Acessibilidade / Reportar erro

O significado de fidelidade e as estratégias para prevenção da Aids entre homens casados

The meaning of fidelity and Aids prevention strategies among married men

Resumos

OBJETIVOS: Descrever as representações sobre fidelidade e os usos do preservativo por homens casados e sugerir estratégias de redução de risco e prevenção da Aids. MÉTODOS: Dez homens casados, moradores de Americanópolis, bairro da periferia do Município de São Paulo, foram entrevistados, a partir de um roteiro semi-estruturado. Foram contatados por "bola de neve" a partir do informante chave (preferencial) identificado em pesquisa preliminar com mulheres casadas. As entrevistas foram analisadas segundo o enfoque da construção cultural da masculinidade e das representações sociais. RESULTADOS: Observou-se que o grupo estudado tinha um entendimento de que a fidelidade tornava natural para o gênero masculino não ter a esposa como única parceira sexual. Entendiam fidelidade como o respeito à parceira e o conseqüente uso da camisinha nas relações extraconjugais, que estão associadas ao risco de infecção, e que as relações sexuais com a esposa não eram perigosas porque estavam baseadas no amor e no companheirismo. Nelas, o uso do preservativo era bem-vindo apenas quando o objetivo era a contracepção, especialmente quando outro método não podia ser utilizado. CONCLUSÕES: Os homens estudados tiveram uma percepção bastante limitada da sua vulnerabilidade para Aids. Incentivar que aconteçam as relações sexuais extraconjugais com o uso do preservativo permite levar em conta as definições culturais para masculinidade. Propõe-se uma estratégia mais aceitável de redução do risco para esse grupo (e suas esposas) a curto prazo, sem deixar de pensar numa mudança mais estrutural nas relações de gênero. A camisinha deve ser estimulada também entre homens casados como forma de contracepção, associada à fidelidade e proteção da família.

Homens; Conhecimentos, atitudes e prática; Preservativos; Síndrome de imunodeficiência adquirida; Casamento; Comportamento sexual; Vulnerabilidade; Heterossexualidade; Fidelidade; Masculinidade; Gênero


OBJECTIVE: To describe the meaning of fidelity and condom use among married men and to suggest HIV risk reduction and Aids prevention strategies. METHODS: Ten men residing in Americanópolis, a neighborhood in the city of São Paulo, Americanópolis, were interviewed using a semi-structured questionnaire. The sample was drawn through contacts established in a preliminary research among married women. Interview analyses focused on the social build up of masculinity and its meanings. RESULTS: As to fidelity, the study group perceives as natural for a man not to have his wife as his only sex partner. Fidelity is understood as respecting their wives, which is translated into the use of condoms in extra-marital relationships that are seen as associated with disease risk and vulnerability. Sexual intercourse with their wives is perceived as risky because it is based on love and companionship, and the use of condoms is only for contraception especially when other birth control methods cannot be used. CONCLUSIONS: In the study, men revealed a very limited perception of their vulnerability to Aids. Promoting the use of condoms in extra-marital relationships meets this society's definitions of masculinity. There is a need of a more efficient strategy in the short run for risk reduction among men and their wives, and the development of other strategies that incorporate structural changes of genre relations. Condom use should be promoted among married men as a contraceptive method, as well as a form of fidelity and family protection.

Men; Knowledge, attitudes, practice; Condoms; Acquired immunodeficiency syndrome; Marriage; Sex behavior; Vulnerability; Heterosexuality; Fidelity; Masculinity; Gender


O significado de fidelidade e as estratégias para prevenção da Aids entre homens casados

The meaning of fidelity and Aids prevention strategies among married men

Cristiane Gonçalves Meireles da Silva

Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

DESCRITORES

Homens. Conhecimentos, atitudes e prática. Preservativos. Síndrome de imunodeficiência adquirida, prevenção. Casamento. Comportamento sexual. Vulnerabilidade. Heterossexualidade. Fidelidade. Masculinidade. Gênero.

RESUMO

OBJETIVOS:

Descrever as representações sobre fidelidade e os usos do preservativo por homens casados e sugerir estratégias de redução de risco e prevenção da Aids.

MÉTODOS:

Dez homens casados, moradores de Americanópolis, bairro da periferia do Município de São Paulo, foram entrevistados, a partir de um roteiro semi-estruturado. Foram contatados por "bola de neve" a partir do informante chave (preferencial) identificado em pesquisa preliminar com mulheres casadas. As entrevistas foram analisadas segundo o enfoque da construção cultural da masculinidade e das representações sociais.

RESULTADOS:

Observou-se que o grupo estudado tinha um entendimento de que a fidelidade tornava natural para o gênero masculino não ter a esposa como única parceira sexual. Entendiam fidelidade como o respeito à parceira e o conseqüente uso da camisinha nas relações extraconjugais, que estão associadas ao risco de infecção, e que as relações sexuais com a esposa não eram perigosas porque estavam baseadas no amor e no companheirismo. Nelas, o uso do preservativo era bem-vindo apenas quando o objetivo era a contracepção, especialmente quando outro método não podia ser utilizado.

CONCLUSÕES:

Os homens estudados tiveram uma percepção bastante limitada da sua vulnerabilidade para Aids. Incentivar que aconteçam as relações sexuais extraconjugais com o uso do preservativo permite levar em conta as definições culturais para masculinidade. Propõe-se uma estratégia mais aceitável de redução do risco para esse grupo (e suas esposas) a curto prazo, sem deixar de pensar numa mudança mais estrutural nas relações de gênero. A camisinha deve ser estimulada também entre homens casados como forma de contracepção, associada à fidelidade e proteção da família.

