Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

a01n17

DOSSIÊ TRANSIÇÃO POLÍTICA

Apresentação

Carlos S. Arturi

Os numerosos processos de democratização verificados nas últimas décadas provocaram o surgimento de extensa literatura especializada — a "transitologia" —, responsável por uma forte inflexão nas abordagens utilizadas na análise da mudança de regimes políticos. Com efeito, o começo da "terceira onda" de democratizações (HUNTINGTON, 1991), em meados dos anos 1970, teve lugar quando estavam em voga enfoques macro-estruturais (alguns claramente economicistas) para a análise de regimes políticos. Nessas interpretações macro-orientadas não havia lugar nem previsão para as mudanças democráticas que abalariam em poucos anos a maioria das ditaduras do Ocidente e, finalmente, o Leste Europeu. Assim, a vaga de transições democráticas, ao surpreender os analistas, influenciou consideravelmente o giro de 180 graus verificado na maioria dos estudos posteriores, que adotaram crescentemente abordagens e metodologias de pesquisa alicerçadas em variáveis eminentemente políticas, relegando a segundo plano os enfoques baseados em variáveis econômicas ou sociais.

Essa nova geração de pesquisas, que teve na obra de O'Donnell e Schmitter (1988) um de seus marcos mais influentes, possuía forte afinidade com a teoria da escolha racional e com o individualismo metodológico, e estava centrada no estudo do ator político, individual ou coletivo: seus interesses, suas escolhas, suas estratégias, seus recursos. Esses trabalhos adotaram também uma definição minimalista de "regime democrático", conceito suficientemente abstrato e operatório para abarcar um grande conjunto de casos muito heterogêneos entre si (NUN, 1994; HERMET, 2001). Outras características importantes dessa produção foram as análises muito "rentes" dos casos analisados e a reboque das conjunturas fluídas das transições, privilegiando fatores endógenos no estudo desses processos, o que constituiu outra diferença importante em relação às perspectivas macro-orientadas, que valorizavam fatores externos, como a política exterior das grandes potências e/ou as relações centro-periferia. Ao superestimarem a ação e a escolha dos atores na instauração dos novos regimes democráticos, os analistas políticos orientaram freqüentemente seu trabalho de maneira normativa, procurando influenciar o processo de transição no sentido de facilitar a democratização; muitos desses intelectuais tornaram-se também atores políticos, como exemplifica o caso brasileiro.

Quando a democracia começa a ser (re)instaurada, ao cabo de transições pactadas ou por ruptura com os antigos regimes autoritários, vários pesquisadores passam a questionar a qualidade dos novos regimes, apontando suas carências substantivas e/ou seu alcance social, e a indagar sobre suas chances de consolidação. À medida que os processos de democratização avançavam, o foco das análises foi deslocado das causas da transição para as condições da consolidação dos novos regimes (NOHLEN & THIBAUT, 1994). Neste percurso, alterou-se também a natureza das variáveis privilegiadas nas análises, que voltaram a incorporar fatores econômicos e sociais, bem como culturais, na tentativa de discernir as chances e os constrangimentos à consolidação dos regimes democráticos recém-instaurados. Verifica-se também o surgimento de trabalhos correlacionando as transições democráticas às transformações verificadas no papel do Estado e no modelo econômico, mudanças essas influenciadas pelo neoliberalismo após a década de 1980, tanto no que se refere à sua atuação no âmbito interno das nações como nas relações internacionais (SALLUM JR., 1996).

A literatura especializada ressente-se da inexistência de uma teoria das mudanças políticas que possa fornecer um enquadramento analítico e conceitual para o estudo das transições de regime. Por sua vez, a política comparada enfrenta o penoso desafio de realizar análises sobre um fenômeno político que engloba um conjunto de Estados nacionais extremamente diversificado, sob todos os aspectos. Se essa dificuldade encontra-se presente quando se estuda a América Latina, por exemplo, o que dizer quando inclui-se na comparação os países da Europa do Leste, que sofreram duas transições, a propriamente política e também a de um modo de produção a outro. Impõe-se, portanto, uma reflexão crítica sobre a literatura a respeito do tema, que seja notadamente atenta às insuficiências do aparato conceitual utilizado, e a realização de estudos de caso que permitam testar e afinar hipóteses provenientes de estudos comparativos.

Nesta perspectiva, o conjunto de artigos reunidos neste dossiê contempla estas preocupações e teve sua origem numa mesa-redonda intitulada "Consolidação da Democracia: enfoques teóricos e processos político-institucionais", realizada durante o Seminário Internacional de Ciência Política, promovido pela Associação de Universidades do Grupo de Montevidéu e pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em outubro de 2001, em Porto Alegre. Esta mesa-redonda teve como objetivo discutir as possibilidades e os constrangimentos à consolidação dos regimes democráticos na América Latina, segundo diferentes perspectivas teóricas e a partir de resultados de pesquisas recentes sobre o tema.

