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BREVE APONTAMENTO SOBRE ESTRUTURA E AGÊNCIA NA OBRA DE RAYMOND WILLIAMS

A BRIEF NOTE ON STRUCTURE AND AGENCY IN THE WORK OF RAYMOND WILLIAMS

Resumo

O presente artigo se debruça sobre algumas das reflexões do materialismo cultural de Raymond Williams visando delimitar a forma como elas emergem, em sua teoria, tanto em um traçado mais estrutural - no que se refere à posição de classe dos agentes, aqui pensados principalmente em termos de produtores culturais - quanto em uma dimensão de agência, cuja possibilidade é dada pela via emancipatória que seu complexo conceito de cultura permite entrever. Nessa empreitada, será necessário recuperar os diálogos críticos estabelecidos por Williams, sobretudo com outras vertentes do materialismo histórico dedicadas à análise da cultura e com a tradição canônica de Cambridge, onde recebeu sua formação. Assim, por meio da noção de cultura pensada como um espaço em disputa, Williams defende a concepção da cultura em geral - e da literatura em particular - como prática social pela qual os agentes estabelecem uma relação de oposição, potencializando a percepção da mudança social.

Palavras-chave:
Raymond Williams, Literatura; Estrutura; Agência; Hegemonia

Abstract

This article will focus on some of the theoretical reflections on Raymond Williams’ cultural materialism aiming to delimitate the way in which they emerge, in his theory, both in a more structural layout - in terms of the class position of the agents, here thought of primarily in terms of cultural producers - and in a dimension of agency, whose possibility is given by the emancipatory path that his complex concept of culture allows us to glimpse. In this endeavour, it will be necessary to recover the critical dialogues established by Williams, mainly with other strands of historical materialism dedicated to the analysis of culture and with the canonical Cambridge tradition, where he got his formation. Thus, from the notion of culture thought as a space in dispute, Williams defends the conception of culture in general - and literature in particular - as a social practice by which agents establish a relation of opposition, enhancing the perception of social change.

Keywords:
Raymond Williams; Literature; Structure; Agency; Hegemony

Para Paulo, com amor

A palavra [cultura] que tinha indicado um processo de formação dentro de uma sociedade mais segura tornou-se no século XIX o foco de uma resposta profundamente significativa a uma sociedade em plena mudança radical e dolorosa. A ideia de cultura, parece-me, é melhor estudada como uma resposta deste tipo; a resposta de certos homens, apegados a certos valores, face à mudança e às consequências da mudança.

(Williams, 1953Williams, Raymond. (1953). The idea of culture. Essays in Criticism, 3/3, p. 239-266.: 244)

Comemorou-se em 2021 o centenário de nascimento de Raymond Williams, que, segundo Blackburn (2013 [1988]Blackburn, Robin. (2013 [1988]). Introdução. In: Williams, Raymond. Recursos da esperança. São Paulo: Editora Unesp, p. xi-xxxii.: xi), pode ser considerado “o pensador socialista mais competente, consistente e original do mundo anglófilo”, deixando à história do pensamento um legado fundamental em diversas frentes. Em primeiro lugar, gostaria de mencionar a particularíssima embocadura de seu materialismo histórico, que traz as marcas de um atributo tanto precioso quanto raro na vida intelectual, qual seja, o de reconhecer a riqueza do pensamento daqueles de quem se diferencia teoricamente e com quem se confronta politicamente. Refiro-me aqui ao reconhecimento várias vezes manifesto por Williams do grande impacto que lhe causou, chegando a Cambridge, o pensamento de Marx e o de Leavis. Ele próprio declara a quase imediata simpatia que teve pela obra marxiana, que em muito se relaciona com sua história de vida, assim como as muitas dificuldades com a figura canônica de Leavis, cuja afinidade teórica é menos imediata, tendo que se combinar com uma profunda distância política1 1 Considero importante ressaltar que, a despeito de ser Leavis o grande nome de uma tradição firmada em Cambridge que Williams contestava firmemente, ele reconheceu, por mais de uma vez, a importância do trabalho do crítico inglês em suas próprias escolhas metodológicas: “Quando fui para Cambridge, encontrei duas influências sérias que causaram uma impressão [profunda] na minha maneira de pensar. A primeira foi o marxismo e a segunda os ensinamentos de Leavis. Mesmo ao longo de minhas discordâncias posteriores, sempre mantive o respeito por ambas as posições” (Williams, 2015 [1958]: 10). E ainda, no mesmo texto: “Leavis nunca gostou dos marxistas, o que de certo modo é uma pena, pois estes sabem muito mais do que ele sobre a sociedade inglesa e sobre sua história recente. Por outro lado, ele sabe muito mais do que qualquer marxista que conheço sobre as relações efetivas entre a arte e a experiência” (Williams, 2015 [1958]: 13). Ou seja, se é verdade que a fundamentação materialista da obra de Williams lhe deu apoio na crítica ao cânone de Leavis, é igualmente verdade que a importância da leitura textual que Williams aprendeu com Leavis o ajudou na crítica que dirigiu a alguns analistas marxistas da cultura cuja análise tinha, a seu ver, um caráter excessivamente determinista. Para mais detalhes, veja Cevasco (2001), especialmente o capítulo “Questões de história intelectual”. .

O aprendizado com essas duas correntes teóricas seguramente está na origem do materialismo não determinista por ele elaborado ao longo de toda uma vida de análise da cultura. Essa dimensão da vida social é tomada por ele de forma profundamente articulada a seu contexto sócio-histórico, sem, com isso, dispensar ou desqualificar uma leitura atenta de suas formas de expressão, nelas reconhecendo, inclusive, uma dimensão epistêmica incontestável, manifesta em sua eventual capacidade de compreender e dar legibilidade a determinadas forças sociais ainda em processo de formação, como se apreende pela formulação do complexo conceito de estrutura de sentimento2 2 A noção de estrutura de sentimento foi definida pela primeira vez por Williams em Preface to Film, de 1954, e foi novamente referida em diversos momentos de sua obra. Reconhecidamente difícil de apreender, essa noção conta com uma vasta fortuna crítica e foi definida por Williams, em Marxism and Literature, de 1977, como resultado de seu interesse em “enfatizar uma distinção em relação a conceitos mais formais de ‘visão do mundo’ ou ‘ideologia’. Não é apenas que devemos ir além das crenças formalmente mantidas e sistemáticas, embora evidentemente tenhamos sempre de incluí-las. É que estamos preocupados com [os] significados e valores tais como são vividos e sentidos ativamente, e as relações entre estes e [as] crenças formais ou sistemáticas são na prática variáveis (também historicamente variáveis) ao longo de uma gama que vai desde o consentimento formal com dissensão privada até à interação mais matizada entre crenças selecionadas e interpretadas e experiências agidas e justificadas” (Williams, 1977: 132). A despeito de sua dificuldade, é seguramente uma noção central na obra williamsiana. Segundo Filmer (2009: 374), “o conceito de estruturas do sentimento continua a ser a chave metodológica mais apropriada para a elucidação crítica das práticas artísticas através das quais as obras de arte se relacionam sociologicamente aos processos sociais gerais”. Para mais detalhes, veja também Ware (2011) e Oliveira (2016). .

O interesse e o frescor de sua obra permanecem vívidos sobretudo em razão da singularidade de seu método. Todavia, gostaria de mencionar também - em especial em razão da especificidade dos tempos difíceis que atravessamos - que, como observou West (1995West, Cornel. (1995). In Memoriam: The Legacy of Raymond Williams. In: Prendergast, Christopher (ed.). Cultural Materialism: On Raymond Williams. Minneapolis: University of Minnesota Press, p. ix-xii.: ix), “Williams fala-nos hoje principalmente porque ele é o melhor exemplo do que significa para um intelectual de esquerda contemporâneo esculpir e sustentar, com força silenciosa e reflexão incessante, um sentido de vocação profética num período de desmoralização e marginalização generalizada de pensadores e ativistas progressistas”.

