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Breve estudo institucionalista acerca do Programa de Saúde da Família

Brief institutionalist essay about the Family Health Program

Resumos

Este trabalho tem como objetivo apresentar reflexões dentro de uma perspectiva institucionalista acerca da experiência de extensão universitária da PUC-Minas, desenvolvida junto ao PSF da rede municipal de Betim, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Esse diagnóstico foi efetuado para se conhecer tanto a realidade da prática profissional da equipe de PSF, quanto as possibilidades de atuação dos estagiários, a partir do referencial teórico da Análise Institucional de René Lourau. Concluímos que a concepção do modelo assistencial ainda introjetado, a ideia de saúde associada à figura do médico, a falta de conhecimento do território, o grande uso de medicamentos, a não articulação da atenção em saúde mental e atenção primária, a pressuposição de relações hierarquizadas de saberes e poderes e a dificuldade de se trabalhar com grupos atravessam a adesão ao modelo do PSF no cotidiano. Nesse contexto, são essenciais discussões, para que os psicólogos se insiram nesse campo e sejam capazes de práticas transformadoras e inventivas.

Saúde pública; Atenção primária; PSF; Análise institucional


This paper intends to present some reflections from an institutionalist perspective about the extension experience of PUC-Minas University, developed with the PSF (Programa Saúde da Família - Family Health Program) in the municipality of Betim, a city located in the metropolitan region of Belo Horizonte (state of Minas Gerais). The diagnosis was performed to understand the reality of the professional practice of the PSF team and the interns' possibilities of action, based on the theoretical framework of Institutional Analysis proposed by René Lourau. The conclusion is that the conception of an assistance model still connected with the idea of health associated with a physician, the lack of knowledge about the territory, the high usage of medicines, the lack of articulation between mental health care and primary care, the presupposition of hierarchic relationships of knowledge and power, and the difficulty in working with groups hinder the adhesion to the PSF model in the daily routine. In this context, discussions are essential so that the psychologists can enter this field, being capable of transforming and inventive practices.

Public Health Service; Primary Health Care; Family Health Program (PSF); Institutional Analysis


PARTE 2- RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Breve estudo institucionalista acerca do Programa de Saúde da Família

Brief institutionalist essay about the Family Health Program

Roberta Carvalho Romagnoli

Doutora em Psicologia. Professora Adjunta III do Instituto de Psicologia da PUC-Minas. Endereço: Rua Terra Nova, 101/401, Sion, CEP 30315-470, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: robertaroma@uol.com.br

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar reflexões dentro de uma perspectiva institucionalista acerca da experiência de extensão universitária da PUC-Minas, desenvolvida junto ao PSF da rede municipal de Betim, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Esse diagnóstico foi efetuado para se conhecer tanto a realidade da prática profissional da equipe de PSF, quanto as possibilidades de atuação dos estagiários, a partir do referencial teórico da Análise Institucional de René Lourau. Concluímos que a concepção do modelo assistencial ainda introjetado, a ideia de saúde associada à figura do médico, a falta de conhecimento do território, o grande uso de medicamentos, a não articulação da atenção em saúde mental e atenção primária, a pressuposição de relações hierarquizadas de saberes e poderes e a dificuldade de se trabalhar com grupos atravessam a adesão ao modelo do PSF no cotidiano. Nesse contexto, são essenciais discussões, para que os psicólogos se insiram nesse campo e sejam capazes de práticas transformadoras e inventivas.

Palavras-chave: Saúde pública; Atenção primária; PSF; Análise institucional.

ABSTRACT

This paper intends to present some reflections from an institutionalist perspective about the extension experience of PUC-Minas University, developed with the PSF (Programa Saúde da Família - Family Health Program) in the municipality of Betim, a city located in the metropolitan region of Belo Horizonte (state of Minas Gerais). The diagnosis was performed to understand the reality of the professional practice of the PSF team and the interns' possibilities of action, based on the theoretical framework of Institutional Analysis proposed by René Lourau. The conclusion is that the conception of an assistance model still connected with the idea of health associated with a physician, the lack of knowledge about the territory, the high usage of medicines, the lack of articulation between mental health care and primary care, the presupposition of hierarchic relationships of knowledge and power, and the difficulty in working with groups hinder the adhesion to the PSF model in the daily routine. In this context, discussions are essential so that the psychologists can enter this field, being capable of transforming and inventive practices.

Keywords: Public Health Service; Primary Health Care; Family Health Program (PSF); Institutional Analysis.

Com a Constituição de 1988, ocorre a alteração da concepção clássica de atenção à saúde em nosso país, que tinha embasamentos assistencialistas e curativos, para uma proposta que se sustenta em um conceito ampliado de saúde (Brasil, 1988). Esse conceito afirma que "[...] para se ter saúde é preciso possuir um conjunto de fatores, como alimentação, moradia, emprego, lazer, educação etc. No entanto, a ausência de saúde não se relaciona apenas com a inexistência ou a baixa qualidade dos serviços de saúde, mas com todo esse quadro de determinantes" (Cunha e Cunha, 1988, p. 22). Nesse contexto, a saúde passa a ser ainda direito de todos e dever do Estado, enquanto acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde.

