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Vulnerabilidade ao HIV: turismo e uso de álcool e outras drogas

Resumos

OBJETIVO: Descrever situações de uso de álcool e outras drogas envolvendo turistas, e suas implicações para a vulnerabilidade ao HIV. MÉTODOS: Estudo exploratório e qualitativo conduzido em comunidades anfitriãs do turismo do Vale do Ribeira, em São Paulo, no período de outubro de 2002 a fevereiro de 2003. A primeira etapa do estudo entrevistou 29 monitores de quatro comunidades anfitriãs para levantar cenas de uso drogas envolvendo turistas. A segunda etapa consistiu de duas oficinas de trabalho, reunindo 77 entrevistados e profissionais de saúde e educação de dez comunidades para dramatizar as cenas levantadas nas entrevistas, compartilhar repertórios para lidar com essas situações e conhecer as formas de prevenção do HIV. RESULTADOS: As cenas evidenciaram que o uso de álcool e outras drogas pelos turistas ampliam a vulnerabilidade à transmissão do HIV ao favorecer as relações sexuais ocasionais sem preservativo e o assédio e abuso sexual. O trabalho de prevenção ao HIV nas comunidades anfitriãs do turismo precisa levar em conta o consumo dessas substâncias, que dificulta a prática do sexo seguro e, no caso do uso de drogas injetáveis de forma compartilhada, constitui fator de risco para a transmissão do vírus. CONCLUSÕES: O estudo forneceu elementos para ajudar a compreender como situações de uso de álcool e outras drogas inserem-se no cotidiano das comunidades anfitriãs ampliando a vulnerabilidade ao HIV. O estudo produziu análise do contexto social de transmissão do vírus, que pode subsidiar a elaboração de programas de prevenção mais adequados a essas comunidades.

Síndrome de imunodeficiência adquirida; Consumo de bebidas alcoólicas; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Vulnerabilidade em saúde; Promoção da saúde; Educação em saúde


OBJECTIVE: To describe situations of alcohol and other drug use involving tourists, and their implications regarding vulnerability to HIV. METHODS: This was an exploratory qualitative study conducted in communities that host tourism in the Vale do Ribeira, State of São Paulo, from October 2002 to February 2003. In the first stage of the study, 29 monitors in four host communities were interviewed to gather scenarios of drug use involving tourists. In the second stage, two workshops were held, bringing together 77 interviewees and health and education professionals from ten communities, in order to dramatize the scenarios gathered in the interviews and share repertoires for dealing with these situations and finding ways for preventing HIV. RESULTS: The scenarios showed that alcohol and other drug use by tourists increases their vulnerability to HIV transmission through favoring casual sexual intercourse without condoms and sexual harassment and abuse. HIV prevention work in these communities that host tourism needs to take into account the consumption of these substances which use creates difficulties regarding safe sex practices and, in the case of injecting drugs that are shared, constitutes a risk factor for HIV transmission. CONCLUSIONS: This study provided data to help in understanding how situations of alcohol and other drug use fit within daily life in these host communities, thereby extending the vulnerability to HIV. The study produced analysis of the social context of HIV transmission that may provide backing for drawing up prevention programs that are better adapted to these communities.

Acquired immunodeficiency syndrome; Tourism; Alcohol drinking; Substance-related disorders; Health vulnerability; Health promotion; Health education


ARTIGOS ORIGINAIS

Vulnerabilidade ao HIV: turismo e uso de álcool e outras drogas

Alessandro de Oliveira SantosI; Vera PaivaII

IInstituto Ing_Ong de Planejamento Socioambiental. São Paulo, SP, Brasil

IIDepartamento de Psicologia Social e do Trabalho. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Alessandro de Oliveira Santos R. Turiassú, 362, apto 51 5005-000 São Paulo, SP, Brasil E-mail: alos@usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Descrever situações de uso de álcool e outras drogas envolvendo turistas, e suas implicações para a vulnerabilidade ao HIV.