É sobre alguns aspectos da obra desse autor, de extraordinária coerência teórica e política, que eu gostaria de me ater na busca de correlacionar duas das concepções que têm despertado recentemente o interesse da fortuna crítica williamsiana, e que habitualmente são tratadas em relação de mútua exclusão: as noções de estrutura e agência. O objetivo será o de percorrer alguns dos temas fundamentais da obra williamsiana, buscando sublinhar a maneira pela qual essas duas dimensões são contempladas e se articulam num arranjo teórico engenhoso capaz de habilitar, em conjunto, a formação de classe que estrutura as relações sociais assim como a possibilidade de ação política orquestrada pelos indivíduos, inclusive pela via da cultura.

A SINGULARIDADE DO MATERIALISMO DE WILLIAMS

Muito sugestiva é a conexão entre diversos níveis do tecido social que se pode depreender da análise de Stallybrass em O casaco de Marx, texto em que recupera a dinâmica entre as compulsórias penhoras que Marx se viu obrigado a realizar de seu casaco - prática que se devia às sérias dificuldades financeiras que ele e sua família atravessavam nos anos 1850 - e seu ingresso no Museu Britânico - local em que se exigia o uso dessa vestimenta. A conexão se dá assim entre o plano econômico - aqui representado pelo valor do casaco cujo montante se estabelecia, entre outros aspectos, em relação ao valor de mercado dos tecidos num momento em que o carro chefe da Revolução Industrial era a indústria têxtil - e o plano simbólico, que se entrevê por valores como a respeitabilidade, característica atribuída ao indivíduo, entre outros aspectos, em razão das roupas que ele porta:

O padrão usual do comércio de penhores, como tão bem demonstrou Melaine Tebbutt3 3 Aqui o autor se refere a Melaine Tebbutt, Making Ends Meet: Pawnbroking and Working-Class Credit (Leicester: Leicester University Press, 1983). , consistia em que os salários recebidos na sexta ou no sábado eram usados para recuperar as melhores roupas da loja de penhores. As roupas eram vestidas no domingo e então penhoradas, outra vez, na segunda-feira (um dia no qual as lojas de penhores recebiam três vezes mais penhores que em qualquer outro dia). E era um ciclo rápido, a maioria dos itens sendo penhorada e recuperada outra vez, semanalmente ou mensalmente. A taxa de penhora e recuperação era, ela própria, um indicador de riqueza e pobreza (Stallybrass, 2008Stallybrass, Peter. (2008). O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica.: 62).

A dinâmica da casa de penhores entrecruza esses dois níveis estruturais diversos - o econômico, ligado ao mercado de roupas usadas, e o simbólico, ligado à posição social dos indivíduos -, conferindo ao casaco essa função metonímica que permite entrever os aspectos definidores da própria noção de mercadoria, definida por seu duplo valor: o de uso e de troca. Esse entrecruzamento é recuperado aqui como mote para adentrar a conexão teórica entre esses dois planos, como propõe Williams.

Começo por delinear a dimensão de singularidade da obra de Williams no conjunto dos estudos materialistas da cultura, destacando o confronto que essa postura requereu perante o pensamento marxista mais consolidado, notadamente para introduzir temas e conceitos até então distantes da tradição marxista, como “significados, valores, tradição” (Inglis, 1995Inglis, Fred. (1995). Raymond Williams. London: Routledge.: 238). Para introduzir esse debate enfrentado por Williams, proponho que tomemos a conferência por ele ministrada em Montreal, em 1973, intitulada Base e superestrutura na teoria da cultura marxista, considerada “basilar não apenas por definir qual marxismo é de interesse para Williams, mas por ir além e expor as bases de sua concepção inovadora e extremamente produtiva das relações entre as forças sociais determinantes e as áreas determinadas” (Glaser, 2011Glaser, André. (2011). Prefácio à edição brasileira. In: Williams, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: viii, grifos do original).

Nela, Williams dialoga criticamente com o que se pode considerar o mainstream da crítica marxista da cultura do período. Williams não nomeie os autores aos quais se refere, atendo-se ao questionamento do uso mais geral do binômio conceitual base-superestrutura e da mais comum forma de relação atribuída a eles, a da determinação. Para fazê-lo, Williams recupera a dimensão linguística e teórica do conceito de determinação no próprio Marx - quase sempre o termo alemão bestimmen - para ressaltar que a argumentação no texto marxiano busca contornar qualquer sentido exterior à atividade humana: “Ele está se opondo a uma ideologia que insistia no poder de certas forças fora do homem, ou, em sua versão secular, em uma consciência determinante abstrata. A própria proposição de Marx explicitamente nega isso e coloca a origem da determinação nas próprias atividades dos homens” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 44). Em Cultura e sociedade, Williams já havia apontado a importância de se discutir a questão recorrendo à forma como Marx se referiu, mesmo que de forma pouco sistemática, à cultura, ressaltando a completa ausência de qualquer caráter dogmático no tratamento da literatura ou da arte em geral.

Marx, ele próprio, esboçou mas nunca desenvolveu por completo uma teoria da cultura4 4 A esse título, gostaria de remeter a dois textos dedicados à análise da presença da literatura na obra de Marx. Em primeiro lugar, o livro clássico de Prawer (2011), que faz um mapeamento das referências à literatura ao longo da obra marxiana, e, em segundo, o artigo de Fonte (2019), voltado para as referências literárias em O capital, de Marx. Vale ressaltar que a proposta interessante desse texto vai além do “uso ornamental” dessas citações e busca testar a hipótese de que “a apropriação de menções literárias ficcionais não aparece apenas instrumentalizada na prosa conceitual marxiana; ela também possui papel relevante na configuração de seu pensamento. Isto é, em vários momentos, a figura artístico-literária serve de corpo visível de sua reflexão” (Fonte, 2019: 351). . Seus comentários ocasionais acerca da literatura, por exemplo, são os de um homem culto e inteligente de sua época - não o que hoje entendemos por crítica literária marxista. Ocasionalmente, acontece que a sua extraordinária intuição social lhe permite estender um comentário, mas nunca se tem a impressão de que estivesse aplicando uma teoria. Não somente o tom da sua discussão desses temas é normalmente desprovido de qualquer dogmatismo, como se apressa a refrear tanto em teoria quanto em prática literárias tudo aquilo que, evidentemente, considerava uma extensão mecânica e devida a entusiasmo excessivo de suas conclusões de ordem política, econômica e histórica a outros tipos de fatos (Williams, 1969 [1958]Williams, Raymond. (1969 [1958]). Cultura e sociedade: 1780-1950. São Paulo: Companhia Editora Nacional.: 276-277, grifos de ALT).

O caráter mais detidamente teórico de Base e superestrutura na teoria da cultura marxista se deve sobretudo ao exame do termo determinação a partir de uma espécie de arqueologia do conceito no interior da história do pensamento em geral, e não apenas no marxismo. Segundo Williams, os usos do termo se desdobraram em dois sentidos originais e paralelos: (1) um de natureza teológica, que se refere a uma dimensão externa e onisciente, capaz de prever a totalidade da atividade humana, e, portanto, de controlá-la; e (2) outro originário da prática social, que pressupõe limites e pressões sobre ela. Williams explora essa diferença entre a pré-figuração e o controle, de um lado, e o exercício de limites e pressões, de outro, afirmando e mesmo lamentando que grande parte das análises culturais marxistas tenham acabado por sedimentar precisamente o primeiro sentido, em franco desacordo com as proposições de Marx e com aquela reivindicada por Williams. A crítica a essa postura de grande parte do pensamento marxista seria retomada inúmeras vezes ao longo de sua obra e mereceu um verbete específico em Palavras-chave, de 1976. Nesse novo livro, após uma detalhada recuperação do sentido etimológico da palavra determinar - assim como da história do termo na língua inglesa e de sua origem no francês e no latim -, o autor reapresenta os sentidos distintos e paralelos que foram atribuídos pelos pensadores marxistas à relação entre diferentes níveis do tecido social. Assim, Williams reafirma que parte do pensamento marxista

não raro insistiu na determinação econômica absoluta, em conjunção com resultados culturais, sociais e políticos dependentes - as leis da história e a lei da base (a estrutura econômica da sociedade) e da superestrutura (todo o restante da vida social) -, ao passo que em outros argumentos marxistas houve uma percepção de certos determinantes dentro dos quais ou em relação aos quais (essa distinção pode ser crucial) os homens atuam para fazer sua própria história (Williams, 2007 [1976]Williams, Raymond. (2007 [1976]). Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo .: 139-140, grifos do original).

