Acessibilidade / Reportar erro

RESENHA

O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Tarrow, Sidney. . Petrópolis: Vozes, 2009.

Um dos mais eminentes estudiosos contemporâneos da ação coletiva, Sidney Tarrow apresenta em O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político,1 1 Power in movement: collective action, social movements and politics é o título da publicação original em inglês, de 1994. seu único livro publicado no Brasil até o momento, um conjunto de reflexões teórico-metodológicas para a interpretação de suas formas confrontacionais, em particular os movimentos sociais. O livro, que está numa recente terceira edição na língua inglesa original, inscreve-se em projeto coletivo mais amplo sobre política confrontacional ou confronto político (contentious politics)2 2 Ver entrevista com Sidney Tarrow nesta edição de Sociologia & Antropologia. Ver, também, os elucidativos comentários de Breno Bringel (2011) acerca da recepção indireta das teorias norte-americanas da ação coletiva e tardia da obra de Tarrow no Brasil. que tem um marco importante também em Dynamics of contention, escrito com Charles Tilly e Doug McAdam, em 2001.3 3 Para uma descrição pormenorizada da síntese proposta da ação coletiva confrontacional, ver McAdam, Tarrow & Tilly (2009).

No âmbito deste projeto, os movimentos sociais são compreendidos como "desafios coletivos baseados em objetivos comuns e solidariedade social numa interação sustentada com as elites, opositores e autoridade" (Tarrow, 2009: 21), e constituem um subgênero da ação coletiva em um campo teórico e empírico ampliado por meio do conceito matricial de confronto.

Ainda que questões específicas pudessem ser levantadas em relação à proposta, como em relação às formas reativas estatais ao confronto e aos mecanismos conectores de macroprocessos sociais e performances confrontacionais,4 4 Conforme nos lembra o próprio Tarrow, ao tratar do percurso intelectual de Charles Tilly até a abordagem da política confrontacional. Ver Tarrow (2008). objetivamos, nesta resenha, apontar algumas das contribuições teórico-metodológicas mais gerais da abordagem da política confrontacional e dos movimentos sociais. É certo que essa abordagem se apresenta menos como uma teoria acabada do que como uma agenda de pesquisa baseada em um estoque diversificado de conceitos analíticos. Porém, como ela irradia, mais do que eclipsa, nossa compreensão das condições nas quais surgem formas diversificadas de ação coletiva e os processos concretos nos quais se desenvolvem, vale chamar a atenção para seus sentidos mais heurísticos.

Em outras palavras, defende-se aqui que, ao construir e investigar unidades de análise complexas, a partir de um enfoque amplo, centrado na interação de sujeitos, ações e objetos de confronto, a abordagem da política confrontacional lega à teoria social uma contribuição teórico-metodológica propriamente relacional, que desafia antinomias cristalizadas nas ciências sociais lato sensu. Esta contribuição transcende o estudo dos movimentos sociais, e pode ser generalizada, virtualmente, à totalidade dos fenômenos da ação coletiva - o que se pretende apenas indicar nos limites desta resenha.

Em O poder em movimento, o confronto constitui o elemento indecomponível das formas diversas da ação coletiva. A singularidade da ação coletiva confrontacional situa-se, portanto, na oposição construída entre aqueles que detêm poder e aqueles que, a priori, são destituídos de meios institucionais de reivindicação. Ambos, confronto e poder, são definidos como propriedades interativas que conectam as esferas política e social.

No entanto, na abordagem de Tarrow, performances públicas de oposição concretas assumem um caráter complexo, caracterizado tanto por agências múltiplas e assimétricas, como por condicionantes estruturais igualmente variados quanto à extensão e à escala. Nesse sentido, franqueiam a análise das formas e mecanismos distintos de poder em sistemas de interações de agentes diversificados, interações estas que podem assumir formas conflituosas ou cooperativas.

