ANCN)28, que deverá receber a mesma conduta terapêutica destinada à PBE que tenha diagnóstico firmado pelo isolamento bacteriano, uma vez que seu curso evolutivo, freqüência de resolução e taxa de mortalidade são semelhantes25.

Outra variante da PBE é conhecida com o nome de bacterascite (BA), condição na qual isola-se uma bactéria no LA não sendo verificado aumento concomitante do número de PMN para mais de 250 por mm3. Esta variante deverá ser acompanhada clínica e laboratorialmente através de nova punção do LA, a ser realizada em intervalo de aproximadamente três dias, uma vez que representa uma colonização do LA, podendo se caracterizar como um estágio muito precoce da PBE ou ser reversível, principalmente nos casos assintomáticos16 29. Na Tabela 2 resumem-se os achados diagnósticos na PBE e suas variantes, em contraste com as peritonites secundárias a processos inflamatórios intra-abdominais como colescistites, pancreatites, diverticulites e outros.

Nas infecções bacterianas dos cirróticos em geral, qualquer que seja a etiologia da cirrose, não se deve esperar pelos sinais ou sintomas clássicos de infecção para levantar esta hipótese diagnóstica. Em nossa experiência apenas 30% deles apresentam febre e a contagem de leucócitos costuma ser normal ou mesmo diminuída, particularmente em casos de PBE e infecção urinária, sendo pouco freqüente o aumento de formas jovens (desvio à esquerda) 39 40. Este comportamento é justificado pela conhecida imunossupressão que caracteriza as fases mais avançadas da cirrose hepática.

Em conclusão, todos os cirróticos hospitalizados por ascite ou que a desenvolvem durante a internação após intercorrência clínica, devem ser submetidos rotineiramente à paracentese diagnóstica, mesmo que não apresentem qualquer evidência clínica sugestiva de PBE12 31.

TRATAMENTO

A PBE deve ser considerada complicação grave no curso evolutivo da cirrose hepática devido a sua alta taxa de mortalidade, ainda em torno de 10-30% 6 12, muito embora bem menor do que quando de sua identificação clínica na década de 19708 9 . A importante diminuição nos percentuais de letalidade no decorrer dos últimos 20 anos deveu-se à melhoria dos métodos diagnósticos e à precocidade com que se inicia o tratamento25 .

No tratamento da PBE iremos discorrer separadamente sobre: 1) tratamento do episódio infeccioso agudo; 2) prevenção da recorrência infecciosa; e 3) profilaxia primária da infecção.

Tratamento do episódio infeccioso agudo. Uma vez realizado o diagnóstico clínico e/ou laboratorial da PBE a antibióticoterapia deverá ser iniciada empiricamente, isto é, mesmo antes que o resultado de cultura do LA e/ou da hemocultura seja liberado pelo laboratório. A maioria das bactérias isoladas no LA e/ou hemocultura durante a PBE são aeróbias Gram negativas da família Enterobacteriaceae, sendo mais freqüêntes a Echerichia coli e o Streptococcus sp, não enterococo22. Desta forma, o tratamento inicial deverá ter espectro de inibição das bactérias mais comumente encontradas, com mínimos efeitos deletérios para o organismo, especialmente fígado e rins.

A partir do início dos anos 1980, várias foram as publicações acerca de resultados da terapia antibiótica para o tratamento da PBE7 44, verificando-se que as ampicilinas não apresentavam a eficácia esperada e as cefalosporinas de 1a geração quando associadas aos aminoglicosídeos aumentavam o percentual de nefrotoxicidade4 . Devido ao desenvolvimento de insuficiência renal com a utilização desses antibióticos, atualmente preconiza-se o uso das cefalosporinas de 3a geração, por via endovenosa, como as drogas de primeira escolha no tratamento do episódio agudo da PBE10 33. Vários esquemas posológicos foram utilizados, com variações de 4g a 8g nas 24 horas por tempo de 7 a 10 dias, com mínimo de 5 dias de tratamento26 30. Nos ensaios clínicos controlados a eficácia deste esquema terapêutico tem variado de 85% a 95%. Na prática clínica, quando do tratamento de pacientes não selecionados, verificamos resposta terapêutica eficaz em torno de 70% dos casos5. A mudança do esquema terapêutico, a partir dos resultados de cultura do líquido ascítico ou sangue, se faz necessária principalmente quando o germe isolado for Gram+, sendo indicado fazer associações ou trocar o antibiótico de acordo com a sensibilidade do germe. Salientamos, ainda, que pacientes com PBE não complicada, isto é, na ausência de choque séptico, hemorragia digestiva alta, encefalopatia hepática, íleo ou dosagem de creatinina sérica maior que 3mg/dl, podem receber tratamento por via oral, utilizando-se ofloxacina na dose de 400mg a cada 12 horas23 ou ciprofloxacina42.