MÉTODOS: Estudo exploratório e qualitativo conduzido em comunidades anfitriãs do turismo do Vale do Ribeira, em São Paulo, no período de outubro de 2002 a fevereiro de 2003. A primeira etapa do estudo entrevistou 29 monitores de quatro comunidades anfitriãs para levantar cenas de uso drogas envolvendo turistas. A segunda etapa consistiu de duas oficinas de trabalho, reunindo 77 entrevistados e profissionais de saúde e educação de dez comunidades para dramatizar as cenas levantadas nas entrevistas, compartilhar repertórios para lidar com essas situações e conhecer as formas de prevenção do HIV.

RESULTADOS: As cenas evidenciaram que o uso de álcool e outras drogas pelos turistas ampliam a vulnerabilidade à transmissão do HIV ao favorecer as relações sexuais ocasionais sem preservativo e o assédio e abuso sexual. O trabalho de prevenção ao HIV nas comunidades anfitriãs do turismo precisa levar em conta o consumo dessas substâncias, que dificulta a prática do sexo seguro e, no caso do uso de drogas injetáveis de forma compartilhada, constitui fator de risco para a transmissão do vírus.

CONCLUSÕES: O estudo forneceu elementos para ajudar a compreender como situações de uso de álcool e outras drogas inserem-se no cotidiano das comunidades anfitriãs ampliando a vulnerabilidade ao HIV. O estudo produziu análise do contexto social de transmissão do vírus, que pode subsidiar a elaboração de programas de prevenção mais adequados a essas comunidades.

Descritores: Síndrome de imunodeficiência adquirida, prevenção e controle. Consumo de bebidas alcoólicas, prevenção e controle. Transtornos relacionados ao uso de substâncias, prevenção e controle. Turismo. Vulnerabilidade em saúde. Promoção da saúde. Educação em saúde.

INTRODUÇÃO

O conceito de comunidade anfitriã tem sido utilizado na literatura para designar locais do interior ou litoral de um país cuja organização socioeconômica está voltada para o turismo.8 As doenças infecciosas que os turistas podem contrair durante a visita a essas comunidades, bem como a análise de estratégias de prevenção e controle, têm sido foco recente de colaboração entre a Organização Mundial de Turismo, a Associação Italiana de Medicina do Turismo e a Organização Mundial da Saúde. A Organização Pan-Americana de Saúde também tem organizado reuniões sobre o tema e realiza, desde 1990, o Congresso Nacional de Turismo e Saúde, em parceria com as secretarias estaduais e municipais de saúde e de turismo do México.1

Os estudos sobre os problemas de saúde pública que ocorrem nas comunidades anfitriãs descrevem: a proliferação de doenças de veiculação hídrica decorrentes das condições de saneamento ambiental2,1 1 Giatti LL. Ecoturismo e impactos ambientais na região de Iporanga – Vale do Ribeira – São Paulo [tese de doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 2004 a transmissão do HIV e outras DST entre turistas, turistas e nativos, e turistas e profissionais do sexo decorrente de relações sexuais ocasionais desprotegidas;7,14,16 emergências médicas que acometem os turistas devido ao abuso de álcool e drogas (acidentes de trânsito, afogamentos, overdose);17 e o aumento do uso dessas substâncias entre os jovens nativos.2 2 Santos AO. Turismo e saúde comunitária: intervenção e pesquisa no Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil [tese de doutorado]. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP; 2004

Os turistas costumam comportar-se de forma diferente da habitual quando estão viajando, longe das restrições e afazeres do cotidiano. Alguns pesquisadores chamam de "inversão comportamental"5,15 esse fenômeno que contribui para a inibição de limites e cuidados próprios e favorece o uso abusivo de álcool e drogas e as relações sexuais ocasionais desprotegidas.4,9

A região do Vale do Ribeira passou a atrair turistas paulistas e de outros países a partir da década de 1980, por apresentar atrativos naturais (cachoeiras, praias, trilhas, cavernas, abismos, fauna e flora) e culturais (centros históricos, sítios arqueológicos, festas típicas). Há cerca de 500 monitores de turismo ambiental na região, dos quais 60% têm nessa atividade sua principal ocupação.3 3 Instituto Ing_Ong de Planejamento Socioambiental. Apoio ao turismo de base comunitária no Vale do Ribeira. São Paulo; 2003. 25p. Em geral, eles pertencem às populações tradicionais de caiçaras (nativos do litoral), ribeirinhos (que vivem na margem dos rios) e quilombolas (descendentes de escravos que fundaram comunidades isoladas conhecidas como quilombos). A maioria é do sexo masculino, adolescentes ou jovens, e com segundo grau incompleto.