KEYWORDS
Men. Knowledge, attitudes, practice. Condoms. Acquired immunodeficiency syndrome, prevention & control. Marriage. Sex behavior. Vulnerability. Heterosexuality. Fidelity. Masculinity. Gender.

ABSTRACT

OBJECTIVE:

To describe the meaning of fidelity and condom use among married men and to suggest HIV risk reduction and Aids prevention strategies.

METHODS:

Ten men residing in Americanópolis, a neighborhood in the city of São Paulo, Americanópolis, were interviewed using a semi-structured questionnaire. The sample was drawn through contacts established in a preliminary research among married women. Interview analyses focused on the social build up of masculinity and its meanings.

RESULTS:

As to fidelity, the study group perceives as natural for a man not to have his wife as his only sex partner. Fidelity is understood as respecting their wives, which is translated into the use of condoms in extra-marital relationships that are seen as associated with disease risk and vulnerability. Sexual intercourse with their wives is perceived as risky because it is based on love and companionship, and the use of condoms is only for contraception especially when other birth control methods cannot be used.

CONCLUSIONS:

In the study, men revealed a very limited perception of their vulnerability to Aids. Promoting the use of condoms in extra-marital relationships meets this society's definitions of masculinity. There is a need of a more efficient strategy in the short run for risk reduction among men and their wives, and the development of other strategies that incorporate structural changes of genre relations. Condom use should be promoted among married men as a contraceptive method, as well as a form of fidelity and family protection.

INTRODUÇÃO

A realidade dos dados atuais de infecção pelo HIV no Brasil mostra que os homens com comportamento heterossexual são parcela importante da população infectada. Para o enfoque que se está privilegiando, não importa se esses homens tenham também comportamento homossexual. No Brasil, em 1997,2 os indivíduos do sexo masculino (acima de 12 anos) cuja transmissão de Aids havia sido por relação heterossexual representavam 20% dos 11.718 casos notificados, contra 35,1% dos casos cuja transmissão ocorreu pela relação homossexual, bissexual e por compartilhamento de seringas. A categoria de transmissão dupla, heterossexual e usuário de drogas injetáveis somava 10,4%. No ano seguinte (1998), o total de homens com Aids cuja transmissão havia se dado pela relação heterossexual já havia subido para 29,1% de um total de 5.046 casos notificados, contra 36,1% referentes aos demais grupos. Nesse caso, a categoria de transmissão dupla, heterossexual e usuário de drogas injetáveis somava 11,4%.

No Estado de São Paulo,3 do total de 4.768 casos notificados entre homens em 1997, 20,6% foram adquiridos pela transmissão heterossexual. A categoria de transmissão sangüínea (usuário de drogas injetáveis) foi responsável por 26,6% dos casos. No ano seguinte, entretanto, o número de casos de transmissão heterossexual superou o de transmissão sangüínea, representando 24,6% dos 1.215 casos notificados, contra 17,7% da segunda categoria.

Apesar desses números, na época da realização da pesquisa, os homens heterossexuais não eram alvo de campanhas específicas de prevenção, bem como raramente se beneficiam de campanhas e programas voltados à sua saúde reprodutiva e sexual. A questão homens heterossexuais e Aids ainda é encarada de forma incipiente. Segundo Vilella:13

"(...) numa flagrante contradição com tudo o que foi dito nos últimos cem anos no âmbito dos discursos sobre a saúde e sobre a masculinidade e a feminilidade normais, começa-se a culpar a ingenuidade feminina sobre o sexo, sua submissão ao homem e o desregramento sexual masculino pela expansão da epidemia para pessoas agora já não consideradas tão normais."

Como se sabe, a Aids sempre esteve associada a comportamentos desviantes e marginais que, de forma alguma, abrangiam o comportamento do homem adulto heterossexual (especialmente os casados) e, mesmo tendo chegado de maneira alarmante entre as mulheres, não foi capaz de ser entendida também como problema extensivo aos parceiros destas.14

Muitos trabalhos mostram que o uso de preservativo masculino nas relações estáveis leva a uma situação de desconfiança entre o casal por funcionar como um elemento questionador da fidelidade, sentimento importante, definidor e idealizado do casamento.9,10 Outros estudos mostram também que, para as mulheres casadas, o casamento é concebido com base no companheirismo e na fidelidade. Apesar de estar presente no discurso das mulheres a idéia de que os homens traem, isto:

"(...) não se constitui, entretanto, numa representação que se impõe. Sua importância é diluída em favor de todas as outras coisas construídas na vida conjugal e obtidas com ela, deixando claro que há uma escala hierárquica das representações da vida conjugal, onde a fidelidade é algo muito importante." (Silva,12 1999).

O repertório cultural que determina o comportamento masculino e estabelece as regras da relação conjugal parece "dificultar" o trabalho de prevenção, como coloca Gogna:8

"A escassa disponibilidade e capacidade para o sexo seguro remetem a uma complexa trama composta de normas e valores, estereótipos, relações de poder, sentimentos (afeto, amor e vingança) e significados (i.e. que o preservativo não é para o matrimônio). Assim, parece evidente que os mandatos culturais que definem a sexualidade masculina como indomável (o homem não deve desprezar oportunidades de contato sexual) e/ou postulam que correr riscos é um elemento essencial da masculinidade conspiram seriamente contra a capacidade dos homens de se proteger e proteger seus parceiros sexuais."8

Sabe-se que há duas questões que devem ser exploradas a fim de tornar os trabalhos de prevenção mais eficientes. Uma, discutida por diversos autores, é que preservativo não combina com casamento.7-10 A outra é que as relações extraconjugais fazem parte da realidade de vida de homens casados.

