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REMOÇÕES DE FAVELAS NO RIO DE JANEIRO: FORMAS DE GOVERNO, JUSTIFICAÇÕES E TEMPORALIDADES

FAVELA REMOVALS IN RIO DE JANEIRO: FORMS OF GOVERNMENT, JUSTIFICATIONS, AND TEMPORALITIES

Resumo

A produção do deslocamento tem sido um dos mecanismos mais usualmente utilizados para governar o urbano, o que torna imprescindível pensar sobre seus efeitos e consequências na conformação das cidades atualmente. Neste artigo, partiremos de uma intervenção estatal específica para pensar uma modalidade de gestão de populações na cidade do Rio de Janeiro: as remoções de favelas. Nosso objetivo é compreender tais processos a partir da descrição de três planos interconectados de práticas: no primeiro momento, aquele relacionado à produção de uma narrativa justificadora; em seguida, o plano relacionado às estratégias de governo concretamente mobilizadas - nesse caso, apresentaremos diversas cenas etnográficas, a partir das quais serão enumeradas distintas táticas governamentais para a produção do deslocamento forçado. Por fim, buscaremos apresentar as disputas em torno da configuração temporal dos processos de remoção a partir da descrição de algumas experiências de resistência elaboradas por moradores e demais atores sociais envolvidos no enfrentamento às remoções.

Palavras-chave:
Favelas; Remoção; Deslocamento; Governo; Rio de Janeiro

Abstract

The production of displacement has been one of the mechanisms most commonly used to govern the urban sphere, making it essential to think about its effects and consequences in the shaping of cities today. In this study, we will start from a specific state intervention to think about a modality of population management in the municipality of Rio de Janeiro: favela removals. Our goal is to understand such processes by describing three interconnected planes of practices: first, that related to the production of a justifying narrative; then, that related to concretely mobilized government strategies. In this case, we will describe numerous ethnographic scenes from which we will enumerate distinct governmental tactics to produce forced displacement. Finally, we will seek to show the disputes around the temporal configuration of these removal processes based on the description of some resistance experiences developed by residents and other social actors involved in confronting these removals.

Keywords:
Favelas; Removal; Displacement; Governance; Rio de Janeiro

Nos últimos tempos, houve um significativo deslocamento na maneira como os aparatos estatais lidam com diferentes grupos sociais. Tal como ressalta Telles (2010Telles, Vera. (2010). As cidades nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte: Argumentum.), deu-se um alargamento dos mecanismos de controle e administração das populações em detrimento da política e seus protocolos de negociação, discussão e participação. No atual período histórico, marcado pelo o que Zizek (2014Zizek, Slavoj. (2014). Violência. São Paulo: Boitempo .) denomina de pós-política, em que ocorre a gestão do social em detrimento do ato político, a ação governamental se centra na administração especializada e "eficaz" da vida social. Atualmente, as ações levadas a cabo pelos aparatos estatais no governo de certas populações se organizam pelo duplo aspecto de atuar sobre uma população em um meio físico específico e sobre a circulação por entre diferentes escalas espaciais, organizando os fluxos (humanos, mas também de coisas) de acordo com certos efeitos esperados.

Nesta conjuntura, operaria o que Frederic Gros (2009Gros, Frédéric. (2009). Estados de violência: ensaio sobre o fim da guerra. Aparecida: Ideias & Letras.) chama de lógica da intervenção. Marcando uma passagem decisiva entre o “tempo da política” e o da “administração das urgências”, essa lógica implica o fato de que, inversamente ao que ocorreria na política (quando entendida pelos seus protocolos de deliberação e negociação), a intervenção seria conduzida por critérios chamados técnicos de competência daqueles considerados especialistas e “é acionada para restaurar uma ordem ameaçada, restabelecer harmonias rompidas, reparar disfunções, encontrar soluções” (Telles, 2010Telles, Vera. (2010). As cidades nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte: Argumentum.: 157). A intervenção visaria à gestão dos riscos, constituindo-se de maneira pontual, em dada territorialidade, mas sempre de forma deslocante, na medida em que os alvos e os problemas podem ser redefinidos. Como ressalta a autora: “modos de gestão das populações, de seus f luxos e movimentos” ( Telles, 2010Telles, Vera. (2010). As cidades nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte: Argumentum.: 157). Para Telles, o estado de exceção permanente, delineado por Agamben (2007Agamben, Giorgio. (2007). Homo saccer I: o poder soberano e a vida nua (2 ed.). Belo Horizonte: Editora UFMG.), característico da pós-política, combina técnicas de gestão das urgências com formas renovadas de coerção, como será visto por meio da descrição etnográfica. Os parâmetros ideológicos se esvaem, abrindo espaço para a gestão dos territórios, das populações e do tempo, por meio da lógica da intervenção estatal.

Tomando como universo de referência empírica uma experiência de gestão populacional que ganhou corpo nos últimos anos no Rio de Janeiro, as observações acima destacadas dialogam com o que Graham (2016Graham, Stephen. (2016). Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo .) chama de urbanismo militar. Através da mobilização de uma gramática bélica, o espaço urbano é cada vez mais, no mundo inteiro, atravessado pela lógica da racionalidade militar, tal como ressaltam pesquisadores que tomaram o Rio de Janeiro como universo de análise (Farias et al., 2018Farias, Juliana et al. (orgs.) (2018). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula .; Magalhães, 2021Magalhães, Alexandre. (2021). A guerra como modo de governo em favelas do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, XXXVI/106, p. 1-20.; Menezes, 2015Menezes, Palloma. (2015). Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”: uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas. Tese de Doutorado. IESP/Universidade Estadual do Rio de Janeiro.; Müller, 2020Müller, Frank. (2020). Home matters: the material culture of urban security. International Journal of Urban and Regional Research, XLV/6, p. 1-10.). Neste sentido, a guerra, enquanto lógica da gestão urbana, é travada contra aqueles que são definidos como potencial “risco” à ordem urbana (e também aos negócios)1 1 Outro aspecto desse processo global é que, tal como apontado por Brenner (2013), há algum tempo as formas capitalistas de urbanização implicam processos de destruição criativa, remodelando certas áreas para favorecer determinados f luxos de pessoas e capital. Neste sentido, tais ações, que conjugam atores estatais e não estatais, podem ser visualizadas, ao mesmo tempo, como afirma Telles (2015), como dispositivos de expansão das fronteiras urbanas e de mercado ou, como argumenta Paulo Arantes (2014), são modos de construção política de mercados. . A gestão do risco, atribuído à experiência de determinadas populações, é parte da produção contínua da ordem urbana, a qual emerge do contato estabelecido entre os atores e as práticas de governo, de um lado, e os territórios afetados por eles, de outro. Esta configuração se constitui, tal como afirma Telles (2015Telles, Vera. (2015). Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos. Revista de Ciências Sociais (UFC), XLVI/1, p. 15-42.), a partir de certo embaralhamento entre a gestão da ordem e a gestão urbana, que se articula justamente a partir de fundamentos securitários, levando à constituição de espaços governáveis sempre mais militarizados e conduzidos por uma expansiva vigilância policialesca de práticas tratadas como “indesejáveis”.

A construção desses espaços governáveis ou, dito de outro modo, espaços de segurança (Barbosa, 2013Barbosa, Karina Junqueira. (2013). Giorgio Agamben: entre o poder soberano e a biopolítica. Um diálogo crítico com o pensamento de Carl Schmitt e Michel Foucault. Tese de Doutorado. Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.), realiza-se através da produção contínua desses territórios como espaços da desordem, do caos, da precariedade e em relação aos quais o poder estatal teria a obrigatoriedade de intervir para regular e controlar. Com isso, constitui-se, ou pretende-se constituir, um campo de legitimação que ofereça as justificativas e os suportes (políticos, morais, materiais) necessários para a efetivação das práticas de intervenção.

Neste artigo, partiremos de uma intervenção estatal específica para pensar uma modalidade de gestão de populações tendo como universo de referência a cidade do Rio de Janeiro: os processos de remoções de favelas2 2 Destacamos diferentes autores que se debruçaram sobre esse processo a partir de perspectivas diversas: Gutterres (2014), que comparou esse processo no Rio de Janeiro e em Porto Alegre; Fernandes (2013), que o observou a partir das ocupações do Centro; Rolnik (2015), que tratou a questão a partir de sua experiência como Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia; Naback (2015), que enfatiza a dimensão biopolítica desse processo e as possibilidades do “habitar”; Petti (2016), que reflete sobre o papel da casa nessa configuração; Azevedo e Faulhaber (2015), que mapearam os fluxos desses deslocamentos na cidade; Freire e Silva (2016), que enfatizaram as estratégias de mobilização dos moradores contra a remoção; Davies (2017), que analisou as ameaças de remoção no contexto da produção de uma “região olímpica”; no campo do direito, destaco o trabalho organizado por Mendes e Cocco (2016) acerca da atuação do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública; por fim, do ponto de vista do planejamento urbano, destaco Oliveira et al. (2016). . Nosso objetivo é compreender tais processos a partir da descrição de três planos interconectados de práticas: no primeiro momento, aquele relacionado à produção de determinada narrativa justificadora; em seguida, o plano relacionado às estratégias de governo concretamente mobilizadas - nesse caso, partiremos da descrição de breves cenas etnográficas a fim de enumerar uma série de práticas de governo mobilizadas em diferentes territórios que vivenciaram processos de remoção3 3 É importante mencionar o papel assumido pelo uso da violência nesses processos: o de uma dimensão constitutiva do mundo. Na prática de intervenção e gestão sobre a qual nos deteremos, ela assume um papel não apenas de destruição e, no limite, de anulação do Outro, mas também de constituição de novos mundos e sujeitos. A violência atua na produção de novas subjetividades, marcadas por práticas “civilizatórias” que, a um só tempo, buscam tanto subjugar quanto criar sujeitos de um certo tipo. ; por fim, buscaremos debater a configuração temporal4 4 Este artigo se baseia em pesquisas que os autores realizaram entre os anos de 2009 e 2018. No caso de Alexandre, trata-se de pesquisas realizadas tanto no doutorado quanto no pós-doutorado, ocasião em que o autor acompanhou aproximadamente 30 situações de remoção de favelas na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 2009 e 2016. No caso de Daniela, o material se refere a pesquisas realizadas na produção do trabalho de conclusão de curso (TCC) e da dissertação de mestrado entre os anos de 2014 e 2016 sobre os efeitos tanto da remoção quanto da nova vida nos condomínios do Minha Casa, Minha Vida. que se estabelece em um processo de remoção, apresentando formas de resistência à gestão da vida pelo tempo.