A viabilização desses pressupostos deu-se a partir da implantação do modelo do Sistema Único de Saúde - SUS, em 1990, que, como política pública, busca também a cidadania e a minoração da exclusão social e das desigualdades sociais. Nesse sistema, os três níveis de governo e o setor privado contratado e conveniado exercem ação conjunta com objetivo único, tendo como princípios a universalização, a equidade, a integralidade, a descentralização e a participação popular. A universalização garante o acesso à saúde a todas as pessoas. A equidade é um princípio de justiça social e busca tratar de maneira específica cada território, com o objetivo de diminuir as desigualdades, levando em consideração as diferenças de necessidades e investindo mais onde a carência é maior. A integralidade implica em considerar a pessoa como um todo, integrando ações de promoção de saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação. A descentralização e a participação popular são formas de concretizar o SUS na prática (Cunha e Cunha, 1988). Dessa forma, o setor público se compromete com a produção de serviços de saúde de maneira descentralizada, através de uma rede regionalizada e hierarquizada, tendo como foco o atendimento integral e as atividades preventivas.

Com o intuito de romper com o modelo assistencial de saúde, que tem como esteio a atenção curativa, com postura medicalizante, verticalizada e individualista, ainda centrada na atuação do médico e com pouca resolutividade, foi criado o Programa de Saúde da Família - PSF, baseado nos princípios do SUS descritos acima. Esse programa foi desenvolvido pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de reorientar o modelo assistencial a partir da atenção básica, que atua nos cuidados primários de saúde, e coloca o cuidado fora do hospital, mais perto da comunidade, focando suas ações no eixo territorial. O PSF corresponde a um campo de práticas e produção de novos modos de cuidado, aqui entendidos como cuidados culturais - cuidados que o profissional de saúde deve desenvolver de forma culturalmente sensível, congruentes e competentes e que considerem sempre a integralidade e a territorialidade (Spector, 1999). Nesse sentido, cada profissional de saúde deve estar atento à comunidade na qual sua prática está inserida, considerando o cidadão como um todo, e deve também intervir em consonância com as condições de vida dos usuários do serviço, visando à promoção de saúde, à prevenção de doenças, ao tratamento e à reabilitação. Ou seja, essa nova proposta de cuidar implica também em um processo de produção de novas subjetividades, seja nos profissionais de saúde seja nos usuários, respeitando os grupos culturais, suas relações com a saúde, e o contexto multideterminado em que se inserem. Esse programa pressupõe, ainda, a parceria com a família, para sustentar a nova proposta de saúde e melhorar, assim, a qualidade de vida da população.

Essa mudança de paradigma traz consigo o desafio de sua execução, pois esse sistema se constrói no dia a dia dos serviços e das práticas profissionais dos que acreditam em uma mudança da saúde no Brasil. Nesse panorama, a perspectiva de criar novas formas de intervenção no trabalho do psicólogo afirma-se como uma possibilidade de buscar alternativas para uma maior eficácia do tratamento e da promoção de saúde na comunidade. Para além da visão de uma clínica tradicional, encontra-se uma clínica de promoção de saúde, situada em realidade processual e multideterminada, que ainda é pouco conhecida pela Psicologia. Vale lembrar ainda que, embora uma parcela significativa de psicólogos trabalhe na área da saúde, ainda há um hiato entre a formação encontrada nos cursos de Psicologia e as demandas dessa inserção, como apontam Dimenstein e Macedo (2007); Herter e colaboradores (2006) e Romagnoli (2006a), em estudos recentes. Essa outra realidade exige a construção de diferentes metodologias, que pressupõem mudanças e movimentos, em uma tentativa de capturar a processualidade da produção do conhecimento e da elaboração de intervenções, que não se dão em separação com o próprio estado da vida (Lancetti, 1997).

Nesse contexto, esse trabalho tem como objetivo apresentar a experiência de extensão universitária, no Programa Saúde Mental e Família, desenvolvida junto ao PSF Icaiveras e ao PSF Citrolândia, de Betim. Esse programa realiza atendimentos às famílias dos usuários da rede de Saúde Mental, no Centro de Referência em Saúde Mental - CERSAM Teresópolis, desde agosto de 2003, e mediante a demanda da coordenadoria técnica em Saúde Mental dessa prefeitura, solicitou-se a ampliação dessa atividade extensionista também para o PSF, buscando a articulação da saúde mental com a atenção básica (Romagnoli, 2006b). A proposta inicial foi a de elaboração de uma leitura institucional, para se conhecer a realidade da prática profissional das equipes desses PSF, pesquisando qualitativamente as demandas existentes, visando à construção de uma proposta de intervenção dos estagiários considerando-se a especificidade desse campo de atuação e de cada PSF, bem como a necessidade de invenção exposta acima.

Para tal, o programa contou com quatro estagiárias, no período de setembro de 2006 a fevereiro de 2007, que atuavam em duplas: uma dupla no PSF Citrolândia e a outra no PSF Icaiveras, ambos situados no município de Betim. Localizada na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a 30 quilômetros da capital, a cidade de Betim possui uma população de 335.236 habitantes e sua média de crescimento é de 5% ao ano. Caracteriza-se por ser um polo industrial que atua como atrativo para imigrantes do interior e de outros estados, que chegam em busca de trabalho e ascensão social. Em pesquisa recente, o Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (2004) constatou que o município, apesar de ser a oitava arrecadação de ICMS do país, possui uma renda per capita de R$ 203,22 e é considerada a cidade mais violenta da região. Betim possui oito regionais, dentre as quais as que fazem parte desse estudo. O PSF Citrolândia atende a uma comunidade composta pela Colônia Santa Isabel e por parte do bairro Citrolândia, que possui um histórico de exclusão social por ser o mais antigo sanatório para hansenianos de Minas Gerais, e há ainda uma tradição de práticas assistencialistas desenvolvidas nesse local. A região apresenta uma das piores condições sociais do município de Betim e o menor índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região metropolitana de Belo Horizonte. Esse PSF é composto por duas equipes na Colônia Santa Isabel, e quatro equipes sem sede própria, situadas na Unidade Básica de Saúde do bairro. Contudo, o bairro Icaiveras está situado na divisa do município de Betim com o município de Contagem, próximo à várzea das Flores, espaço de lazer dos municípios de Betim, Contagem e Belo Horizonte. Possui aproximadamente 11.000 habitantes e três equipes de PSF. As equipes de ambos os PSF - Citrolândia e Icaiveras - são constituídas por um médico generalista, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem, além de cerca de cinco agentes comunitários de saúde.