A estratégia analítica assumida por Williams em Base e superestrutura na teoria da cultura marxista inclui uma análise detida dos dois polos ligados pela relação de determinação, ou seja, das noções de base e de superestrutura. O autor se debruça, em primeiro lugar, sobre os usos da noção de superestrutura. Atendo-se aos problemas que resultam de sua acepção como reflexo5 5 Williams trata da teoria do reflexo tanto em Base e superestrutura na teoria da cultura marxista quanto em Marxismo e literatura. Em nenhum dos dois o autor remete a um autor específico que desenvolva essa teoria. , Williams critica tanto seu funcionamento excessivamente passivo quanto o caráter pouco convincente das tentativas de emendar a análise por meio de ideias como a de atraso e defasagem. Ademais, a simples acepção de superestrutura como reflexo parecia não dar conta da explicação teórica.

Essa foi, do ponto de vista de Williams, a mais simples e frágil das formas de relacionar as noções de base e superestrutura, e, por isso, o autor não se atém apenas a ela, debruçando-se também sobre algumas das tentativas de superá-la, das quais resultam, em autores diversos, as noções de mediação6 6 Ao discutir o conceito de mediação em Marxism and Literature, Williams se refere a algumas correntes teóricas distintas, mas oferece destaque à tradição idealista e à contribuição de Theodor Adorno, especialmente ao texto “Thesen zur Kunstsoziology”. , de correspondência7 7 A referência fundamental desse conceito em Marxism and Literature é Walter Benjamin em “Zeitschrift für Sozialforschung”: “A noção rigorosa de ‘correspondências’ está no polo oposto de ‘tipicalidade’. Walter Benjamin, tomando o termo de Baudelaire, utilizou-o para descrever ‘uma experiência que procura estabelecer-se de forma à prova de crise. Isto só é possível dentro do reino do ritual’. O processo real de fazer arte é então a cristalização de tais experiências, por tais métodos. A sua presença e autenticidade podem ser reconhecidas pelo que Benjamin chamou a sua ‘aura’” (Williams, 1977: 103). , de estruturas homólogas8 8 O trabalho de Lucien Goldmann é, para Williams, a grande referência de um trabalho significativo a partir dessa categoria: “Por outro lado, ‘correspondência’ e ‘homologia’ podem ser com efeito reafirmações do modelo base-estrutura e do sentido ‘determinista’ de determinação. A análise começa a partir de uma estrutura conhecida da sociedade, ou um movimento conhecido da história. A análise específica, então, descobre exemplos desse movimento ou estrutura em obras culturais. Ou, onde ‘correspondência’ parece para indicar uma ideia de reflexo simples demais, a análise é dirigida para instâncias de homologia formal ou estrutural entre uma ordem social, sua ideologia e suas formas culturais” (Williams, [1977] 1977: 106). e mesmo de totalidade9 9 Williams não se refere aqui diretamente a Lukács, mas critica o uso frequente dessa noção, consolidada na teoria marxista principalmente a partir da teoria lukacsiana. Por isso parece-me pertinente ressaltar, recuperando Tertulian, que, ainda que “em seu conjunto, a obra de Lukács poderia ser definida como uma verdadeira teodiceia da ideia de totalidade” (Tertulian, 2008: 37), esse conceito não tem certamente um sentido unívoco em toda a sua obra, tendo variado de um período a outro. No que concerne ao meu argumento aqui, o problema fundamental apontado por Williams quanto à noção de totalidade advém do seu esvaziamento de qualquer conteúdo marxista já que, ao reconhecer como parte de um todo concreto todas as práticas sociais, a noção de totalidade ignora qualquer princípio de intenção que sempre marca a relação de uma classe em relação a outra (Williams, 2011 [1973]: 49-51). Para uma discussão mais detida sobre a variação do sentido da noção de totalidade na obra de Lukács, em especial suas implicações epistemológicas, veja Terezakis (2010). . Mas, curiosamente, embora se trate de uma teoria da cultura, Williams considera que exista maior interesse na discussão sobre a noção de base do que propriamente de superestrutura. Claro que os detalhes da forma de conceituação da superestrutura são fundamentais para qualquer análise materialista da cultura, e o próprio autor reconhece isso, mas o que parece ter requerido da crítica menos atenção é a problematização do próprio conceito de base, que tem um interesse estratégico na perspectiva de Williams e foi frequentemente tomado quase como um objeto estático e autoevidente:

A “base” é a existência social real do homem. A “base” são as relações reais de produção que correspondem a uma fase do desenvolvimento das forças produtivas materiais. A “base” é um modo de produção em um determinado estágio de seu desenvolvimento. Tomamos e repetimos proposições desse tipo, mas o seu uso é bastante divergente da ênfase de Marx nas atividades produtivas em relações estruturais específicas que constituem o alicerce de todas as outras atividades (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 46).

Isso porque, relembra Williams, um dos aspectos centrais da concepção de história em Marx envolve a permanente possibilidade de contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, de forma que se põe permanentemente no horizonte dessas relações, e movida por essa tensão, a possibilidade de sua variação dinâmica, o que dissolve, por coerência metodológica, qualquer tentativa de formulá-la em termos estáticos ou uniformes: “quando essas forças são consideradas, como Marx sempre as considerou, como as atividades específicas e as relações de homens reais, elas significam algo muito mais ativo, mais complexo e mais contraditório do que o desenvolvimento metafórico da noção de ‘base’ poderia permitir que percebêssemos” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 47).

É, portanto, da própria obra de Marx que Williams recupera a importância de se considerar a base como um processo, não como dado nem como estado, o que introduz, em sua relação com a superestrutura, muito mais a ideia de fixação de limites e o exercício de pressões do que uma simples transposição de conteúdos previamente fixados. Assim, Williams se posiciona em face de parte considerável da crítica marxista da cultura reivindicando a necessidade de uma dupla reavaliação conceitual: (1) a da superestrutura, repensada em termos de “práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 47); e (2) a da base, tomada como o conjunto das “atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 47). Essas considerações são pertinentes dentro de uma perspectiva mais ampla de Williams, que envolve a própria definição do que viria a compor essa base material. Em oposição à grande parte da crítica marxista da cultura, Williams não entende que a base se constitua exclusivamente da atividade econômica, entendida como forças produtivas primárias, mas, em termos mais largos e afinados com a análise de Marx10 10 É importante esclarecer que, nesse ponto, Williams retoma o exemplo do pianista dado por Marx nos Grundrisse ao definir trabalho produtivo. Segundo Marx, “não é absurdo, pergunta, p. ex. (ou algo similar), o senhor Senior, que o fabricante de pianos seja um trabalhador produtivo, mas o pianista não o seja, não obstante o piano sem o pianista seria nonsense? Mas é exatamente assim. O fabricante de pianos reproduz o capital; o pianista só troca seu trabalho por renda” (Marx, 2011: 514). O trecho sugere um corte estanque entre o trabalho produtivo, a base e o âmbito da cultura, o que iria contra os argumentos de Williams. Mas o autor lembra, por outro lado, a necessidade que se punha para Marx de definir o trabalho produtivo como produtor de mercadorias, ao mesmo tempo em que, também para Marx, as forças produtivas também envolvem a noção de produção de si mesmo por parte do trabalhador, acepção que abre espaço para uma concepção mais ampla de forças produtivas. , compõe-se também da “produção primária da própria sociedade e dos próprios homens, isto é, a produção e reprodução da vida real” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 49), afinal: “a coisa mais importante que um trabalhador produz é sempre ele mesmo, tanto na condição específica de seu trabalho quanto na ênfase histórica mais ampla dos homens produzindo-se a si mesmos e a sua história” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 48-49).