Além desta introdução e da conclusão, este artigo se estrutura a partir de três seções: uma sobre a constituição de uma narrativa justificadora para as remoções; outra na qual abordamos diferentes práticas de governo e as violências nelas envolvidas; e a última seção se ocupa de apresentar algumas linhas de resistência possíveis.

A CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA JUSTIFICADORA

Às demolições de construções formais juntou-se o enorme contingente populacional deslocado involuntariamente de suas moradias em favelas da cidade. Seja pela justificativa do “risco”, seja pela “necessidade” das obras preparatórias para os Jogos Olímpicos de 2016, aproximadamente 22 mil famílias foram removidas5 5 Segundo a própria prefeitura do Rio de Janeiro, entre 2009 e o inicio de 2014, 20,3 mil famílias foram removidas. Dessas, 9,3 mil estão em imóveis do Minha Casa, Minha Vida, 5 mil recebem aluguel social e 6 mil foram indenizadas. Cf. Júnia, 2014. . As pessoas foram levadas para conjuntos habitacionais construídos principalmente nos bairros da Zona Oeste da cidade, região que ainda apresenta inúmeros vazios urbanos e de precária infraestrutura, ou simplesmente espalhadas pelo tecido urbano fazendo com que diferentes laços sociais fossem desfeitos e destruídos6 6 Gutterres (2014) chama esse processo de “desabitação”. , tornando a vida na cidade muito mais difícil do que já era.

Consideraremos, nesta seção, o modo como se produziu uma narrativa justificadora para a concretização de processos de remoção no Rio de Janeiro no período entre 2009 e 2016, dinâmicas essas que afetaram decisivamente a cidade. A constituição dessa narrativa justificadora pode ser observada a partir de dois elementos que, articuladamente, favoreceram e autorizaram a intervenção estatal do tipo erradicação: a questão do “risco” e do “interesse público”. Ambos aparecem a partir de um esforço de diferentes atores, notadamente estatais e midiáticos, para criar as condições para que uma ação governamental que tivesse como norte a realocação ganhasse forma.

“Risco” é um termo recorrentemente associado às favelas, apresentando diferentes significados7 7 Sobre a construção e as consequências da justificativa do “risco”, ver Magalhães (2016), Mendes (2016) e Gonçalves (2015). : por um lado, remete à constituição da forma urbana, ou seja, as casas construídas nessas localidades estariam situadas em regiões geomorfologicamente consideradas inadequadas para a ocupação humana; por outro, aquela ligada à presença da criminalidade violenta que se encastelou nesses territórios ao longo das últimas décadas.

Nesta seção, focalizaremos estritamente as situações nas quais o termo “risco” se relaciona à questão geomorfológica e habitacional propriamente dita, o que permitirá perspectivar as linhas de força que nos auxiliarão a compreender a constituição dessa narrativa justificadora para a realização de uma política de remoções no contexto da cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos.

Além do mais, tal elemento será considerado a partir do tratamento que lhe fora atribuído especialmente a partir das chamadas “chuvas de abril de 2010”, evento climático que atuou como catalizador dos processos de retomada da erradicação como forma de intervenção estatal nas favelas (Magalhães, 2019Magalhães, Alexandre. (2019). Remoções de favelas no Rio Janeiro: entre formas de controle e resistências. Curitiba: Appris.). “Risco”, aqui, será considerado a partir da construção de uma narrativa oficial de “recuperação” do poder de atuação dos aparatos estatais nesses territórios, bem como da possibilidade do uso da força para “salvar vidas”, mesmo quando estas não sabem ou não são capazes de entender que estão em “risco”.

Já a questão do “interesse público”, justificativa recorrentemente acionada por atores estatais para sustentar determinadas ações no espaço urbano, ganhou nova formatação no contexto de preparação da cidade para a realização dos megaeventos esportivos, especialmente os Jogos Olímpicos de 2016. Como destacado anteriormente, tal preparação envolveu diferentes intervenções urbanísticas que implicaram alterações significativas nos fluxos e usos do espaço da cidade, provocando, inclusive, o deslocamento de moradores de algumas favelas.

A narrativa oficial sobre tais intervenções buscou retratá-las como aquelas que teriam aberto um novo período de “transformações” na cidade e que nada - nem ninguém - poderia interromper. Qualquer crítica seria tratada como sendo contra a cidade, contra tudo aquilo que parecia redimi-la de seu passado recente de “abandono e desordem”.

“Tem que acabar com a demagogia e retirar”: o risco e a construção narrativa justificadora

Pouco tempo antes do evento climático mencionado, outro havia ocorrido no início daquele ano de 2010. Mais uma vez, aconteceram deslizamentos em diferentes áreas ocupadas por favelas na capital e em outros pontos do estado, contabilizando dezenas de mortes. Naquela oportunidade, o então prefeito Eduardo Paes, em seu primeiro mandato, afirmou que seria preciso “acabar com a demagogia”, referindo-se aos críticos da prática da remoção como forma de reordenar o uso do espaço urbano: “área de risco no Rio não vai ter mais. Vai sair, com dignidade, diálogo, indenização e aluguel social. Não vamos admitir que, a qualquer chuva, o prefeito não consegue dormir achando que pode alguém morrer em deslizamentos. Tem que acabar com a demagogia e retirar” (Bastos & Schmidt, 2010Bastos, Isabela & Schmidt, Selma. (2010, 7 de janeiro). O Rio vai remover 119 favelas de áreas de risco em 2 anos. O Globo. Disponível em <Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-removera-119-favelas-ate-fim-de-2012-3072053 >. Acesso em 17 jul. 2023.
https://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-...
).

Em abril do mesmo ano há um novo período de chuvas torrenciais: em todo o estado, aproximadamente 250 mortes. Uma parte considerável delas na capital. Algumas autoridades e formadores de opinião correram à imprensa para emitir sua avaliação das causas de tantas mortes. Quase em uníssono, ao menos se considerarmos as vozes ouvidas e veiculadas pelos grandes meios de comunicação da cidade, afirmavam que a “tragédia” teria sido ocasionada pela proliferação de habitações em encostas e morros da cidade. Nesse sentido, a “ocupação irregular” dessas áreas é que teria levado a tantas mortes. A solução aventada, naquele momento, por esse enquadramento da situação, não poderia ser outra: eram necessárias remoções como forma de impedir que novas tragédias como aquela ocorressem.

Há um aspecto a ser considerado: o fato de que, apesar de morarem nessas localidades, não eram os moradores de favelas os responsáveis por tais situações de “risco”. A “tragédia” na qual estavam envolvidos se devia à “permissividade” de governos anteriores que teriam “incentivado” a ocupação irregular das encostas em função de “interesses particulares”: “Mas não se pode ignorar o fato de que 90% dessas mortes ocorreram exatamente porque as pessoas estavam em áreas que não deviam ser ocupadas. E todos sabemos que foram décadas de incentivo a essas ocupações ou, no mínimo, omissão dos governantes”8 8 Secretário Estadual de Saúde e Defesa Civil, Sérgio Cortes (Erthal, 2010). .

Para evitar que tal situação se reproduzisse e para demonstrar a capacidade da ação estatal, a remoção emerge como uma solução tratada quase como inevitável. Além do mais, seria executada para o bem dos moradores das favelas em “áreas de risco” que, “enganados” pelos “demagogos”, não entendiam muito bem os riscos aos quais estavam submetidos ao “insistirem” em habitar essas regiões. No decorrer daquela circunstância crítica, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro anunciou, em seguida, a remoção completa de oito favelas (aproximadamente 7 mil pessoas)9 9 São elas: Morro dos Prazeres, Fogueteiro, Laboriaux (Rocinha), Parque Colúmbia, Morro do Urubu, São João Batista (Estradinha-Tabajaras), Cantinho do Céu e Pantanal. Neste mesmo período, o governo do estado lançou o Plano Diretor de Remoções, que seria responsável pela retirada de moradores de diversas favelas do estado, desde que os municípios aderissem ao programa. . Afirmava, então, para apoiar sua atitude: “O que não dá mais é para essas pessoas continuarem a correr risco de vida a cada chuva. É uma decisão que acabamos de tomar. Não vou ser responsável por pessoas morrerem ou passarem verões sem dormir pensando que, nessas comunidades, alguém pode morrer”10 10 Prefeito Eduardo Paes, extraído de Magalhães (2010). .

