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Vacinação, segurança de imunobiológicos e direitos do cidadão

Editorial

Editorial

Vacinação, segurança de imunobiológicos e direitos do cidadão

O evento recentemente registrado em Campinas, SP, em que se verificou uma inusitada incidência de efeitos adversos no primeiro dia de uma campanha de vacinação contra o meningococo C, obriga a uma reflexão sobre o uso de imunobiológicos em larga escala em nosso meio.

Não há dúvidas de que intervenção em saúde pública de maior efetividade e de melhor relação entre custo e benefício é a vacinação contra doenças infecciosas. O impacto da vacinação no crescimento da expectativa de vida foi imenso. O custo não foi inexistente, ainda que pequeno.

Nos anos 30, várias crianças morreram pela aplicação de uma vacina BCG contaminada com o Mycobacterium tuberculosis. Em 1955, nos EUA, diversos casos de poliomielite foram causados pela aplicação de vacina contra a poliomielite contendo vírus inadequadamente inativado. Mais recentemente, verificou-se aumento da mortalidade em crianças que haviam recebido vacina contra o sarampo elaborada com a cepa Edmonston-Zagreb.

Vacinas, ao contrário dos medicamentos, são produtos biológicos destinados a proteger quem não está doente, não se trata de reverter um agravo já existente. Falhas no controle de qualidade ou efeitos colaterais sérios, ainda que pouco freqüentes, têm grande impacto, por ser usualmente grande o número dos vacinados. Falhas assim acontecem em outros ramos da indústria, haja vista o recente episódio da contaminação da famosa água mineral Perrier. O fabricante retirou todo o lote de circulação e fez um pedido público de desculpas.

No caso de Campinas, uma vacina anti-meningocócica específica para o tipo C foi utilizada numa campanha programada para imunizar cerca de 560 mil pessoas, somente no Município. Cerca de duas horas após o início da vacinação, um número significativo de pessoas, a maioria crianças, apresentou febre, hipotensão e cefaléia. As características clínicas e epidemiológicas do fato não deixaram dúvidas de que se tratava de uma endotoxina, obviamente inoculada juntamente com a vacina.

Um conhecimento superficial do processo de fabricação é suficiente para entender que a contaminação com endotoxina é perfeitamente possível, basta haver uma falha no processo de separação do polissacáride da cápsula dos demais componentes.

Evidentemente deve ocorrer também falha no controle de qualidade. Estudos de laboratórios corroboraram a hipótese inicial. Houve realmente contaminação por endotoxina. Felizmente as reações foram prontamente detectadas, a vacinação suspensa e nenhum dano sério ou irreversível à saúde ocorreu. O impacto, no entanto, foi imenso, foram vacinadas pouco mais de 30 mil pessoas, com uma incidência de efeitos adversos estimada em pelo menos 20%, muito acima dos menos de 2% de reações sistêmicas usualmente verificadas com esta vacina.

A quem cabe a responsabilidade? Óbvio que ao fabricante. No trágico episódio do BCG em Lübeck, os responsáveis foram condenados. No episódio Cutter, ainda que não tenha havido punição pessoal, houve a conscientização da necessidade de um rigor maior no controle de qualidade das vacinas. Mais recentemente, diante da suspeita de que um determinado lote da vacina conjugada contra o Haemophilus influenzae b, do laboratório Merck Sharp Dohme não fosse suficientemente imunogênica, todas as crianças foram revacinadas com outro lote, sob a responsabilidade do fabricante. Esta é a responsabilidade de qualquer fabricante, do que quer que seja. O código do consumidor prevê esta responsabilidade.

Infelizmente não foi que se assistiu em Campinas. O fabricante se eximiu o quanto pode da responsabilidade, chegando a haver declarações na imprensa de que teria sido histeria coletiva. O episódio com certeza contribuiu para o descrédito do serviço público de saúde, justamente naquilo que ele tem de melhor.

O problema em questão não é má qualidade da vacina. Seria possível prolongar indefinidamente uma digressão sobre o sucateamento do Estado, sobre a pouca atenção à saúde e à educação e assim por diante. A discussão fundamental é a desconsideração pelo cidadão e seus direitos nas intervenções de saúde pública.

Na campanha de vacinação de Campinas, mesmo antes da ocorrência das reações houve sempre pouca informação. Exemplo é o uso de um outro tipo de vacina em duas cidades menores da região em Valinhos e Monte-Mór aplicou-se a vacina anti-meningocócica A & C da Pasteur Merieux e em Campinas a vacina contra o tipo C da BioManguinhos. Um detalhe aparentemente inconseqüente, mas a informação não foi sequer transmitida à classe médica da região. A falta de informação durante o incidente e no período logo após foi flagrante. O fabricante somente veio a público reconhecer a responsabilidade depois que outras instituições apresentaram provas irrefutáveis de que houvera falha no processo de fabricação da vacina. A falha técnica seria até aceitável, inaceitável a relutância em reconhecê-la publicamente.

Parece haver tanta confiança na vacinação como medida eficaz e eficiente de saúde pública que se releva a necessidade de discutir riscos e alternativas com o público. Ninguém, pessoa ou instituição, pode se arrogar o direito de implementar medidas de saúde pública sem a necessária informação ao público. Ao contrário da AIDS, aonde o politicamente correto é a máxima informação, escolha e direitos são as palavras de ordem , nos demais setores da saúde pública ainda reina o paternalismo patriarcal: o Estado faz aquilo que entende como o melhor para a população, e ela é bombardeada com uma publicidade maciça, não de informação, mas de uma quase coação.

A prática da saúde pública deve ser sempre adaptada à realidade do momento. O código do consumidor, ainda recente, prevê situações semelhantes. Qualquer aplicação de um imunobiológico em massa, por mais precisa que seja a sua indicação, deve ser precedida e acompanhada de um processo de orientação, tanto da população-alvo, como do meio médico não diretamente ligado ao serviço público.

Conseguida uma excelente cobertura vacinal em quase todo o País, particularmente no Sul e Sudeste, é chegado o momento de dar uma feição mais evoluída a este tipo de intervenção, aonde a aderência da população e dos profissionais de saúde fora do sistema público se dá pela criação de uma forte confiança, não crédula mas baseada na informação e na discussão. Discussão da estratégia e, mais importante, dos eventuais erros e acidentes. Episódios como o de Campinas eventualmente acontecerão, mas o que não pode se aceitar é o que se seguiu, um vergonhoso jogo de se esquivar da responsabilidade.

Luiz Jacintho da Silva

Editor Associado

Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    Ago 1996
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