No plano específico da análise dos movimentos sociais, o autor faz uso de uma gama de instrumentos relacionais que permite superar a oposição entre ação e estrutura, como lembra Bringel (2011: 69)Bringel, Breno. A busca de uma nova agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais e o confronto político: diálogos com Sidney Tarrow. Política & Sociedade, 2011, 10, p. 51-73.. Movimentos sociais constituem, assim, formas de ação coletiva construídas em torno de "interesses e valores comuns ou justapostos" (Tarrow, 2009: 22). Por sua vez, propósitos comuns podem se beneficiar em muito de identidades coletivas legadas e/ou construídas, particularmente na medida em que movimentos sociais se engajam efetivamente em canalizá-las e compatibilizá-las. Em realidade, a consistência da ação coletiva parece depender da construção social da identidade comum e, portanto, da solidariedade social (Tarrow, 2009: 154) derivada desta.

É por meio da combinação inovadora de reivindicações identitárias produzidas a partir de "comunidades mais íntimas e especializadas" e efetivamente solidárias, e do que Tarrow define como "enquadramento interpretativo das identidades" (Tarrow, 2009: 155) que se configuram coletividades mobilizáveis. Assim, a identidade coletiva construída opera como elemento conectivo e antinômico durável dos movimentos sociais, mas também de outras formas de ação coletiva, confrontacionais ou não.

Importante, neste sentido, é o conceito adotado, de quadro de ação coletiva, de David Snow e Robert Benford (1992 apud Tarrow, 2009: 143), e definido por estes como um esquema interpretativo e seletivo, cuja propriedade mais importante é a capacidade de condensar a variada experiência humana em um código passível de leitura e mobilização. A partir dele, Tarrow aponta para a dimensão da agência social e para a natureza profundamente criativa dos fenômenos de ação coletiva confrontacional.

No entanto, na condição de dispositivos interpretativos de ênfase, positiva e negativa, mas também de omissão, os quadros de ação coletiva não necessariamente limitam-se à dimensão confrontacional e, portanto, à "nomeação de descontentamentos" de grupos mais ou menos homogêneos de agentes. Eles estruturam, na verdade, interações de uma variedade de agentes de diferentes tipos - econômicos, políticos e sociais - provendo significados compartilhados orientadores da ação em geral.

Ademais, os quadros de ação coletiva possuem o potencial de organizar a experiência dos agentes tanto em facções, antagonismos e disputas, quanto em coalizões, alianças e acordos. Encontram-se, portanto, na base de processos sociopolíticos ancorados nas noções de crise, atraso e subdesenvolvimento, de um lado, e de prosperidade, modernidade e desenvolvimento, de outro. Pois que constroem os significados atribuídos a determinadas situações sociais, nutrem mobilizações coletivas em múltiplas escalas.

De acordo com o autor, no caso da ação coletiva confrontacional, a construção destes quadros e sua mobilização para a ação constituem um verdadeiro "empreendimento". Empreendimento que envolve a seleção e combinação de símbolos no interior de uma estrutura cultural tradicional, assim como a adição de insígnias novas, operando processos de alinhamento entre valores e interesses organizacionais próprios e a referida estrutura. O alinhamento, noção tomada de empréstimo também a Snow e seus colaboradores, conecta ação e estrutura sociais, projetando incidentes, episódios e campanhas com o potencial de transformar a ambos.

Dessa forma, Tarrow acentua as propriedades criativas dos movimentos sociais na produção de significados compartilhados, e de alvos e adversários identificáveis. Nutridos por identidades e objetivos herdados e construídos como coletivos, os movimentos mobilizam, simultaneamente, as dimensões emotiva e racional, irrefletida e intencional da experiência humana em sociedade.

No entanto, em O poder em movimento, a motivação elementar para o engajamento na ação coletiva, em geral, e na política confrontacional, em particular, é condicionada, por assim dizer, por uma variável ambiental. Neste sentido, são as mudanças operadas nas estruturas de oportunidades e restrições políticas,5 5 O conceito de estrutura de oportunidades e restrições políticas, hoje amplamente utilizado e desenvolvido pelos teóricos da ação coletiva, remonta originalmente ao clássico de Charles Tilly, From mobilization to revolution, publicado em 1978. dimensões consistentes de encorajamento e desencorajamento à ação coletiva (Tarrow, 2009: 38-39), que estabelecem as condições nas quais o confronto tende ou não a se manifestar.