Recentemente, verificou-se que o tratamento da PBE com cefalosporinas de 3a geração associada à infusão de altas doses de albumina por via endovenosa (1,5g/kg) como expansor plasmático, proporcionava menor incidência de alterações renais (10%) quando comparado ao tratamento isolado com a cefalosporina (33%), e reduzia a taxa de mortalidade hospitalar de 29% para 10%38. Este único trabalho da literatura precisa ser confirmado por outros grupos, sendo necessário avaliar se doses menores de albumina ou o uso de outros expansores plasmáticos seriam igualmente eficazes em prevenir insuficiência renal. Nosso grupo apresentou recentemente estudo retrospectivo, com controle histórico, no qual o uso de albumina humana na dose de 20g/dia por 5 dias concomitante ao esquema terapêutico tradicional da PBE não ocasionou diminuição significativa nos índices de insuficiência renal ou mortalidade5.

Prevenção da recorrência infecciosa. A recorrência da PBE é comum nos pacientes cirróticos com ascite que sobrevivem ao primeiro episódio, verificando-se uma probabilidade de reinfecção de 40-70% em um ano35 43. Portanto, entende-se por profilaxia secundária de longo prazo a atitude terapêutica para evitar novos episódios de infecção do líquido ascítico no cirrótico, sendo observado que o uso de norfloxacina na dose de 400mg/dia por via oral, continuadamente, diminui significativamente o percentual de recorrência no primeiro ano de 68% para 20%2 26 não alterando, entretanto, a taxa de sobrevida43.

O uso contínuo da norfloxacina provoca a descontaminação intestinal seletiva, por inibir o crescimento das bactérias Gram negativas aeróbicas, não alterando significativamente o restante da flora aeróbica e anaeróbica intestinal13 36. O antibiótico deverá ser administrado até o desaparecimento completo da ascite, realização do transplante hepático ou óbito12.

Esta atitude terapêutica, embora adotada em vários centros, não é universalmente aceita. Questiona-se o surgimento de germes resistentes ou menos habituais, os quais podem também provocar o desenvolvimento de PBE, sendo demonstrada a emergência de enterobactérias resistentes às quinolonas11. Neste sentido, estudam-se outras atitudes terapêuticas que possam, agindo sobre a flora intestinal, prevenir o surgimento de PBE.

Uma das possibilidades é o uso de probióticos. Sabe-se de longa data que além das bactérias patogênicas da microbiota existem cepas não patogênicas ou comensais, como o Lactobacillus johnsonii e Bifidobacterium lactis, que estão sendo utilizadas em substituição aos antibióticos em várias enfermidades. A administração dessas bactérias vivas provoca: a) inibição competitiva com as cepas patogênicas; b) melhor função de barreira da mucosa intestinal, ocasionando diminuição da translocação bacteriana; c) atuariam ainda diminuindo a produção de citocinas pró-inflamatórias, como o TNF21 24. Embora promissora, muitas dúvidas persistem ainda quanto à eventual terapia com probióticos. Aguardam-se estudos clínicos que definam a melhor associação de bactérias, sua posologia, bem como a eficácia comparativa com o esquema tradicional.

Profilaxia primária da infecção. A prevenção do surgimento de PBE está indicada nos pacientes cirróticos com elevado risco de desenvolvimento de infecções bacterianas, como os que apresentam episódio agudo de hemorragia digestiva alta6 36 39. A este grupo de pacientes preconiza-se a administração oral de norfloxacina na dose de 400mg (12/12hs) ou ciprofloxacina (oral ou EV) na dose de 500mg a cada 12 horas, durante 7 dias7 25 37. A meta-análise de cinco ensaios clínicos demonstrou que a profilaxia primária de curta duração leva à diminuição da incidência de infecções bacterianas, incluindo PBE, e ainda aumenta a sobrevida3.