O objetivo do presente artigo foi descrever, com base no relato dos monitores ambientais, situações de uso de álcool e drogas envolvendo turistas e suas implicações para a vulnerabilidade ao HIV dos moradores das comunidades anfitriãs.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de estudo qualitativo envolvendo monitores, moradores e profissionais de saúde e educação da região, convidados a participar do estudo. Os agentes locais foram recrutados entre os monitores das comunidades estudadas, ficando responsáveis pela organização das entrevistas e oficinas.

A primeira etapa do estudo, realizado em outubro e novembro de 2002, baseou-se em entrevistas com 29 monitores ambientais de quatro comunidades anfitriãs. Os sujeitos foram selecionados intencionalmente13 de modo a compor grupo que expressasse a diversidade do perfil dos monitores ambientais da região, ou seja, homens e mulheres com idade entre 16 e 32 anos, solteiros ou em relacionamento estável, residindo nas cidades ou bairros rurais e com experiência de pelo menos um ano em atividades de ecoturismo. Esta etapa do estudo teve como objetivo compreender a interação entre turistas e monitores e levantar cenas de interação sexual (tema de outro artigo) e sobre uso de álcool e outras drogas envolvendo turistas. Nas entrevistas solicitava-se depoimentos sobre cenas que tinha sido observadas ou vivenciadas pelos monitores: "me conta uma cena de uso de drogas envolvendo turistas, que você tenha vivenciado, ou observado ou ouvido falar".

A segunda etapa do estudo, em janeiro e fevereiro de 2003, consistiu de duas oficinas visando: (a) dramatizar as cenas levantadas nas entrevistas; (b) esclarecer dúvidas em relação às drogas e DST/Aids; (c) treinar os participantes em tecnologias reconhecidas de prevenção, estimulando a realização de programas locais. Monitores, moradores e profissionais de saúde e educação da região foram convidados a participar por meio de convite entregue pelos agentes locais do estudo, nas associações de monitores e nos serviços públicos de saúde e escolas. Os agentes locais foram responsáveis pela organização das oficinas (divulgação do estudo, seleção dos entrevistados, transporte e alimentação dos participantes das oficinas). As oficinas tiveram em média oito horas de duração e reuniram 77 pessoas de dez comunidades anfitriãs. Entre os participantes estiveram presentes alguns dos entrevistados, monitores, além de funcionários dos parques ecológicos, professores e profissionais de saúde das regiões estudadas (médicos, enfermeiros e agentes comunitários).

Os participantes foram divididos em quatro grupos: dois grupos de dramatização ("dramatizem essa cena de uso de drogas envolvendo turistas mostrando o que vocês acham que aconteceria") e dois grupos de observação (responsáveis pela formulação e apresentação de soluções em plenária).

Para montar cada cena, os procedimentos incluíram: aquecimento corporal; leitura das cenas retiradas das entrevistas; discussão em grupo; seleção de personagens e aquecimento específico para dramatização; ensaio; apresentação das cenas; análise; apresentação de possíveis soluções.

A descrição densa de uma cena singular, vivenciada por uma ou mais pessoas, pode ser coletada por meio de uma entrevista individual ou em grupo. Também pode ser encenada e assim dramaticamente compartilhada e analisada em todas as suas dimensões, individuais e coletivas, pelo grupo que participa de um programa ou de uma oficina de prevenção. A definição de cena utilizada por Paiva11 (quadro conceitual e método) para investigar a sexualidade e operacionalizar programas de promoção de sexo seguro foi adaptada para investigar situações de uso de álcool e drogas. No estudo as consigna para a descrição das cenas se traduziram nas instruções: "me conta uma cena de uso de drogas envolvendo turistas, que você tenha vivenciado, ou observado ou ouvido falar" (entrevista) e "dramatizem essa cena de uso de drogas envolvendo turistas mostrando o que vocês acham que aconteceria" (oficina).