O primeiro artigo, de autoria de Carlos S. Arturi, analisa o processo de transição no Brasil, a partir de 1974, e busca responder a seguinte questão: como os dirigentes autoritários conseguiram conduzir um processo de transição altamente voluntarista e atingir boa parte de seus objetivos políticos — garantia de não punição para os crimes cometidos pelo aparato repressivo da ditadura, manutenção de consideráveis prerrogativas políticas das Forças Armadas, sobrevivência e continuidade da elite civil do regime —, tudo isso apesar do crescimento da oposição em todo o período, da reação da extrema-direita militar e da profunda crise econômica no início dos anos 1980? Segundo o autor, a utilização das eleições para pautar a transição e os acordos entre as elites políticas fizeram que a transição se autonomizasse quando o regime perdeu seu controle, já que nenhum dos atores poderia mais alterar unilateralmente as regras do jogo, bem como encontrava-se disponível um quadro político-legal para estruturar o jogo político e inspirar as estratégias dos atores relevantes. O trabalho coteja o caso brasileiro com a evolução da literatura sobre transições democráticas, para concluir que, ao lado de variáveis de ação política, fatores ligados à tradição institucional do País e à estruturação do jogo político pela interação das estratégias dos atores durante a transição são também importantíssimos para o destino destes processos e para a configuração do novo regime democrático.

No segundo artigo, Alberto Tosi Rodrigues aborda a transição brasileira numa perspectiva abrangente e de longo prazo, ao utilizar-se da hipótese de que a um ciclo de mobilização ou protesto segue-se outro de mudança institucional. Assim, o autor insere o processo de democratização do país num ciclo de mobilização política de saída do regime autoritário, que começou com a "reativação" da sociedade civil na segunda metade dos anos 1970 (o ciclo de entrada na ditadura foi a intensa mobilização dos setores populares na primeira metade dos anos 1960). Por sua vez, este ciclo de mobilização ou de protesto, cujo ápice foi a campanha pelas Diretas-já de 1984, originou um ciclo de mudança da ordem institucional traduzido pela Constituição de 1988, que ainda encontra-se inconcluso em virtude da série de reformas econômicas e constitucionais posteriores, deixando em aberto a agenda política em prol de uma democracia participativa. Nesse caso, não tem muito sentido referir-se à "consolidação de uma ordem democrática" quando nem sequer encontrou-se ainda sua configuração definitiva; portanto, certamente haverá outros ciclos de mobilização e protesto.

A questão das relações entre política, Constituição e justiça, sob a perspectiva da consolidação da democracia, é tratada por Anderson Lobato no seu trabalho sobre a judicialização da política no Brasil. O fenômeno, que ganhou um grande ímpeto com a transição política, reflete conflitos e tensões entre poderes e desafia o poder Judiciário. De fato, este último encontra-se frente à tarefa, da qual não pode dar conta sem o concurso do Legislativo e do Executivo, de satisfazer as expectativas da cidadania quanto à concretização dos direitos contemplados na Constituição democrática de 1988. O regime presidencialista, reforçado pela instituição das medidas provisórias e pela maioria parlamentar do governo desde 1994, acarretou uma hipertrofia do Executivo, o que induz o poder Judiciário a impor limites ao exercício do poder político, toda vez que for acionado por organizações da sociedade civil ou pela oposição, através do controle da constitucionalidade das leis e das ações constitucionais de proteção aos direitos fundamentais. O Judiciário colabora, assim, para consolidação do regime democrático, mas vive um momento delicado, pois, segundo o autor, deve buscar legitimidade e ser reformado para enfrentar o alto grau de litigiosidade que deságua nos tribunais após a democratização do país, notadamente perante o Supremo Tribunal Federal.

Se os três primeiros trabalhos questionam a produção sobre transições democráticas a partir de análises sobre o caso brasileiro, os três últimos dedicam-se à análise crítica da produção teórica sobre as transições de regime, elaborada a partir de um enfoque comparativo. O artigo de Gabriel Vitullo examina os conceitos de "transição" e de "consolidação" da democracia produzidos pela literatura especializada nos últimos anos, bem como o próprio conceito de "democracia" nela implícito. Com efeito, a tendência à criação de generalizações ex post e a tentativa de criar tipologias com alto grau de abstração e amplitude tornou-se um obstáculo para o estudo detalhado de casos nacionais e impediu uma avaliação mais criteriosa das democracias existentes. O trabalho ressalta também o reducionismo politicista de muitos textos representativos da Ciência Política dos últimos anos e aponta a necessidade da incorporação de variáveis de caráter social e econômico no estudo dos processos de transição e consolidação da democracia. Quanto à noção de democracia baseada em fatores exclusivamente políticos, empregada majoritariamente pela literatura atual, o autor argumenta que apenas a adoção de um conceito menos limitado poderia permitir um julgamento mais exigente desses regimes.