É importante ressaltar que o questionamento da forma como a determinação foi preponderantemente utilizada nas teorias marxistas da cultura não tem como desdobramento um abandono completo por parte de Williams de qualquer noção de determinação. Para o autor, “um marxismo sem algum conceito de determinação não tem, de fato, qualquer valor. Um marxismo com muitos dos conceitos de determinação que existem atualmente é radicalmente ineficaz” (Williams, 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 83). Williams insiste, no entanto, na importância de se reconhecer a distinção entre uma concepção de determinação como determinismo, desdobrada daquela primeira acepção exterior ao homem - que acaba por se confundir com uma certa ideia de fatalismo, já que nada se pode fazer para mudá-lo (Williams, 2007 [1976]Williams, Raymond. (2007 [1976]). Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo .: 139) -, e uma outra concepção de determinação como um conjunto de limites e pressões dentro do qual é possível conceber uma ação política transformadora. Quando se levam em consideração problemas complexos, que atravessam verticalmente diferentes níveis estruturais, como sua construção política e social, é de fundamental importância que os componentes habitualmente pensados como parte da superestrutura - como “certos tipos de teoria ratificadora, de lei e de instituição que, afinal, nas formulações originais de Marx, eram de fato parte da superestrutura” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 50) - sejam considerados na análise além de um nível meramente passivo. Nos termos de Williams, é necessário que elas sejam pensadas como componentes ativos das relações sociais, tanto da dominação de classe quanto de sua possível transformação: “Essas leis, constituições, teorias e ideologias que são tão frequentemente defendidas como naturais ou como tendo validade ou significância universal devem ser vistas como simplesmente expressando e ratificando a dominação de uma classe particular” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 51).

No universo das análises marxistas, é na obra de Gramsci, especialmente no conceito de hegemonia, que Williams localiza a formulação conceitual a seu ver mais adequada para se pensar a relação entre esses diferentes níveis da sociedade. Reconhecendo que há “muito de incerteza no uso que Gramsci faz do conceito” (Williams, 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 108), este ainda se constitui como uma perspectiva teórica de grande interesse para Williams uma vez que dá visibilidade a um processo de disseminação de um conjunto de ideias específicas que aparecem de forma totalizante, sem perder de vista a relação de dominação estabelecida entre as classes que subjaz a esse processo. Há que se considerar que mesmo as noções de cultura em Williams e em Gramsci guardam similaridades precisamente no que se referem ao uso vulgar do termo superestrutura, criticado pelo autor galês. Isso porque, segundo o artigo “Socialismo e cultura”, de Gramsci, a cultura é precisamente o vetor que torna possível a hegemonia de determinadas ideias, e, com isso, reafirma a dominação de uma classe sobre a outra.

[…] toda revolução foi precedida por um imenso trabalho de crítica, de penetração cultural, de permeação de ideias através de agregados de homens antes refratários e unicamente preocupados em resolver dia a dia, hora a hora, o próprio problema econômico e político para si mesmo, sem ligações de solidariedade com os outros que se encontravam nas mesmas condições (Gramsci 2021 [1916]Gramsci, Antonio. (2021 [1916]). Socialismo e cultura. Disponível em <Disponível em https://www.novacultura.info/post/2021/06/25/gramsci-socialismo-e-cultura >. Acesso em 18 jan. 2023.
https://www.novacultura.info/post/2021/0...
).

Isso implica considerar - e esse é o ponto fortemente explorado por Williams - que, em Gramsci, a cultura, “entendida como crítica, acaba por tornar possível a transformação social” (Dias, 2000Dias, Edmundo Fernandes. (2000). Gramsci em Turim: a construção do conceito de hegemonia. São Paulo: Xamã.: 67). Por isso, toda forma reducionista de teorização da cultura que tenda a tomá-la como dimensão passiva da vida social, na qual o que se tem é mero desdobramento do que se passa no plano de fato decisivo, que seria a base, deixa de fora da análise tanto ferramentas teóricas fundamentais para o conhecimento das sociedades quanto instrumentos fundamentais da ação política.

Nesse sentido, a noção de hegemonia é de grande interesse para a perspectiva williamsiana porque é capaz de dar visibilidade ao engate entre um plano ético-teórico-filosófico uma vez que se constitui a partir das possibilidades de percepção crítica das forças políticas que estão dadas, bem como do plano da práxis social, já que prepara e ajuda a viabilizar a transformação social. Como lembra Alves (2010Alves, Ana Rodrigues Cavalcanti. (2010). O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, 80, p. 71-96.: 75),

para Gramsci, a consciência crítica é obtida através de uma disputa de hegemonias contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no âmbito político, culminando, finalmente, numa elaboração superior de uma concepção do real. Por isso, ele enfatiza a necessidade de se conceber o desenvolvimento político do conceito de hegemonia não apenas como progresso político-prático, mas também “um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos”.

Assim, para Williams (2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 51-52), a noção gramsciana de hegemonia

supõe a existência de algo verdadeiramente total, não apenas secundário ou superestrutural, como no sentido fraco de ideologia, mas que é vivido em tal profundidade, que satura a sociedade a tal ponto e que, como Gramsci o coloca, constitui mesmo a substância e o limite do senso comum para muitas pessoas sob sua influência, de maneira que corresponde à realidade da experiência social muito mais nitidamente do que qualquer noção derivada da fórmula de base e superestrutura.

Atento aos processos de mudança em todos os níveis da sociedade, Williams salienta a perspectiva transformadora que modula o conceito de Gramsci, enfatizando a forma como a consciência de uma época se modifica, se transforma e se ajusta às necessidades de manutenção das relações de dominação. Há assim uma força criadora que move a relação de hegemonia, entendida como um campo em disputa que, como tal, interessa a toda perspectiva teórica preocupada com a noção de práxis social, como é o caso da williamsiana.

PARTICULARIDADES DA CONCEPÇÃO WILLIAMSIANA DE CULTURA

A perspectiva teórica proposta e defendida por Williams está caucionada no pressuposto de que há em toda e qualquer sociedade “um sistema central de práticas, significados e valores que podemos chamar apropriadamente de dominante e eficaz” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 53). Esse sistema, que não é abstrato, está profundamente imiscuído nas relações entre os indivíduos, modulando suas formas de perceber e experimentar a realidade social à medida que fornece “um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma sociedade, um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade mover-se, e que abrange muitas áreas de suas vidas” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 53). Esse sistema tampouco é um conjunto estático uma vez que tem plasticidade e dinamismo suficientes para se transformar no compasso das mudanças históricas e agir no sentido de promovê-las.

A consolidação desse sistema de práticas e valores, que permeia um conjunto de dimensões e instituições sociais que ajudam dialeticamente a reafirmá-los - como as instituições educacionais, os valores familiares, as organizações de trabalho etc. -, está na dependência do que Williams chama de processo de incorporação. Trata-se de um processo de recorte e reafirmação de valores que ajuda a confirmar uma certa forma de fixação do passado e, com ele, também do presente. No âmbito da cultura, esse processo é proposto pelo autor em termos de tradição seletiva, ou seja, aquilo que é tomado como significativo na história de uma cultura específica em detrimento do restante da produção cultural. Em Williams, essa ideia só é adequadamente compreendida quando se explora o complexo e combativo conceito de cultura proposto por ele, o qual envolveu diversos enfrentamentos de ordem conceitual e metodológica. É um conceito complexo que, no desenrolar de sua obra, passou por alguns deslizamentos de sentido.