Tal atitude foi sustentada pelas afirmações contidas em um laudo produzido pela Geo-Rio (Fundação Instituto de Geotécnica do Rio de Janeiro)11 11 Órgão da Secretaria Municipal de Obras responsável por elaborar estudos e propor soluções de geotecnia para as encostas e áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro. , que apontava que essas áreas não seriam passíveis de urbanização, já que estariam em situação de “risco”, portanto, as comunidades deveriam ser retiradas. Esse documento técnico foi acionado para criar as condições de legitimação da intervenção estatal nessas localidades. Ou seja, ela não se apoiaria sequer em uma avaliação moral do gestor em questão, isto é, na opinião que pudesse ter sobre a existência das favelas na cidade, portanto, não dependeria da subjetividade de ninguém (sempre parcial), muito menos de uma posição “interesseira”, no sentido de que olharia para seus moradores a partir da possibilidade de consecução de um “interesse particular” (leia-se eleitoral). Pelo contrário, o laudo se apresentava como a leitura mais objetiva possível dessas condições de existência e, mais do que isso, sugeria a solução mais adequada (isto é, mais racional) para o “problema favela” naquela circunstância.

O corolário dessa elaboração é a presença implícita (mas outras vezes explícita) da compreensão de que faltaria um atributo à competência desses indivíduos, o que os tornaria reféns dos tais “demagogos”, além de que eles seriam incapazes de identificar os riscos e perigos associados às moradias erguidas em encostas e morros. Tal compreensão se objetivou no decreto emergencial publicado no período das referidas chuvas, no qual constava a determinação da entrada de agentes públicos nas casas consideradas em risco mesmo contra a vontade do morador, bem como nas inúmeras declarações emitidas pelas autoridades para justificar a medida tratada como “corretiva” do “problema”: “Se a pessoa insistir, chama a polícia. As pessoas têm que entender que temos que proteger vidas”12 12 Entrevista do prefeito Eduardo Paes à rádio CBN em 8 de abril de 2010. .

É possível asseverar, a partir da consideração desse esforço narrativo e prático, que a competência que faltaria aos moradores, ao mesmo tempo iludidos por “demagogos” interesseiros e ignorantes das consequências de se morar em um local que todos saberiam ser de risco (e chancelado oficialmente por um “laudo técnico”), seria de natureza cultural/intelectual/cognitiva, haja vista o fato de que não seriam capazes de compreender que a intervenção do tipo erradicação lhes beneficiaria. Nesse plano, não haveria espaço para negociação com os moradores, já que seriam incompetentes, no sentido de não serem capazes de entender que aquelas medidas os favoreciam, pois embora se encontrassem em uma situação pela qual não eram os principais responsáveis, seriam seus reprodutores: “queremos salvar vidas, pôr a pessoa em lugar seguro. Ah, a escola não está confortável? Dane-se, mas está seguro”.

Diante disso, o que o acionamento do dispositivo “risco” naquele momento parece sugerir é uma inflexão na construção histórica da imagem dos moradores de favelas. Em geral produzidos como o “outro”, o potencial elemento disruptivo da ordem social13 13 Cf. Valladares (2005), Silva (2016). - o que os projetava nas redes das ações governamentais como aqueles que deveriam sofrer algum tipo de intervenção que visasse seu controle -, os moradores de favelas emergem não somente como os que devem ser controlados, mas também como os que merecem cuidados, como aqueles que, incapazes de proteger a si próprios, necessitam ser tutelados (Souza Lima, 1995Souza Lima, Antonio Carlos. (1995). Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes.), em uma combinação entre submissão /controle e proteção. Nesse caso, o tipo de ação definida para lhes garantir tais cuidados e a própria vida, preocupação definida a partir do acionamento da potencialidade do uso da força, seria justamente a retirada de suas casas, a remoção.

“Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos”

A outra dimensão da constituição de uma narrativa justificadora para a concretização da política de remoções é aquela que se observou através da construção do discurso de que a área ocupada por determinada favela, alvo de uma intervenção urbanística relacionada com a preparação da cidade para a realização dos Jogos Olímpicos, não “pertenceria” aos moradores e, portanto, estaria passível de ser retirada em função do “interesse público” ou de um “bem maior”.

A realização dos Jogos Olímpicos se apresentava como uma “oportunidade” que não poderia ser desperdiçada, segundo afirmou o próprio prefeito em diferentes ocasiões em que justificava publicamente as intervenções urbanas em curso. A “oportunidade” diz respeito ao fato de que esta seria a melhor ocasião para superar a lógica que teria feito com que a cidade fosse lançada na espiral de abandono e desordem mencionada (Magalhães, 2019Magalhães, Alexandre. (2019). Remoções de favelas no Rio Janeiro: entre formas de controle e resistências. Curitiba: Appris.).

Nesse enquadramento, todo investimento público foi incluído e explicado como uma consequência da “conquista” das Olimpíadas. Foi justamente essa “oportunidade” que permitiu a emergência dos “legados” observáveis no espaço da cidade, a exemplo da revitalização de áreas anteriormente consideradas degradadas (como a que foi realizada na zona portuária, a partir do projeto Porto Maravilha); através das obras viárias cujo resultado seria ligar e alterar usos de certas regiões (com os Bus Rapid Transit - BRT); a construção de equipamentos culturais como o Museu do Amanhã; e, até certo ponto, a edificação de inúmeros conjuntos habitacionais que redefiniram a paisagem das periferias da cidade.

Nesta angulação, toda e qualquer intervenção urbanística que estivesse ocorrendo na cidade seria considerada parte do esforço governamental que buscava tão somente satisfazer os interesses dos seus cidadãos, produzir um “bem maior”. Qualquer tentativa de criticar, interromper ou impedir o avanço de tais “transformações” seria traduzido pelos que conduziam o aparato de governo como a ação de pessoas e grupos que não queriam o progresso da cidade ou o seu “bem”. Mais do que isso, que se posicionaria contra o “interesse público/coletivo”, já que as obras beneficiariam “milhões de pessoas”.

Na cena etnográfica rapidamente descrita a seguir, elaborada a partir da participação em uma situação vivenciada por um dos autores, ficará explicita como se constituiu essa outra dimensão da narrativa justificadora: aqui não se trataria mais de alguém que, desconhecendo os riscos e perigos de morar em encostas e morros, precisa ser tutelado, mas que, também desconhecendo ou ignorando a dimensão das transformações pelas quais a cidade estava passando, precisaria abrir mão de seu “interesse particular” (entenda-se a sua casa) em troca de um “bem maior”: a via segregada para ônibus que permitiria a circulação de milhares de pessoas e melhoraria o trânsito da cidade. Ou seja, no primeiro caso, faltaria a capacidade cognitiva necessária para identificar os “riscos”. No outro, um puro “egoísmo” impediria a compreensão dos benefícios que uma obra de tal magnitude traria para a população como um todo.

A cena mencionada anteriormente se refere a uma reunião realizada na subprefeitura da Zona Norte da cidade da qual participaram moradores da localidade Largo do Campinho, o então subprefeito da região, defensores públicos, engenheiros vinculados à obra da Transcarioca (via que estava sendo construída à época) e representantes da Procuradoria do Município, da Secretária Municipal de Habitação e de movimentos sociais ligados à luta por moradia. Ela fora convocada justamente a partir da demanda dos moradores que, pouco tempo antes, haviam sido comunicados de que teriam que deixar seus imóveis em função da referida intervenção urbanística.

Logo no início da reunião, o subprefeito convida um dos engenheiros presentes para explicar o projeto da via Transcarioca. Sua intervenção se organiza a partir de três níveis, que variaram em grau de generalidade ao longo da apresentação, mas que se interconectam de alguma forma: primeiro, a elaboração de uma contextualização para a obra, que se situaria no conjunto de outras ações semelhantes que ganhavam corpo naquele momento na cidade, citando como exemplo a Transoeste, localizada na Zona Oeste da cidade entre os bairros da Barra da Tijuca e Guaratiba; segundo, uma explicação “técnica” quanto às intervenções no trecho onde moravam aquelas famílias; por fim, o retorno a um plano mais genérico, no qual o subprefeito volta a justificar o “bem maior” representado pela via então em construção.

No primeiro caso, é interessante observar como a narrativa elaborada para justificar a obra e, consequentemente, a retirada das famílias busca, aos poucos, enquadrar tais intervenções no interior de um “grande projeto” que se formatou a partir de uma visada global que o prefeito lançou sobre a cidade, especialmente ao observar a questão do transporte.