A análise dos dados provenientes das entrevistas, gravadas em áudio, e oficinas incluiu a identificação de unidades de significado nas falas dos monitores entrevistados10 e a análise de conteúdo das cenas (oficinas), de modo a evidenciar a interação dinâmica das dimensões pessoais, culturais, econômicas e políticas que configuram as situações de uso de drogas nas comunidades.

As cenas levantadas nas entrevistas foram selecionadas para análise com base no seu potencial para fornecer informações sobre a associação entre o uso de álcool e outras drogas e as implicações para a vulnerabilidade ao HIV. As cenas dramatizadas nas oficinas, por sua vez, foram escolhidas pelos próprios participantes das oficinas, evidenciando os temas considerados prioritários para discussão por este segmento.

O protocolo de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP. Os entrevistados ou responsáveis legais (menores de 18 anos) assinaram termo de consentimento livre e esclarecido e foi garantida sua confidencialidade.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

O grupo de entrevistados incluiu número maior de homens, não brancos, católicos, solteiros e residentes nas cidades (Tabela).

Segundo os entrevistados, as pessoas (turistas e moradores locais) utilizam álcool e drogas para relaxar, se divertir, quebrar a timidez, se expressar melhor. A "fuga da realidade" e a influência dos amigos também foram apontados como motivos. Os entrevistados contaram que as substâncias mais utilizadas pelos turistas são álcool, maconha, cocaína e drogas sintéticas (LSD e ecstasy). Um entrevistado mencionou ter encontrado algumas vezes seringas no lixo de um local bastante freqüentado pelos turistas, indicando a possível presença de usuários de drogas injetáveis entre os visitantes.

As cenas relatadas pelos entrevistados indicam assédio sexual, relações sexuais desprotegidas e abuso sexual.

"(...) é um monte de rapaziada (...) e aí se envolvem sexualmente com as meninas [nativas] (...) Dependendo do nível de 'viagem' que estão, e se eles não usam camisinha? (...) eles são uma ameaça para essas meninas (...)."

"(...) o turista vem joga um xaveco (...) e aí acaba ficando (...) sobre as doenças, usar camisinha (...) na hora está todo mundo chapado, vai e acaba acontecendo."

"(...) aconteceu num final de ano (...) tomando um pouco mais (...) numa barraca (...) acabou acontecendo de não usar camisinha (...)."

"(...) por ir um público muito grande de usuários de drogas (...) já teve problemas sérios (...) um rapaz que tentou molestar sexualmente um menino da comunidade (...)."

"(...) tinha aquelas meninas que ficava esnobando o cara, aí o cara ficava com raiva, catava, chamava pra tomar uma cervejinha e jogava no copo, a menina dormia, depois o cara aproveitava, no outro dia a menina não lembrava de nada (...)."

Os entrevistados relataram cenas de emergências médicas provocadas pelo uso abusivo de álcool, maconha e cocaína:

"(...) um rapaz [turista] (...) misturou muita bebida com maconha e acabou tendo convulsão, tivemos que trazer ele às pressas pra cidade."

"Turista chapado foi nadar (...) pulou em cima das rochas (...) outro amigo conseguiu ajuda (...) foi tirado em coma alcoólico e começo de hipotermia."

"(...) o cara veio correndo, falando que a moça tinha passado mal (...) providenciaram uma padiola (...) e foram buscar ela (...) falaram que estava saindo pó do nariz dela (...) foi internada (...) passou uns dias no hospital e foi embora."