Como ponto de partida, é pertinente assumir que sua formulação tem um forte componente de reação à concepção de cultura predominante no espaço acadêmico de Cambridge, onde ingressou como aluno e posteriormente como professor. Naquele cenário, os trabalhos de Leavis são a referência fundamental do cânone teórico vigente e implicam, em geral, na defesa de uma concepção de cultura como alta cultura - um repositório depurado do que se concebe como os mais altos valores de uma determinada sociedade, os quais encontrariam como guardiã uma pequena comunidade de eleitos responsável pela circunscrição dessa tradição seletiva já que só eles teriam os meios para fazê-lo e protegê-la da degradação que o desenvolvimento histórico e, principalmente, a consolidação das sociedades industriais promovem. Nos termos de Jones (2004Jones, Paul. (2004). Raymond Williams’s Sociology of Culture: A Critical Reconstruction. New York: Palgrave Macmillian.: 4), “o plano de Leavis era uma revisão contemporânea de um projeto iniciado no caso inglês por Samuel Coleridge e desenvolvido por Matthew Arnold - o estabelecimento de um estrato de intelectuais da cultura fornecidos pelo Estado, uma intelligentsia [clerisy]”. Segundo Leavis e Thompson (1937Leavis, F. R. & Thompson, Denys. (1937). Culture and Environment. London: Chatto and Windus.: 82),

torna-se agora claro porque é de tão grande importância manter viva a tradição literária. Pois se a linguagem tende a ser degradada […] em vez de revigorada pelo uso contemporâneo, então é apenas para a literatura, onde o seu uso mais subtil e fino é preservado, que podemos olhar com qualquer esperança de manter contato com a nossa tradição espiritual - com a ‘experiência escolhida em diferentes épocas’. Mas a tradição literária está viva apenas enquanto existir uma tradição de gosto, mantida viva pelos educados (que não devem ser identificados com nenhuma classe social); tal tradição - a ‘experiência colhida em diferentes idades’ - constitui um gosto mais seguro do que qualquer indivíduo pode pretender.

Em claro enfrentamento a esse universo teórico e moral, Williams propõe um conceito de cultura que busca, em lugar do afunilamento, a abertura para a participação de múltiplos atores e classes sociais. O texto com o qual gostaria de iniciar a discussão é “A cultura é algo comum” [“Culture Is Ordinary”], ensaio publicado em 1958 em Convictions, livro organizado por Norman Mackenzie. É com certeza um dos textos de Williams que, por justificáveis razões, conseguiu maior atenção da fortuna crítica. Com fortes inserções autobiográficas, frequentemente remetidas à origem agrária e proletária de sua família, o ensaio coaduna uma forte coerência teórica, ainda que dispense longas discussões conceituais, com um posicionamento político muito claro diante dessa ideia central em sua obra que é o conceito de cultura, aparecendo como um dos grandes exemplos da forte postura político-metodológica que emoldura a obra williamsiana. O texto tem início com a descrição do trajeto de ônibus que Williams costumava percorrer, quando jovem, pelas proximidades de Pandy, País de Gales. A simplicidade da cena descrita, que vai da procura pelo mapa-múndi no interior da catedral à observação interessada de cartazes de cinema afixados no ponto de ônibus, é o mote para introduzir um conceito de cultura essencialmente diverso daquele definido pela tradição canônica da crítica literária da época. A cena descrita opera assim como contraponto metafórico da ideia de comunidade orgânica, guardiã da tradição seletiva.

A cultura é algo comum, ordinário: devemos começar por aí. Crescer naquele lugar era observar a configuração de uma cultura e seus modos de transformação. Eu podia ir para o alto das montanhas e olhar para o norte, observando as fazendas e a catedral, ou para o sul, e ver a fumaça e o clarão da combustão na fornalha fazerem um segundo pôr do sol. Crescer naquela família era constatar a formação de modos de pensar: o aprendizado de novas habilidades, as mudanças de relacionamentos, o surgimento de linguagens e ideias diferentes. […] A cultura é algo comum a todos: este o fato primordial (Williams, 2015 [1958]Williams, Raymond. (2015 [1958]). A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Editora Unesp , p. 3-28.: 4-5).

Em termos conceituais mais claros, é possível pensar a cultura como uma ferramenta chave da obra williamsiana, que compreende uma dupla dimensão. Em primeiro lugar, a cultura pode ser pensada como todo um modo de vida, um conjunto de valores, práticas e experiências sociais de todos os membros de uma determinada sociedade uma vez que mediam as relações sociais, independentemente de seus níveis de educação e formação. Portanto, não há que se falar em grupo de eleitos responsáveis por resguardar, como um tesouro, o que seria a cultura. No entanto, a despeito de alargar o conceito de cultura como uma categoria que faz referência a todos os estratos sociais, Williams não perde de vista o reconhecimento do caráter criativo e emancipatório que nem toda a produção alcança, de forma que - e esse é o segundo alicerce do conceito de cultura em Williams - a análise envolve o reconhecimento desse atributos em uma parte da produção cultural, a qual, no entanto, não se confunde com qualquer noção de alta cultura, podendo emergir na produção de atores sociais pertencentes que qualquer classe ou estrato social.

Assim, segundo Jones (2004Jones, Paul. (2004). Raymond Williams’s Sociology of Culture: A Critical Reconstruction. New York: Palgrave Macmillian.: 3, grifos do original), o manejo analítico do conceito de cultura williamsiano permite

(a) O duplo propósito do uso que ele faz da categoria e das formulações relacionadas como meio de construir uma norma social crítico-emancipatória e como um meio de avaliação “empírica” contra essa norma. (b) O segundo critério de sobreposição deriva de sua visão de que, embora a “democratização cultural” tenha acarretado a rejeição do elitismo das várias formulações de minoria/massa, ela não implicava “equalizar” todos os atos culturais existentes como se eles fossem de igual mérito estético qualitativo.

No bojo do argumento que busco construir, interessa-me novamente ressaltar, no conjunto das implicações apontadas por Jones, a dupla dimensão metodológica que parece sempre ter preocupado Williams: uma delas de caráter estrutural e a outra relacionada à agência. Isso implica considerar que a cultura envolve a construção de um tecido normativo dentro do qual os indivíduos constroem sua história, o que opera, portanto, num nível estrutural. Ao mesmo tempo, a cultura está permanentemente submetida a mudanças históricas, as quais resultam justamente da ação dos indivíduos. Não se trata, portanto, de pensar qualquer nível estrutural numa perspectiva exclusivamente sincrônica que lhe conferisse fixidez, mas de pensá-la como matéria de transformação social precisamente pela ação dos indivíduos, embora potencialmente desigual, o que resguarda nessa categoria também a dimensão de agência social.

Como é próprio da perspectiva materialista, Williams procura imbuir seu universo conceitual de uma inalienável dimensão histórica, de modo que seus conceitos têm uma mecânica que abarca impreterivelmente a ideia de transformação social. A noção de tradição seletiva não é exceção. Ela não se constitui a partir de uma seleção definitiva e imóvel de práticas e obras presas num passado cujo significado estaria já cristalizado, mas de uma tradição em constante processo de recomposição. Assim, se o passado não é fixado, mas está em aberto, e se o presente ainda está em processo, o futuro das relações de hegemonia é trazido para as preocupações teóricas do presente como um espaço em que se ensejam, desde já, os moldes das novas relações de dominação. Daí a importância de se “reconhecer os significados e valores alternativos, as opiniões e atitudes alternativas, até mesmo alguns sentidos alternativos do mundo, que podem ser acomodados e tolerados dentro de uma determinada cultura efetiva e dominante” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 55).