As atividades das estagiárias constavam de entrevistas com a equipe e com a comunidade, acompanhamento das visitas domiciliares dos agentes comunitários de saúde, mapeamento dos recursos do território e parcerias com os centros de referência em Saúde Mental. As estagiárias dispunham, ainda, de supervisão semanal, na qual os dados obtidos eram relatados e problematizados, com o intuito de elaborar uma proposta de intervenção para análise posterior junto à equipe. Apresentamos, a seguir, as reflexões iniciais efetuadas, enfatizando o campo de forças presente nessas unidades, a partir de uma perspectiva institucionalista.

O PSF por uma Lente Institucionalista

De acordo com Baremblitt (1988), para o movimento institucionalista, a sociedade é composta por uma rede de instituições que se articulam e se interpenetram para regular a produção e a reprodução dos homens sobre a Terra e as relações dos homens entre si, com o objetivo de ordenar a vida social. Nessa vertente, a instituição é a pedra angular da sociedade, que ocupa tanto o lugar de manutenção do já existente quanto o de sua própria transformação. Embasados no referencial teórico da Análise Institucional, corrente institucionalista também chamada de Sócio-análise, de René Lourau, examinamos os PSF citados com o objetivo de mapear o jogo do instituído e do instituinte, do que se reproduz e está estabelecido e do que é criativo, o que aponta para a construção de novas práticas no cotidiano.

Lourau (1980) analisa a instituição mediante duas dimensões coexistentes: a dimensão teórica e a dimensão da realidade. No âmbito teórico, encontramos a gênese do conceito de instituição, que remete ao âmbito do filosófico. Tendo em vista sua natureza dialética, o conceito universal abstrato de instituição está em constante transformação e reformulação, delineando-se no jogo das negações do particular e do singular. Cabe salientar que cada momento se fundamenta na negação, na superação e na conservação do precedente. No entanto, a instituição também possui uma gênese prática associada aos movimentos e fatos sociais concretos, estudada pelo referido autor no que ele denomina processo de institucionalização, e que corresponde a uma junção da leitura teórica com a análise dos movimentos sociais que se alternam em rebeldia, repressão e institucionalização. Na verdade, ao processo de institucionalização, aparato de negação do movimento social, corresponde um jogo de intensidades em que o instituído suprime o instituinte em nome da disciplina e da manutenção da ordem. Essa análise prática imprime um sentido dinâmico aos momentos teóricos do conceito.

Para se conhecer uma instituição deve-se levar em conta a interação entre essas forças, que não são diretamente visíveis e estão em constante mutação e contradição, sendo inerentes a todo o processo de institucionalização. Quando as contradições do particular e do singular são incorporadas ao conceito universal e abstrato, nos adentramos no reino do instituído, que produz a submissão dos coletivos. Quando o conceito é incapaz de incluir a resultante do negar e ser negado pelos seus momentos, ou seja, não consegue incorporar o particular e o singular, nos deparamos com a sua insuficiência, o que possibilita a insubordinação e tomada de poder dos coletivos, favorecendo a emergência do instituinte. No entanto, é preciso pontuar que esse instituinte vai gerar um novo instituído, resultado desse movimento, da processualidade que abarca as instituições (Lourau, 1975).

Dessa maneira, em sua gênese prática, a instituição é apreendida como um campo de forças contrárias - as forças do instituído e as forças do instituinte. O campo do instituído indica a propensão para a inércia, que tem como resultado a estabilização - tendência para a preservação do universal. Nesse momento, aplicando essas ideias ao nosso objeto de análise, ao falarmos de Serviço de Saúde como uma instituição, julgamos, abstratamente, que todos os serviços são iguais e imutáveis, em todos os níveis de atenção, não apresentando diferenças entre eles e abarcando todos os casos particulares e singulares. O campo do instituinte, por sua vez, designa a potencialidade para a mutação - força orientada para a transformação e materializada no particular. Nesse momento, emerge um serviço de saúde específico, que se caracteriza por um programa particular com sua dinâmica de funcionamento e seus pressupostos, no caso, o PSF. Dessa forma, ocorre uma negação do momento anterior, pois a universalidade se perde quando aplicada a condições particulares, circunstanciais. É no campo da institucionalização, do momento singular, material e concreto, e, também, no caso estudado, que nos deparamos ao mesmo tempo com essa atividade de conservação que é encaminhada a conter o instituinte, o novo, e com essa atividade cambiante encaminhada a alterar o instituído, o que está estabelecido. Ou seja, a instituição se encontra em algum lugar entre o conservador do instituído e o revolucionário do instituinte; contra as forças instituintes e sua rebeldia, a institucionalização busca formas mais estáveis, rígidas e duradouras, e, contra o instituído e sua imutabilidade, o instituinte persegue mudanças inovadoras nas formas institucionais existentes até então.