Estruturas econômicas, políticas e sociais dizem respeito, essencialmente, a propriedades relativas à estabilidade da realidade social e, desta forma, possibilitam o atendimento a demandas relativamente institucionalizadas. No entanto, segundo Tarrow, nas ocasiões nas quais as fissuras institucionais se tornam aparentes e mudanças disruptivas nas referidas estruturas (fundamentalmente políticas, para o autor) se anunciam é que oportunidades e restrições, aberturas e encerramentos, estimulam ou inibem os agentes a agir coletivamente.

A "relacionalidade" presente em O poder em movimento é, ainda, de caráter dinâmico. O modelo analítico que propõe apresenta um sistema de retroalimentação que apenas parte das mudanças na estrutura de oportunidades e restrições políticas. Estas mudanças produzem, por sua vez, alterações ao nível da agência coletiva, que seleciona e mobiliza dimensões profundas da cultura e de interesses e valores individuais e coletivos, ensejando formas de ação coletiva confrontacional com extensão temporal e capacidade reprodutiva. Ela diz respeito, assim, aos elementos de continuidade entre os próprios atos confrontativos.

No arsenal de ferramentas analíticas mobilizadas por Tarrow, encontra-se, ainda, a noção de repertório de ação coletiva, introduzida por Charles Tilly. Conjunto relativamente limitado, embora renovável, de rotinas reivindicativas, o repertório constitui um elo-chave das formas de agência passadas, presentes e futuras. Condiciona, assim, os modos operacionais da ação coletiva e as formas reativas indissociáveis de seus colaboradores e opositores - estatais ou não. A independência relativa destas interações no plano concreto tem o potencial de desencadear, portanto, períodos particularmente conflituosos.

Segundo Tarrow, ciclos de confronto, iniciados por ações coletivas confrontacionais independentes e desenvolvidos por estratégias reativas estatais incapazes de pôr termo ao conflito, tendem a "transbordar" os limites das próprias reivindicações das quais surgiram, atraindo novas demandas e estimulando o ingresso de novas organizações de movimento. Os resultados de ciclos de confronto são em geral, ciclos de reformas que, embora imprevisíveis, tendem a ampliar o espaço institucional de atendimento às demandas dos não poderosos.

A temática da escalada processual da ação coletiva pode ser, assim, finalmente tematizada a partir do que Bringel (2011: 63)Bringel, Breno. A busca de uma nova agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais e o confronto político: diálogos com Sidney Tarrow. Política & Sociedade, 2011, 10, p. 51-73. define como a espacialidade da política contestatória. Em realidade, os fenômenos relacionados ao que se convencionou como internacionalização e transnacionalização da ação coletiva vêm ocupando um espaço cada vez mais central nas ciências sociais.

Tarrow trata especificamente do potencial de emergência e desenvolvimento dos chamados movimentos sociais transnacionais, definidos como "interações contenciosas sustentadas com opositores - nacionais ou não-nacionais - através de redes de desafiantes organizados e que ultrapassam fronteiras nacionais" (Tarrow, 2009: 231). Contudo, as premissas comuns sobre as quais se assentam os fenômenos de transnacionalização dos movimentos sociais, em particular, assim como da ação coletiva, em geral, são as da organização em rede e da operação em escalas geográficas múltiplas.

O autor rejeita, entretanto, a concessão de prerrogativas analíticas à escala global como dimensão-chave tanto das estruturas políticas e macroprocessos sociais quanto do encadeamento de eventos de confronto em incidentes, episódios e campanhas. Assume, portanto, a globalização como um quadro de ação coletiva cujos mecanismos e processos tradutores da estrutura de rede em ação permanecem por ser explicados. Dessa forma, não se furta em afirmar que

os efeitos do ativismo transnacional na política doméstica podem ser sua função mais importante. As redes de ativismo transnacional podem ajudar os atores com poucos recursos a construir novos movimentos domésticos a partir de combinações de materiais nativos e importados (Tarrow, 2009: 240).