Esse argumento é bastante propício para se apreender o caráter dinâmico e heterogêneo com que Williams formula seu conceito de cultura e no qual se ouvem os ecos da concepção gramsciana de hegemonia. Por meio dela, o autor busca dar conta também de componentes remanescentes que surgiram numa ordem social já esmaecida e de componentes que já começam a emergir e se referem a novas configurações das forças sociais. Em outras palavras, Williams admite a possibilidade de que uma cultura que se põe hegemonicamente como dominante conviva com elementos que lhe são diversos, bem como os incorpore. Num mecanismo de deslocamento temporal semelhante, Williams aponta a possibilidade de convivência de uma cultura dominante com valores e experiências que começam a surgir e hão de encontrar respaldo em configurações sociomateriais ainda em formação. É o que ele chama de experiências, significados e valores emergentes, que tanto podem ser submetidas a processos de incorporação por parte da cultura dominante, sempre vigilante à emergência do novo em seu espaço de hegemonia e à abertura de espaços para uma reconfiguração de forças e para uma transformação significativa na ordem social.

Portanto, Williams propõe um conceito de cultura que só se apreende num eixo diacrônico, destacando as relações de forças que vão definindo e transformando suas características no tempo. A formulação da noção de cultura como dimensão que pode conviver com elementos residuais de uma cultura passada, constituída em condições sociais anteriores às do presente, ou que apontem para práticas, experiências e valores ainda nascentes, deixa claro, em primeiro lugar, que a mudança social, o eixo de transformação diacrônica da cultura, é um dos aspectos decisivos para essa definição em Williams. Em segundo lugar, ela evidencia que, ainda que se possa falar no protagonismo de uma cultura dominante, esse conceito não é homogêneo e envolve sempre a possibilidade de convivência de elementos estranhos ou mesmo antagônicos a ele. Em entrevista a Perry Anderson, Anthony Barnett e Francis Mulhern, membros do Comitê Editorial da New Left Review, Williams comenta, dentre outros temas, a publicação e recepção de The Long Revolution. Eis um de seus comentários sobre a modulação da cultura pela luta de classes:

Não há dúvida de que o conflito de classes é inevitável dentro da ordem social capitalista. Há um conflito de interesses absoluto e impassível em torno do qual toda a ordem social é construída e que ele, de uma forma ou de outra, necessariamente reproduz. O termo luta de classes se refere, propriamente, ao momento em que esse conflito estrutural torna-se uma disputa consciente e mútua, um engajamento visível das forças. Qualquer discurso socialista sobre cultura deve incluir o conflito como uma condição estrutural, como todo um modo de vida. Sem isso, estaria errado. Mas se definirmos todo o processo histórico como luta, então devemos salientar ou aludir a todos os períodos em que o conflito é mediado por outras formas, quando há resoluções provisórias ou composições temporárias (Williams, 2013 [1979]Williams, Raymond. (2013 [1979]). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 129, grifo do original)

Esse dinamismo é um dos componentes que engendram a permanente possibilidade da transformação no bojo de uma noção de cultura também imbuída de instrumentos para apreender a ação transformadora do mundo social, entrecruzada que pela noção de práxis (e esse é o ponto fundamental): a mudança social é constitutiva da noção de cultura williamsiana não apenas como resultado de uma temporalidade marcada estruturalmente pela luta de classes, em transformação permanente, mas como resultado também da ação específica de determinados agentes e grupos sociais. A perspectiva da agência como componente de transformação histórica se combina com a da luta estrutural entre as classes.

A mútua imbricação entre estrutura e agência é assim um dos pontos de distinção da teoria williamsiana no conjunto das análises marxistas da cultura, presente na proposição de um olhar dialético que se lança aos mais diversos aspectos de seu complexo conceito de cultura. Tome-se, por exemplo, o modo como o autor pensa a transformação da língua e das linguagens ao longo da história. Embora longa, a citação retirada de entrevista concedida à New Left Review se justifica em razão da clareza com que apresenta esse aspecto metodológico que distingue sua obra:

Lembrem-se de que a relação indivíduo-sociedade pode ser avaliada de várias formas. A ordem social pode ser tomada como anterior aos indivíduos, que são seus meros exemplos ou espécimes. Ou a sociedade pode ser apresentada como a criação de indivíduos livres para certos propósitos e com certas liberdades. A força da distinção a-histórica entre langue e parole é que a fala humana torna-se possível apenas nos termos das restrições e oportunidades de um sistema pré-existente. Isso é perfeitamente correto em um sentido: não é possível falar ou ser entendido a não ser que façamos uso de recursos sistemáticos da linguagem. Mas essa organização sistemática se mantém uma criação de pessoas reais em relações reais. Este é um ponto bastante difícil, pois é sempre assumido que as linguagens simplesmente evoluíram no tempo. O movimento para fora dos estudos das origens e desenvolvimento da linguagem, um campo ainda fundamental, é um deslocamento ideológico. Mas o caráter sistemático da linguagem é o resultado, um resultado sempre em transformação, das atividades de pessoas reais em relações sociais, incluindo indivíduos não só como produtores da sociedade, mas, em uma relação dialética precisa, tanto produzindo, como sendo produzidos por ela. […] Entre outras coisas, a história do que chamamos de literatura é uma demonstração extraordinária da descoberta de novas possibilidades de uso linguístico. Os seres humanos criaram a linguagem e recriam-na não apenas por vontade, embora o façam algumas vezes, mas como um processo normal e continuado no curso de sua experiência social plena (Williams, 2013 [1979]Williams, Raymond. (2013 [1979]). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 335-336, grifos de ALT).

Assim, na perspectiva williamsiana, há que se iluminar, na análise, a relação dialética entre a dimensão mais estrutural dentro da qual os homens se formam e a possibilidade de os homens, em relações sociais precisas, modificarem, intencionalmente ou não, aspectos da cultura em que foram socializados.

LITERATURA COMO PRÁTICA SOCIAL

Embora deixe claro que, a seu ver, o desenvolvimento de uma metodologia “por meio da qual obras de arte específicas possam ser entendidas e descritas” não seja “a utilidade principal de uma teoria da cultura” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 63), o autor aceita adentrar a discussão e amarra de forma mais claramente metodológica essa análise geral da cultura, conforme se aproxima do final de Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. O engajamento nessa discussão é crítico e se dirige fundamentalmente às teorias que concebem a produção cultural em termos de consumo, o que, no limite, implica enfatizá-la como objeto a ser consumido e apreciado. Se o estudo do consumo das obras de arte, segundo Williams, teve origem numa teoria do gosto, o resultado analítico dessa perspectiva é o da localização de uma certa sensibilidade refinada e educada para apreciar o teor artístico dessas obras, sensibilidade que encontra na crítica um de seus espaços de consolidação e nos críticos um de seus grupos sociais de apoio. Williams atribui esse enquadramento teórico, a título de exemplo, a I. A. Richards e ao New Criticism.

A um crítico materialista como é Williams, a preocupação com a concepção da obra de arte como objeto preocupa à medida que resulta de todas as teorias do consumo, procedimento que elege essa dimensão, a do consumo, como locus decisivo para compreensão do que está em jogo em termos analíticos. O âmbito da produção e as condições colocadas por ela, fundamental para uma perspectiva materialista, são inteiramente deixadas de lado. Logo, “não se tratava apenas do fato de que as práticas de produção eram então ignoradas […]. As condições sociais reais de produção foram, em todo caso, negligenciadas, porque se acreditava que elas fossem, na melhor das hipóteses, secundárias” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 64).

É interessante observar como, a partir das teorias tardias do consumo e das perspectivas tanto do New Criticism americano quanto do estruturalismo francês e ainda do próprio Richards, Williams retoma o problema do par conceitual base-superestrutura para fixar esse problema comum: o da tomada da “obra como um objeto a ser reduzido aos seus componentes, mesmo que para ser mais tarde reconstituído” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 65) dentro de um esquema analítico que varia de acordo com a filiação metodológica do autor.