Na sequência, em um nível mais baixo de generalização de sua elaboração, explica os motivos pelos quais as obras terem justamente se iniciado no trecho que se transformou em alvo de tensões e conflitos entre moradores e prefeitura. Aqui, o argumento “técnico” da engenharia é acionado. Segundo afirmou, aquela área produziria um dos maiores “nós” no trânsito e a prefeitura havia constatado o “sufoco” e a “perda de tempo” para sair daquela região da cidade. A partir dessa análise “técnica”, teriam iniciado um estudo para identificar qual o melhor projeto para aquela região. De acordo com o subprefeito, esmiuçando os detalhes técnicos, “não dá para fazer buracos, mas obras segmentadas, como a construção de um mergulhão naquele trecho”. Contudo, as casas daqueles moradores estavam no caminho, ou, como ele disse: “na rampa de acesso para o viaduto que será construído”.

Em seguida, retoma ao nível mais geral da construção de sua narrativa e afirma: “não se faz um omelete sem quebrar ovos”. Neste momento, instala-se uma tensão, e os moradores presentes demonstram indignação com o que fora dito pelo engenheiro. Contudo, ele ignora os pequenos gestos de discordância e crítica e continua a sua formulação. Então, arremata afirmando que seria “necessário pensar a cidade como um todo e que algumas pessoas, infelizmente, perdem”.

O que esta cena, rapidamente descrita aqui, bem como outras situações envolvendo a realização de intervenções urbanísticas parecem indicar é um esforço, especialmente de atores estatais, em produzir uma polarização entre aqueles que não abririam mão de seu “interesse particular” - neste caso, a sua casa - e os que tão somente pretendem dar curso, porque seus representantes, ao “interesse público”. Ao operar com a noção de “interesse público” (ou suas variantes “interesse coletivo” e “bem maior”), esses atores buscam ampliar, da mesma forma como o recurso ao laudo técnico na questão do risco, o campo de aceitação e legitimação das intervenções em curso, evitando, assim (ou buscando se desviar de) as críticas ou questionamentos que pudessem interrompê-las. Haveria aqui tanto uma dificuldade da ordem da cognição quanto uma postura voltada a interesses egoístas, que não se importa com a dimensão e importância daquela obra (e de outras) para a redenção da cidade. Tal elaboração produziu o terreno necessário, portanto, para que as famílias fossem retiradas sem maiores comoções. Afinal, elas não poderiam impedir o “progresso” ou a realização de um “bem maior”.

É possível observar que ambos os mecanismos acionados operam a partir de um esforço contínuo de realização de um duplo esvaziamento: de um lado, da capacidade avaliativa/cognitiva dos moradores dessas localidades; de outro, de sua agência e/ou capacidade de atuar nos contextos de ação nos quais estão inseridos.

O acompanhamento das cadeias de situações que constituem tal configuração permite entrever que o processo de construção de uma narrativa justificadora opera através do agenciamento de uma linguagem tecnocrática, seja no caso da mobilização do argumento do “risco”, seja no acionamento do “interesse público”, cujos alvos da intervenção (os moradores de favelas) são ignorados no próprio procedimento de tomada de decisão sobre suas vidas, pois seriam incapazes de compreender tanto as especificidades da gestão técnica dos “fatores de risco” quanto à dimensão assumida por um evento como os Jogos Olímpicos para a redenção de uma cidade que recentemente era marcada pelo “abandono”.

MAPEANDO PRÁTICAS DE GOVERNO

Ananya Roy sugere que analisar o urbano implica observar processos de Estado, na medida em que existem paralelos entre os processos de artesania do Estado (statecraft) e os modos de se produzir socioespacialidades (Roy, 2015Roy, Ananya. (2015). What is urban about critical urban theory? Urban Geography Plenary Lectures, 37/6, p. 810-823.: 10). Nesta seção, partimos dos processos de remoção tal como vividos e narrados por nossos interlocutores moradores de favelas para mapear as práticas estatais que fazem remover e produzem (desigualmente) a cidade.

Para compreender os processos de fazer cidade em curso nesse período, algumas perguntas são necessárias. Quais são os atores sociais envolvidos nos processos de despossessão? Quais são as técnicas, práticas e estratégias acionadas pelos agentes estatais para viabilizar a remoção de famílias? O objetivo desta seção, nos termos de Bénit-Gbaffou (2018Bénit-Gbaffou, Claire. (2018). Unpacking state practices in city-making, in conversations with Ananya Roy. The Journal of Development Studies, LIV/12, p. 2139-2148.) e Roy (2016Roy, Ananya. (2016). Housing justice: towards a field of inquiry. In: Roy, Ananya & Malson, Hilary (eds.). Housing justice in unequal citties. Los Angeles: Institute on Inequality and Democracy at the University of California.), consiste em desvelar o Estado (unpacking the state) partindo de seus discursos e ações - e não da pressuposição da existência de um Estado reificado (Foucault, 2008Foucault, Michael. (2008). Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.) -, de forma a explicitar as práticas, agências e artefatos que viabilizam a remoção. Partiremos da descrição de breves cenas etnográficas vividas em distintas favelas a fim de enumerar três práticas estatais que funcionaram como mecanismos para a efetivação dos processos de remoção: a precificação/ quantificação da casa, a desinformação e a coerção/tortura psicológica.

Precificação e quantificação da casa na favela

Em uma reunião do Movimento Independente Popular (MIP), os moradores da Vila União de Curicica (Zona Oeste) denunciam em suas falas os baixos preços das indenizações oferecidas pela prefeitura. “Com 15 mil reais não se compra casa nenhuma no Rio de Janeiro, nem na favela!”, diz um morador. Indignados, muitos rememoram as incontáveis obras de melhorias que realizaram em suas casas ao longo de décadas, chamando atenção para o caráter injusto do valor oferecido. Além das indenizações, os apartamentos do [Programa Minha casa Minha Vida] PMCMV também são uma opção. A maioria critica o programa, afirmando não fazer sentido deixarem suas casas grandes parar morarem em “gaiolas” - em menção aos pequenos apartamentos. Outros ainda chamam a atenção para o fato de que, ao calcular a compensação, a prefeitura “só enxerga a parede e não vê a história que tem por trás”. Acompanho a reunião atentamente. Viro para o lado e começo a conversar com um adolescente. Comento sobre a injustiça que a prefeitura está cometendo, me referindo aos valores das indenizações, ao que ele responde: “Não tem preço, ninguém esquece sua vida assim. Fui nascido e criado aqui, como agora vou morar em outro lugar?”. (Diário de campo de um dos autores, setembro de 2014).

A Vila União de Curicica sofreu uma remoção parcial, responsável pelo deslocamento de aproximadamente 300 famílias, devido à construção de uma via expressa de BRT. Foi lá onde um dos autores se deparou com a técnica estatal da quantificação das casas. Quantificar a casa na favela a partir de parâmetros distintos dos mobilizados pelos moradores é uma das principais práticas estatais em um processo de remoção (Petti, 2016Petti, Daniela. (2016). “Não tem preço, ninguém esquece sua vida assim”: uma etnografia sobre a “luta” contra as remoções de favelas no Rio de Janeiro. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola de Ciências Sociais/Fundação Getulio Vargas.). Durante o período de produção da cidade olímpica, as indenizações e os apartamentos do PMCMV foram as principais moedas de troca por casas em diferentes favelas. A depender das circunstâncias políticas, alguns conseguiam negociar valores mais altos, outros, mais de uma unidade habitacional. Havia moradores, no entanto, que não enquadravam suas casas nos parâmetros da precificação/quantificação afirmando seu caráter incomensurável, que encarna modos de vida e histórias. Ao quantificar a casa, a prefeitura define um valor monetário para os pobres, suas relações e histórias, expressando moralidades e suposições a respeito da favela, conflito que contrasta diferentes formas de pensar e fazer a casa e o território. Observar processos de valoração é de grande valia em termos sociológicos:

Valoração econômica é muito reveladora, precisamente porque é muito mais que um processo de comensuração monetária: é, de maneira muito mais poderosa, um processo de “definição” ou construção social num sentido substantivo (Smith 2007), que incorpora todos os tipos de suposições sobre a ordem social e imaginários socialmente estruturados sobre valor. Valoração econômica, em outras palavras, não está fora da sociedade: incorpora no seu fazer noções de avaliação e julgamentos que podem retomar configurações político-institucionais específicas e conflitos (Fourcade, 2011Fourcade, Marion. (2011). Cents and sensibility: Economic Valuation and the Nature of “Nature”. American Journal of Sociology, CXVI/6, p. 1721-1777.: 1769).

O enquadramento da casa pelos parâmetros monetários da compensação revela concepções hegemônicas sobre os pobres, seus territórios e saberes (como o da autoconstrução). As construções informais, tais como compreendidas do ponto de vista do Estado, são dotadas de valor menor em relação às do restante da cidade. A quantificação da casa como forma de gestão da informalidade se materializou enquanto artefato de governo da vida em muitas favelas cariocas durante o período considerado neste texto (Petti, 2016Petti, Daniela. (2016). “Não tem preço, ninguém esquece sua vida assim”: uma etnografia sobre a “luta” contra as remoções de favelas no Rio de Janeiro. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola de Ciências Sociais/Fundação Getulio Vargas.). Em outras, entretanto, as casas e seus moradores pareciam, desde a perspectiva da administração municipal, não deterem valor algum a ponto de serem simplesmente demolidas sem qualquer compensação por não estarem à altura dos parâmetros do mercado.