Um dos monitores contou que em sua comunidade havia sido registrada uma morte de turista por overdose de cocaína. Muitos entrevistados chamaram atenção para a dificuldade de lidar com o uso de álcool e drogas na condução dos grupos de turistas. Existem regras para os passeios e o uso de drogas é uma prática ilegal. Mas, isso não é suficiente para impedir que os turistas utilizem essas substâncias. As cenas relatadas a seguir ilustram as atitudes individuais dos monitores, na ausência de uma orientação coletiva para lidar com essa situação:

"(...) cheguei, aquele fedor de maconha (...) deixei meu pessoal 'Gente, vocês aguardam um pouquinho' (...) aí cheguei e falei 'Quem é o responsável?' (...) 'Pô, justo aqui você fica usando maconha (...) você tá atrapalhando o turismo aqui' (...) Eu fiz um boletim de ocorrência contra ele (...)."

"Vocês são em quantos que fumam [maconha]? (...) quando quiserem fumar me avisa, (...) a gente pára o grupo, eu começo a bater um papo com o pessoal, mostro um lugarzinho pra vocês."

"(...) enquanto eu estou falando, ele já está usando (...) Então eu prefiro (...) fazer de conta que não estou vendo, porque também não tenho uma orientação para isso."

O uso de álcool e outras drogas pelos turistas e as emergências médicas decorrentes emergiram como preocupação central para os participantes das duas oficinas, mostrando que são temas relevantes para compreender o contexto em que ocorre o contato entre turistas e moradores locais nas comunidades anfitriãs do Vale do Ribeira.

Na primeira oficina a cena dramatizada focalizou a seguinte situação: "o monitor ambiental sai com um grupo de turistas e orienta sobre o comportamento durante o passeio. Porém, os turistas querem fumar maconha. O monitor explica que não pode. O grupo insiste e oferece uma quantidade de maconha para que o monitor libere. Ele diz não. Mas, no final, acaba aceitando e sai distribuindo a droga para a comunidade, virando uma espécie de traficante."

As cenas mostraram ou que o monitor não consegue impedir os turistas de usarem maconha e, em certa medida, acabam por transformá-lo em distribuidor da droga na comunidade. Trata-se de um temor dos participantes que indica a situação de paralisação em que a comunidade se percebe ao refletir sobre a "sedução/tentação" dos monitores para o uso de drogas e o "destino" como traficante. De fato, como muitos turistas utilizam drogas e o poder público local tem uma capacidade reduzida de controlar o tráfico, existe a possibilidade de crescimento dessa atividade nas comunidades. A análise da cena pelos participantes da oficina indicou a necessidade de maior capacitação dos profissionais de turismo, educação e saúde. Também mostrou que o discurso do monitor ambiental precisa enfatizar a importância de se cumprir as regras para o sucesso do passeio, e que todos os monitores devem manter coerentemente o mesmo discurso.

Ampliando o foco da cena para além da situação e lugar em que turista e monitor se encontram, os participantes da oficina sugeriram que as pousadas e agências/operadoras de turismo sejam parceiras dos monitores e que a leis de visitação dos parques ecológicos sejam adotadas por todas as comunidades. Por fim, os participantes concluíram que deveria haver uma mobilização comunitária articulada e conjunta, que incluísse alianças entre órgãos locais, estaduais e federais e do terceiro setor.

Os participantes da segunda oficina escolheram dramatizar e refletir sobre uma cena de uso abusivo de álcool por um turista que se acidenta: "um monitor ambiental acompanha um grupo de turistas e, quando chega próximo à cachoeira, percebe que um deles está alcoolizado e tem uma garrafa de bebida em suas mãos. O monitor pede para que o turista fique sentado no chão, vira-se e orienta os outros turistas para mergulharem no local adequado. Enquanto isso, o turista alcoolizado mergulha de cabeça em uma pedra. O monitor pede socorro pelo rádio e recebe a resposta de que o médico irá chegar em 15 minutos. O grupo segura o turista acidentado, tenta acordá-lo, mas, quando o médico chega, o turista estava morto."