Por essas razões, o objetivo do presente estudo é enfocar a fidelidade como marco simbólico, divisor importante de dois mundos masculinos ¾ o mundo "de dentro", das relações sexuais dentro do casamento, e o mundo "de fora", das relações extraconjugais ¾ e a possibilidade de prevenção dentro desses mundos.

Como, até o momento, há poucos estudos sobre a epidemia de Aids entre os homens heterossexuais, utilizar-se-ão, com certa freqüência, os resultados da pesquisa realizada entre as mulheres do mesmo bairro12 para compreender a situação conjugal vivida pelos homens.

MÉTODOS

O estudo foi realizado em Americanópolis, bairro de periferia do Município de São Paulo, distante dos centros importantes da cidade, apesar da relativa proximidade com estações de metrô. Está localizado em uma zona reconhecidamente violenta, com visíveis contradições do ponto de vista econômico, como o fato de haver diferenças de até dez vezes nos salários de vizinhos.* * O grupo estudado foi constituído de dez homens moradores no bairro citado. Não foi identificada uma homogeneidade no grupo, que não incluiu universitários ou profissionais com garantia de estabilidade econômica. Todos tinham filhos, com duas exceções ¾em uma, o entrevistado tinha a esposa grávida. Não há como descrever um perfil do grupo, mas, apesar das diferenças, há similaridades oriundas de uma outra esfera, a da cultura vivida, aprendida e (re)passada pela mídia globalizada.

O grupo foi entrevistado por meio de um roteiro semi-estruturado, cujas entrevistas duraram em média uma hora. Foram transcritas na integridade e analisadas a partir de núcleos centrais de interesse: fidelidade, uso de camisinha e percepção de risco para Aids dentro do casamento.

O trabalho de análise concebeu que o conteúdo dos núcleos estavam significados por derivações do padrão de masculinidade vigente na sociedade brasileira, como também já foi trabalhado por outros autores.11,12

São os aspectos culturais que marcam sua socialização e educação de forma semelhante, no que tange às questões abordadas na presente pesquisa. Perceber elementos comuns na vivência desses homens é uma maneira de identificar a importância e durabilidade das identidades e identificações masculinas na sociedade brasileira. Como coloca Bourdieu,4,5 ao tratar da "dominação masculina", a oposição masculino-feminino faz parte da estrutura da sociedade enquanto produto e produtor.

RESULTADOS E COMENTÁRIOS

Os significados da fidelidade

O significado da fidelidade dentro do casamento, para os homens estudados, demarca a divisão de dois universos: o de "dentro" do casamento e o de "fora". Estas são formas classificatórias semelhantes às categorias opostas e complementares "casa" e "rua", consideradas apropriadas para entender um pouco a realidade brasileira.6 No espaço de dentro e fora, esses homens têm relações sexuais com práticas diferenciadas, que tornam adequado ou não o uso do preservativo. O significado de fidelidade para esses interlocutores está impregnado de elementos da cultura que definem seus padrões de masculinidade e determinam a forma como as relações sexuais acontecem dentro e fora do casamento.

Para os entrevistados, o respeito aparece como definidor de fidelidade, especialmente entre aqueles que dizem não ter relações extraconjugais. Respeito aparece como condição de existência do casamento.

"(fidelidade) Pra mim significa o próprio casamento." (Luís, 28 anos).

Nos relatos, verificou-se que o companheirismo também é um dos definidores de fidelidade. Isto é visível na forma como eles dizem valorizar a união, a construção e a conquista de ideais pelo casal como atributos da fidelidade. Essa idéia parece mostrar um novo entendimento da relação conjugal determinado pelas mudanças ocorridas nos últimos anos, no que diz respeito à mulher e especialmente à sua entrada no mercado de trabalho. Isto implicou mudanças na forma de organizar a divisão da vida doméstica, mesmo que não haja uma mudança estrutural (mulheres continuam assumindo mais o trabalho doméstico, enquanto o homem "ajuda").

"Olha, fidelidade é a pessoa conservar tudo aquilo de bom que tem. Valorizar a pessoa que está sempre a seu lado, conquistando tudo aquilo, que os dois juntos possam ser sempre alegres, ser feliz e viver sempre no seu ideal, em paz e harmonia, amor, um carinho e companheirismo, e creio que nada mais iria impedir de ter uma boa vivência juntos." (Alberto, 42 anos).

A fidelidade depende do comportamento da esposa, ou da forma como o casal "se completa" sexualmente. Para os interlocutores, a fidelidade é garantida quando a esposa é "criativa" ou "sedutora", levando, por essas razões, à satisfação plena. Assim, não há necessidade de procurar tal satisfação fora da relação conjugal. Complementaridade também está vinculada à satisfação sexual dentro do casamento. Vê-se que, nos dois casos, é o julgamento e o desejo masculino que estão contando, representação reforçada quando se observa no discurso desses interlocutores a idéia de que, quando a esposa "evita o marido", está levando-o a "procurar fora".

"O homem, ele é homem sempre, em todo momento, em toda circunstância. Desde o momento que o homem é casado com uma mulher, e a mulher passa a evitá-lo, passa a falar: 'Procura outra fora'. É lógico que o homem não é de ferro (...)." (Alberto, 42 anos).

