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Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência

RESENHAS

A atividade de inteligência vista como política pública do estado

Adriana Marques

CEPIK, Marco. 2003. Espionagem e democracia : agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas.

Há alguns meses a revista Época publicou uma matéria em que denunciava a contratação de ex-"arapongas" por fabricantes de dossiês para espionar amigos pessoais e familiares do Presidente Lula (TRAUMANN, 2004).

De quando em quando, desde a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI) em 1990, a imprensa brasileira tem publicado notícias desse gênero, abordando um assunto que não tem merecido a devida atenção dos poderes públicos e nem dos cientistas políticos brasileiros: o envolvimento de ex-agentes estatais da área de inteligência interna em atividades de espionagem política.

Uma das raras exceções ao parco interesse acadêmico sobre o funcionamento dos serviços de inteligência é o trabalho de Marco Cepik, Espionagem e democracia. Escrito originalmente como parte de uma tese de doutorado em Ciência Política, o livro trata com competência e clareza de um tema pouquíssimo estudado no Brasil.

Serviços de inteligência, segundo o autor, são organizações governamentais especializadas na coleta, análise e disseminação de informações sobre problemas e alvos relevantes para a política externa, para a política de defesa nacional e a para a segurança pública de um país, formando, juntamente com as Forças Armadas e as polícias, o núcleo coercitivo do Estado contemporâneo (CEPIK, 2003, p. 85).

O livro é composto por três capítulos em que o autor desenvolve sua tese central: o duplo dilema da agilidade e da transparência no processo de institucionalização dos serviços de inteligência.

Cepik dialoga bem com a literatura internacional (majoritariamente anglo-saxã) especializada nas áreas de relações internacionais e inteligência. O autor adota como referencial teórico para a análise das relações internacionais o neo-realismo estrutural de Kenneth Waltz, e o neo-institucionalismo é utilizado para que a atividade de inteligência seja analisada como política pública do Estado.

No primeiro capítulo do livro, são apresentados os conceitos que permitem compreender o funcionamento das atividades de inteligência; por exemplo, o que é inteligência: "a coleta de informações sem o consentimento, a cooperação ou mesmo o conhecimento por parte dos alvos da ação" (idem, p. 28); como se dá o processo de coleta, análise e disseminação de informações, o chamado "ciclo de inteligência"; as fontes a partir das quais essas informações são obtidas: humanas (humint), sinais eletromagnéticos (sigmint) e imagens (imint) e o que se entende por segurança informacional, contra-inteligência e operações encobertas.

O segundo capítulo aborda o perfil organizacional dos serviços de inteligência, desde o seu surgimento na Europa, durante o período absolutista, até a formação dos atuais sistemas nacionais de inteligência compostos por várias agências com diferentes missões: inteligência externa, militar, interna (ou de segurança) e policial. Além disso, apresenta uma tipologia desses atuais sistemas: anglo-saxão, europeu continental e asiático, dos quais apenas o primeiro é analisado pelo autor.

O terceiro capítulo discute a relação entre segurança nacional, segredo governamental e controle externo das atividades de inteligência, enfatizando as tensões entre segurança estatal e segurança individual, e entre segredo governamental e direito à informação.

Ainda que Cepik não se tenha dedicado a estudar a atividade de inteligência como praticada no Brasil em seu trabalho, deve-se concordar com o autor quando argumenta que seu livro contribui para "a reflexão sobre o futuro dessas agências no Estado brasileiro" (idem, p. 209).

A seguir discutiremos algumas questões que o autor levantou e ajudam a pensar as especificidades do caso brasileiro, especialmente no que diz respeito à necessidade de se estabelecer mecanismos de controle eficientes para a atuação das agências de inteligência.

É sabido que o SNI era uma agência de inteligência primordialmente voltada para a repressão política dos oponentes à ditadura militar que se estabeleceu no Brasil em 19641 1 Sobre a estrutura e a atuação do SNI durante a ditadura militar brasileira ver Stepan (1986). , o que certamente pesou para que sua extinção fosse vista como uma medida positiva do governo de Fernando Collor de Mello. Contudo, apenas o sentimento de repúdio às arbitrariedades cometidas pelo Serviço Nacional de Inteligência durante a ditadura militar não é suficiente para explicar a falta de empenho do Congresso em discutir a elaboração de políticas públicas para a área de inteligência.

As baixas qualidade e intensidade do debate parlamentar em torno da criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)2 2 A ABIN foi criada em 1999 para substituir o SNI. , por exemplo, mais do que uma reação emocional ou uma idiossincracia do Parlamento brasileiro, é representativa de uma tendência mais geral que vem sendo verificada nos estudos de caso realizados no exterior3 3 Os poucos projetos de lei encaminhados à Câmara dos Deputados que tratavam da regulamentação e do controle externo das atividades de inteligência no período que vai da extinção do SNI até a criação da ABIN são descritos por Antunes (2002). .

Nesse sentido, a literatura neo-institucionalista utilizada por Cepik, especialmente o trabalho de Amy Zegart, Flawed by Design (2000), apresenta um conjunto de hipóteses que, em grande medida, podem ser aplicadas para analisar a fraca atuação do Congresso brasileiro no tocante à elaboração e ao controle das atividades de inteligência no país. As principais hipóteses são:

1. o elevado nível de dedicação necessário para que um parlamentar especialize-se no tratamento de temas como as atividades de inteligência e o baixo retorno eleitoral desses assuntos e

2. a tendência verificada à cooptação dos parlamentares para uma visão acrítica e condescendente em relação às práticas e justificativas das agências de inteligência do Poder Executivo.