Essa cena, igualmente relatada em entrevista, também foi analisada do ponto de vista da dificuldade que os monitores encontram para estabelecer e colocar em prática regras de visitação nos atrativos turísticos. Os participantes da oficina identificaram a falta de treinamento do monitor sobre o que fazer em casos de emergências médicas e de equipamentos importantes para o trabalho com os turistas como, por exemplo, rádio de comunicação. Além disso, os participantes da oficina refletiram sobre a importância dos monitores construírem argumentos sólidos para impedir o uso de drogas durante os passeios e chamaram atenção para a necessidade de se estabelecer parcerias com setores de saúde, prefeitura e polícia (civil, ambiental e militar) e de aprimorarem a própria formação.

A análise das dramatizações realizada em plenária focalizou as dimensões sociais e programáticas das cenas. A análise da primeira cena conduziu mais fortemente ao envolvimento e à mobilização da sociedade civil. A análise da segunda cena apontou como prioridade o treinamento do monitor ambiental. As análises não incluíram a dimensão pessoal dos "atores", impossibilitando conhecer as possíveis soluções individuais para os problemas encenados.

As oficinas foram avaliadas positivamente pelos participantes, confirmando que o recurso das cenas favorece o aprendizado de repertórios (conteúdos e habilidades) na área de educação em saúde, como mostra o depoimento a seguir:

"Foi muito bom os teatros, deu para aprender muitas coisas que eu não sabia. Acho que esse método pode ser implantado nas escolas públicas, nas associações de bairro."

As cenas dramatizadas são sempre emblemáticas de seu cenário sociocultural e afetivamente mais carregadas para os grupos que as produziram. As cenas dramatizadas pelos participantes das oficinas colocaram os monitores diante de situações vividas, oferecendo uma oportunidade para planejar como agir no futuro. Elas ajudaram a compreender o que facilita ou dificulta as iniciativas individuais e coletivas para lidar com as situações de uso de drogas envolvendo turistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio das entrevistas e dramatizações foi possível levantar descrições de cenas de uso de álcool e drogas envolvendo turistas nas comunidades. O estudo forneceu elementos para melhor compreender de que forma as situações de uso de álcool e outras drogas inserem-se no cotidiano das comunidades anfitriãs ampliando a vulnerabilidade ao HIV.

A dramatização das cenas sensibilizou os monitores ambientais para refletirem a respeito das situações de uso de álcool e outras drogas envolvendo turistas, diminuindo potencialmente a perspectiva de que, seduzidos pelo ganho fácil, eles venham a se transformar em fornecedores de drogas, tendo em vista que é com guias, taxistas, funcionários de hotéis, pousadas, boates e restaurantes que os turistas tentam comprar essas substâncias, sobretudo, quando estão viajando fora do próprio país.4 4 Santos AO. Turismo e saúde comunitária: intervenção e pesquisa no Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil [tese de doutorado]. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP; 2004

A tentação de aproveitar as oportunidades de contato com drogas presentes no cotidiano dos monitores parece relacionar-se com a tensão existente entre o padrão de comportamento vigente entre os turistas e o padrão de comportamento esperado dos monitores ambientais. Apesar de os monitores estarem em situação profissional na qual as regras devem vigir completamente, eles acabam por adotar a perspectiva do turista, identificam-se com a "vida de turista". A identificação é facilitada pela natureza da atividade que os obriga a permanecer muitas horas acompanhando o lazer e o prazer dos turistas.

Os resultados do presente estudo são semelhantes e complementares aos resultados dos estudos realizados por Alleyne,1 Bellis et al4 e Ford & Koetsawang.6

Segundo Alleyne,1 o uso de álcool e outras drogas pelos turistas têm relação direta com os acidentes de trânsito e os casos de afogamento. Em Barbados, o autor constatou que, de todas as pessoas internadas em um hospital público devido a afogamento, 60% eram turistas, sendo que a terça parte destes havia ingerido bebidas alcóolicas. Este autor também observou que o comércio de maconha e cocaína é comum entre turistas e nativos e que existe maior oferta de drogas nos períodos de intenso fluxo turístico. O uso dessas substâncias faz parte do contexto no qual ocorre o contato sexual entre turistas e moradores, difucultando o sexo seguro e favorecendo a transmissão das DST/Aids.