Há também o entendimento e a crença em uma "natureza" masculina determinada pela necessidade do sexo, pelo instinto animal "incontrolável". É muito difícil para o homem "negar fogo" quando é abordado por outras mulheres, primeiro porque ele "é homem" e segundo porque não é "gay" nem "boneco". Observa-se a presença da legitimação de uma "natureza" muito mais sexual do homem, que foge ao próprio controle dele.

A culpa também é uma derivação dessa "natureza" sexual que pode levar o homem a ter várias parceiras.

"(...) quando eu tenho esse tipo de relação, eu fico pensando: 'Puxa, ela tá lá em casa, não tá fazendo nada disso, e eu sou um canalha porque tô fazendo isso e não consigo me libertar. Então, isso é um instinto animal que eu tenho, eu não consigo segurar essa onda, entendeu? Se eu tô na rua, e uma mulher abre um campo pra mim, pra eu me aproximar dela, eu não consigo segurar a onda." (André, 28 anos).

Parecendo formar um movimento contrário, foram encontradas também nesse grupo formas de entender e representar a fidelidade que revelam que a traição não deve acontecer, e, se houver a possibilidade disso, cabe ao homem separar-se da esposa antes que ela aconteça. Há a representação de que ser infiel é estar mentindo para si mesmo.

Poucos fazem referência à traição da esposa. É quase sempre seu próprio comportamento que é enfocado, porque parece que a fidelidade feminina está dada, é algo "natural", assim como é "natural" o comportamento do homem propenso à traição. Isto é reforçado se for considerado que a pesquisa feita com mulheres do mesmo bairro mostrou que elas também fazem pouca referência a seu próprio comportamento ou à possibilidade delas traírem seus companheiros. O homem está no centro quando se trata de infidelidade.12

Verificou-se também a intolerância em relação à traição feminina, considerada como "absurda" por alguns. Esse julgamento masculino em relação à infidelidade feminina está mais presente no senso comum. Apesar disso, no que diz respeito à traição feminina, considerou-se que o fato de maior importância é exatamente a ausência de referências ao comportamento infiel da mulher e a sugestão de que as relações sexuais conjugais não oferecem risco.

Há, entretanto, associação imediata entre a traição, que acontece fora de casa, e as doenças sexualmente transmissíveis. Essa representação relaciona fidelidade ao necessário respeito à esposa. Dessa forma, não usar camisinha em relações fora de casa, sabendo da existência de doenças, é "comprometer" a saúde da mulher, atitude que é considerada infiel e desrespeitosa. No limite, as doenças servem para valorizar o respeito à esposa, e a camisinha preserva as condições dentro de casa, garantindo o respeito.

"Aí, é a maior roubada (relações extraconjugais), principalmente por segurança. Nossa, às vezes eu brigo com cliente por fazer besteira, sair com alguém de fora de casa e não usar camisinha. Nossa, eu acho isso uma safadeza, tanto com a saúde dele, quanto da esposa, principalmente, porque ela não tem nada a ver com isso." (Geraldo, 27 anos).

A construção da fidelidade parte de uma visão cultural do masculino e do feminino, que é (re)elaborada pela incorporação de novos elementos e símbolos disponíveis no repertório social, introduzindo uma nova forma de entender o casamento, mesmo que as estruturas de dominação ainda se mantenham. A Aids tem sido introduzida na vida das pessoas, e especialmente dentro da relação conjugal, como uma preocupação a mais, vinda de fora e ainda pouco elaborada por essas pessoas.

A fidelidade, na forma como ela é construída por esses homens, classifica de maneira bastante peculiar as relações sexuais com outras mulheres e com a própria esposa. Para parte dos interlocutores, ser fiel não significa ter exclusividade de parceria. Mesmo assim, há valorização do relacionamento conjugal, pois as relações sexuais fora de casa são classificadas como "aventuras" que não devem interferir no casamento, assim como os homens casados não devem trocar a esposa por "amantes". Atitudes contrárias é que são consideradas como atitudes infiéis.

"Sou fiel, sou fiel com os sentimentos, entendeu? Uma aventura que você tem na rua, você não vai ferir, entendeu, o íntegro do seu casamento. Não vai arranhar ele." (Ari, 34 anos).

"Eu posso dizer que hoje eu amo a minha mulher. Então, infidelidade seria se você trocasse aquele relacionamento seu, ali, da, da..... com a pessoa que você ama por uma outra. Colocar assim uma outra no meio de vocês, no caso, uma amante, né. Aí, no caso, é infidelidade, no meu modo de ver. Não tô falando que é isso. No meu modo de ver é isso, porque nos meus relacionamentos extraconjugais nunca passam, nunca vão pra uma segunda vez." (André, 28 anos).

A fidelidade está remetida aos sentimentos de amor, respeito, consideração, companheirismo e outros vínculos e sentimentos próprios da relação conjugal, que são exclusivos da relação com a esposa. O sexo é o único interesse válido nas relações extraconjugais, o que não "fere" os sentimentos em relação à esposa e não interfere na relação familiar, porque esta também tem um peso importante na vida desses homens.

A traição também é (re)significada de uma forma interessante, aparecendo como algo útil ao casamento. As relações extraconjugais servem para revalorizar o casamento, principalmente quando ele cai em uma rotina. No limite, ajudam a mantê-lo. Esta é uma (re)significação evidente da traição como algo positivo para o relacionamento conjugal.

