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Cidadania médica, culturas e poder nos cuidados perinatais e pediátricos de imigrantes

Medical citizenship, culture and power in perinatal and pediatric immigrant care

Resumos

Através de uma descrição detalhada das consultas médicas de mães Cabo-Verdianas, estudantes em Portugal, observadas ao longo de dois anos de trabalho de campo, este artigo pretende elucidar as relações de poder inerentes na institucionalização da biomedicina em que as diferenças culturais são ignoradas, mal-entendidas e criticadas, oferecendo uma análise crítica sobre o princípio de tratamento igual para todos. A observação das consultas médicas faz parte de uma abordagem metodológica mais abrangente de acompanhar mães nas suas consultas com assistentes sociais e oficiais da imigração e de realizar entrevistas semi-estruturadas com as mulheres sobre as suas experiências de maternidade. A etnografia revela não só as limitações de uma política de um universalismo cego que nega as diferenças em nome do humanismo e dos direitos universais como revela a necessidade de se fazer uma distinção conceptual entre "literacia no domínio da saúde" (LDS) e "literacia dos sistemas de saúde" (LSS). Ao demonstrar como a biomedicina não pode ser separada do contexto cultural no qual é praticada, o artigo argumenta que o objectivo de promover a LSS de imigrantes, conhecedores de outras abordagens e sistemas de saúde, devia ser considerado como uma estratégia mais ampla de promoção de competência intercultural que visa ajudar tanto os médicos como os pacientes. Evitar utilizar o termo LDS que implicitamente rotula imigrantes como "analfabetos", é uma forma de valorizar as suas culturas, práticas e interesses alternativas em matéria de saúde e de ajudar a dissolver a hierarquia dos saberes entre médicos e pacientes imigrantes.

Imigrantes; Promoção da Saúde; Serviços de Saúde Reprodutiva


Through detailed ethnographic descriptions of Cape Verdean student migrant mothers' encounters with the Portuguese health system, based on two years of fieldwork, the aim of the paper is to elucidate the power relations inherent in institutionalised medical encounters through which cultural differences are ignored, misconstrued and criticised in order to provide a critical reflection upon the principle of equal, universal treatment for all. The observation of medical encounters constitutes part of a broader methodological approach of accompanying the mothers to appointments with doctors, social workers and immigration officials, as well as conducting semi-structured interviews with the women upon their experiences of motherhood. The ethnography not only highlights the shortcomings of a policy of blind universalism which denies difference in the name of humanism and human rights but also reveals the need to make a conceptual distinction between "health literacy" and "health systems literacy". By demonstrating how biomedical knowledge cannot be separated from the cultural context within which it is practised, the paper argues that promoting the systems literacy of immigrants who are literate in alternative health approaches and systems should be regarded as part of a wider strategy to increase the intercultural competency of doctors and patients alike. Refraining from using the term "health literacy" which implicitly labels immigrants as "illiterate", acknowledges their cultures and alternative health practices and concerns and contributes towards dissolving the knowledge hierarchies between doctors and immigrant patients.

Immigrants; Health Promotion; Reproductive Health Services


ARTIGOS

Cidadania médica, culturas e poder nos cuidados perinatais e pediátricos de imigrantes1 1 Pesquisa financiada pela FCT - Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, Portugal.

Medical citizenship, culture and power in perinatal and pediatric immigrant care

Elizabeth P. Challinor

Doutorada em Antropologia Social, Pesquisadora Associada Sénior. CRIA/UM: Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Lisboa/Universidade Minho. Avenida das Forças Armadas, 1600-083, Lisboa, Portugal. e.p.challinor@gmail.com

RESUMO

Através de uma descrição detalhada das consultas médicas de mães Cabo-Verdianas, estudantes em Portugal, observadas ao longo de dois anos de trabalho de campo, este artigo pretende elucidar as relações de poder inerentes na institucionalização da biomedicina em que as diferenças culturais são ignoradas, mal-entendidas e criticadas, oferecendo uma análise crítica sobre o princípio de tratamento igual para todos. A observação das consultas médicas faz parte de uma abordagem metodológica mais abrangente de acompanhar mães nas suas consultas com assistentes sociais e oficiais da imigração e de realizar entrevistas semi-estruturadas com as mulheres sobre as suas experiências de maternidade. A etnografia revela não só as limitações de uma política de um universalismo cego que nega as diferenças em nome do humanismo e dos direitos universais como revela a necessidade de se fazer uma distinção conceptual entre "literacia no domínio da saúde" (LDS) e "literacia dos sistemas de saúde" (LSS). Ao demonstrar como a biomedicina não pode ser separada do contexto cultural no qual é praticada, o artigo argumenta que o objectivo de promover a LSS de imigrantes, conhecedores de outras abordagens e sistemas de saúde, devia ser considerado como uma estratégia mais ampla de promoção de competência intercultural que visa ajudar tanto os médicos como os pacientes. Evitar utilizar o termo LDS que implicitamente rotula imigrantes como "analfabetos", é uma forma de valorizar as suas culturas, práticas e interesses alternativas em matéria de saúde e de ajudar a dissolver a hierarquia dos saberes entre médicos e pacientes imigrantes.

Palavras-chave: Imigrantes, Promoção da Saúde, Serviços de Saúde Reprodutiva.

ABSTRACT

Through detailed ethnographic descriptions of Cape Verdean student migrant mothers' encounters with the Portuguese health system, based on two years of fieldwork, the aim of the paper is to elucidate the power relations inherent in institutionalised medical encounters through which cultural differences are ignored, misconstrued and criticised in order to provide a critical reflection upon the principle of equal, universal treatment for all. The observation of medical encounters constitutes part of a broader methodological approach of accompanying the mothers to appointments with doctors, social workers and immigration officials, as well as conducting semi-structured interviews with the women upon their experiences of motherhood. The ethnography not only highlights the shortcomings of a policy of blind universalism which denies difference in the name of humanism and human rights but also reveals the need to make a conceptual distinction between "health literacy" and "health systems literacy". By demonstrating how biomedical knowledge cannot be separated from the cultural context within which it is practised, the paper argues that promoting the systems literacy of immigrants who are literate in alternative health approaches and systems should be regarded as part of a wider strategy to increase the intercultural competency of doctors and patients alike. Refraining from using the term "health literacy" which implicitly labels immigrants as "illiterate", acknowledges their cultures and alternative health practices and concerns and contributes towards dissolving the knowledge hierarchies between doctors and immigrant patients.