A desinformação

Em uma reunião na Rádio Sonda (Ilha do Governador), escuto atentamente às falas dos moradores. O principal assunto do dia é que, finalmente, os moradores descobriram que o terreno da comunidade “está sob jurisdição da Aeronáutica”, apesar de não entendermos muito bem o que isso significa. Levou anos para que os moradores descobrissem a origem da propriedade da terra. Uma das lideranças comunitárias conta sobre a peregrinação que realizou em meio a diferentes instituições e órgãos da burocracia estatal a fim de localizar algum documento que os ajudasse a descobrir essa informação. “Primeiro a gente buscou na Pastoral de Favelas14 14 A Pastoral de Favelas auxilia muitas comunidades que lutam por terras na justiça. , fomos pra Defensoria Pública, o pessoal do Nucleo de Terras e Habitação começou a ajudar a gente, depois pro ITERJ (Instituto de Terras e Cartografia do Rio de Janeiro), depois abrimos um protocolo na SPU (Superintendência de Patrimônio da União)”. Uma moradora chama atenção para o fato de que descobrir o dono da terra é o primeiro passo para começar a luta. Munidos dessa informação, além da mobilização política, os moradores poderiam dar início ao processo de regularização fundiária (Diário de campo dos autores, maio de 2016).

Ao lado do Aeroporto Internacional da cidade, região que também recebeu muitos investimentos no período em questão, a favela Rádio Sonda sofreu ameaças mais intensas de remoção a partir de 2014 por parte da Aeronáutica, que tem uma base no local. Assim como em outras comunidades, os moradores levaram anos para conseguir descobrir quem era o dono daquelas terras, que suspeitavam ser da União. Essa desinformação, que à primeira vista pode ser atribuída à “natureza” da burocracia estatal, é na verdade um poderoso artefato político, denominado por Ananya Roy de política de desmapeamento, “a deliberate confusion maintained by the state around the status of ownership of urban land, enabling the state to retain flexibility in its future intervention and engage in land speculation” (Bénit-Gbaffou, 2018Bénit-Gbaffou, Claire. (2018). Unpacking state practices in city-making, in conversations with Ananya Roy. The Journal of Development Studies, LIV/12, p. 2139-2148.: 2). Uma confusão deliberada que exige das pessoas um engajamento ativo junto aos órgãos da burocracia para que se descubra a quais instituições e agências públicas direcionar suas demandas e contra quem, afinal de contas, se deve lutar na justiça.

A dificuldade em identificar a propriedade da terra é apenas um tipo de desinformação que permeia os processos de remoção. A remoção-realocação consiste, normalmente, em uma experiência marcada por poucos ou nenhum canal de diálogo com as autoridades públicas. Relatos de muitos moradores apontam que as intervenções estatais têm início sem qualquer aviso prévio ou explicação a respeito das transformações urbanísticas a serem realizadas nas localidades. O cadastramento, a vistoria das casas e em alguns casos as próprias demolições começam a ocorrer, provocando uma enorme sensação de incompreensão e incerteza nas pessoas atingidas. Ao longo de nossas pesquisas, acessamos muitas histórias de pessoas que se cadastraram junto à Secretaria Municipal de Habitação (SMH) para compor a lista de famílias que sairiam da comunidade pensando que estavam se candidatando a algum programa social. A zona de incerteza que caracteriza um processo de remoção se estende, inclusive, a dúvidas a respeito das datas das intervenções no território. “A gente nunca sabe quando eles vão vir tirar a gente, a gente sempre vai dormir com medo de acordar no dia seguinte e ter a casa demolida”, nos disse certa vez uma moradora da Vila Autódromo. Foi comum escutar nas reuniões dos movimentos de luta por moradia que a desinformação era uma tática da prefeitura para enfraquecer a resistência. Essa tática se relaciona com a penúltima prática estatal sobre a qual falaremos nesta seção.

A coação e a tortura psicológica

Após uma briga que teve com sua filha, Arlinda, ex-moradora da Vila Autódromo e hoje moradora de um conjunto habitacional localizado na mesma região da cidade, desabafa comigo sobre as tensões que perpassam a relação das duas. Depois de me contar como aconteceu a briga ocorrida naquela manhã, Arlinda retoma a memória da remoção, dizendo: “ela me odeia até hoje, porque na época do Autódromo eu ia trabalhar e deixava ela lá vigiando a casa, porque a qualquer hora eles podiam chegar e derrubar a casa com tudo dentro, como fizeram com a Marli [vizinha]. Só que ela estudava, estagiava nessa época, e acabou ficando presa por isso. Por isso ela me odeia, mas o que que eu ia fazer? Tinha que ir trabalhar” (Diário de campo de um dos autores, março de 2019).

Conhecemos Arlinda no condomínio onde foi realocada boa parte das famílias da Vila Autódromo. Ela costuma narrar com muita dor a memória sobre a favela e sobre o tempo da remoção, porque lembrar disso tudo lhe causava “uma tristeza enorme”. Algumas vezes, fragmentos dessa memória aparecem em conversas que travamos, como o descrita acima. Arlinda já nos contou diversas vezes sobre a tensão que vivia durante o período da remoção. “Aquilo ali eles ganharam com tortura psicológica, eu fui torturada por dois anos lá”. O medo de sair pra trabalhar e ter a casa demolida com tudo dentro, caracterizado por ela como “tortura”, era compartilhado por todos. Marli, a vizinha mencionada que hoje mora no mesmo local, perdeu móveis e roupas porque derrubaram sua casa enquanto ela trabalhava fora e seu filho estava na escola.

A sensação de medo se materializava em algumas assinaturas de Estado (Das, 2007Das, Veena. (2007). Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley/Los Angeles: University California Press.) que podiam ser vistas no território. A marcação das casas realizada pelos funcionários da prefeitura, que desenhavam nas paredes das edificações a sigla SMH seguida de um número, intensificava a sensação de incerteza constitutiva da vida dos pobres urbanos. “É forte, a pessoa olha pra marcação e percebe um fim já determinado, a casa vai sair”, disse Sandra em entrevista a um dos autores. Tais assinaturas de Estado que colocam em ação a própria opacidade das ações estatais (Gutterres, 2016Gutterres, Anelise dos Santos. (2016). O rumor e o terror na construção de territórios de vulnerabilidade na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Mana, XXII/1, p. 179-209.: 195), são instrumentos das formas de violência praticadas durante um processo de remoção. O medo dos tratores é um dos aspectos dessa “tortura” sobre a qual muitos falam. Algumas famílias, apesar da vontade de permanecer no território, acabaram negociando com a prefeitura por “medo de não ter onde morar”. Muitos contam que os funcionários municipais que batiam às portas para a realização dos cadastros diziam que “se a gente não aceitasse negociar, a gente ia ficar sem nada e ia morar debaixo da ponte”. A tortura e coação também constituem a maquinaria estatal que expulsa as populações pobres e negras de suas terras.

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Nos termos de Roy (2009Roy, Ananya. (2009). Why India cannot plan its cities: informality, insurgence and the idiom of urbanization. Planning Theory, VII/1, p. 76-87.) e Bénit-Gbaffou (2018Bénit-Gbaffou, Claire. (2018). Unpacking state practices in city-making, in conversations with Ananya Roy. The Journal of Development Studies, LIV/12, p. 2139-2148.), produção da exceção ( framing excepcionality) e produção da incerteza (manufacturing uncertainity) são dois conjuntos de práticas estatais que participam da construção da zona cinzenta de indeterminação que permeia as relações entre os diferentes agentes às margens do Estado. O primeiro conjunto de práticas se refere às ações estatais que se desenrolam por fora de sua própria legislação. O segundo conjunto abarca todas as formas de produção estatal da incerteza, cujo traço principal é a confusão deliberada que as ações dos agentes estatais provocam em suas relações com as margens.

Há algum tempo a antropologia das margens notou que as zonas da vida social consideradas pela teoria clássica como marginais ao Estado são, na verdade, produzidas pelas próprias práticas, discursos, agentes e artefatos estatais, sendo constitutivas de seu modo de funcionamento (Das & Poole, 2004Das, Veena & Poole, Deborah. (2004). Anthropology in the margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press.). As práticas descritas nesta seção não conformam exceções em relação à regra a respeito do funcionamento da maquinaria estatal. As ações estatais debatidas neste texto, que navegam em meio à tênue fronteira que mais mistura do que separa o legal e o ilegal, o formal e o informal (Telles, 2010Telles, Vera. (2010). As cidades nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte: Argumentum.), compõem o cerne da governamentalidade neoliberal. A interação entre os processos de financeirização e despossessão acentua a capacidade de devastação promovida pelos aparatos estatais contra certos corpos em contexto urbano, especialmente das populações pobres e negras.

A CONFIGURAÇÃO TEMPORAL DA REMOÇÃO E SUAS FORMAS DE RESISTÊNCIA

As práticas de governo conformam subjetividades e territórios. No cerne dessas práticas, o tempo constituiu uma dimensão em torno da qual se estruturou parte dos conflitos que observamos ao longo dos últimos anos em diferentes casos de remoção. Por um lado, ele é agenciado por parte dos aparatos estatais para a condução desses processos, geralmente no sentido de sua aceleração. O tipo de intervenção em curso, em geral com o objetivo de alterar os usos e fluxos de determinada área ou região, prefigura o ritmo que tomará determinada ação da instância estatal envolvida. Nos casos em que a intervenção se dirigia à construção de certos equipamentos para preparar a cidade para os Jogos Olímpicos, tal ritmo foi acelerado, produzindo como efeito imediato naqueles submetidos à sua lógica o consequente desmantelamento das referências que regulavam suas rotinas.