"Eu tive, tanto no primeiro como no segundo, eu tive mulheres, alguns casos à parte, mas eram casos, né? É bom... às vezes isso segura um casamento, às vezes ajuda você a manter um casamento. Quando o casamento começa a cair numa rotina, numa monotonia muito grande na relação, muitas vezes você sair e poder fazer uma aventura extraconjugal ajuda, ajuda você ver o que você tem dentro de casa e o que você não precisa procurar na rua." (Ari, 34 anos).

Essa (re)significação pode ser entendida como um estímulo à relação extraconjugal, já que há intenção de valorizar o casamento. Nesse tipo de raciocínio, parece ficar mais fácil introduzir o uso do preservativo, porque ele permite que as relações sexuais fora não abalem o mundo de dentro. Isto contribui para a manutenção das próprias relações extraconjugais inclusive. Não se está sugerindo uma "cumplicidade" em relação à traição masculina, mas não se pode simplesmente refutá-la, pois é necessário resgatar e entender que o homem também tem suas representações e atitudes construídas e determinadas a partir das relações de gênero.

A sexualidade, cuja construção e vivência é um dos definidores das representações sobre masculinidade na sociedade brasileira, apareceu clara e rapidamente como elemento importante na vida dos interlocutores entrevistados, no casamento e também para além dele. O sexo é tão importante para o homem, que a rotina conjugal, capaz de influenciar o desejo feminino, segundo eles, não interfere em seu desejo. A mulher tende a desejar e ter menos relações sexuais, enquanto o homem continua com o mesmo desejo, independentemente de tempo, idade e rotina. O sexo é tão vital para o homem que sua falta é capaz de modificar o humor e levar ao estresse ou ainda fazer com que o homem "saia para a rua nervoso".

"(...) é tanto tempo que nós temos juntos, muita gente diz que... vai baixando a produção..... (...) Mas não sei, pra mim era uma coisa normal, pra mim... tem vez que todo dia eu quero..... (rindo) mas aí também não é todo dia que eu consigo,...e... pra mim o normal seria assim, mas...." (Luís, 28 anos).

A função do sexo muitas vezes é satisfazer a "necessidade" do homem, tornando-o fundamental no dia-a-dia conjugal, inclusive porque, não "tendo" sexo em casa, é possível que o homem vá procurá-lo na rua.

Mesmo dentro do casamento, o sexo deve ser prazeroso, permitir variações e não ter limitações. Não há restrições quanto ao sexo em casa. Ele não é disciplinado e, nesse sentido, não se opõe ao sexo praticado na rua. Vê-se, nessas representações, uma valorização interessante do sexo em casa, praticado com a esposa.

"Beijos, abraços, os carinhos, as penetrações. Porque eu sou um homem que, é o seguinte, eu não sou só daquele que fica no papai e mamãe. Eu acho que tem que rolar tudo. Porque se é marido e mulher, não tem que um ter nojo do outro. Se um é fiel [Este interlocutor mantinha relações extraconjugais, portanto esta fidelidade não significa exclusividade de parceria] ao outro, aquele mundo que se vive realmente é um mundo liberado, então não tem que haver isso: 'ali não pode, aqui não pode. Tem que ser aqui, tem que ser ali.' Eu acho que se o amor é firme, o sexo é firme, tem que ser liberado mesmo. Eu gosto, gosto, gosto eu gosto de fazer e eu faço bem gostoso. Tem que rolar tudo." (Alberto, 42 anos).

Para esses interlocutores, a vivência da sexualidade está remetida a uma forma de construir o masculino, que caracteriza o homem como um ser sexual por necessidade, que precisa estar satisfeito e que também está em busca constante de satisfação, tanto em casa, quanto na rua. Mas para além dessa função, a sexualidade é vivenciada de outra maneira, como resultado de uma "nova" combinação entre essa forma "tradicional" de entender o masculino (insaciável, sexualmente incontrolável) e alguns sentimentos e valores que estão "tradicionalmente" no domínio do feminino.

O homem valoriza o amor enquanto elemento importante na relação sexual dentro do casamento. O sexo deve estar conjugado com o amor para ser "perfeito". Portanto, esta é uma diferença importante entre o sexo no casamento e aquele que se tem na rua, e o prazer é tido como importante para o casal, a partir do amor e do carinho existentes na relação.

"É bom demais (o sexo). Pra mim, seria uma coisa importante, que quando as pessoa se amam, que quando os dois se amam, existe muita parte boa. E quando os dois não se amam, nada dá certo." (José, 46 anos).

O entendimento da sexualidade na vida conjugal vai além da obrigatoriedade imposta pela condição de estar casado e da "necessidade" masculina de sexo e também da satisfação propiciada pelo orgasmo. Há, na verdade, uma valorização do sexo no casamento, entendido como um complemento essencial da relação conjugal, revelando um novo entendimento de prazer.

No geral, a construção da sexualidade masculina na vida conjugal é um combinado de elementos que "naturalizam" o sexo como necessidade incontestável, ao mesmo tempo que o concebem como fundamental na relação, como prazer, liberdade, complemento e elo em relação à mulher. Assim, o sexo de "dentro" valoriza a relação conjugal, ultrapassa a dimensão da "obrigação" e vincula-se ao prazer.

Percepção de risco e uso da camisinha

Na fala dos interlocutores, a Aids aparece fortemente associada ao sofrimento, à dor, à morte e ainda está bastante associada à imagem de degeneração. Eles acreditam que as pessoas acometidas pela doença "definham" até a morte. Essa imagem foi, de certa forma, correspondente à realidade da epidemia, além de ter sido bastante explorada pela mídia. Com o avanço em relação ao tratamento terapêutico e clínico da Aids, a imagem do portador doente e fraco foi sendo substituída pela imagem do portador saudável. Entretanto, no grupo estudado, verificou-se que a imagem degenerativa da doença prevalece.