Keywords: Immigrants, Health Promotion, Reproductive Health Services.

Introdução

Quando uma mulher, à espera do seu primeiro filho, entra num hospital ou centro de saúde para receber cuidados perinatais e, mais tarde, para receber cuidados pediátricos do seu bebé, ganha uma identidade de "leigo" que se sujeita à legitimidade do conhecimento biomédico. Se partilhar a cultura dominante com os profissionais de saúde, o papel da cultura no seu relacionamento passará despercebido, o que não será o caso para mulheres imigrantes, para quem, tanto a "cultura médica", como a cultura dominante do país acolhedor, apresentam desafios adicionais à experiência estruturante de se tornar mãe. É neste contexto que as experiências de jovens mulheres Cabo-Verdianas são analisadas, à luz dos conceitos de "competência cultural" e de "literacia no domínio da saúde". Trata-se de conceitos frequentemente utilizados em conjunto na literatura que procura aumentar a "cidadania médica" dos imigrantes e aperfeiçoar os modelos de relacionamento entre profissionais médicos e pacientes imigrantes de forma a melhorar o serviço prestado. Os dados aqui analisados sugerem que a promoção da competência intercultural, tanto dos médicos como dos pacientes, oferece uma perspectiva mais abrangente para abordar a questão da cidadania médica de imigrantes.

Conhecimento, Poder e Culturas

Inicialmente marginalizada como 'um tema de mulheres', a maternidade é uma área de investigação em expansão que se cruza com debates na antropologia sobre a relação entre o conhecimento e o poder, a ciência e a cultura. A sua aceitação como um tema legítimo de investigação é devida, em grande parte, ao trabalho de Jordan, cujo livro - "Nascimento em Quatro Culturas" (1993) - abriu novos caminhos de investigação. Ao demonstrar que o nascimento não é simplesmente um acto biológico, Jordan elucidou a importância de se estudar o seu contexto sócio-cultural, no qual diferentes sistemas de saberes possam coexistir. Elaborou o conceito de "authoritative knowledge" para referir-se ao conhecimento que se torna legítimo em determinadas comunidades da prática para tomar decisões e justificar acções, resultando, muitas vezes, na desvalorização de outras formas de conhecimento. A variedade cultural de saberes sobre a maternidade foi divulgada pelo trabalho de Kitinger (1978). Outros estudos (Martin, 1987; Davis-Floyd e Sargent, 1997) também demonstram como a legitimidade do conhecimento biomédico é construída, em detrimento da valorização dos conhecimentos da mulher. Martin também compara a intervenção dos obstetras com a intervenção do mecânico, onde o corpo da mulher é visto como uma máquina (1987). Os autores de "Birth by Design" (Benoit e col., 2001) argumentam que a prestação de cuidados maternos se distingue de outros cuidados médicos (excepto pediatria) porque o foco das atenções não começa com a doença, senão com o crescimento saudável, constituindo uma mistura emotiva entre ciência médica, ideias culturais e forças estruturais.

A relação entre práticas biomédicas e vivências culturais torna-se ainda mais evidente no contexto da imigração que revela como o poder da cultura dominante pode passar despercebido nos cuidados médicos. Uma assistência prestada a mulheres imigrantes, num quadro "monocultural", corre sempre "o risco de projectar e impor valores morais e configurações de estilos de vida considerados como "saudáveis" pela cultura ocidental" (Coppo, 2003 citado por Pussetti e col., 2009). Desenvolver a "competência cultural", saber interagir eficazmente com pessoas de diferentes culturas, torna-se, neste contexto, um componente fundamental na formação profissional e na formação e socialização em serviço dos profissionais de saúde. No seu estudo sobre a promoção de saúde de mulheres imigrantes cabo-verdianas residentes nos Estados Unidos, De Jesus (2009) conclui que é através dum relacionamento mais próximo entre profissionais de saúde e as mulheres cabo-verdianas que os profissionais podem compreender os factores estruturais e culturais que afectam a sua saúde e incorporar este conhecimento nas suas práticas biomédicas.

No seu estudo sobre os caminhos para a saúde mental de Cabo-Verdianos na Holanda, Beijers e de Freitas (2008) apontam para a necessidade de rever o modelo de tratamento biomédico de forma a incluir questões ligadas à imigração, à cultura e às circunstâncias quotidianas sociais dos pacientes. Para estes efeitos, utilizam o conceito de "cidadania médica" (Scheper-Hughes, 2004 citado por Beijers e de Freitas, 2008) para referir os direitos dos utentes de serviços de saúde, no seu papel de cidadãos e de clientes ao acesso grátis à informação médica e ao controlo dos seus tratamentos. Afirmam que o exercício de "cidadania médica" requer "ferramentas" específicas; nomeadamente, a participação nos serviços de saúde e "health literacy" - "literacia no domínio da saúde" - entendida como a capacidade de tomar decisões seguras de cuidados de saúde no contexto da vida diária (Kickbusch e col., 2005 citado por Beijers e de Freitas, 2008, p.237). Perceber a linguagem médica é importante para que se possa tomar decisões informadas. Segundo estes autores, o grau de participação nos serviços de saúde vai depender, em parte, do grau de "literacia" que os pacientes detêm no domínio da saúde.

Mães Estudantes Cabo-Verdianas no Norte de Portugal

A pesquisa desenvolvida entre Abril 2008 e Dezembro 2010, junto da comunidade estudantil cabo-verdiana em Portugal, começou por contactar jovens mães e entrevistá-las sobre as suas experiências de maternidade. Para muitos estudantes provenientes de Cabo Verde, estudar no norte de Portugal coloca vários desafios. Alunos das escolas profissionais, por exemplo, chegam a um país estrangeiro pela primeira vez, sem alojamento garantido. Partilham quartos e camas, no inicio do ano escolar, com colegas dos segundos e terceiros anos até encontrarem alojamento próprio para alugar. Para este efeito, é preciso um fiador ou então entrar em acordo verbal com os senhorios dispostos a alugarem quartos sem contracto. E, mesmo assim, como as rendas são altas, muitos continuam a partilhar quarto e até cama. Dificuldades financeiras são comuns, especialmente quando há atrasos no pagamento das bolsas que os alunos recebem através das escolas profissionais. Adaptação a um clima mais frio é outro desafio quando é preciso sair cedo de casa para chegar às aulas. Cada falta é descontada no valor da bolsa. Vários alunos também falaram de algumas dificuldades de aprendizagem, sobretudo no início, ao adaptarem-se a um novo sistema educativo. Embora o Português seja a língua oficial de Cabo Verde, estudantes oriundos do interior, sentem-se muito mais à vontade a falar em Crioulo e não se pode presumir que conseguem comunicar completamente à vontade em Português. Além da adaptação em geral a um novo contexto sociocultural, constituem outros afazeres inscrição no centro de saúde, a renovação atempada do visto e, nalguns casos, a procura de trabalho para aumentar os rendimentos. Para as jovens mulheres, em particular, também surge a questão de como lidar com a liberdade sexual que descobrem em Portugal, em comparação com o ambiente mais protector do meio familiar cabo-verdiano (Rodrigues 2007).