Com o auxílio dessa perspectiva teórica, observamos em nossos dois campos de atividade extensionista esse mesmo embate de forças contrárias e dialéticas. Se, por um lado, o PSF já está estabelecido oficialmente como política nacional na área de saúde, ainda vigora, no cotidiano das equipes, dos usuários e da comunidade, de forma dominante, o modelo de saúde assistencialista e curativo, que tende a ser perpetuar, exatamente pela força de conservação do instituído. Conjuntamente com essa propensão, procuramos rastrear também forças instituintes, que permeiam os mesmos grupos, em uma tentativa de sustentar esse modelo novo cuja proposta exige mudanças inventivas. E, dentre elas, acreditamos que a inserção da Psicologia nessa área possa favorecer esse processo. Nesse sentido, o PSF também se encontra em algum lugar entre o instituído e o instituinte, preso em relações de poder hierárquicas e determinantes, mas também com forças que podem trazer novas práticas de cuidado.

É preciso pontuar que esse campo de forças contraditórias produz efeitos. Os elementos da realidade social que manifestam as contradições e incoerências existentes nas instituições e no sistema social são denominados de analisadores. Estes podem ser definidos como "[...] agentes ou situações que denunciam ou esclarecem as relações de poder e os sentidos de poder em um grupo, em uma situação ou, ainda, em uma organização ou instituição" (Luz, 2003, p. 22). Barus-Mitchel (2004), ao examinar a corrente da Sócio-análise, pontua que são essas contradições, expressadas pelos analisadores, que devem ser trabalhadas pelos analistas institucionais. Esse trabalho permitirá a liberação da tendência para a mutação retida, visando à redistribuição do poder, através de dispositivos que convoquem a transversalidade, o entrelaçamento de forças instituintes, driblando as relações hierárquicas, utilizando-os para fazer surgir o novo. Ainda que, nesse estudo, usemos essa corrente como método de análise social, e não como uma modalidade de intervenção institucional, é preciso assinalar a importância dos analisadores, para revelar as contradições presentes nos locais estudados.

A partir da nossa inserção extensionista e das reflexões iniciais que elas nos propiciaram, levantamos alguns analisadores que denunciam dificuldades de adesão ao modelo do PSF em sua prática diária. Vale lembrar que, embora o PSF esteja assegurado institucionalmente, como mencionamos acima, isso não implica necessariamente na sustentação dos pressupostos que regem esse modelo no cotidiano do serviço. Essa tarefa diária ainda constitui, como percebemos, um desafio para os profissionais de saúde e para os usuários. Apesar de a proposta ser inovadora, a sua concretização é atravessada por esse campo de forças contrárias, conforme nos lembra a Análise Institucional. Ambas as forças, tanto a revolucionário do instituinte quanto a conservadora do instituído, integram a realidade pesquisada de maneira conflitiva, e as forças arraigadas da dominação do instituído podem ser conhecidas através dos seguintes analisadores: a concepção do modelo assistencial ainda introjetado, o ressentimento dos profissionais de saúde, a ideia de saúde associada à figura do médico e ao grande uso de medicamentos, a falta de conhecimento do território, a não articulação da atenção em saúde mental e atenção primária, e a dificuldade de se trabalhar com grupos. Esses analisadores emergiram espontaneamente do campo e são examinados a seguir.

A concepção do modelo assistencial de saúde introjetado socialmente ainda é hegemônica e apresenta-se como um entrave para a proposta de saúde mais ampla do PSF. Observamos isso tanto na população quanto em alguns profissionais, tanto no PSF Icaiveras quanto no PSF Citrolândia. Em nossa breve experiência, percebemos que a população sente forte resistência em pensar a saúde de uma forma abrangente, buscando, sempre que possível, o atendimento curativo. Há, de modo geral, certa passividade dos usuários em relação à própria saúde, como se o comprometimento com esse aspecto fosse prerrogativa apenas do serviço e não de cada um. Recorremos ao pensamento de Michel Foucault para analisar tal passividade, que denuncia formas de subjetivação amparadas no poder disciplinar, em que mecanismos de dominação interiorizados moldam um modo de existência alienado. Embora hoje o poder se exerça por redes, ainda somos monitorados pelo saber dos especialistas, pelas normas, pelas ideias construídas às quais se concede o status de verdade, e que estimulam as pessoas a moldar e a fabricar suas vidas, sendo "controladas" pelo modelo científico, ficando no lugar dos que nada sabem de si próprios (Foucault, 1999). A relação do usuário com o serviço e vice-versa é permeada por uma série de relações de poder móveis, que dominam sem punir e os prendem no binômio capacidade-incapacidade, muitas vezes deflagradas pelo grau de instrução, pela formação profissional e pela hierarquia dos saberes.

As equipes, por sua vez, encontravam dificuldades em reformular a forma de atendimento esperada no modelo de cuidado do PSF, sendo que alguns profissionais ainda insistem em trabalhar em forma de "agenda" e marcação de horários, não tendo disponibilidade e nem tempo para ir ao território, caso seja necessário. No nosso entender, a persistência nessa forma de funcionamento estabelecida anteriormente impede a criação de novas formas de cuidar e de lidar com a saúde de forma descentralizada, através do atendimento integral e de atividades preventivas.