A Aids é um perigo, especialmente porque ela é oculta e incurável, dificulta uma seleção de parceiros por não produzir um signo corpóreo. Esses homens percebem a Aids como uma doença "macabra", que leva as pessoas à morte, mesmo "escondida".

Mesmo perigosa, a Aids não é percebida como algo que está próximo dos interlocutores. As relações sexuais "de dentro", mantidas com as esposas, não são perigosas, embora, se comparados os homens às mulheres casadas do mesmo bairro,12 eles demonstrem ter uma percepção mais clara do risco pessoal para a infecção pelo HIV na situação conjugal. Mesmo entre aqueles que relatam não ter relações fora do casamento, identifica-se a possibilidade de virem a se infectar por meio de uma relação sexual extraconjugal dele ou da esposa. Isto é visto como uma possibilidade remota, ou como foi dito: "fora dos planos".

O perigo real é identificado fora do casamento, nas relações extraconjugais. Os interlocutores colocam claramente que as doenças sexualmente transmissíveis são consideradas uma das causas da fidelidade (ou da não-traição), idéia bastante útil à prevenção, mesmo que a doença potencial tenha uma função repressora em relação ao comportamento.

"Do jeito que tão as coisas por aí, com problema de doença, é melhor não (ter relações extraconjugais)... você nunca vai estar sabendo com quem você realmente sai. Pode sair com uma pessoa que seja superlimpo, que seja super-sadia, mas você não sabe o que ela fez ontem, ou de manhã se sai com ela à noite. É perigoso, né?" (Ari, 34 anos).

Ao identificar o perigo da Aids na rua, foram encontrados dois conteúdos importantes nas representações. Um deles associa a doença ao castigo que, em uma perspectiva mais individual, coloca a Aids (como também outras doenças sexualmente transmissíveis) com a função de deter comportamentos excessivos, inclusive o sexo fora do casamento.

"Se você procurar... (acaba pegando alguma doença). Se você ficar em casa quieto com sua família, nada disso lhe acontece. Mas se você quer dar uma de mulherengo, então você... um dia a casa cai." (José, 46 anos).

No mesmo sentido da culpa, os homens entendem que a Aids serve também como punição para a sociedade e seu estado atual de calamidade. O reforço maior para esse tipo de raciocínio está no destaque dado à incurabilidade da doença, apesar da "inteligência dos cientistas".

O outro conteúdo, importante para os objetivos do presente trabalho, revela que os homens casados consideram obrigatório o uso de preservativos nas relações extraconjugais, exatamente porque a evidência do perigo está fora de casa e não pode ser transferida para dentro.

"Sem camisinha não tem como, não tem como. Nunca fiz sexo sem camisinha, assim, depois que eu casei, nunca fiz sexo sem camisinha com outra pessoa, não. De forma alguma." (André, 28 anos).

A Aids vista pela ótica da transmissão sexual esteve muito mais presente no discurso dos interlocutores, mas foram encontrados também relatos que apontam e discorrem sobre as outras vias e para uma certa desconfiança em relação às próprias vias de transmissão conhecidas e informadas.

O conhecimento sobre a Aids apareceu quando falam dos modos de transmissão, dos sintomas, do tratamento e da prevenção. Parece que é importante para os homens mostrarem conhecimento, e isto parece representar uma forma de proteção promovida pela mídia, fonte importante de informações e construção desse conhecimento sobre a Aids.

A prevenção à Aids teve destaque nas entrevistas, tema que surgiu espontaneamente e atrelado à própria representação da Aids. As falas pareciam pretender estabelecer e "ditar" algumas "regras" de prevenção: usar camisinha, "conhecer" a pessoa com quem sai, "dar valor a si mesmo e à companheira" e, quando "sair com outras", preocupar-se com a esposa, protegendo-a com o uso da camisinha.

Muitos interlocutores assumem que estão "informando ou aconselhando" as pessoas por meio da própria entrevista (como se ela fosse um canal de comunicação), quando ressaltam que, para evitar a Aids, é preciso "usar camisinha", não compartilhar seringas e agulhas, "conhecer a parceira sexual", "não beijar e não fazer sexo oral em profissionais do sexo", avaliar bem os locais que se freqüenta (dentista e manicure, por exemplo). Estas são as "dicas" mais importantes, mas, entre todas, a que se destaca é aquela que aconselha ou coloca como obrigatório o uso de camisinhas nas relações extraconjugais.

No caso desse grupo de dez homens entrevistados, cinco mantêm relações extraconjugais, um interlocutor tinha relações fora do casamento no passado e diz ter parado por conta do medo de doenças sexualmente transmissíveis, um tem relacionamentos com outras mulheres, mas sem relações sexuais, três disseram não ter relações extraconjugais, sendo que um deles julga que esse tipo de relação é "normal", e outro admite a possibilidade de vir a ter.

O sexo fora do casamento é algo importante para ser considerado quanto à prevenção à Aids e a outras doenças sexualmente transmissíveis. Já a relação conjugal não é tida como perigosa por ser a relação sexual lícita, que está sob a "proteção" da casa, sobre a qual o homem acredita ter controle e poder.

A ênfase no uso do preservativo nas relações extraconjugais é tão grande que também aparece na fala daqueles interlocutores que dizem não ter sexo com outra parceira além da esposa. Aqueles que colocam a possibilidade de acontecer uma relação fora pontuam claramente que usarão o preservativo.