É, dentro deste contexto, que uma gravidez inesperada, que é o caso da maioria dos casos estudados, se torna um grande desafio. As principais barreiras a ultrapassar incluem: resolver avançar ou não com a gravidez; assegurar o apoio emocional e financeiro da família e dos pais dos bebés, na maioria dos casos também estudantes com poucas posses; resolver a questão da paternidade quando os pais a contestam; informar-se como prevenir outra gravidez; aprender a lidar com o sistema de saúde Português; resolver como cuidar dos bebés face às indicações contraditórias que recebem de médicos, enfermeiros e familiares; encontrar alojamento adequado para estar com o bebé; aprender a "navegar" no meio da burocracia do estado, de forma a receber apoio financeiro da segurança social; conseguir registrar o bebé e renovar vistos atempadamente para evitar pagamento de coimas; conciliar estudos com maternidade e encontrar uma ama ou creche para o bebé. O maior desafio de todos, que afecta a realização eficaz de muitos destes desafios, é conseguir desenvolver autonomia longe do apoio da família e dos costumes da terra, alguns dos quais não conseguem praticar em Portugal. O ritual "Noite de Sete", por exemplo, embora esteja a perder o seu significado original de defender o bebé de bruxarias, não deixa de ser motivo de uma festa de convívio em Cabo Verde com familiares e amigos para marcar o sétimo dia do nascimento do bebé (Lopes Filho, 1995). Nem todas as mães estudantes conseguem festejar esta data em Portugal, por falta de meios e de apoio.

Igualdade e Diferença

Além das entrevistas realizadas, parte integrante do estudo consistiu em acompanhar as mulheres nas suas consultas médicas. Como será discutido em mais pormenor a seguir, o director do serviço de obstetrícia explicou que as mães eram livres de se fazer acompanhar por quem quisessem. No entanto, sempre avisei os médicos e enfermeiros que se tratava de uma pesquisa onde seria salvaguardado o anonimato das pessoas e da instituição envolvida. Antes de começar o trabalho de campo no hospital, tive vários encontros e discussões com o director de serviço de obstetrícia.

Segundo o director, não é preciso cuidados especiais na prestação de serviços perinatais e pediátricos para mulheres imigrantes. "Todas as mulheres que dão entrada no hospital", afirma o médico, numa conversa em que tento esclarecer os objectivos da minha pesquisa, "são tratadas iguais, da mesma forma. Não interessa se é Cabo-Verdiana ou Portuguesa". Esta afirmação desvaloriza as diferenças culturais em nome dum princípio de igualdade de direitos para todos.

Enquanto escrevo estas palavras do director, o meu trabalho é interrompido por uma chamada de uma mulher cabo-verdiana que está a caminho do mesmo hospital, a perguntar-me como é que se chama a enfermeira com quem falámos há quatro dias, que tinha prometido telefonar para esclarecer porque é que ela não foi contactada para assistir às aulas de preparação de parto. Duas vezes a enfermeira tinha perguntado à mãe de quantas semanas é que ela estava grávida, e ambas vezes a mãe respondeu que não sabia. Estava grávida de sete meses, agora saber dizer as semanas.... A enfermeira torceu o nariz. Agora, pelo telefone, digo-lhe o nome da enfermeira e telefona-me minutos depois a exclamar: "Não quero mais nada com este hospital, estou farta!". A enfermeira, conta a mãe, terá dito que ainda não sabe nada, e não pode dar autorização para começar as aulas de parto porque não tem acesso ao seu processo. A mãe continua, no telefone, a me dizer que não está a ser seguida como deve ser e fala-me duns gráficos quaisquer que acha que deviam, e não estão a ser, preenchidos no seu boletim de grávida. Conheci esta mãe há pouco tempo, e no primeiro encontro que tivemos, afirmou que a sua médica era "maluca", que não lhe estava a medir as tensões e que "é tudo maluco naquele hospital".

Já acompanhei várias vezes mais oito mães às consultas externas de obstetrícia e pediatria neste hospital e há dias em que a sala de espera fica quase cheia e, nestas ocasiões, fica-se com a impressão que os enfermeiros e os médicos estão pressionados pelo tempo. Na consulta de obstetrícia, os nomes são chamados pelo altofalante e é preciso entrar num longo corredor com muitas portas das quais estão constantemente a entrar e a sair médicos e enfermeiros. Nem sempre a voz é muita clara para se poder decifrar o número da porta para o qual as mulheres foram chamadas. Já fiquei várias vezes no corredor com uma mãe a tentar perceber qual é a porta aonde se deve dirigir. Nestes dias de muito vai e vem, compreendo que a mãe possa afirmar que "é tudo maluco naquele hospital". No entanto, o sentido desta afirmação vai mais longe e não me compete, nem é o meu objectivo analisar a qualidade dos cuidados prestados. Tendo dito isto, interessa-me, sem dúvida, a percepção que a mãe tem da qualidade dos cuidados que ela recebe ou não recebe.

O director do serviço de obstetrícia informou-me que, se o que eu pretendia era simplesmente acompanhar as mães nas suas consultas, nem era preciso autorização. As mães podiam levar quem elas quisessem e os médicos não têm nada com isso. Também disse que eu podia perguntar o que eu quisesse às mães. Agora, se quisesse entrevistar médicos e enfermeiros, isso era outra história. O director nunca mostrou abertura para que eu falasse com o pessoal do hospital. No primeiro encontro, onde não tinha visto o meu projecto ainda, afirmou logo que se tentasse falar com os médicos, que me iriam tratar mal. No segundo encontro, contextualizou melhor a sua afirmação, dizendo, "Tem que haver uma resposta oficial, não a vão receber bem porque não têm tempo para pensar nisto". Já me tinha dito antes pelo telefone: "Os inquéritos não podem ser respondidos a título pessoal, se não, não vai correr bem. Têm de ser respondidos em nível do protocolo do serviço". Não se tratava de não poder falar com os médicos e enfermeiros, mas era preciso compreender melhor o que eu queria fazer. Assistir aos partos? Isso não era interessante para mim. Tudo que eu queria saber estaria no boletim da grávida.