A aceleração das diferentes intervenções, de sua intensidade, tornou difícil a avaliação do que estava acontecendo e do que poderia acontecer no futuro próximo. O cotidiano é inteiramente transformado, atravessado por dinâmicas outras que desfazem a certeza de sua continuidade. Não à toa, boa parte do esforço inicial das pessoas envolvidas por essas práticas se dava no âmbito de enquadrá-las em alguma configuração de sentido, constituída aqui e agora, a partir de referências ainda em construção. Contudo, este era um esforço constante, que dificilmente se cristalizava, ou que se cristalizava sempre temporariamente, já que era circunscrito pelo ritmo ditado pela ação estatal. Ou seja, ao embaralhar as referências de sentido com as quais esses atores organizavam suas ações de todos os dias, as intervenções dificultavam um novo enquadramento, na medida em que, ao intensificar e/ou alterar as táticas utilizadas constantemente, fez com que essas pessoas realizassem um dispêndio sempre muito grande de energia cognitiva para dar contar de gerir um cotidiano em fragmentação contínua e incessante.

Ao abalar o quadro de referências das pessoas, isto é, o enquadramento cognitivo que dá sentido ao mundo em que vivem, o tempo da remoção também afeta o campo de oportunidades que se apresenta no cotidiano, aquele conjunto de possibilidades e limites que definem as condições de vida de um grupo, tanto em termos materiais quanto simbólicos (L’Estoile, 2014De L’Estoile, Benoit. (2014). Money is good, but a friend is better: uncertainty, orientation to the future, and the economy. Current Anthropology, LV/9, p. 62-73.: 7). Segundo L’Estoile, é a sobreposição entre os quadros de referência e os campos de oportunidade que define o horizonte de expectativas de futuro de determinado grupo. A incerteza que marca o futuro é responsável pela reconfiguração de valores, obrigações morais e projetos éticos à medida que as estratégias para dar continuidade à reprodução da vida se transformam (Narotzky & Besnier, 2014Narotzky, Susana & Besnier, Niko. (2014). Crisis, value, and hope: rethinking the economy. Current Anthropology . Vol.55, p.4-16.). Como é possível (sobre)viver em um contexto de intenso deslocamento das referências morais e temporais? Quais as estratégias mobilizadas do ponto de vista daqueles envolvidos pelas ações estatais para, se não controlar, ao menos contornar tais dinâmicas? Como, muito concretamente, a malha estatal constitui e opera esse agenciamento do tempo?

Um dos efeitos produzidos pelo agenciamento do tempo por parte dos aparatos estatais é o fato de ele dobrar os corpos e mentes daqueles envolvidos nesses processos. As menções ao cansaço, em geral manifestas através da expressão “não aguento mais essa situação”, dizem respeito a um desgaste físico e emocional que se acumulou muito rapidamente em um curto espaço de tempo. Novamente, o tempo, aqui, opera como uma tática que, conectada em última instância às dinâmicas de produção da destruição, administra condutas produzindo corpos não dóceis, mas que se autodescartam, ou que buscam, para não sucumbir ao avanço da destruição, linhas de fuga capazes de permitir a reconstrução da própria trajetória de vida.

Diante do acionamento do tempo como forma de fazer remover, é possível distinguir duas temporalidades que compõem e articulam essas ocasiões. A primeira é o “tempo das promessas”, isto é, aquele que se estabelece a partir dos inúmeros contatos com os atores institucionais responsáveis por dar alguma resposta para a situação, notadamente os secretários e o próprio prefeito. Temos em mente, sobretudo, o fato de que se intercalavam ocasiões em que se prometia a possibilidade de ficar, para aqueles que assim o quisessem, com ações mais incisivas no território no sentido de retirar as pessoas ou para pressioná-las a sair. Aqui, o caso da favela Vila Autódromo15 15 Como afirmado anteriormente, essa favela foi quase completamente removida entre 2014 e 2016. Após muita resistência, 20 famílias conseguiram ser reassentadas no mesmo local e até hoje lutam para que a prefeitura cumpra as promessas de urbanização e construção de equipamentos públicos coletivos na área. nos permite observar como opera essa dinâmica de gestão através da manipulação do ritmo do tempo. Desde ao menos 2013, inúmeros encontros com atores institucionais com capacidade de decisão se realizaram ao passo que as remoções tinham continuidade.

Assim como em agosto de 2013, mas também em março de 2016, uma possibilidade de debater com a prefeitura parecia ter sido aberta. Os moradores entenderam que isso, talvez, pudesse significar uma oportunidade para discutir as condições daqueles que queriam ficar. Mas as ações logo em seguida dos encontros (seja o completo silêncio e aparente calmaria, sejam as demolições propriamente ditas), geravam a desconfiança entre os moradores de que essa possibilidade, enfim, seria considerada. Ou seja, a “trapaça” da prefeitura nas negociações era vista como uma forma de minar as resistências dos moradores, que viam as discrepâncias entre as promessas feitas nas reuniões e o que ocorria na prática como uma maneira que a prefeitura usava, ao longo do tempo, para forçá-los a sair de suas casas. Isto é, era uma forma mobilizada para desgastá-los ao máximo, ao ponto de não permitir outra saída que não a saída.

Entre uma e outra suposta negociação, a prefeitura elaborou dois decretos de desapropriação em 201516 16 Um deles foi o dec. 40.116/2015. A justificativa utilizada pela prefeitura era a de que as construções atingidas pelo decreto se localizavam no traçado das obras de canalização de rios e de duplicação das avenidas Salvador Allende e Abelardo Bueno, as duas principais vias da região próxima ao Parque Olímpico. Contudo, como afirmaram os moradores à época, os decretos apontavam a quebra do acordo anunciado anteriormente, em que o prefeito afirmou que ninguém sairia, a não ser por vontade própria. , sendo que um deles tinha como objetivo autorizar a remoção de 56 famílias. Tal decreto emergiu como uma das maneiras acionadas pela administração para gerir essas pessoas. Ao judicializar parte do conflito em torno da permanência dos moradores no local e evitar formas diretas de diálogo, a ação estatal buscou determinar os ritmos em que se daria esse processo, com vistas a acelerá-lo e, assim, produzir os efeitos esperados: notadamente, a saída das famílias situadas em uma área destinada a outros usos políticos e econômicos. Uma das consequências desse agenciamento, do ponto de vista dos moradores, foi a geração de um tipo de constatação de que, a qualquer momento, qualquer coisa poderia lhes acontecer. Ou seja, uma configuração marcada pela imprevisibilidade. Tal situação de incerteza se tornou uma fonte de instabilidade considerável, alterando-lhes a autopercepção quanto à continuidade das suas rotinas de vida.

A outra dimensão/escala temporal pode ser definida como o tempo da intervenção urbana propriamente dito, um tempo do cotidiano, mobilizado para acelerar (ou retardar) o processo de acordo com certos objetivos dos aparatos estatais. Esse tempo operava na condução da vida ordinária. Aqui vale destacar o modo como o aparato estatal levava adiante o fazer remover. é importante mencionar o trânsito intenso e diário de caminhões que ocorria pelas ruas locais para levar o material destinado à construção do Parque Olímpico. Repetidamente, o fluxo de pessoas e equipamentos começava muito cedo, mesmo antes de os moradores acordarem para ir ao trabalho ou estudar, acompanhado quase sempre de um barulho muitas vezes ensurdecedor que costumava se estender até o final da noite, praticamente a semana toda. Esse trânsito intenso de grandes caminhões e tratores tornava as ruas intransitáveis, situação que piorava em dias de chuva. Além disso, o encanamento das casas demolidas costumava ser interrompido de maneira inadequada, o que provocava a contaminação da rede, bem como a descontinuidade no abastecimento de água das casas remanescentes, o que expunha a saúde dos moradores a diferentes vetores de risco. No limite, para garantir a continuidade das obras do Parque Olímpico, o serviço de água era simplesmente interrompido, sem que os moradores fossem comunicados ou que qualquer justificativa fosse dada a eles.

Se o tempo é objeto das práticas de gestão da vida efetuadas pelos agentes estatais, ele é também a dimensão sobre a qual se agenciam e se constroem formas de ação aos processos de Estado. A configuração produzida pela atuação estatal na Vila Autódromo fez com que os moradores imaginassem e realizassem inúmeras formas de resistência para enfrentar ou contornar a violência da remoção. Pretendemos a partir de agora analisar algumas dessas formas e oferecer um quadro situado da maneira como essas pessoas se apresentam como sujeitos ativos mesmo confrontados com a aceleração do tempo da intervenção urbana, marcada pelo terror e a destruição. Seguindo Vianna e Magalhães (2019Vianna, Adriana & Magalhães, Alexandre. (2019). Habitar a cidade e fazer a vida: Questões sobre a existência em situações limite. In: Bello, Enzo & Keller, Rene José (eds.). Curso de direito à cidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 143-157.), consideramos que pensar em resistências é “investigar um conjunto muito heterogêneo e multifacetado de ações que se configuram em meio aos inúmeros campos de força e jogos de poder que constituem as diferentes tramas sociais e políticas que emergem diante de nós”. Os autores nos oferecem uma interessante grade analítica ao afirmarem que as resistências se configuram como “um campo disperso, heterogêneo e móvel em que diferentes práticas, agentes, discursos são produzidos e postos a circular” (Vianna & Magalhães, 2019Vianna, Adriana & Magalhães, Alexandre. (2019). Habitar a cidade e fazer a vida: Questões sobre a existência em situações limite. In: Bello, Enzo & Keller, Rene José (eds.). Curso de direito à cidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 143-157.). Nesse sentido, busca-se aqui considerar as diferentes estratégias imaginadas circunstancialmente e efetivamente levadas a cabo por atores concretos em situações concretas.