Outro grupo de pacientes que poderia beneficiar-se de profilaxia primária são aqueles com dosagem da proteína total no LA em níveis inferiores a 1g/dl15 19. Sabe-se que o nível de proteínas do líquido ascítico possui relação direta com a atividade opsônica do LA, ou seja sua capacidade de impedir a colonização de germes e desenvolvimento de PBE, já que é freqüente a chegada de bactérias ao líquido ascítico. Dessa forma, aguarda-se novos ensaios clínicos, placebo-controlados, que possam validar a inclusão de pacientes com estas características na profilaxia primária da PBE12.

Na insuficiência hepática grave, por outro lado, a profilaxia primária de infecções bacterianas é mandatória27. Em artigo recente (em publicação) demonstramos que também na hepatite alcoólica grave, geralmente acompanhada de encefalopatia hepática, o pior prognóstico dos casos infectados sugere o uso profilático de antibióticos, para evitar entre outras infecções o surgimento de PBE. Afora estas condições, os dados atuais não justificam, até o momento, antibióticos profiláticos de longa duração em cirróticos não sangrantes e sem episódio prévio de PBE12 25. Na Tabela 3 fornecemos os esquemas de tratamento usualmente empregados nas condições acima descritas.

Concluindo, cumpre ressaltar que a expectativa de vida dos pacientes após um episódio de PBE gira em torno de 30-50% em um ano35 43 e existe significativo aumento dessa sobrevida após a realização do transplante hepático2.Assim, os pacientes que sobrevivem ao episódio de PBE tornam-se candidatos formais ao transplante hepático25.