Acabei por explicar ao director do serviço que estava interessada em investigar as relações de poder, o poder do conhecimento médico. "Claro" respondeu. Tratava-se simplesmente do conhecimento profissional.

"É como o mecânico. Como é que sabemos se o mecânico não nos enganou, trocando uma peça que não era preciso trocar?" A autoridade do poder dos médicos! "Claro que as mulheres se submetem, isto é universal. Em África, pode ser ao feiticeiro em vez de ser ao médico."

O director sugeriu que eu pensasse melhor naquilo que eu queria fazer reformulando o projecto. Agora, se era acompanhar as mães nas suas consultas, no seu dia-a-dia, nos outros sítios onde elas iam, estaria a produzir uma espécie de diário de Anne Frank: "presumo que não é isso que quer?" Saí do meu último encontro com o director, com a sensação de que o "mecânico" estava, mesmo assim, a esquecer-se de algumas peças. Saí com a sensação de que, se conseguisse produzir algo que chegasse à profundidade do diário de Anne Frank, através do meu trabalho de campo com as mães cabo-verdianas, ficaria muito satisfeita. Percebi a intenção provocadora do director ao evocar o diário de uma forma pejorativa. No entanto, a sua provocação, e toda a nossa conversa, serviu para elucidar e corroborar muitas das observações do estudo feito por Carapinheiro (1998), uma década atrás, sobre os serviços hospitalares analisados em Lisboa. Ao falar das dificuldades no arranque da investigação na sociologia médica Carapinheiro afirma que a evidência do "carácter 'natural' e 'biológico' dos factos de saúde...quase parecia dispensar a necessidade de uma abordagem suplementar à desenvolvida pelas ciências médicas" (p. 35). A suposta "universalidade" da submissão das mulheres ao poder médico, comparada pelo director à submissão inevitável do leigo ao conhecimento técnico de um mecânico, demonstra como, e cito Carapinheiro:

[...] a relação terapêutica, como relação social, estabeleceu-se nas sociedades contemporâneas com base na entrega incondicional do doente nas mãos dos médicos, pela atribuição que lhe foi feita do poder de curar como um poder técnico e um poder social, inacessível e inatingível, logo mágico (1998, p. 147).

O princípio de igualdade de direitos para todos, aplicado ao campo de prestação de serviços médicos, contesta esta mistificação do conhecimento médico através do conceito de "cidadania médica".

A mãe que me telefonou, a queixar-se de como não estava a ser bem seguida no hospital, parecia não saber como exercer a sua cidadania médica. As dúvidas de como proceder, não serão mais fortes nas mulheres imigrantes, longe da sua terra, da sua família, dos seus costumes? Esta é a postura de Marie Rose Moro e os seus colegas, que oferecem o que chamam "consultas transculturais" a todas as mães imigrantes em alguns hospitais em Paris e Bordéus em França. O seu livro "Maternités en Exil" critica como em nome de uma universalidade vazia e de uma ética redutora, os dispositivos de prevenção e de cuidados não integram a complexidade das lógicas culturais ou sociais (Moro e col., 2008). Um dos autores do livro conta como a falta desta "peça" começa por ser sentida no seu serviço quando uma mãe do Haiti parece estar a relacionar-se mal com o seu bebé e recusa voltar para casa depois do nascimento, ameaçando deixar o bebé no hospital se a obrigam a sair. A equipe médica está preocupada, não entende e não sabe o que fazer com esta mãe que consideram ter "uma grande pobreza nos seus pensamentos" (2008, p. 52). Chamam Marie Rose Moro, responsável pela consulta de psiquiatria transcultural de Avicenne que vem acompanhada de alguns colaboradores deste serviço. A consulta é demorada, dando tempo à mãe de explicar porque é que ela sente que o seu filho estará desprotegido em casa e acaba com várias receitas terapêuticas que visam proteger o bebé que incluem organizar o baptismo o mais rápido possível e proteger a casa com água salgada (2008). A mãe aceita ir para casa com o bebé e volta para a consulta dentro de uma semana. A equipe médica fica admirada com a sua transformação: parece mais nova, mais bela, e "melhor na sua cabeça". Este caso foi suficiente para convencer os colegas da importância de uma abordagem transcultural. O livro está repleto de estudos de caso que demonstram como esta abordagem consegue desbloquear situações, e resolver mal-entendidos. As equipes médicas começam, elas próprias, a solicitar consultas transculturais para os seus pacientes, e conta um dos autores do livro, que os psiquiatras das consultas transculturais são vistos quase como "mágicos" pelos seus colegas. Pouco a pouco, as equipes começam a entender que a técnica não é "nua" (2008) e que é importante que a mulher grávida imigrante tenha uma representação cultural aceitável daquilo que lhe é feito no hospital. Desta forma, ela pode construir uma estratégia individual de passar de um universo para outro, sem ter que renunciar às suas próprias representações. Falam os autores da possibilidade de construir uma verdadeira estratégia de mestiçagem (2008). A abordagem é institucionalizada, e criam-se encontros abertos entre mães imigrantes e todos os profissionais de saúde que queiram participar, a título rotativo, onde tudo pode ser discutido. Os autores contam que desejam, como médicos, "faire un petit pas vers elles qui ont fait un si grand pas vers nous" (2008, p. 145). Tentam, na medida do possível, dissolver as hierarquias, partilhando também as suas próprias experiências de mães, para que a interacção seja mais pessoal e individualizada (2008).

Voltemos ao caso de Portugal. Nas consultas observadas não transparecem sinais de uma política institucionalizada de o que poderíamos chamar mediação cultural. O conteúdo das discussões com o director do serviço hospitalar de obstetrícia, analisado à luz da experiência francesa, convida a reflectir sobre a invisibilidade das mães cabo-verdianas como "seres diluídos" pelo tratamento democrático comum. Importa referir aqui, também, o perigo de o que alguns autores chamam "novo racismo" (Hill Collins, 2005): um universalismo cego que nega as diferenças em nome do humanismo e dos direitos universais. Por outro lado, algumas das consultas observadas, no hospital e nos nove centros de saúde onde acompanhei mães, realçam a visibilidade das mães imigrantes como "seres exóticos" (Said, 1978), mal entendidos pela predominância institucional de uma abordagem "monocultural".