Nesse ponto, propomos um diálogo com a Esquizoanálise, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, também considerada por Baremblitt (1998) uma corrente do Institucionalismo. Mesmo com uma proposta bem distinta da Análise Institucional, abordada anteriormente, essa vertente também busca o questionamento das relações de poder e o aflorar do instituinte. Para tal, fundamenta seus pressupostos em um raciocínio de imanência em que a realidade é composta por fluxos, e não pela dialética como em Lourau (1975). Nesse raciocínio, que se opõe à racionalidade clássica e à representação, a exterioridade das forças que compõem cada situação é fundamental, rompendo com a ideia de que existe uma ordem geral. Aliás, nessa perspectiva, toda realidade é produzida compondo-se de maneiras diferentes mediante variações intensivas. Dessa maneira, processos diferenciados ocorrem em planos concomitantes e imanentes, sendo que em determinadas circunstâncias há um predomínio de um plano sobre outro.

O funcionamento desses fluxos pode ser de forma instituída ou de forma instituinte, para usar a nomenclatura do Institucionalismo. Ao modo instituído corresponde o que Deleuze e Parnet (1998) denominam de plano de organização, em que se encontram as ideias feitas, os corpos prontos, os sujeitos, as organizações. Esse plano organiza a realidade de maneira dicotômica e dissociativa, codificando-a, registrando-a em processos classificatórios e excludentes. Ao modo instituinte corresponde o plano de consistência, em que processos mobilizados pela expansão da vida se atualizam, compostos pelas forças moleculares que atravessam o campo social. É nesse plano que se dão os encontros e os agenciamentos que vão gerar novos sentidos, novas formas de expressão.

É preciso salientar que os fluxos que compõem a realidade estão presentes em todos os planos, de maneira imanente. Todavia, há uma grande alteração em seu funcionamento conforme o plano: estratificado no plano de organização e fluido no plano de consistência. Segundo Deleuze e Guattari (1996), a forma estratificada detém a circulação da vida e opera cortes e recortes que produzem o modo de a espécie humana se colocar no mundo, e tem como objetivo estabelecer métodos de hierarquização e de organização. Já a forma fluida é mutante e criadora e corresponde à possibilidade de agenciar, de construir outro território existencial.

Retornando a nossa análise inicial dos PSF de Betim, percebemos uma estagnação da potência de criar, de inventar. Nesse sentido, podemos afirmar que a vida encontra-se presa no segmento da reprodução, no querer "fazer igual", que é mantido tanto nos usuários quanto na equipe, denotando um plano de organização cristalizado e endurecido. Nesse plano, os usuários desejam assiduamente um cuidado curativo, que responsabiliza o médico e a equipe pela sua saúde, como se nada tivessem a fazer nesse sentido, como se a sua a própria vida não lhes pertencesse, mas sim pertencesse aos especialistas, como examinado acima. Nesse mesmo funcionamento, a equipe almeja uma forma tradicional de atendimento, que perpetua o modelo de saúde como ausência de doença. Inclusive esperam da Psicologia a mesma conduta, centrando suas expectativas acerca de nossas atividades em uma clínica tradicional, que deveria ocorrer através de atendimentos individuais com objetivos analíticos, psicoterapêuticos e/ou psicodiagnósticos. Essa demanda foi feita inúmeras vezes durante a atividade extensionista. Ou seja, a força do instituído, do plano de organização da Psicologia, encontra-se presente na persistência em reivindicar das estagiárias, durante todo o semestre, nos dois locais, a abertura de uma "agenda" para atender a alta demanda da clientela com problemas subjetivos existente nos serviços. Como se a única forma de clínica fosse a curativa, como se a escuta por si só não promovesse uma diferenciação, como nos lembram Fonseca e Kirst (2004). Estancado nesses segmentos partilhados pelas pessoas que fazem o SUS em seu cotidiano, o instituído se fortifica e promove uma adesão ao que já existia, com um temor ao que não se sabe como será.

Contudo, percebemos na direção do PSF Icaiveras, efetuada por uma profissional da enfermagem, uma grande disponibilidade em aderir ao PSF, uma abertura para a diferença e para a alteridade, que apostava nas estagiárias, que arriscava pensar outra Psicologia para se inserir nesse campo, sustentando a proposta do SUS. Essa gerente conseguia, em alguns momentos, a adesão da equipe nessa luta, e o trabalho, de fato, em grupo, convocando o plano de consistência, os encontros e a possibilidade de criar a partir deles. Vale ressaltar que essa não era a postura dominante. De maneira geral, os profissionais da equipe, cada qual com os conhecimentos adquiridos em sua especialidade, tendiam a trabalhar com verdades inquestionáveis e totalizantes, que se distanciam da especificidade de cada serviço e de cada caso, calcados na cientificidade e na pretensa objetividade de suas disciplinas, digladiando entre si, para ver quem é mais competente.

Esse jogo de poder entre profissões, nos dois serviços em que trabalhamos, afeta diretamente os agentes comunitários de saúde - ACS -, que apresentavam, em sua maioria, um sério ressentimento e uma grande desarticulação com a equipe, sobretudo no PSF Citrolândia, que estava se instalando naquele mesmo semestre. Devido ao seu pouco tempo de atuação, os ACS encontravam-se perdidos e desvalorizados em seu trabalho, como foi colocado por eles. Nas visitas domiciliares acompanhadas pelas estagiárias, na maior parte das vezes repetiam condutas padronizadas que mantinham o instituído, através da reprodução de papéis e estereótipos, restringindo-se a coletarem dados e transmitirem informações. Contra o desconhecido dessa nova realidade, os ACS se agarravam ao plano de organização, fixando no número de visitas, e às condutas padronizadas que deveriam exercer, furtando-se de se relacionar com as famílias visitadas, de estabelecer conversas corriqueiras para não "atrapalhar o trabalho". A maioria deles se queixou da falta de capacitação e de conhecimento acerca do transtorno mental, além da dificuldade de um trabalho em equipe efetivo. Esses dois itens dificultavam a intervenção em saúde mental na atenção básica. Nesse local, ao contrário do PSF Icaiveras, não raro, nas reuniões das estagiárias com a gerente, também da área de Enfermagem, circulava a impressão de que ela nem mesmo conhecia os princípios do SUS e do PSF.