Bellis et al4 descreveram mudanças nos padrões de uso de drogas de jovens ingleses quando visitam Ibiza, na Espanha. Em Ibiza os jovens ingleses usam (consomem) mais bebidas alcoólicas, tabaco e drogas sintéticas (LSD e ecstasy) do que na Inglaterra. O aumento no uso dessas substâncias está associado ao fenômeno da "inversão comportamental" que pode levar um turista a tomar, de uma só vez, a mesma quantidade de drogas que tomaria em uma semana na sua cidade e a fazer sexo com um parceiro eventual sem utilizar preservativo. Aqueles com pouca experiência de uso e combinação de substâncias estão mais expostos ao sexo sem proteção e à overdose do que os habituados a ingerir e combinar tais substâncias. De acordo com os autores, o acesso à informação sobre as características das substâncias e aos preservativos e serviços médicos são fundamentais para proteger a saúde dos turistas.

Ford & Koetsawang6 descreveram como determinados fatores sociais podem formar um contexto favorável à transmissão do HIV em um país. Os autores mostraram que a cultura de consumo do ópio e a exploração sexual dos jovens que saem do interior da Tailândia, em busca de emprego nos centros urbanos e municípios turísticos, resultaram na explosão da epidemia entre mulheres e usuários de drogas injetáveis. Segundo os autores, embora a Aids seja uma epidemia global, sua propagação tem a ver com determinados fatores sociais. Portanto, é fundamental conhecer esses fatores para identificar o contexto social de transmissão do HIV e planejar as estratégias de prevenção e controle.

Como no estudo de Ford & Koetsawang,6 no presente artigo foi feita uma análise do contexto social de transmissão do HIV. Essa análise pode subsidiar a elaboração de programas de educação em saúde mais adequados às comunidades anfitriãs do turismo, estimulando a criação de tecnologias locais de prevenção que respondam aos desafios propostos pelo quadro de vulnerabilidade.3,12 Em consonância com Bellis et al,4 a responsabilidade pela realização de programas desse tipo não cabe apenas ao poder público, mas também às organizações comerciais que operam no mundo do turismo. As agências de turismo, linhas aéreas, hotéis, restaurantes, bares e boates, devem ajudar a proteger a saúde dos turistas e dos moradores locais apoiando iniciativas de educação em saúde nas comunidades anfitriãs, dentre outras ações de responsabilidade social.

AGRADECIMENTOS

À Profa. Lilia Schraiber, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pela contribuição na análise dos dados. Aos empresários Marcelo Soriano e Farooq Khan e aos profissionais de saúde Sueli Simões e Enio Santos Silva, pelo apoio no trabalho de campo. Aos educadores que conduziram as oficinas de trabalho: Julia Meireles Vieira, Marcelo Peixoto, Will Damas, José Pinero, Naíme Silva e Adriana Lima; aos agentes locais das ONG: Instituto Ing_Ong de Planejamento Sociaombiental, Grupo Ecológico Guaraú, BARONG, Centro de Convivência É de Lei: Fabian Theodoro, Felipe Santana, Maria Silvia Muller de Oliveira e, in memoriam, a Nilton Rosa Pinto.

Recebido: 8/8/2006

Revisado: 21/2/2007

Aprovado: 21/7/2007

Os autores são integrantes do Núcleo de Estudos e Prevenção da Aids, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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  • Correspondência | Correspondence:
    Alessandro de Oliveira Santos
    R. Turiassú, 362, apto 51
    5005-000 São Paulo, SP, Brasil
    E-mail:
  • 1
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  • 2
    Santos AO. Turismo e saúde comunitária: intervenção e pesquisa no Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil [tese de doutorado]. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP; 2004
  • 3
    Instituto Ing_Ong de Planejamento Socioambiental. Apoio ao turismo de base comunitária no Vale do Ribeira. São Paulo; 2003. 25p.
  • 4
    Santos AO. Turismo e saúde comunitária: intervenção e pesquisa no Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil [tese de doutorado]. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP; 2004
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      21 Jul 2007
    • Revisado
      21 Fev 2007
    • Recebido
      08 Ago 2006
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