Uma Mãe Ausente?

Vejamos o caso da Núria que fala pouco nas consultas. Também é o caso da Sandra que uma vez, explica-me, ao sair de uma consulta no hospital, que é melhor não falar muito com os médicos porque a sua ama (da segurança social) já a tinha avisado para ter cuidado; se acham que não está a cuidar bem podem retirar-lhe a criança. A Núria sempre sorri muito nas consultas de centro de saúde. Olha muito para o seu bebé e sorri para mim, partilhando o seu deleite com as graças que ele faz. Agora está a andar pelo consultório da médica.

"Está a ouvir? Olhe para mim, não se preocupe que eu estou atenta aos dois. Como é que se chama?"

A resposta da Núria é tão baixa que ela não ouve.

"Desculpe? Ah sim, Núria, um nome esquisito, tenho Salviany...." E menciona uma lista de outros nomes com uma sonoridade parecida.

A seguir, a médica vira-se para o médico assistente e comenta:

"Este menino, sempre achei, tem de ser estimulado mais. Ele está onde, na ama?"

Núria acena com a cabeça.

"Tem de dizer à ama. É preciso ensinar os bebés a fazer coisas. É importante para a sua concentração".

A médica começa a percorrer a lista no boletim de saúde do bebé, a colocar perguntas para avaliar o seu grau de desenvolvimento. As respostas da mãe são monossilábicas, sempre sorrindo e a acenar com a cabeça. A médica responde:

"Não se acanhe, estamos a falar".

A médica pergunta se ele tenta vestir-se sozinho. A Núria acena com a cabeça. A médica insiste.

"Mas ele veste-se mesmo?"

A mãe responde que o ajuda. A médica sugere que lhe ponha o casaco para sair. A mãe, com ar envergonhado, chama o filho em voz baixa e começa a vestir-lhe o casaco. O bebé levanta ligeiramente o braço direito e a médica exclama:

"Está a ver o que quero dizer? Ele sabe fazer, mas tem de encorajá-lo".

A seguir, demonstra à mãe como é que tem que ensinar o filho a dar-lhe um brinquedo. Oferece lhe um brinquedo e põe-se na sua frente a dizer "dá, dá, dá" gesticulando com as mãos, mas o bebé não larga o brinquedo. A médica senta-se e vira-se para Núria.

"Acho que tem de ser uma mãe mais presente, dar afecto, não é só vestir e dar de comer. O afecto não é só entre adultos, entre homem e mulher. O outro tipo, os bebés também precisam".

Núria não responde. No fim da consulta, fora do consultório vira-se para mim e diz,

"A médica disse que eu tenho de estar mais presente. Eu não estou presente? Eu faço tudo. A médica está a exigir demais também".

Falar e olhar constituem canais interactivos privilegiados para os ocidentais se relacionarem com os seus bebés. Do ponto de vista da médica, a suposta falta de estimulação, por parte da mãe, equivalia a uma falta de afecto. Será que alguns conhecimentos sobre como, na África e na Índia, o contacto proximal é muito mais valorizado do que o contacto distal teria ajudado a médica a compreender melhor a postura da Núria? Em algumas culturas Africanas e Asiáticas, tocar e carregar o bebé nas costas é muito mais valorizado do que falar com o bebé (Moro e col., 2008).

Assisti a outra consulta onde uma enfermeira insistia com uma mãe que era preciso "treinar mais a linguagem" e falar com o seu filho correctamente. A criança olhava para os bonecos na parede e dizia "uau uau" e a enfermeira respondia, "Não é uau uau, é um cão. Não é popó, é um carro." Depois dirigiu-se à mãe, e disse-lhe: "Tem de estimulá-lo mais, é muito importante. Talvez tenha mais tempo ao fim de semana. Na linguagem, está um pouco mais atrasado".

O suposto "atraso" no desenvolvimento destes bebés Cabo-Verdianos também poderá ser questionado à luz das observações de Gottlieb (2004) sobre como os indicadores de desenvolvimento das capacidades sociais e cognitivas das crianças, são baseadas em pesquisas com crianças Europeias e Euro-americanas que, depois, são usadas como normas universais. Contudo, não é de estranhar que os médicos não questionem estes indicadores. Poderá estranhar mais que a médica tenha qualificado o nome da Núria como esquisito. No entanto, a médica estava a reagir a partir das suas referências culturais Portuguesas em que os nomes tradicionais são os mais valorizados (Pina-Cabral, Lourenço, 1994). Várias médicas e assistentes sociais, observadas nas consultas, chamaram de "esquisito" os nomes das mães ou dos seus bebés. Por outro lado, algumas mulheres Cabo-Verdianas orgulhavam-se da criatividade dos nomes que deram aos seus filhos e achavam os nomes Portugueses demasiado clássicos. Uma mãe Cabo-Verdiana queixou-se a mim de que nenhuma das suas amigas gostou do nome "Diogo" que tinha escolhido para o seu filho porque era muito Português. Outra contou com orgulho que escolheu o nome "Salvianny" para a sua filha, a partir da marca, escrita na haste dos seus óculos.

Embora a intenção dos médicos não seja a de ofender as mães ao comentar os nomes e, nalguns casos, tratava-se de uma tentativa de conversar com elas, num contexto multicultural as boas intenções podem mais facilmente ser mal apreendidas. Contudo, a postura do profissional de saúde também influencia o relacionamento entre médico e paciente imigrante.

Profissionalismo ou Humanismo?

Uma das barreiras à promoção de maiores competências culturais prende-se com a forma como alguns médicos encaram a sua identidade profissional. Vejamos as afirmações seguintes, retiradas de uma entrevista feita a um médico no estudo de Carapinheiro (1998, p. 234):

[...] sobre esse conceito de medicina humanista eu repudio-o completamente! Um médico tem de ser e comportar-se como um profissional! É uma concepção perfeitamente estúpida e ultrapassada! O tipo de médico que bate nas costas do doente "Como é que está o meu doentinho? Está bom e não sei quê...", isso não é profissional, é um amigo, um camarada ou um indivíduo simpático, mas não é um médico! O médico tem de ter uma postura, que além de ser humana - que não tem nada a ver - tem que ser um profissional em termos técnicos, sociais e científicos...