A perspectiva alternativa proposta por Williams é a da tomada da obra de arte como prática, não como objeto. O interesse fundamental dessa perspectiva reside na manutenção dos dois polos da relação envolvida na dimensão social da obra de arte - no caso da literatura, o autor e o leitor - como figuras ativas na relação social que se estabelece entre elas, a qual se dá entre agentes por meio da realização e da recepção ativa das obras, ou seja, de duas práticas combinadas. “O que isso nos mostra sobre a prática da análise é que temos de romper com a ideia difundida do isolamento do objeto para, então, descobrirmos seus componentes; temos de descobrir a natureza de uma prática e, então, suas condições.” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 66). Eis uma das chaves do confronto metodológico colocado por Williams nesse texto, ao lado da crítica ao uso vulgar e determinista do par conceitual base-superestrutura: a supressão de uma análise de objetos que transitam entre produtores e consumidores e a proposição de uma análise das obras como práticas que necessariamente precisam ser compreendidas à luz de suas condições históricas de produção e circulação entre agentes.

Escapar a essa objetificação da literatura e tomá-la como prática é condição necessária para concebê-la de forma rearticulada ao processo social material do qual foi apartada analiticamente. Trata-se, portanto, de um reparo conceitual pleno de consequências metodológicas. Williams mostra como a tradição de Cambridge, sobretudo com Richards, as teorias do consumo, o estruturalismo e o marxismo vulgar se alinham nesse ponto. Quanto à tradição de Cambridge - que toma a literatura como bens que exprimiriam os valores mais significativos da sociedade a serem apreendidos por uma análise da sensibilidade estritamente educada para apreciá-los -, ao estruturalismo - que pensa a literatura como texto, propondo uma “análise exclusivamente interna das obras [e] partindo do pressuposto de que todas elas possuem uma racionalidade interna que as costura em sua totalidade em termos de um sistema significante e, assim, descarta qualquer movimento analítico que busque conectar sua análise a seu contexto social” (Teixeira, 2021Teixeira, Ana Lúcia. (2021). Linguagem e determinismo cultural: diálogos críticos de Raymond Williams. In: Paixão, Alexandro H. et al. (orgs.). Centelhas de transformações: Paulo Freire e Raymond Williams. São José do Rio Preto: HN, p. 419-441.: 425) - e às teorias do consumo - originadas, em larga medida, de uma teoria do gosto que toma a literatura como objetos no mercado -, essa perspectiva da obra de arte em geral e da literatura em particular é mais facilmente perceptível. Quanto ao materialismo vulgar, Williams mostra de que maneira ele opera uma inversão mecanicista do princípio idealista ao propor uma ideia de cultura em termos de reflexo, gesto pelo qual produz na análise a ideologia que pretende criticar, pois “a separação e abstração da ‘consciência e seus produtos’ como um processo ‘refletivo’, ou de ‘segundo estágio’, resulta numa idealização irônica da ‘consciência e seus produtos’ nesse nível secundário” (Williams, 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 61). Como aponta Eagleton (1997Eagleton, Terry. (1997). Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp .: 75-76) em comentário precisamente a essa discussão de Williams: “pouco se tem a ganhar com erigir o idealismo em materialismo mecânico, fazendo do pensamento uma função da realidade, em vez do contrário. Ironicamente, esse gesto faz uma mímica do idealismo ao censurá-lo, pois um pensamento reduzido a um ‘reflexo’ ou ‘sublimado’ é tão imaterial quanto outro que esteja apartado da realidade”.

Eagleton (1997Eagleton, Terry. (1997). Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp .: 75) relembra ainda que “essa ‘fantasia objetivista’ presume que as condições de vida reais ‘podem ser conhecidas independentemente da linguagem e dos registros históricos. […] Pois, embora afirme, com vocação empírica, não terem nenhuma outra premissa além daquela de tomar como ponto de partida ‘homens reais’, é bastante evidente que aquilo que consideram real não é, de modo algum, isento de suposições teóricas.”. O ponto tocado por Eagleton é do maior interesse para se aquilatar a envergadura da crítica de Williams, a qual alcança a própria inviabilidade do conhecimento quando se leva às últimas consequências a separação estanque entre base e superestrutura, considerando a última como reprodução passiva dos conteúdos pré-fixados e determinados pela primeira. Isso porque “também o ‘processo de vida real’ está estreitamente vinculado com a ‘consciência’: a dos próprios analistas” (Eagleton, 1997Eagleton, Terry. (1997). Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp .: 75).

A perspectiva proposta por Williams, ao restituir a literatura ao plano social material, o que se dá por meio de sua formulação como prática social que conecta agentes diversos no âmbito de determinadas condições históricas específicas, dissolve a separação que a dupla conceitual base-superestrutura havia imposto entre a literatura - bem como outras formas de expressão artística - e o processo social material com que se coaduna.

O que de fato é idealizado, na visão redutora comum, é o ‘pensamento’ ou a ‘imaginação’, e a única materialização destes processos abstraídos deve-se a uma referência geral a todo […] o processo social material. E o que esta versão do marxismo sobretudo ignora é que o ‘pensar’ e o ‘imaginar’ são, desde o início, processos sociais (incluindo, naturalmente, aquela capacidade de ‘internalização’ que é uma parte necessária de qualquer processo social entre indivíduos reais) e que se tornam acessíveis apenas de forma indiscutivelmente física e material: em vozes, em sons feitos por instrumentos, em escritos gravados ou impressos, em pigmentos dispostos sobre tela ou pastel, em mármore trabalhado ou pedra. Excluir estes processos sociais materiais do processo social material é o mesmo erro que reduzir todos os processos sociais materiais a meros meios técnicos para alguma outra ‘vida’ abstrata (Williams, 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 62, grifo do original).

Por isso, Williams está sempre atento a essa conexão, segundo ele indissolúvel, entre o plano dos significados e valores e aquilo que ele chama de vida dos homens reais conectados por relações sociais reais: “ao descobrirmos a natureza de uma prática particular, bem como a natureza da relação entre um projeto individual e um modo coletivo, descobrimos que estamos analisando, como duas formas de um mesmo processo, tanto sua composição ativa quanto as condições dessa composição, e em ambas as direções essa é uma relação ativa complexa e em transformação” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 67).

A necessidade de formular uma perspectiva teórica que dê conta tanto dos componentes estruturais da vida social quanto da dimensão de agência dos indivíduos é correlata da proposta metodológica que envolve pensar a cultura em geral, e a literatura em particular, como prática social, ou “um reconhecimento de práticas relacionadas” (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 67). Pensada nesses termos, a literatura é formulada como espaço de criação cuja existência está na estrita dependência da ação dos agentes engajados numa relação social, quais sejam: autor e leitor. Dessa forma ela se conecta ao plano social material abrindo espaço para a transformação imaginativa da vida e, portanto, para a mudança social. Eis o que, dentre muitas contribuições instigantes, nos apresenta como singularidade o materialismo cultural de Raymond Williams.