Facções e coalizões entre redes sociais domésticas, estruturadas por meio de relações formais e/ou informais, e redes transnacionais, inibem ou induzem processos de transcendência escalar, isto é, vinculam recursos e mecanismos de reivindicação e legitimação de pleitos em diferentes escalas e, portanto, produzem ações coletivas de desafio e confronto multidirecionais.

O referido processo, como aponta o autor, é particularmente relevante considerando a profunda assimetria de recursos que envolve, em grande medida, a interação das elites com as massas em escala local. Desse modo, acordos e disputas entre redes domésticas e transnacionais de movimentos sociais e agentes coletivos tendem a ampliar a oferta de oportunidades no interior das estruturas econômicas, políticas e sociais que abarcam a operação dos agentes desafiantes locais, produzindo efeitos imprevisíveis.

O arguto exame de Tarrow abre um flanco analítico importante, com foco nos mecanismos de influência mútua entre quadros de ação coletiva operando em diferentes escalas. Eventos de contestação a agentes poderosos, organizados por meio de vínculos entre redes domésticas e transnacionais, vêm apresentando, assim, grande potencial transformativo. Sua complexidade escalar pode derivar em episódios e gerar reações de adversários com potencial evolutivo para ciclos de confronto, podendo imprimir marcas duradouras.

Por fim, deve-se destacar que esta apresentação panorâmica de O poder em movimento buscou evidenciar algumas das muitas dimensões da síntese teórico-metodológica proposta por Sidney Tarrow. Buscou-se enfocar essencialmente, a contribuição ímpar, relacional e dinâmica, que esta oferece para o estudo do fenômeno da ação coletiva, em suas variadas formas e dimensões.

Estudiosos dos movimentos sociais, das ciências sociais em geral e também de áreas afins têm, portanto, muito a se beneficiar da leitura desse livro que, malgrado ele mesmo esteja em movimento, dada a nova edição que está conhecendo em língua inglesa neste momento, apresenta ao leitor brasileiro um programa de pesquisa promissor, alternativo às visões mais disjuntivas dos fenômenos econômicos, políticos e sociais.

NOTAS

  • 1
    Power in movement: collective action, social movements and politics é o título da publicação original em inglês, de 1994.
  • 2
    Ver entrevista com Sidney Tarrow nesta edição de Sociologia & Antropologia. Ver, também, os elucidativos comentários de Breno Bringel (2011)Bringel, Breno. A busca de uma nova agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais e o confronto político: diálogos com Sidney Tarrow. Política & Sociedade, 2011, 10, p. 51-73. acerca da recepção indireta das teorias norte-americanas da ação coletiva e tardia da obra de Tarrow no Brasil.
  • 3
    Para uma descrição pormenorizada da síntese proposta da ação coletiva confrontacional, ver McAdam, Tarrow & Tilly (2009)McAdam, Doug; Tarrow, Sidney & Tilly, Charles. Para mapear o confronto político. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 2009, 76, p. 11-48..
  • 4
    Conforme nos lembra o próprio Tarrow, ao tratar do percurso intelectual de Charles Tilly até a abordagem da política confrontacional. Ver Tarrow (2008)Tarrow, Sidney. Charles Tilly and the practice of contentious politics. Social Movement Studies, 2008, 7/3, p. 225-246..
  • 5
    O conceito de estrutura de oportunidades e restrições políticas, hoje amplamente utilizado e desenvolvido pelos teóricos da ação coletiva, remonta originalmente ao clássico de Charles Tilly, From mobilization to revolution, publicado em 1978.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bringel, Breno. A busca de uma nova agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais e o confronto político: diálogos com Sidney Tarrow. Política & Sociedade, 2011, 10, p. 51-73.
  • McAdam, Doug; Tarrow, Sidney & Tilly, Charles. Para mapear o confronto político. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 2009, 76, p. 11-48.
  • ____. Dynamics of contention Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
  • Tarrow, Sidney. Charles Tilly and the practice of contentious politics. Social Movement Studies, 2008, 7/3, p. 225-246.
  • Tilly, Charles. From mobilization to revolution Reading, MA: Addison-Wesley Publishing Co., 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    Fev 2012
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com