Onde é que o médico se posiciona entre o poder, a cultura e o afecto, constitui, em parte uma opção pessoal. Vejamos o extracto da seguinte entrevista, também retirado do estudo de Carapinheiro (1998, p. 232):

Sempre gostei de ser um médico muito ligado à assistência, o chamado médico que se forma para tratar doentes...Acho que a medicina é uma profissão em que pode haver uma relação muito íntima com a pessoa. Acho que este aspecto tem-se vindo a abastardar nos últimos tempos...Há colegas para os quais parece que o doente é uma coisa e esse aspecto humano eu acho que se abastardou...

Observei consultas onde os médicos foram extremamente educados, sensíveis e carinhosos. Um pediatra, por exemplo, encheu um bebé de beijos e abraços de tal forma que parecia ser parente. Numa consulta de rotina de pediatria, onde a mãe quase não falava e levantava a mão para o ouvido, a pediatra apercebeu-se logo que a mãe estava a fazer uma otite. Em vez de sugerir que fosse a uma consulta de urgência, não hesitou em receitar-lhe um antibiótico. Dizia ela que isto não era consulta de adultos, mas que não fazia mal. Mas também assisti a uma consulta de desenvolvimento onde o pediatra se recusou a responder às dúvidas da mãe porque dizia, por uma questão de ética profissional, não querer interferir com o trabalho do seu médico de família. A sua atitude levanta a questão de como o acesso à informação ou aos saberes médicos pode ser negado para proteger os interesses do bom funcionamento do sistema.

Houve várias consultas para bebés onde as mães reclamavam que elas próprias precisavam de ser atendidas e onde, por exemplo, o médico de família respondeu que hoje não era quinta-feira, o dia para as mães, ou então, o pediatra que disse que era médico de bebés e não médico de mamãs. Na sua experiência de consultas transculturais, Moro e colegas afirmam que ter o tempo de ouvir as mães imigrantes, num serviço sobrecarregado de trabalho, só é possível se houver uma política estruturada de apoio onde os médicos das mães e os médicos dos seus bebés aprendam a trabalhar em conjunto. Só desta forma, é que se pode dar a devida atenção ao contexto sociocultural da gravidez e do parto (2008).

A Hierarquia dos Saberes

Ouvir as mães imigrantes, informá-las de todas as suas opções, são princípios que também se deparam com os constrangimentos estruturais do próprio sistema médico que legitima o conhecimento e as práticas biomédicas dominantes em detrimento de outras formas de conhecimento e de prática. Numa aula de preparação de parto, observei como uma enfermeira/parteira reprimiu os seus saberes médicos alternativos, quando disse muito rapidamente às mães:

Quando chegarem à sala de parto podem negociar com o enfermeiro ou o médico para deambular, desde que as membranas estejam intactas. A filosofia da casa é a posição ginecológica, mas podem negociar a posição que lhe der mais jeito para puxar.

Esta afirmação não é acompanhada por nenhuma explicação das vantagens de um parto activo que vai contra a "filosofia da casa". Sabemos, através das minhas conversas com o director do serviço de obstetrícia, que a "filosofia da casa" se baseia numa concepção tecnicista do parto onde é "natural" que as mulheres se submetam à autoridade médica. Fico com a sensação que a enfermeira, que já me tinha dito noutra consulta onde conversamos um pouco, que Portugal ainda não chegou á etapa de partos naturais, sabe que a margem de manobra para negociar é muito pequena e que, portanto, não vale a pena despertar consciências. As suas palavras parecem ser mais uma descarga de consciência para as suas próprias convicções profissionais, ditas tão rapidamente que passam praticamente despercebidas pelas mães. Pelo menos, ninguém comenta nem pergunta nada, embora o sentido do termo "posição ginecológica" não seja transparente dado que não faz parte da linguagem comum.

Assisti a outra consulta onde a médica presumiu que a mãe dominava o significado da linguagem médica utilizada. Grávida de cinco meses, respondeu negativamente à pergunta da médica se tinha "problemas ginecológicos". No entanto, ao passar pela farmácia, depois da consulta, tentou comprar um medicamento para o tratamento de um problema ginecológico que lhe foi recusado sem receita médica. Quando comentei que a médica tinha-lhe perguntado se sofria de algum sintoma respondeu-me que não tinha percebido a pergunta.

A falta de conhecimento da linguagem médica faz com que a mulher se sinta incapacitada para tratar da saúde do seu próprio corpo. No domínio da maternidade e do parto esta ideia da incapacidade da mulher é reforçada. Vejamos a afirmação do anestesista numa consulta colectiva sobre a anestesia onde enumera as vantagens do epidural. "A mãe colabora com o parto, porque com dores, é surda, não ouve nada". A construção desta frase cria uma clivagem entre a mãe e a sua experiência de parto, como se fosse um processo alheio à mulher, da competência dos profissionais e os seus saberes médicos com os quais ela tem de colaborar. Os saberes da mulher não são valorizados. A ideia de que compete ao saber médico decidir o que é relevante, revela, segundo Carapinheiro (1998, p. 195):

[...]o sentido cultural dos silêncios e dos embaraços dos doentes, quando o médico no frenesim da procura rápida das informações relevantes pelo seu ponto de vista se envolve numa relação equivocada com a terminologia profana do doente, insistindo em recolher o que o doente não consegue dar e desprezando o que o doente quer dar e ele não consegue receber.

O caso da Cláudia oferece um bom exemplo do silêncio e embaraço do paciente quando o médico não tem tempo de receber o que o paciente intenta comunicar.

Sabia mas não sabia o Nome

Grávida de 31 ou 32 semanas, a dúvida sendo fruto da divergência de opinião entre a enfermeira e a Cláudia, a quem a obstetra pergunta, quando se senta no seu consultório, se a comichão já parou.

A Cláudia responde que ainda não. A obstetra diz: "A comichão no seu corpo, não parou? Tem comichão agora?".

A Cláudia responde "Não é no meu corpo, é na vagina".

"É no corpo sim senhora", responde a médica.

"Disse que tinha comichão no corpo. Tenho boa memória, desde que esteja aqui escrito no seu processo".

"Ah sim," responde a Cláudia, "isso já passou".

"Está a ver? Desde que eu tome nota das coisas importantes, tenho boa memoria".

A Cláudia diz que o outro dia foi às urgências porque tinha uma dor no peito e a médica explica que deve ter sido azia e pergunta o que lhe deram para tomar. Cláudia consulta o seu telemóvel onde anotou o nome do medicamento e a médica diz-lhe que é um antibiótico e pergunta se lhe analisaram a urina.