Por sua vez, Stéphane Monclaire centra sua crítica à boa parte das obras consagradas ao tema da transição e da consolidação da democracia aos seus equívocos metodológicos, que não levam suficientemente em consideração o conhecimento sociológico sobre os atores, a conjuntura e os processos de interiorização dos valores políticos. Assinala também que a recusa de pré-condições sociais, econômicas e políticas para a instauração da democracia, que eram preconizadas pelas abordagens macro-orientadas, levou os novos enfoques a tornarem-se possibilistas, onde a construção do regime democrático passou a depender quase que exclusivamente das escolhas e da ação dos atores. No que se refere aos "consolidólogos", o autor destaca o juridicismo de certas interpretações que imputam, por exemplo, à forma de governo (parlamentarista ou presidencialista) uma influência decisiva, positiva ou negativa, para a solidez dos novos regimes democráticos, sem perceberem como outros fatores podem relativizar esta suposta influência. Outras obras estabeleceriam relações demasiado diretas entre desempenho econômico e apoio aos regimes políticos por parte da população, o que pressupõe um eleitor que raciocine como um estrategista calculista, princípio do individualismo metodológico freqüentemente empregado nesse tipo de análise. Assim, Monclaire considera que o valor explicativo e preditivo dessas abordagens a respeito do futuro das novas democracias deixa muito a desejar.

O último artigo deste dossiê, de autoria de Luís Gustavo Mello Grohmann, apresenta o resultado de uma abrangente pesquisa sobre a separação dos poderes em recentes Constituições nacionais dos 17 países da América Latina que apresentam regimes presidencialistas de governo. A partir da teoria da separação e da checagem e balanceamento de poderes, o autor analisou os tipos da relação Executivo-Legislativo (predomínio de um sobre outro, equilíbrio ou conflito/paralisia decisória). A metodologia empregada é estatística, com atribuição de pesos para as variáveis, compilando ao final índices categóricos que ordenam as posições de cada país em relação a três grandes dimensões: separação de poderes, independência de poderes e checagem. Com isso, não apenas foi identificado o perfil institucional de cada país mas também estabelecida a comparação entre eles. Os resultados demonstraram que oito dos países comparados apresentam predomínio do Legislativo, quatro deles apresentam o predomínio do Executivo, três o equilíbrio entre poderes e dois uma situação de conflito/paralisa entre os poderes. Esses dados indicam que "os presidencialismos existentes não podem ser considerados como um conjunto homogêneo quanto às suas implicações políticas", o que demonstra a importância de pesquisas, como esta, que aprofundem a compreensão dos processos político-institucionais concretos, única via para avançar teoricamente nos estudos de mudança dos regimes políticos.

Carlos S. Arturi (arturi@zaz.com.br) é Doutor em Ciência Política pelo Institut d'Etudes Politiques de Paris e Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HERMET, G. 2001. As transições democráticas no século XX : comparação entre América Latina e Leste europeu. In: ABREU, A. A. Transição em fragmentos : desafios da democracia no final do século XX. Rio de Janeiro : Ed. da FGV.

HUNTINGTON, S. 1991. The Third Wave : Democratization in the Late Twentieth Century. Norman : University of Oklahoma Press.

NOHLEN, D. & THIBAUT, B. 1994. Investigación sobre la transición en América Latina: enfoques, conceptos, tesis. Arbeitspapier, n. 11, Universidade de Heidelberg.

NUN, J. 1994. La Democracia y la modernización: treinta años después. In: SIERRA, G. Democracia emergente en America del Sur. Ciudad del México : UNAM.

O'DONNELL, G. &SCHMITTER, P. 1988. Transições do regime autoritário: primeiras conclusões. São Paulo : Vértice/Revista dos Tribunais.

SALLUMJR., B. 1996. Labirintos. Dos generais à Nova República. São Paulo : Hucitec.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2002
  • Data do Fascículo
    Nov 2001
Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460 - sala 904, 80060-150 Curitiba PR - Brasil, Tel./Fax: (55 41) 3360-5320 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: editoriarsp@gmail.com