Ambas os hipóteses merecem atenção pois implicam o comprometimento dos mecanismos de controle externo das atividades de inteligência.

Sobre a primeira hipótese, o já citado descaso do parlamento em relação às questões que se referem à atividade de inteligência levam a crer que a assertiva está correta.

Em relação à segunda hipótese, seria interessante que futuras pesquisas, ao analisarem o funcionamento da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Congresso Nacional (CREDN), levassem em conta o tempo de permanência nessa Comissão de parlamentares que se dedicam à fiscalização das atividades de inteligência no Brasil, assim como o tipo de relação que esses parlamentares estabelecem com os membros das agências de inteligência.

Luís Tibilleti, estudando o funcionamento da Comissão de Defesa Nacional na Argentina, identificou vários casos em que a relação cordial entre parlamentares, militares e outros agentes de segurança levou à incorporação desses agentes como assessores parlamentares de membros da comissão (TIBILETTI, 1994).

Por isso, a literatura internacional que trata dos mecanismos de controle externo dos serviços de inteligência aponta várias medidas que são adotadas a fim de minimizar o risco de cooptação de parlamentares, como a limitação do tempo de permanência dos parlamentares em comissões fiscalizadoras, a garantia de uma composição multipartidária e o aumento das prerrogativas dos membros em relação às responsabilidades do Presidente da Comissão (CEPIK, 2003, p. 184).

Se a falta de estudos empíricos que analisem especificamente o desempenho dos parlamentares que atuam na fiscalização das atividades de inteligência no Brasil não permitem fazer muitas considerações acerca desse tema, os resultados práticos da pouca atenção do Congresso às questões relacionadas a existência e ao funcionamento dessas atividades podem ser facilmente verificados.

Para tanto, é preciso retomar um dos principais argumentos de Cepik a respeito dos serviços de inteligência, qual seja: com seus poderes limitados e suas atividades supervisionadas, os serviços de inteligência são organizações governamentais especializadas em fornecer informações para auxiliar os processos decisórios nas áreas de política externa, defesa nacional e segurança pública.

Porém, sem uma diretriz política clara que estabeleça os parâmetros dentro dos quais eles devem atuar e sem uma supervisão eficiente, os serviços de inteligência tornam-se fontes de ameaça e não de proteção ao Estado e aos seus cidadãos.

Com base nessas premissas, é possível afirmar que somente a criação da ABIN, atualmente subordinada a uma "Secretaria de esdrúxulo nome" (FERREIRA, 2001, p. 32) que não escapou ao olhar perspicaz do professor Oliveiros Ferreira (o Gabinente de Segurança Institucional), não é suficiente para sanar a deficiência gerada pela falta de um serviço de inteligência que auxilie o processo decisório governamental, nem para diminuir, por si só, a desenvoltura com que os ex-agentes do SNI costumam agir.

A promulgação do Decreto n. 4 553 de 27 de dezembro de 2002, que amplia o período de sigilo de documentos governamentais reservados, confidenciais e ultra-secretos em cinco, dez e trinta anos, respectivamente (DITADURA E SEGREDO DE ESTADO, 2004), sem que essa medida tenha sido objeto de debate no Parlamento, é um exemplo significativo dos problemas a serem enfrentados no Brasil enquanto a atividade de inteligência não for vista como uma política pública do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, P. 2002. SNI e ABIN : uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros no século XX. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas.

CEPIK, M. 2003. Espionagem e democracia : agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas.

FERREIRA, O. S. 2001. A crise da política externa : autonomia ou subordinação? Rio de Janeiro : Revan.

STEPAN, A. 1986. Os militares : da Abertura à Nova República. Rio de Janeiro : Paz e Terra.

TIBILETTI. L. 1994. Parlamento y relaciones cívico-militares en la transición y consolidación democrática en la Argentina (1983-1995). Revista de Ciencias Sociales, Buenos Aires, n. 3, p. 175-211, nov.

TRAUMANN, T. 2004. Alerta Vermelho. Época, São Paulo, n. 296, p. 8, 19.jan.

ZEGART, A. 2000. Flawed by Design. The Evolution of the CIA, JCS and NSC. Palo Alto : Stanford University.

OUTRAS FONTES

BRASIL. 2002. Decreto n. 4 553, de 27.dez. Dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30.dez.2002.

Ditadura e segredo de Estado. 2004. Nossa História, Rio de Janeiro, ano 1, n. 3, p. 7, jan.

Recebido em 04 de fevereiro de 2004

Aprovado em 14 de fevereiro de 2004

Adriana Marques (adrimarques@usp.br) é Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).

  • 1
    Sobre a estrutura e a atuação do SNI durante a ditadura militar brasileira ver Stepan (1986).
  • 2
    A ABIN foi criada em 1999 para substituir o SNI.
  • 3
    Os poucos projetos de lei encaminhados à Câmara dos Deputados que tratavam da regulamentação e do controle externo das atividades de inteligência no período que vai da extinção do SNI até a criação da ABIN são descritos por Antunes (2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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