A Cláudia diz que sim e a médica responde: "Então teve uma infecção urinária". Fala-se sobre o nome que vai dar ao bebé e depois a médica diz que só na próxima consulta é que a vai examinar.

Volto no mês seguinte com a Cláudia. Enquanto a obstetra procede ao exame interno, atrás de umas cortinas, exclama de repente em voz alta e nervosa:

"Tem muitas condilomas! São muitas! Não veio cá, não disse nada?"

Responde a Cláudia, "Eu sabia que tinha comichão, não sabia o nome".

"Essa comichão é porque apareceram uma data de cravinhos2 2 "Uma data de cravinhos", expressão utilizada pela médica, significa uma grande quantidade de verrugas. . Já tinha isso quando foi a urgência?"

"Sim, sim".

"E não disseram nada? Não, só da infecção urinária?"

"Vamos colocar um líquido". A obstetra vira-se para a enfermeira que, entretanto, veio assistir: "Foi uma surpresa, diz que apareceu há quinze dias".

"Vai ter que voltar quinta-feira para continuar este tratamento".

Fala outra vez para a enfermeira "Acho que tem muitas na vagina. Está tudo em fase exuberante como um todo". A médica olha para mim com ar preocupado. Sai com a enfermeira deixando a Cláudia deitada atrás da cortina "Não tenhas medo" digo-lhe "vai correr tudo bem."

A médica entra de novo no consultório, continua o tratamento, e dirigindo-se à enfermeira diz:

"Vai ter que marcar uma consulta de patologia".

Sentada outra vez ao meu lado, a Cláudia ouve a médica que explica:

"É uma infecção HPV3 3 HPV - papilomavírus humano - é o nome dado a um grupo de vírus que inclui muitas variedades, algumas das quais são sexualmente transmissíveis e causam infecções genitais. Uns podem causar verrugas nos genitais e outros podem provocar câncer no cérvix, vulva, vagina, pênis ou ânus. ." Olha para mim e levanta as sobrancelhas.

"Quando tiver bebé tem de marcar uma consulta de patologia". Explica que trata-se de um vírus que produz condilomas4 4 Espécie de verruga que se forma nas partes genitais da mulher e do homen. e pergunta à Cláudia se sabe o que são cravos? A Cláudia diz que sim e a médica explica que são parecidos. Conta que saiu agora uma vacina para os adolescentes fazerem prevenção. (Só agora é que eu começo a desconfiar de que é que se trata, por ter uma filha adolescente, que apanhou a vacina, mas sei que a Cláudia não percebeu esta referência indirecta ao possível risco de desenvolver cancro). Mais tarde, quando nos encontramos com o namorado, a primeira coisa que ele lhe pergunta é

"Então, as comichões?" e os dois riem-se.

Depois de nascer o bebé, visito o casal noutro hospital onde acabou por nascer. Até hoje, a Cláudia não percebe porque é que a médica lhe tinha marcado uma cesariana. Ela entrou em trabalho de parto antes da data marcada e teve um parto normal, noutro hospital, para onde a ambulância a levou de urgência, e, onde a médica lhe terá dito que não havia contra-indicações para um parto normal. A Cláudia também relata, com indignação: "A médica aqui disse-me que eu poderia vir a ter cancro. Aquela outra médica não disse nada". A médica tinha utilizado uma linguagem inacessível que foi uma forma de informar sem informar, presumivelmente para não a assustar5 5 O meu papel de mediadora levantou-se de uma forma inquietante. O que fazer? Explicar mais claramente a Cláudia que tem risco de desenvolver cancro? No entanto, como já estava a ser tratada achei que o muito pouco que eu sabia sobre o assunto não iria ajudar, mas só alarmar uma mãe prestes a ter bebé e também pensei que era da competência dos médicos fornecer as informações adequadas, o que acabou por acontecer depois do parto. . O namorado acrescenta que a médica disse para não se preocuparem porque é uma infecção frequente e na maioria dos casos o vírus é tratado com sucesso.

Uma Nova Ordem Hospitalar?

Por que é que a Cláudia não insistiu na primeira consulta com a médica que estava muito incomodada pela comichão? Sentiu vergonha, relutância em enfrentar a médica que a interrompeu e não valorizou os seus sintomas? Existe uma tendência no paciente quando é interrompido pelo médico a deixar cair as suas preocupações adicionais (Perloff e col. 2006) . É de notar que a maioria das mães que tenho acompanhado nas consultas fala pouco a não ser que os profissionais puxem simpaticamente por elas. Foi o caso de uma consulta observada num centro de saúde onde a enfermeira tinha criado uma relação de tanta proximidade com a mãe que se falava de tudo na consulta.

Criar um espaço próprio em articulação com os serviços para que a mãe imigrante possa ser ouvida e compreendida e para que ela possa compreender melhor o porquê dos afazeres médicos é uma forma de transferir a mediação da esfera pessoal para a esfera institucional. Para isto, era preciso uma nova ordem hospitalar. No entanto, segundo Carapinheiro (1998, 147-148):

A tese da emergência de uma nova ordem hospitalar está longe de poder ser considerada com algum grau de razoabilidade na estrutura hospitalar portuguesa...As práticas médicas hospitalares observadas permanecem ainda ancoradas numa relação mágico-carismática entre médico e doente, mantendo-se a consagração do princípio da fé na sabedoria médica e na ignorância do profano.

Visto desta perspectiva, o director do serviço de obstétrica tem razão. Algumas das questões levantadas aqui, não têm nada a ver com as mães serem Cabo-Verdianas ou imigrantes. Tem a ver com a falta de mediação entre os saberes médicos e os saberes "profanos". Em relação ao tratamento igual para todos, em parte também tem razão, na medida em que todas as mulheres são sujeitas aos mesmos procedimentos e às mesmas técnicas. A peça que julgo faltar na sua análise, tem a ver com o reconhecimento da importância do relacionamento que se estabelece com as mulheres. Moro e os seus colegas têm razão ao afirmar que a cultura é um componente integrante de todos os cuidados médicos, tanto para as mulheres imigrantes, como para as mulheres locais; a cultura, simplesmente, torna-se invisível e implícita quando é partilhada com os profissionais (2008). Quando a cultura imigrante não é partilhada com os profissionais, a importância de desenvolver uma abordagem institucionalizada que crie um espaço de abertura para que os profissionais tenham mais tempo para dialogar com o paciente se torna ainda mais necessário.