Recebido para publicação em 6/8/2003

Aceito em 20/8/2003

  • 1. Arroyo V, Ginès P, Gerbes AL, Dudley FJ, Gentilini P, Laffig G, Reynolds TB, Ring-Larsen H, Scholmerich J. Definition and diagnosis criteria of refractory ascites and hepatorenal syndrome in cirrhosis. Hepatology 23:164-175, 1996.
  • 2. Bac DJ. Spontaneous bacterial peritonitis: an indication for liver transplantation? Scandinavian Journal of Gastroenterolology218 (suppl): 38-42, 1996
  • 3. Bernard B, Grange JD, Khac EN, Amiot X, Opolon P, Poynard T. Antibiotic prophylaxis for the prevention of bacterial infections in cirrhotic patients with gastrointestinal bleeding: a meta-analysis. Hepatology29:1655-1661, 1999.
  • 4. Cabrera J, Arroyo V, Ballesta AM, Rimola A, Gual J, Elena M, Rodes J. Aminoglycosid nephrotoxicity in cirrhosis. Value of urinary b2 microglobulin to discriminate functional renal failure from acute tubular damage. Gastroenterology82: 97-105, 1982.
  • 5. Caly WR, Morais EM, Alencar RSSM, Ribeiro MFGS, Chehter EZ, Strauss E. Infusão de albumina na prevenção de insuficiência renal durante terapia da peritonite bacteriana espontânea: estudo de caso-controle. In: Anais da V Semana Brasileira do Aparelho Digestivo, Rio de Janeiro p.51, 2002.
  • 6. Caly WR, Strauss E. A prospective study of bacterial infections in patients with cirrhosis. Journal of Hepatology18: 353-358, 1993.
  • 7. Conn HO, Atterbury, CE. Cirrhosis. In: Schiff L., Schiff E (eds). Diseases of the liver. Philadelphia, J.B. Lippincott 20:725-864, 1987.
  • 8. Conn HO, Fessel JM. Spontaneous bacterial peritonitis in cirrhosis: variations on a theme. Medicine 50: 161-97, 1971.
  • 9. Correia JP, Conn HO. Spontaneous bacterial peritonitis in cirrhosis: endemic or epidemic? Medical Clinics of North America59: 936-81, 1975.
  • 10. Felisart J, Rimola A, Arroyo V, Perez Ayuso RM, Quintero E, Gines P, Rodes J. Cefotaxime is more effective than is ampicillin-tobramycin in cirrhotics with severe infections. Hepatology 5: 457-62, 1985.
  • 11. Fernandez J, Navasa M, Gomez J, Colmenero J, Vila J, Arroyo V, Rodes J. - Bacterial infections in cirrhosis: epidemiological changes with invasive procedures and norfloxacin prophylaxis. Hepatology 35:140-148, 2002
  • 12. Garcia-Tsao G. Current management of the complications of cirrhosis and portal hypertension: Variceal hemorrhage, ascites, and spontaneous bacterial peritonitis. Gastroenterology 120:726-748, 2001.
  • 13. Ginés P, Rimola A, Planas R, Vargas V, Marco F, Almela M, Forne M, Miranda ML, Llach J, Salmeron JM, Esteve M, Marqués JM, Anta MTJ, Arroyo V, Rodés J. Norfloxacin prevents spontaneous bacterial peritonitis recurrence in cirrhosis: results of a double-blind, placebo controlled trial. Hepatology12:716-24, 1990.
  • 14. Guarner C, Runyon BA, Young S, Heck M, Sheikh MY. - Intestinal bacterial overgrowth and bacterial translocation in cirrhotic rats with ascites. Journal of Hepatology 26:1372-1378, 1997.
  • 15. Guarner C, Sola R, Soriano G, Andrew M, Novella MT, Vila MC, Sabat M, Coll S, Ortiz J, Gomes C, Balanzo J. Risk of a first community acquired spontaneous bacterial peritonitis in cirrhotics with low ascitic fluid protein levels. Gastroenterology117: 414-419, 1999.
  • 16. Hoefs JC, Runyon BA. Spontaneous bacterial peritonitis. Hepatology 2:399-407, 1982.
  • 17. Hsieh WJ, Hseh WJ, Lin HC, Hwang SJ, How MC, Lee FY, Chang FY, Lee SD. The effect of ciprofloxacin in the prevention of bacterial infection in patients with cirrhosis after upper gastrointestinal bleeding. American Journal of Gastroenterology93:962-965, 1998.
  • 18. Kirchmair R, Allerberger F, Bangerl I, Egger C, Nachbaur K, Patsch JR, Vogel W. Spontaneous bacterial pleural empyema in liver cirrhosis. Digestive Disease and Science 43:1129-1132, 1998.
  • 19. Llach J, Rimola A, Navasa M, Gines P, Salmeron JM, Gines A, Arroyo V, Rodes J. Incidence and predictive factors of first episode of spontaneous bacterial peritonitis in cirrhosis with ascitis: relevance of ascitic fluid protein concentration. Hepatology16: 724-727, 1992.
  • 20. Llovet JM, Planas R, Morillas R, Quer JC, Cabre E, Boix J, Humbert P, Guilera M, Domenech E, Bertran X, Gassull MA. Short-term prognosis of cirrhotics with spontaneous bacterial peritonitis: multivariate study. American Journal of Gastroenterology88:388-92, 1992.
  • 21. Madsen K, Cornihsh A, Soper P, McKaigney C< Jijon H, Yachimec C, Doyle J, Jewell L, De Simone C. Probiotic bacteria enhance murine and human intestinal epithelial barrier function. Gastroenterology 121:580-591, 2001.
  • 22. Mattos AA. Peritonite bacteriana espontânea e suas variantes. Tese de Livre Docência. Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre,1992.
  • 23. Navasa M, Follo A, Llovet JM, Clemente G, Vargas V, Rimola A, Marco F, Guarner C, Forne M, Planas R, Banares R, Castells L, Jimenez De Anta MT, Rodes J. Randomized, comparative study of oral ofloxacin versus intravenous cefotaxime in spontaneous bacterial peritonitis. Gastroenterology 111:1011-1017, 1996.