Mesmo os interlocutores que se sentem protegidos do perigo da Aids por não terem relações sexuais "fora" colocam elementos em seus relatos que são próprios de uma cultura que valoriza o sexo como um item de necessidade básica na vida do homem. Eles afirmam estar protegidos por não terem necessidade de "procurar fora", resguardados pelo casamento, concebendo a relação conjugal como exclusividade de parceria. Apesar dessas afirmações, o sexo como necessidade é um elemento que torna o sexo "fora" uma possibilidade bastante presente.

Quando o foco das representações se desloca para outras vias de transmissão do vírus, fica bastante evidente que o conteúdo delas "reproduz" as informações que eles obtêm pela mídia (televisão, principalmente), com especial ênfase ao "uso de drogas" (termo utilizado no lugar de "compartilhar seringas) e com poucas informações equivocadas (no caso, que doar sangue pode transmitir o vírus).

A Aids é entendida como um problema de todas as pessoas, demonstrando que, para esse grupo, as representações sobre os conhecidos "grupos de risco" já foram (re)elaboradas. Adolescentes e usuários de drogas são os dois segmentos que receberam destaque, não como "grupo de risco", mas como promotores de "comportamento de risco".

No geral, eles enfatizaram que todas as pessoas estão sujeitas ao risco de "pegar" Aids nos dias atuais. Entretanto, alguns interlocutores condicionaram o risco a atitudes que foram consideradas erradas. Todos estão em risco porque qualquer um pode "fazer alguma coisa errada" e "qualquer pessoa pode fazer parte do grupo de risco", associando o risco ao comportamento individual.

O uso da camisinha é recomendado nas relações sexuais com pessoas "desconhecidas". Isto aponta para a existência de um pensamento meio "mágico", que entende o evento "conhecer a pessoa" como um método de prevenção, mesmo que eles tenham a clareza de que a Aids não traz nenhuma "marca" que possa identificar as portadoras do vírus.

No casamento, o uso da camisinha está vinculado à contracepção, apesar de não ser o método preferido. Vê-se que mesmo a adoção do preservativo masculino (no momento da pesquisa o preservativo feminino era pouco conhecido, pouco acessível) para evitar a gravidez está vinculada à impossibilidade de utilizar outro método (geralmente a preferência é pela pílula anticoncepcional) ou como um método secundário, ou seja, no intervalo de utilização estipulado pelo médico ou na troca da marca da pílula.

Quando o grupo foi questionado sobre a possibilidade de introduzir a camisinha na relação conjugal, muitas respostas já exploradas em outros trabalhos apareceram.1,9,10 Por exemplo, quando o casal já utiliza algum método contraceptivo, a proposta de adotar a camisinha poderia sugerir uma "traição", gerar desconfiança e "estranhamento". Em alguns casos, a proposição é incompatível com a confiança depositada na esposa, que permite que o sexo seja "tranqüilo e perfeito". A introdução da camisinha poderia até abalar essa convicção.

A avaliação desses interlocutores quanto ao uso da camisinha aponta depoimentos favoráveis que não descrevem nenhuma mudança em relação ao sexo provocada pelo uso de preservativo. Outros depoimentos, ao contrário, colocam o incômodo de ter de "parar", "quebrar o clima", para colocar a camisinha, como muito ruim, ou também relatam que ela aperta ou até mesmo que a parceira não gosta.

O mais importante a ressaltar, no que diz respeito ao uso da camisinha, é que na situação conjugal ela é reforçada como elemento estranho inclusive para contracepção até porque geralmente não é escolhida e nem indicada pelos médicos para essa finalidade.

COMENTÁRIOS FINAIS

Nas representações dos homens estudados, há conteúdos que demonstram a manutenção de estruturas tradicionais das relações de gênero entre homens e mulheres.

Apesar disso, também foram encontrados conteúdos que demonstraram (re)elaborações específicas nas representações acerca da fidelidade, quando relacionada à questão da Aids, que indicam um potencial de mudança. Essas (re)elaborações são importantes por resultarem na clareza que esses homens têm da necessidade de proteção para o sexo feito "fora" da relação conjugal. Esta pode ser uma estratégia importante de redução de riscos para Aids.

É necessário entender e assumir que certos comportamentos, como a manutenção de relações extraconjugais, são fortemente determinados pela cultura, mas são tão dinâmicos quanto as representações que os regem. Acredita-se ser possível estimular mudanças e transformações, mesmo que a desigualdade nas relações entre homens e mulheres continue existindo. Precisa-se ser flexível para perceber que uma mudança estrutural só poderá ser feita em longo prazo, e que isto é incompatível com a necessidade urgente de reduzir a transmissão do HIV.

A associação da camisinha às relações extraconjugais é uma dessas (re)elaborações que desvendam uma "nova" definição de fidelidade. Apesar de ser uma manipulação que continua garantindo a livre atuação do homem nos dois mundos, o "de dentro" e o "de fora", ela é, com certeza, uma mudança positiva, em termos de comportamento para prevenção.

Na relação conjugal, já há a valorização do sexo "de dentro" como algo bom e satisfatório, podendo até evitar relações fora do casamento, uma (re)elaboração positiva, já que potencialmente pode "evitar" que os homens tenham relações com outras parceiras. Enfatizar que o sexo prazeroso e erótico pode ser encontrado dentro da relação conjugal, aliado à vantagem de que pode ser mais seguro, parece um outro caminho a seguir.