Sistemas de Saúde e Competência Intercultural

Embora este estudo se tenha focado sobre as dificuldades enfrentadas por algumas mães estudantes Cabo-Verdianas, não pretende ser representativo das experiências de todas as mães (nem do comportamento de todos os médicos). A etnografia analisada seria incompleta se não incluísse alguns exemplos de exercício de cidadania médica, relatados nas entrevistas realizadas. Por exemplo, uma mãe conta com orgulho a forma como conseguiu exigir o seu direito ao cartão de utente do centro de saúde onde a funcionária dizia que não tinha direito por ser estudante dos PALOP (Países de Língua Oficial Portuguesa). Outra mãe conta como, a partir da sua insistência, conseguiu autorização para mudar de centro de saúde para ser seguida, durante a gravidez, pelo mesmo médico, porque não tinha ainda médico de família.

Mas é o caso do casal Cabo-Verdiano, Graziela e João, que já vivem e trabalham há muito tempo em Portugal que obriga a reflectir mais sobre a questão do exercício da cidadania médica. Acompanho-os para uma consulta, onde esperam juntos na sala de espera vazia num centro de saúde, com a sua filha, a dar indicações a todas as pessoas Portuguesas que chegam, que primeiro é preciso ir ao andar de baixo e depois é que esperam aqui no andar de cima. As pessoas olham para eles com ar surpreendido, agradecem a indicação e desaparecem. Uma senhora idosa afirma que não é preciso e permanece na sala. A Graziela insiste com ela, mostrando-lhe um pequeno aviso e a senhora acaba por entender e sai da sala. O João diz-me que não chega ter avisos porque pode haver pessoas que não sabem ler, que vêem mal, ou podem simplesmente não reparar no aviso, colocado muito alto, em cima do balcão. Também pode haver não só Cabo-Verdianos, mas Ingleses, Franceses.... Passado um tempo, a senhora idosa reaparece para agradecer ao casal, dizendo que afinal a receita nem sequer estava pronta. O João sorri para a senhora e diz-me "Portugal! Era só preciso um bocadinho de criatividade para ultrapassar este problema de comunicação. Não era preciso nada de sofisticado. Em Cabo Verde, os nossos filhos inventam os seus próprios brinquedos. Aqui em Portugal, tudo é comprado ou dado e não desenvolvem tanta criatividade".

Este último caso convida a reflectir sobre o significado dos conceitos. O objectivo de promover "health literacy" - a literacia no domínio da saúde - dos imigrantes parte do pressuposto de que os imigrantes não sabem tomar decisões seguras nos cuidados de saúde na sua vida diária. Também presume que a biomedicina é um pré-requisito para a saúde, quando, como argumenta Waldstein (2008), as práticas e crenças médicas tradicionais mantém a saúde de populações por todo o mundo, mesmo em lugares onde os recursos biomédicos escasseiem.

O que este último caso demonstra é que o casal tinha aprendido como funcionava o sistema no centro de saúde. Talvez um conceito mais apropriado, quando se aborde a questão da saúde dos imigrantes, será consequentemente a de "health systems literacy" para promover a literacia dos sistemas de saúde e da linguagem biomédica. Implícito na utilização do conceito está o reconhecimento da relatividade cultural de noções e práticas de saúde e o reconhecimento das barreiras existentes no sistema que impedem o pleno exercício de cidadania médica dos imigrantes.

O conceito de "health literacy" convida a focar demasiado no paciente, ignorando as barreiras institucionais e estruturais, transformando todas as dificuldades vivenciadas em limitações incorporadas nas práticas e crenças das pessoas. Shim, por exemplo, argumenta que uma insuficiência de literacia no domínio da saúde encontra-se de forma desproporcionada nos pobres, nos imigrantes e nos Americanos de minorias étnicas-raciais e conclui que esta insuficiência pode ter um papel significante na produção de disparidades sociais na qualidade dos cuidados prestados (2010). Se falarmos de uma insuficiência de literacia dos sistemas de saúde, o nosso olhar torna-se mais abrangente para analisarmos também as barreiras existentes no próprio sistema. O caso da mãe que não percebeu o sentido da terminologia "problemas ginecológicos" não carecia de literacia no domínio da saúde: sabia que tinha um problema de saúde e foi pedir um medicamento na farmácia. Carecia, talvez, de alguma literacia do sistema de saúde que funciona com uma terminologia própria que ela não dominava. Nesta perspectiva, tratava-se de uma competência cultural a ser adquirida. Resta saber por que ela não falou à médica, por iniciativa própria, dos seus sintomas? As potenciais respostas a esta pergunta remetem para as questões já levantadas relacionadas com a comunicação e as relações de poder entre médico e paciente que estabelecem uma hierarquia dos saberes. Substituir o conceito de "health literacy" por "health systems literacy" pode parecer pouco significativo; no entanto, ajuda a dissolver a hierarquia dos saberes que tão facilmente pode ser reproduzida na literatura e nas iniciativas que promovem maiores competências dos imigrantes para lidar com sistemas de saúde. Se encararmos a literacia dos sistemas de saúde como uma competência cultural, e tendo em conta que as culturas interagem (Perotti, 1997), fará, talvez, mais sentido, falar da competência intercultural tanto do médico como do paciente.

Recebido em: 02/11/2010

Reformulado em: 25/07/2011

Aprovado em: 23/08/2011

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  • 1
    Pesquisa financiada pela FCT - Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, Portugal.
  • 2
    "Uma data de cravinhos", expressão utilizada pela médica, significa uma grande quantidade de verrugas.
  • 3
    HPV - papilomavírus humano - é o nome dado a um grupo de vírus que inclui muitas variedades, algumas das quais são sexualmente transmissíveis e causam infecções genitais. Uns podem causar verrugas nos genitais e outros podem provocar câncer no cérvix, vulva, vagina, pênis ou ânus.
  • 4
    Espécie de verruga que se forma nas partes genitais da mulher e do homen.
  • 5
    O meu papel de mediadora levantou-se de uma forma inquietante. O que fazer? Explicar mais claramente a Cláudia que tem risco de desenvolver cancro? No entanto, como já estava a ser tratada achei que o muito pouco que eu sabia sobre o assunto não iria ajudar, mas só alarmar uma mãe prestes a ter bebé e também pensei que era da competência dos médicos fornecer as informações adequadas, o que acabou por acontecer depois do parto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      02 Nov 2010
    • Aceito
      23 Ago 2011
    • Revisado
      25 Jul 2011
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