  • 24. Resta-Lenert S, Barrett KE. Live probiotics protect intestinal epithelial cells from the effects of infection with enteroinvasive Escherichia coli (EIEC), Gut 52:988-997, 2003.
  • 25. Rimola A, Garcia-Tsao G, Navasa M, Piddock LJ, Planas R, Bernard B, Inadomi JM. Diagnosis, treatment and prophylaxis of spontaneous bacterial peritonitis: a consensus document. Journal of Hepatology32:142-153, 2000.
  • 26. Rimola A, Salmeron JM, Clemente G, Rodrigo L, Obrador A, Miranda ML, Guarner C, Planas R, Sola R, Vargas V, Casafont F, Marco F, Navasa M, Banares R, Arroyo V, Rodes J. Two different dosages of cefotaxime in the treatment of spontaneous bacterial peritonitis in cirrhosis: results of a prospective, randomized, multicenter study. Hepatology 21:674-679, 1995.
  • 27. Rolando N, Harvey F, Brahm J, Philpott-Howard J, Alexander G, Gimson A, Casewell M, Fagan E, Williams R. Prospective study of bacterial infection in acute liver failure: an analysis of fifty patients. Hepatology 11: 49-53, 1990.
  • 28. Runyon BA. Culture-negative neutrocytic ascites: a variant of spontaneous bacterial peritonitis. Hepatology 4:1209-1211, 1984.
  • 29. Runyon BA. Monomicrobial non-neutrocytic bacterascites: a variant of spontaneous bacterial peritonitis. Hepatology 12:710-715, 1990.
  • 30. Runyon BA, Akriviadis EA, Sattler FR, Cohen J. Ascitic fluid and serum cefotaxime and desacetyl cefotaxime levels in patients treated for bacterial peritonitis. Digestive Disease and Science12:1782-1786, 1991.
  • 31. Runyon BA, Antillon MR. Ascitic fluid pH and lactate: insensitive and nonspecific tests in detecting ascitic fluid infection. Hepatology 13: 929-935, 1991.
  • 32. Runyon BA, Canawati HN, Akriviadis EA. Optimization of ascitic fluid culture technique. Gastroenterology 95: 1351-1355, 1988.
  • 33. Runyon BA, Mc Hutchison JG, Antillon MR, Akriviadis EA, Montano AA. Short-course versus long course antibiotic treatment of spontaneous bacterial peritonitis. A randomized controlled study of 100 patients. Gastroenterology 100:1737-1742, 1991.
  • 34. Runyon BA, Squiers S, Borzio M. - Translocation of gut bacteria in rats with cirrhosis to mesenteric lymph nodes partially explains the pathogenesis of spontaneous bacterial peritonitis. Journal of Hepatology 21:792-796, 1994.
  • 35. Silvain C, Mannant R, Ingrand P, Fort E, Besson I, Beauchant M. Recidive de l'infection spontanée du liquide d'ascite au cours de la cirrhose. Gastroenterologie Clinique et Biologique15:106-109, 1991.
  • 36. Soriano G, Guarner C, Teixido M, Such J, Barrios J, Enriquez J, Villandell F. Selective intestinal decontamination prevents spontaneous bacterial peritonitis. Gastroenterology100:477-481, 1991.
  • 37. Soriano G, Guarner C, Tomas A, Villanueva C, Torras X, Gonzalez D, Sainz S, Anguera A, Cusso X, Balanzo J, Vilardell F. Norfloxacin prevents bacterial infection in cirrhotics with gastrointestinal hemorrhage. Gastroenterology 103: 1267-1272, 1992.
  • 38. Sort P, Navasa M, Arroyo V, Aldegner X, Planas R, Ruiz del-Arbol L, Castells L, Vargas V, Soriano G, Guevara M, Gines P, Rodes J. Effect of intravenous albumin on renal impairment and mortality in patients with cirrhosis and spontaneous bacterial peritonitis. New England Journal of Medicine 341:403-409, 1999.
  • 39. Strauss E, Caly WR. Cirrose e Infecções Bacterianas. In:Gayotto LCC, Alves VAF (eds). Doenças do Fígado e Vias Biliares. Ed.Atheneu; 56:655-664, 2001.
  • 40. Strauss E, Costa MF. The importance of bacterial infections as precipitating factors of chronic hepatic encephalopathy in cirrhosis. Hepato-Gastroenterology 45:900-904, 1998.
  • 41. Strauss E, Ribeiro MFGS. Bacterial infections associated with hepatic encephalopathy: prevalence and outcome. Annals of Hepatology 2: 41-45, 2003.
  • 42. Terg R, Cobas S, Fassio E, Landeira G, Rios B, Vasen W, Abecasis R, Rios H, Guevara M. Oral ciprofloxacin after a short course of intravenous ciprofloxacin in the treatment of spontaneous bacterial peritonitis: results of a multicenter, randomized study. Journal of Hepatology 33: 564-569, 2000.
  • 43. Titó L, Rimola A, Ginés P, Llach J, Arroyo V, Rodés J. Recurrence of spontaneous bacterial peritonitis in cirrhosis: frequency and predictive factors. Hepatology8:27-31, 1988.
  • 44. Wilcox CM, Dismukes WE. Spontaneous bacterial peritonitis. A review of pathogenesis, diagnosis and treatment. Medicine66: 447-456, 1987.
  • Endereço para correspondência

    Dra. Edna Strauss
    Divisão de Anatomia Patológica
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 155/10º andar
    05403-000 São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Recebido
      06 Ago 2003
    • Aceito
      20 Ago 2003
    Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT Caixa Postal 118, 38001-970 Uberaba MG Brazil, Tel.: +55 34 3318-5255 / +55 34 3318-5636/ +55 34 3318-5287, http://rsbmt.org.br/ - Uberaba - MG - Brazil
    E-mail: rsbmt@uftm.edu.br