Ao longo de todo esse período, nas disputas forjadas ao redor do tempo, uma das ações se deu justamente a partir do sentido inverso àquele pretendido pelas práticas estatais: a desaceleração do tempo. Isto é, uma das maneiras, muitas vezes de forma não intencional, encontradas para dar conta do que estava acontecendo e, assim, recuperar o fôlego necessário para reenquadrar o cotidiano e refazer as estratégias de luta era justamente acionar mecanismos que pudessem interromper, ainda que momentaneamente, o funcionamento da maquinaria que insistia em acelerar o tempo, produzir destruição e embaralhar as referências cognitivas e morais que configuravam as relações tecidas em determinada localidade.

Uma dessas ações diz respeito diretamente à atuação do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública (NUTH). Tal instituição, cuja natureza jurídica a situa em posição ambígua na malha estatal - já que é uma instância que atua contra o próprio Estado -, ao longo de todo esse período conseguiu decisões judiciais que determinavam a paralisação dos processos de demolição (evento decisivo e último das práticas remocionistas que marca, simbolicamente, a força do aparato estatal), obrigavam a administração municipal a apresentar projetos urbanísticos para a região alvo da intervenção e a realizar audiências públicas com o objetivo de discutir com os diretamente atingidos as consequências das ações estatais.

Essas ações do NUTH atingiam diretamente o núcleo daquilo que nos parece ser uma das formas mais eficazes, do ponto de vista do aparato estatal, para conduzir esses processos: o tempo. Ao obter certas decisões judiciais, as ações da Defensoria Pública tinham como efeito imediato a interrupção de uma lógica de gestão que produz, a um só tempo, confusão e destruição. Ao impedi-la de ter continuidade no ritmo predeterminado pela prefeitura, essas decisões abriam uma brecha que permitia aos moradores avaliar e refletir acerca dos próximos passos a serem dados para impedir a continuidade do processo de destruição física e simbólica ao qual estavam submetidos. Ganhar tempo durante esse processo era central para a (re)formulação das ações de enfrentamento do processo de remoção.

Além dessa forma de resistência expressa através da atuação do NUTH, consideraremos outra iniciativa levada a cabo pelos moradores da Vila Autódromo: a produção de um checkpoint para interromper a circulação do maquinário utilizado tanto na construção do Parque Olímpico quanto na demolição das construções locais.

Como afirmado anteriormente, uma das fontes de temor e angústia que atravessava o cotidiano dos moradores era justamente a circulação de tratores, retroescavadeiras, caminhões e funcionários da prefeitura nas ruas locais. Tudo isso significava uma perturbação insuportável do dia a dia e impossibilitava o retorno a uma situação de estabilidade da rotina, melhor dizendo, de reconstrução de uma nova estabilidade após as transformações produzidas no território pela administração pública.

Nesse sentido, premidos pelo avançar das obras das instalações olímpicas (cuja aceleração contrastava com a possibilidade de continuidade da vida das pessoas), os moradores decidiram construir o que à época alguns denominaram de “barricada” na principal entrada da localidade, por onde costumavam passar operários, engenheiros e maquinários envolvidos com as obras que transcorriam.

A “barricada” era formada por pneus, tapumes e restos de obras e eram organizadas pelos próprios moradores, que se dividiam em turnos. Eles é que decidiam quem entrava e saía (o que incluía também os próprios moradores, com o fluxo sempre permitido) e, quando alguma situação de incerteza sobre o que uma determinada pessoa ou veículo iria fazer ali, conversavam entre si buscando analisar o “caso” específico, dando uma solução rápida sobre o que poderia ser feito. Em diferentes um dos autores deste texto presenciou essa atividade de monitoramento, discussão e tomada de decisão em relação às permissões daqueles que poderiam seguir ou deveriam ao menos deixar seus veículos nas proximidades do local em área previamente delimitada pelos próprios moradores.

Essa experiência durou aproximadamente três meses e sua principal intenção - essa é a sugestão - foi justamente inverter o controle dos fluxos e ritmos produzidos tanto pelo processo de construção do Parque Olímpico quanto pelas remoções. Era o modo mesmo de atuar sobre um campo de forças cuja uma das suas principais formas de efetivação era precisamente a definição da intensidade e da qualidade dos f luxos de pessoas e coisas naquele território. Ao analisar o fato de que os moradores resolveram intervir sobre essa dimensão das formas de controle mais usualmente mobilizadas (a gestão dos fluxos e dos ritmos), é possível propor que uma das resistências possíveis naquela circunstância crítica foi exatamente a que agia sobre os ritmos dos processos que então modificavam suas rotinas de vida. Assim como a atuação na frente jurídica da luta, as barricadas permitiam que os moradores ganhassem tempo, alterando e, muitas vezes, interrompendo o tempo da intervenção urbana.

O tempo da remoção (“eviction time”), “uma complexa articulação de temporalidades que emerge quando pessoas são deslocadas de suas terras e casas” (Harms, 2013Harms, Erik. (2013). Eviction Time in the New Saigon: temporalities of displacement in the rubble of development. Cultural Anthropology, XXVIII/2, p. 344-368.: 346), é marcado por relações temporais constituídas por incertezas, ambiguidades e contradições. A remoção consiste em uma configuração espaço-temporal extremamente complexa, da qual emergem inúmeras maneiras de lidar com o tempo que estão diretamente relacionadas à correlação de forças políticas que se estabelece no território, envolvendo moradores, apoiadores e agentes estatais. O processo de remoção produz inúmeras e diferentes formas de lidar com o tempo, não apenas no Brasil, mas também em países como o Vietnã, tal como demonstrado por Erik Harms (2013Harms, Erik. (2013). Eviction Time in the New Saigon: temporalities of displacement in the rubble of development. Cultural Anthropology, XXVIII/2, p. 344-368.). Assim como as barricadas e as ações jurídicas constituem formas de ganhar tempo, a espera (pelo avanço do tempo da intervenção) e o adiamento da negociação com a prefeitura também foram formas de agenciar o tempo acionadas por moradores que buscavam indenizações mais justas por suas moradias, tal como demonstram Araújo e Petti (2022Araújo, Marcella & Petti, Daniela. (2022). The value of a house: wait, struggle, and improvement in a militia area in Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Illicit Economies and Development, IV/3, p. 272-281.). Como apontam as autoras, os cálculos temporais da espera durante o tempo da remoção se apresentaram como estratégias de melhoria de vida. O tempo da remoção, ao afetar diretamente o território, tal como visto, atinge as possibilidades de vida dos moradores, provocando diversos agenciamentos temporais na medida em que o futuro é borrado pelas ações estatais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário produzido pelas intervenções materializadas através da política de remoções levada a cabo em anos recentes no Rio de Janeiro tem como pressuposto tratar populações-alvo como subalternas e, mais do que isso, como incapacitadas de pensar seu próprio destino e produzir alternativas sociais e políticas. A necessidade de “recuperar” essa capacidade de intervenção tem como substrato a ideia de que essas pessoas são incapazes de conduzir as próprias vidas, necessitando ser tuteladas: “elas não entendem o perigo de morar em encostas e beiras de rio. Então nós vamos fazer isso por elas”, como disse o então prefeito, Eduardo Paes. É algo que ignora duplamente a existência dessas pessoas, tanto na capacidade de avaliarem suas condições de vida como na de escolherem o que é melhor para elas.

Nesse sentido, há uma forma de atuação estatal marcada pelo autoritarismo e violência, pois quando se desconsidera a capacidade cognitiva e avaliativa das pessoas e se impõem a elas discursos e práticas tecnocráticas da ação estatal, o resultado, entre outras coisas, é violência, inclusive violência física, como a que a guarda municipal utilizou nas situações de remoção, retirando à força as pessoas de suas casas, agredindo-as e montando gigantescos aparatos militares para levar adiante uma desocupação.