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    Considero importante ressaltar que, a despeito de ser Leavis o grande nome de uma tradição firmada em Cambridge que Williams contestava firmemente, ele reconheceu, por mais de uma vez, a importância do trabalho do crítico inglês em suas próprias escolhas metodológicas: “Quando fui para Cambridge, encontrei duas influências sérias que causaram uma impressão [profunda] na minha maneira de pensar. A primeira foi o marxismo e a segunda os ensinamentos de Leavis. Mesmo ao longo de minhas discordâncias posteriores, sempre mantive o respeito por ambas as posições” (Williams, 2015 [1958]Williams, Raymond. (2015 [1958]). A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Editora Unesp , p. 3-28.: 10). E ainda, no mesmo texto: “Leavis nunca gostou dos marxistas, o que de certo modo é uma pena, pois estes sabem muito mais do que ele sobre a sociedade inglesa e sobre sua história recente. Por outro lado, ele sabe muito mais do que qualquer marxista que conheço sobre as relações efetivas entre a arte e a experiência” (Williams, 2015 [1958]Williams, Raymond. (2015 [1958]). A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Editora Unesp , p. 3-28.: 13). Ou seja, se é verdade que a fundamentação materialista da obra de Williams lhe deu apoio na crítica ao cânone de Leavis, é igualmente verdade que a importância da leitura textual que Williams aprendeu com Leavis o ajudou na crítica que dirigiu a alguns analistas marxistas da cultura cuja análise tinha, a seu ver, um caráter excessivamente determinista. Para mais detalhes, veja Cevasco (2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.), especialmente o capítulo “Questões de história intelectual”.
  • 2
    A noção de estrutura de sentimento foi definida pela primeira vez por Williams em Preface to Film, de 1954, e foi novamente referida em diversos momentos de sua obra. Reconhecidamente difícil de apreender, essa noção conta com uma vasta fortuna crítica e foi definida por Williams, em Marxism and Literature, de 1977, como resultado de seu interesse em “enfatizar uma distinção em relação a conceitos mais formais de ‘visão do mundo’ ou ‘ideologia’. Não é apenas que devemos ir além das crenças formalmente mantidas e sistemáticas, embora evidentemente tenhamos sempre de incluí-las. É que estamos preocupados com [os] significados e valores tais como são vividos e sentidos ativamente, e as relações entre estes e [as] crenças formais ou sistemáticas são na prática variáveis (também historicamente variáveis) ao longo de uma gama que vai desde o consentimento formal com dissensão privada até à interação mais matizada entre crenças selecionadas e interpretadas e experiências agidas e justificadas” (Williams, 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 132). A despeito de sua dificuldade, é seguramente uma noção central na obra williamsiana. Segundo Filmer (2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 374), “o conceito de estruturas do sentimento continua a ser a chave metodológica mais apropriada para a elucidação crítica das práticas artísticas através das quais as obras de arte se relacionam sociologicamente aos processos sociais gerais”. Para mais detalhes, veja também Ware (2011Ware, Ben. (2011). Williams and Wittgenstein: Language, Politics and Structure of Feeling. Key Words, 9, p. 41-57.) e Oliveira (2016Oliveira, Luciano Dutra de. (2016). As estruturas de sentimento: história e desenvolvimento da noção cultural por Raymond Williams. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.).
  • 3
    Aqui o autor se refere a Melaine Tebbutt, Making Ends Meet: Pawnbroking and Working-Class Credit (Leicester: Leicester University Press, 1983).
  • 4
    A esse título, gostaria de remeter a dois textos dedicados à análise da presença da literatura na obra de Marx. Em primeiro lugar, o livro clássico de Prawer (2011Prawer, Siegbert S. (2011). Karl Marx and World Literature. London: Verso.), que faz um mapeamento das referências à literatura ao longo da obra marxiana, e, em segundo, o artigo de Fonte (2019Fonte, Sandra Soares Della. (2019). Marx e a literatura em O capital. Revista de Estudos Avançados, 33/97, p. 347-359.), voltado para as referências literárias em O capital, de Marx. Vale ressaltar que a proposta interessante desse texto vai além do “uso ornamental” dessas citações e busca testar a hipótese de que “a apropriação de menções literárias ficcionais não aparece apenas instrumentalizada na prosa conceitual marxiana; ela também possui papel relevante na configuração de seu pensamento. Isto é, em vários momentos, a figura artístico-literária serve de corpo visível de sua reflexão” (Fonte, 2019Fonte, Sandra Soares Della. (2019). Marx e a literatura em O capital. Revista de Estudos Avançados, 33/97, p. 347-359.: 351).
  • 5
    Williams trata da teoria do reflexo tanto em Base e superestrutura na teoria da cultura marxista quanto em Marxismo e literatura. Em nenhum dos dois o autor remete a um autor específico que desenvolva essa teoria.
  • 6
    Ao discutir o conceito de mediação em Marxism and Literature, Williams se refere a algumas correntes teóricas distintas, mas oferece destaque à tradição idealista e à contribuição de Theodor Adorno, especialmente ao texto “Thesen zur Kunstsoziology”.
  • 7
    A referência fundamental desse conceito em Marxism and Literature é Walter Benjamin em “Zeitschrift für Sozialforschung”: “A noção rigorosa de ‘correspondências’ está no polo oposto de ‘tipicalidade’. Walter Benjamin, tomando o termo de Baudelaire, utilizou-o para descrever ‘uma experiência que procura estabelecer-se de forma à prova de crise. Isto só é possível dentro do reino do ritual’. O processo real de fazer arte é então a cristalização de tais experiências, por tais métodos. A sua presença e autenticidade podem ser reconhecidas pelo que Benjamin chamou a sua ‘aura’” (Williams, 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 103).
  • 8
    O trabalho de Lucien Goldmann é, para Williams, a grande referência de um trabalho significativo a partir dessa categoria: “Por outro lado, ‘correspondência’ e ‘homologia’ podem ser com efeito reafirmações do modelo base-estrutura e do sentido ‘determinista’ de determinação. A análise começa a partir de uma estrutura conhecida da sociedade, ou um movimento conhecido da história. A análise específica, então, descobre exemplos desse movimento ou estrutura em obras culturais. Ou, onde ‘correspondência’ parece para indicar uma ideia de reflexo simples demais, a análise é dirigida para instâncias de homologia formal ou estrutural entre uma ordem social, sua ideologia e suas formas culturais” (Williams, [1977] 1977Williams, Raymond. (1977). Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.: 106).
  • 9
    Williams não se refere aqui diretamente a Lukács, mas critica o uso frequente dessa noção, consolidada na teoria marxista principalmente a partir da teoria lukacsiana. Por isso parece-me pertinente ressaltar, recuperando Tertulian, que, ainda que “em seu conjunto, a obra de Lukács poderia ser definida como uma verdadeira teodiceia da ideia de totalidade” (Tertulian, 2008Tertulian, Nicolas. (2008). Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético. São Paulo: Editora Unesp .: 37), esse conceito não tem certamente um sentido unívoco em toda a sua obra, tendo variado de um período a outro. No que concerne ao meu argumento aqui, o problema fundamental apontado por Williams quanto à noção de totalidade advém do seu esvaziamento de qualquer conteúdo marxista já que, ao reconhecer como parte de um todo concreto todas as práticas sociais, a noção de totalidade ignora qualquer princípio de intenção que sempre marca a relação de uma classe em relação a outra (Williams, 2011 [1973]Williams, Raymond. (2011 [1973]). Base e superestrutura na teoria cultural marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp .: 49-51). Para uma discussão mais detida sobre a variação do sentido da noção de totalidade na obra de Lukács, em especial suas implicações epistemológicas, veja Terezakis (2010Terezakis, Katie. (2010). The Legacy of Form. In: Lukács, György. Soul and form. New York: Columbia University Press, p. 541-589.).
  • 10
    É importante esclarecer que, nesse ponto, Williams retoma o exemplo do pianista dado por Marx nos Grundrisse ao definir trabalho produtivo. Segundo Marx, “não é absurdo, pergunta, p. ex. (ou algo similar), o senhor Senior, que o fabricante de pianos seja um trabalhador produtivo, mas o pianista não o seja, não obstante o piano sem o pianista seria nonsense? Mas é exatamente assim. O fabricante de pianos reproduz o capital; o pianista só troca seu trabalho por renda” (Marx, 2011Marx, Karl. (2011). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo.: 514). O trecho sugere um corte estanque entre o trabalho produtivo, a base e o âmbito da cultura, o que iria contra os argumentos de Williams. Mas o autor lembra, por outro lado, a necessidade que se punha para Marx de definir o trabalho produtivo como produtor de mercadorias, ao mesmo tempo em que, também para Marx, as forças produtivas também envolvem a noção de produção de si mesmo por parte do trabalhador, acepção que abre espaço para uma concepção mais ampla de forças produtivas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2022
  • Revisado
    22 Ago 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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