Nesse aspecto, observamos ainda, nos PSF analisados, a presença de uma lógica de "especialismos" em que a doença e o campo de especialidades em que esta se localiza ainda são perseguidos pelos profissionais do serviço. Essa postura interpõe-se como um obstáculo para o exercício da integralidade, um dos princípios do Sistema Único de Saúde - SUS, que implica em considerar a pessoa como um todo, integrando ações de promoção de saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação, e incentiva a precarização das relações de trabalho. Os especialismos e as relações de poder existentes entre as especialidades inviabilizam conexões produtivas e estimulam a fragmentação dos processos de trabalho e das associações entre os profissionais. Essa micropolítica em prol do instituído "cada um na sua área" boicota a Política Nacional de Humanização, que encoraja a relação da equipe de forma sintonizada com os usuários imbricados na promoção de saúde, e desvaloriza as diferentes subjetividades implicadas no processo de produção de saúde (Brasil, 2007).

Outro ponto que nos chamou a atenção, emergindo como analisador, foi o desânimo dos trabalhadores do serviço, quase sempre entristecidos e desvitalizados em seu dia a dia. Usando o raciocínio deleuziano em sua leitura das ideias de Espinosa, apresentado brevemente acima, podemos afirmar que o contato com algo que nos afeta pode ocorrer de forma passiva ou de forma ativa, sendo que a potência é a capacidade de entrar em relação, em devir. Sua expansão, bem como sua decomposição, de acordo com Deleuze (1981) é sempre fruto de um encontro, o encontro dos corpos, em sua compatibilidade ou não, em suas conexões, em seus conflitos, em seus atritos. Nenhuma potência se afirma ou míngua a não ser pelo contato e pela conexão com outro corpo, daí a importância do poder de ser afetado, da sensibilidade no encontro, na relação. A forma passiva nos conduz a um poder de sofrer, a um modo passivo de existir, a um desamparo frente à imprevisibilidade da vida. Assim, a tristeza corresponde a uma diminuição de nossa potência, o que inviabiliza os agenciamentos do plano de consistência, a irrupção do instituinte. A tristeza emerge em nossa subjetividade quando há decomposição nos encontros que estabelecemos, e, nesses momentos, mediante essa despotencialização, não raro nos tornamos indiferentes ou até mesmo hostis. Por outro lado, a forma ativa corresponde a um modo corajoso e ativo de existir, dando passagem aos devires, aos movimentos da existência, criando uma relação inédita e vibrante. Ou seja, há um aumento de nossa potência quando, na dimensão do encontro, sentimos alegria.

O cotidiano dos trabalhadores de saúde com quem convivemos, na maioria das vezes, trazia a marca do ressentimento, o que nos sugere um encapsulamento da vida, uma repetição de um modo de existir mecanicamente e de trabalhar sem investimento. Não presenciamos grandes apostas na criação, e sim uma tendência à manutenção de formas empobrecedoras da vida coletiva e opressoras da subjetividade, que se distanciavam de formas mais solidárias e mais inventivas de atuação. Essas posturas nos sugerem que as potências de pensar e de agir parecem estar reféns do instituído, envolvidas em defender a subjetividade das desestabilizações e dos riscos inerentes ao trabalho exercido, enfim, das forças instituintes que podem irromper nos encontros.

Além disso, a ideia de cuidado na saúde ainda está muito associada à figura do médico, outro analisador, o que incrementa a passividade por parte da população em relação à promoção de saúde. Vale lembrar que, para Foucault (2004), "A liberdade é a condição ontológica da ética" (p. 267). Para o autor, a constituição ética dos indivíduos se apoia nas práticas de si, que conduzem os sujeitos a observarem eles próprios, a se decifrar, a se reconhecer como sujeitos de desejo e a se posicionarem perante as situações. Esse exercício é necessário, pois o sujeito moderno não tem a marca da relação que caracteriza a ética consigo, pois é constituído pelas normas das disciplinas. Percebemos esse traço de impedimento em nosso campo de estudo. Capturados por essas verdades, a maioria dos usuários são impedidos de serem éticos por se encontrarem normalizados, sendo sujeitos de uma identidade que entendem como própria, mas que, nessa situação, é produto do poder da medicina. Presos nas práticas discursivas dessa disciplina, essas pessoas se afastam da relação consigo mesmo, como se o médico detivesse todo o conhecimento sobre a sua saúde. Dessa maneira, o princípio norteador da Política Nacional de Humanização, de uma construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos coletivos implicados na rede do SUS, que é em si instituinte, tornam-se frágeis e são desencorajados por essa verdade partilhada pelos usuários e, em geral, pela maioria dos membros da equipe (Brasil, 2007).