Além disso, um dispositivo fundamental que tornou possível pôr em funcionamento essa maquinaria de violência foi o tempo. Determinar os ritmos (de vida das pessoas, de circulação do aparato material de destruição) foi o que permitiu que as remoções ocorressem, em muitos casos, de forma rápida, com o objetivo de evitar qualquer crítica ou denúncia. Ao ditar a velocidade desses processos, a administração municipal produziu como efeito o desgaste das forças individuais dos moradores de favelas envolvidos. Isto é, ao definir os ritmos em que a remoção transcorria, a prefeitura pretendia que a energia psíquica, física e moral daquelas pessoas se dissipasse à medida que o tempo transcorria. Contudo, tal como no caso da Vila Autódromo, os moradores de favelas em situação de remoção buscaram atuar justamente nesse jogo do tempo, operando desde o seu interior, passando a intervir eles próprios em suas modulações, redefinindo os f luxos constituídos pela operação dessa maquinaria, invertendo a lógica inicialmente imposta. Isso demonstra que, apesar do esforço contínuo do aparato estatal para sufocar qualquer linha de vida, os moradores continuavam insistindo em existir.

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  • 1
    Outro aspecto desse processo global é que, tal como apontado por Brenner (2013Brenner, Neil. (2013). Theses on urbanization. Public Culture, XXV, p. 85-114.), há algum tempo as formas capitalistas de urbanização implicam processos de destruição criativa, remodelando certas áreas para favorecer determinados f luxos de pessoas e capital. Neste sentido, tais ações, que conjugam atores estatais e não estatais, podem ser visualizadas, ao mesmo tempo, como afirma Telles (2015Telles, Vera. (2015). Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos. Revista de Ciências Sociais (UFC), XLVI/1, p. 15-42.), como dispositivos de expansão das fronteiras urbanas e de mercado ou, como argumenta Paulo Arantes (2014Arantes, Paulo. (2014). O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo.), são modos de construção política de mercados.
  • 2
    Destacamos diferentes autores que se debruçaram sobre esse processo a partir de perspectivas diversas: Gutterres (2014), que comparou esse processo no Rio de Janeiro e em Porto Alegre; Fernandes (2013Fernandes, Adriana. (2013). Escuta ocupação: arte do contornamento, viração e precariedade no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. PPCIS/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.), que o observou a partir das ocupações do Centro; Rolnik (2015Rolnik, Raquel. (2015). Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo .), que tratou a questão a partir de sua experiência como Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia; Naback (2015Naback, Clarissa Pires. (2015). Remoções biopolíticas: o habitar e a resistência da Vila Autódromo. Dissertação de Mestrado em Direito. PPGD/ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.), que enfatiza a dimensão biopolítica desse processo e as possibilidades do “habitar”; Petti (2016Petti, Daniela. (2016). “Não tem preço, ninguém esquece sua vida assim”: uma etnografia sobre a “luta” contra as remoções de favelas no Rio de Janeiro. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola de Ciências Sociais/Fundação Getulio Vargas.), que reflete sobre o papel da casa nessa configuração; Azevedo e Faulhaber (2015Azevedo, Lena & Faulhaber, Lucas. (2015). SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula.), que mapearam os fluxos desses deslocamentos na cidade; Freire e Silva (2016Freire, Letícia de Luna & Silva, Mariana T. (2016). O que está em jogo na cidade olímpica? Conflitos e resistências acerca de remoção de assentamentos populares no Rio de Janeiro. In: Cunha, Neiva Vieira da et al. (orgs.). Antropologia do conflito urbano: conexões Rio-Barcelona. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 51-74.), que enfatizaram as estratégias de mobilização dos moradores contra a remoção; Davies (2017Davies, Frank Andrew. (2017). Deodoro: formas de governo para uma “região olímpica”. Tese de Doutorado. PPCIS/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.), que analisou as ameaças de remoção no contexto da produção de uma “região olímpica”; no campo do direito, destaco o trabalho organizado por Mendes e Cocco (2016Mendes, Alexandre & Cocco, Giuseppe. (2016). A resistência à remoção de favelas no Rio de Janeiro. Revan: Rio de Janeiro .) acerca da atuação do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública; por fim, do ponto de vista do planejamento urbano, destaco Oliveira et al. (2016Oliveira, Fabricio et al. (orgs.) (2016). Planejamento e conflitos urbanos: experiências de luta. Rio de Janeiro: Letra Capital.).
  • 3
    É importante mencionar o papel assumido pelo uso da violência nesses processos: o de uma dimensão constitutiva do mundo. Na prática de intervenção e gestão sobre a qual nos deteremos, ela assume um papel não apenas de destruição e, no limite, de anulação do Outro, mas também de constituição de novos mundos e sujeitos. A violência atua na produção de novas subjetividades, marcadas por práticas “civilizatórias” que, a um só tempo, buscam tanto subjugar quanto criar sujeitos de um certo tipo.
  • 4
    Este artigo se baseia em pesquisas que os autores realizaram entre os anos de 2009 e 2018. No caso de Alexandre, trata-se de pesquisas realizadas tanto no doutorado quanto no pós-doutorado, ocasião em que o autor acompanhou aproximadamente 30 situações de remoção de favelas na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 2009 e 2016. No caso de Daniela, o material se refere a pesquisas realizadas na produção do trabalho de conclusão de curso (TCC) e da dissertação de mestrado entre os anos de 2014 e 2016 sobre os efeitos tanto da remoção quanto da nova vida nos condomínios do Minha Casa, Minha Vida.
  • 5
    Segundo a própria prefeitura do Rio de Janeiro, entre 2009 e o inicio de 2014, 20,3 mil famílias foram removidas. Dessas, 9,3 mil estão em imóveis do Minha Casa, Minha Vida, 5 mil recebem aluguel social e 6 mil foram indenizadas. Cf. Júnia, 2014Júnia, Raquel. (2014, 16 de maio). Mais de 20 mil famílias foram removidas nos últimos quatro anos no Rio. Agência Brasil. Disponível em <Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-05/mais-de-20-mil-familias-foram-removidas-nos-ultimos-quatro-anos-no >. Acesso em 17 jul. 2023.
    https://agenciabrasil.ebc.com.br/direito...
    .
  • 6
    Gutterres (2014Gutterres, Anelise dos Santos. (2014). A resiliência enquanto experiência de dignidade: antropologia das práticas políticas em um cotidiano de lutas e contestações junto a moradoras ameaçadas de remoção nas cidades sede da Copa do Mundo 2014. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) chama esse processo de “desabitação”.
  • 7
    Sobre a construção e as consequências da justificativa do “risco”, ver Magalhães (2016), Mendes (2016Mendes, Alexandre. (2016). O debate em torno do risco, da moradia e das remoções em um ano de tragédias. In: Mendes, Alexandre & Cocco, Giuseppe. A resistência à remoção de favelas no Rio de Janeiro. Revan: Rio de Janeiro, p. 181-207.) e Gonçalves (2015Gonçalves, Rafael Soares. (2015). Políticas públicas e o retorno das remoções de favelas por ocasião das chuvas de abril de 2010 no Rio de Janeiro. In: Kant de Lima, Roberto et al. Pensando o Rio: políticas públicas, conflitos urbanos e modos de habitar. Niterói: Intertexto, p. 11-34).
  • 8
    Secretário Estadual de Saúde e Defesa Civil, Sérgio Cortes (Erthal, 2010Erthal, João Marcello. (2010, 7 de abril). Secretário de Defesa Civil defende remoção de favelas. Veja. Disponível em <Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/secretario-de-defesa-civil-defende-remocao-de-favelas >. Acesso em 17 jul. 2023.
    https://veja.abril.com.br/brasil/secreta...
    ).
  • 9
    São elas: Morro dos Prazeres, Fogueteiro, Laboriaux (Rocinha), Parque Colúmbia, Morro do Urubu, São João Batista (Estradinha-Tabajaras), Cantinho do Céu e Pantanal. Neste mesmo período, o governo do estado lançou o Plano Diretor de Remoções, que seria responsável pela retirada de moradores de diversas favelas do estado, desde que os municípios aderissem ao programa.
  • 10
    Prefeito Eduardo Paes, extraído de Magalhães (2010Magalhães, Luiz Ernesto. (2010, 8 de abril). Favela inteira de Santa Teresa será removida. O Globo.).
  • 11
    Órgão da Secretaria Municipal de Obras responsável por elaborar estudos e propor soluções de geotecnia para as encostas e áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro.
  • 12
    Entrevista do prefeito Eduardo Paes à rádio CBN em 8 de abril de 2010.
  • 13
    Cf. Valladares (2005Valladares, Lícia do Prado. (2005). A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV.), Silva (2016Silva, Luiz Antônio Machado da. (2016). A continuidade do problema da favela. In: Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula , p. 161-175.).
  • 14
    A Pastoral de Favelas auxilia muitas comunidades que lutam por terras na justiça.
  • 15
    Como afirmado anteriormente, essa favela foi quase completamente removida entre 2014 e 2016. Após muita resistência, 20 famílias conseguiram ser reassentadas no mesmo local e até hoje lutam para que a prefeitura cumpra as promessas de urbanização e construção de equipamentos públicos coletivos na área.
  • 16
    Um deles foi o dec. 40.116/2015. A justificativa utilizada pela prefeitura era a de que as construções atingidas pelo decreto se localizavam no traçado das obras de canalização de rios e de duplicação das avenidas Salvador Allende e Abelardo Bueno, as duas principais vias da região próxima ao Parque Olímpico. Contudo, como afirmaram os moradores à época, os decretos apontavam a quebra do acordo anunciado anteriormente, em que o prefeito afirmou que ninguém sairia, a não ser por vontade própria.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2020
  • Revisado
    06 Dez 2021
  • Aceito
    05 Out 2022
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