Parece que é muito mais efetivo valorizar e enfatizar o uso do preservativo nas relações sexuais fora do casamento do que impor dúvidas em relação à confiança na esposa enquanto o uso da camisinha estiver tão fortemente associado à prevenção de doenças e às relações de "fora", geralmente limitadas ao sexo.

Obviamente que não se pode abandonar o estímulo do uso da camisinha também nas relações conjugais, porque o casamento não constitui um fator de proteção para homens e mulheres. Nessas condições, sugere-se que a introdução do uso da camisinha no casamento seja feita primeiro pelo caminho da contracepção. Enfocar a contracepção é estrategicamente melhor, porque esta é cotidiana e entendida como uma necessidade concreta na vida das pessoas, como também evidenciado em estudo feito com mulheres.12 Para valorizar o preservativo como contraceptivo, é absolutamente necessário que se enfatize essa função nos diversos meios disponíveis na sociedade brasileira, como os serviços de saúde, a televisão e as revistas. Indiretamente, a prevenção à Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis seria contemplada sem ser destacada, evitando, portanto, todos os estranhamentos e desconfianças implicados na introdução do uso do preservativo nas relações conjugais.

Ficou evidente que a mídia tem um papel importante na formação do conhecimento sobre Aids na população estudada. Deve, portanto, ser mais adequadamente aproveitada como veículo de prevenção, abordando as especificidades masculinas dos valores e das crenças, procurando estimular uma redução aceitável dos riscos, o que pode ser um caminho mais efetivo do que aquele oriundo de um discurso de normas gerais, como: "use camisinha sempre".

A valorização das representações dos homens casados, lembrando de que elas são produzidas socialmente e responsáveis pela manutenção da própria sociedade, parece indicar caminhos de mudança mais aceitáveis: elas também são dinâmicas e devem ser aproveitadas em suas constantes (re)elaborações para dar conta dos desafios impostos, como é o caso da epidemia de Aids.

AGRADECIMENTOS

À Dra. Wilza Villela do Instituto de Saúde da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e à Profa. Dra. Vera Paiva do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo pela orientação dada ao estudo.

Correspondência para/Correspondence to:

Cristiane Gonçalves Meireles da Silva

Rua Afonso Celso, 83, apto. 31

04119-000 São Paulo, SP, Brasil

E-mail: crica@usp.br

Pesquisa realizada com apoio financeiro da World Aids Foundation, EUA (WAF 118/96-032 e 168/98-026).

Edição subvencionada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp ¾ Processo nº 00/07406-2).

Recebido em 22/1/2001. Reformulado em 20/8/2001. Aprovado em 1/7/2002.

  • 1. Barbosa R, Villela W. A trajetória feminina da Aids. In: Parker R, Galvão J, organizadores. Quebrando o silêncio: mulheres e Aids no Brasil Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1996 (História Social da Aids, 7).
  • 2. Boletim Epidemiológico Aids. Ministério da Saúde. Brasília (DF) 1998;11(4):26.
  • 3. Boletim Epidemiológico Aids. Secretaria de Saúde. São Paulo (SP) 1998;16(3):26.
  • 4. Bourdieu P. Conferência do Prêmio Goffman: a dominação masculina revisitada. In: Lins D, organizador. A dominação masculina revisitada São Paulo: Papirus; 1998.
  • 5. Bourdieu P. O poder simbólico. (Memória e sociedade). Lisboa: Difel; 1989.
  • 6. Da Matta R. A casa e a rua Rio de Janeiro: Guanabara; 1987.
  • 7. Giffin K. Homens, heterossexualidades e reprodução no Brasil Rio de Janeiro: ENSP; 1997.
  • 8. Gogna M. Contribuições para repensar a prevenção das DST. In: 2o Seminário, Saúde Reprodutiva em Tempos de Aids; 1997 mar 13-15;. Rio de Janeiro, (BR). Rio de Janeiro: ABIA/IMS/UERJ; 1997. p. 55-60.
  • 9. Guimarães CD. Mas eu conheço ele! Um método de prevenção do HIV/AIDS. In: Parker R, Galvão J, organizadores. Quebrando o silêncio: mulheres e Aids no Brasil Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1996. (História Social da Aids, 7).
  • 10. Guimarães CD. Mulheres, homens e Aids: o visível e o invisível. In: Parker et al, organizadores. Aids no Brasil (1982-1992) Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1994. (História Social da Aids, 2).
  • 11. Ortiz R. Discursos masculinos: a auto-opressão do homem e a prevenção da transmissão do HIV/AIDS. In: Nolasco S, organizador. A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco; 1995.
  • 12. Silva CGM. Mulheres: casamento, Aids e doenças sexualmente transmissíveis [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica; 1989.
  • 13. Villela W. Homem que é homem também pega Aids? In: Arilha M, Ridenti SGU, Medrado B, organizadores. Homens e masculinidades: outras palavras São Paulo: Ecos/ Editora 34; 1998.
  • 14. Villela W. Práticas de saúde, gênero e prevenção do HIV/Aids. In: 2o Seminário, Saúde Reprodutiva em Tempos de Aids; 1997 mar 13-15. Rio de Janeiro: ABIA/IMS/UERJ; 1997. p. 66-72.
  • *
    O grupo estudado foi constituído de dez homens moradores no bairro citado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2002
    • Data do Fascículo
      Ago 2002

    Histórico

    • Aceito
      01 Jul 2002
    • Revisado
      20 Ago 2001
    • Recebido
      22 Jan 2001
    Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revsp@usp.br