Nesse contexto, presenciamos também um grande uso de medicamentos em nossos dois campos de atividade extensionista, que ainda é visto como o principal tratamento na rede pública de saúde. Ao analisar as questões relativas ao biopoder e à saúde, a partir das práticas de medicalização, Fuganti (2007) denuncia aspectos do controle da vida que as atravessam. Sem dúvida, no momento contemporâneo, o poder refinou seus mecanismos, alimentando-se da própria força da vida para produzir formas de existir, tipos de viver. Nesse ponto, a própria medicalização pode emergir como dispositivo de controle da vida, de biopoder. Mediante práticas sistemáticas de adoecimento, geridas por esse tipo de poder, o uso excessivo de remédios torna-se necessário para suportar a vida adoecida, a vida despotencializada pelos maus encontros, gerida por paixões tristes, separada de sua potência. Dessa maneira, a grande maioria dos usuários da rede de saúde pública, que fazem um elevado uso de medicamentos, tem a vida contida, carente e empobrecida, que se conserva em modos de impotência. A vida encontra-se presa em um sistema de julgamento que reproduz a vida obediente, a vida anestesiada. Esse sistema atravessa várias instâncias, conjugando a indústria farmacêutica, a mídia, os profissionais da equipe, os usuários, dentre outros, que investem na proposição de que o corpo precisa ser anestesiado para suportar o fardo da padronização, da impossibilidade de reinventar relações consigo mesmo, com outras pessoas, com o social.

Continuando nossa análise, percebemos tanto no PSF Citrolândia quanto no PSF Icaiveras pouco conhecimento do território, o que dificulta o uso dos recursos já existentes nesse eixo. Esse analisador impede a real efetivação do PSF como um lugar que coloca o cuidado primário à saúde próximo da comunidade, focando suas ações no eixo territorial. Mesmo o PSF Icaiveras, um dos primeiros a ser implantado em Betim e que possuía três anos de existência, não havia feito ainda um mapeamento do território, desconhecendo as igrejas, as escolas, as fundações que lá havia, bem como os projetos que estas realizavam. No PSF Citrolândia, esse desconhecimento era ainda maior, pois somente no semestre do estágio a unidade havia começado seu funcionamento, no mesmo espaço que a Unidade Básica de Saúde - UBS Citrolândia. Nesse ponto, as estagiárias conseguiram fazer um bom mapeamento do território, colaborando para a construção de redes entre as instituições: com os serviços sociais da igreja do bairro, com as oficinas das ONG's, com outros projetos sociais do governo, sobretudo os que apoiam a terceira idade e os adolescentes.

Avaliamos, ainda, em nosso estudo, uma forte dificuldade de articulação da atenção em saúde mental e atenção primária. Concordamos com Dimenstein e colaboradores (2005) sobre a necessidade de ações efetivas que propiciem essa vinculação, os autores perceberam o mesmo ao pesquisar a realidade de Natal. Apesar de a atenção primária ser um espaço privilegiado para as intervenções em saúde mental, exatamente por exigir práticas que se deem dentro do princípio da integralidade, que rompe com a dicotomia saúde/saúde mental, alguns impedimentos se interpõem na concretização desse modelo.

Nesse aspecto, observamos a falta de capacitação dos agentes comunitários para realizar suas funções e lidar com a doença mental, sobretudo no que se refere ao acompanhamento familiar, como também foi colocado por Campos e Romagnoli (2007), ao estudar os encontros entre os agentes comunitários de saúde e as famílias dos portadores de transtorno mental em Matozinhos, outra cidade vizinha a Belo Horizonte. Há uma grande demanda de atendimentos nas unidades, o que dificulta as reuniões de equipe e faz falta para a efetiva consolidação do modelo. Ainda há a pressuposição de relações hierarquizadas de saberes e poderes, o que sustenta saberes instituídos que, por sua vez, designam quem é competente para cuidar de quem e do quê. Nesse panorama, as equipes de PSF mantêm pouco ou nenhum contato com os CERSAM's, dispositivos estratégicos de atendimento à urgência psiquiátrica em regime aberto, que fazem parte da rede de atenção que dá suporte aos serviços substitutivos. Também nesse ponto, as estagiárias iniciaram a construção de uma pequena rede entre os serviços, operando para o início de uma atividade instituinte. No PSF Icaiveras, a dupla de estagiárias foi chamada pelos ACS a acompanhar a visita a duas usuárias com problema de saúde mental, com as quais eles não sabiam como agir. Nos dois casos houve discussão com a equipe e acompanhamento das mesmas ao CERSAM Teresópolis, com marcação da consulta e discussão do caso, dessa vez com a equipe técnica desse centro de referência. No PSF Citrolândia, foi estabelecida uma forte parceria com o Centro de Referência em Saúde Mental César Campos - CERSAM Citrolândia, cuja equipe se disponibilizou para a discussão de casos solicitados pelos ACS, informando e auxiliando nos procedimentos a serem tomados, bem como no agendamento de consultas para os casos mais graves.

No PSF Icaiveras, havia uma grande demanda do trabalho com grupos por parte da equipe e da coordenação. Houve várias tentativas, por parte das estagiárias, de efetivação dos grupos de mulheres que faziam grande uso de benzodiazepínicos e antidepressivos. Entretanto, essa iniciativa não deu certo. O grupo foi marcado várias vezes, sem que conseguíssemos mobilizar as pessoas a participarem de suas reuniões. Observamos uma falta de hábito e de crença nos trabalhos com grupo não só pelos usuários, mas também por parte dos profissionais da equipe, embora alguns profissionais o tenham demandado. Além disso, presenciamos também uma grande dificuldade dos integrantes em aceitar essa modalidade de intervenção. Acreditamos que isso se deu à própria mentalidade cultural da comunidade que considerou a proposta como uma forma de atendimento que poderia gerar "fofocas" no bairro, o que foi colocado por uma das convidadas.

Presos no plano de organização do individualismo, que delimita a intervenção do psicólogo somente no sujeito como algo superior, os usuários e também a equipe insistem em um tipo de atendimento dominante, individual e curativo. Essa reprodução impediu a criação do que Benevides de Barros (2007) denomina de grupo dispositivo, que privilegia os aspectos criativos presentes na experiência grupal. Nessa perspectiva, o grupo é uma construção, um processo que pode deflagrar no plano de organização e no plano de composição. Esse processo vai além da mediação indivíduo-sociedade e aposta nos agenciamentos que vão disparar a invenção no que está organizado e estabelecido, provocando que o instituinte aflore, em meio à primazia do instituído, possibilitando a criação de modos de existir que não estão submetidos às práticas discursivas, aos especialismos, ao desânimo e à inércia.

Considerações Finais

Essas são as reflexões iniciais acerca da realidade insitucional encontrada nos PSF Icaiveras e Citrolândia, do município de Betim. É preciso pontuar que a metodologia usada nesse trabalho fundamentou-se no campo problemático que constitui o espaço da prática psicossocial, aqui entendido como um campo atravessado por linhas de forças que operam ora para a reprodução, ora para a invenção, como foi apresentado ao longo do estudo. Nesse contexto, o como conhecer e o como intervir tiveram como sustentáculo a perspectiva institucionalista, e as respostas encontradas são, de fato, incompletas e provisórias. Com certeza, a proposta que sustenta esse modelo é inovadora e convoca a mutações e invenções que estão presentes no campo de forças do que está instituído e que também trazem o instituinte presente em novas formas de atuar, de se conectar com o serviço, com os usuários e com a comunidade. No jogo das mudanças inerentes às instituições, é possível mapear o que está cristalizado, sedimentado, mas é também necessário constar que esse é um campo em movimento, manancial de possibilidades.

Nesse semestre de atuação, consideramos que os resultados foram bastante produtivos. Para chegar a esse parecer, levamos em consideração tanto o aprendizado do aluno quanto a contribuição para o efetivo conhecimento da realidade do PSF. A presença e a atuação das estagiárias favoreceram, no nosso entender, a entrada da Psicologia de outro lugar, que não o tradicional, permitiu a escuta dos membros da equipe, auxiliou no mapeamento do território, na integração da atenção básica com a saúde mental, e propiciou o acompanhamento das visitas domiciliares do ACS, mostrando outra realidade para esses acadêmicos. Nessas ações, acreditamos que possa ter havido pequenos focos de forças instituintes nos PSF envolvidos, potencializando a equipe e os usuários, em uma tentativa de sustentar os pressupostos do PSF no dia a dia dos serviços.

O campo da saúde pública é atravessado por fluxos diversos, que colocam em associação distintas disciplinas, crenças sobre a saúde, valores de cada profissão e cenários sociopolíticos. É no cruzamento desses fluxos que surge a necessidade de criação, é na perturbação desses domínios que práticas são criadas. Para tal, acreditamos ser essencial, também, discussões acerca da formação, da atuação profissional e seus efeitos, pois os psicólogos têm potencial para se inserirem nesse campo e criar uma nova Psicologia, que sustente a proposta de um novo sistema de saúde, embora ainda haja uma grande cisão entre a formação do psicólogo e realidade em que esse trabalho se insere, como também constatou Herter e colaboradores, 2006; Romagnoli, 2006a.

Vale lembrar que essa análise não teve como objetivo realizar julgamentos morais e tampouco transcendentes, culpabilizando a equipe ou os usuários pelas dificuldades encontradas nos PSF analisados. Na verdade, buscamos, sim, mapear o jogo de forças que ali se encontra para contribuir para uma inserção do psicólogo nesse campo, acreditando na apreensão da proposta de humanização pela sensibilidade e pela abertura ao instituinte. Nesse campo, também é preciso ressaltar a importância da Psicologia e da sua especificidade. Não se trata de psicologizar nossas atuações através de verdades científicas que totalizam e não levam em consideração os atravessamentos sociais, históricos e institucionais, mas sim de apostar em uma outra clínica. Quando falamos de clínica, não nos recorremos à clínica tradicional, que insiste em um saber universalizante e a-histórico, voltada com fins diagnósticos e curativos. Estamos nos referindo, sim, a "[...] um alargamento de sentidos que vai se fazendo mediante a desobstacularização das forças transformadoras presentes em qualquer forma de existência" (Fonseca e Kirst, 2004, p. 31). Nesse sentido, acreditamos que a proposta da Psicologia no PSF deve vir acompanhada de uma desconstrução das formas tradicionais de clínica, contaminadas pela leitura naturalista e privatista do homem, e que correm o risco de promover uma psicologização da vida e da população. Esse risco pode ser diminuído a partir de uma lógica relacional, que capte o plano de forças que está em jogo, criticando o instituído e rastreando o instituinte, o novo, desobstruindo o que está impedindo a produção, a invenção.

Recebido em: 05/05/2008

Reapresentado em: 27/02/2009

Aprovado em: 25/03/2009

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Set 2009

Histórico

  • Revisado
    27 Fev 2009
  • Recebido
    05 Maio 2008
  • Aceito
    25 Mar 2009
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