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Re-assentamento, saúde e insegurança em Itaparica: um modelo de vulnerabilidade em projetos de desenvolvimento

Resettlement, health and insecurity in Itaparica: a model of vulnerability in development projects

Resumos

Da perspectiva de um Estado ambíguo, gerador de insegurança, elaborou-se, a partir de exemplos concretos do caso do re-assentamento rural de Itaparica, um quadro que pudesse facilitar a compreensão de processos de adoecimento, sofrimento e administração de saúde, como fases de grandes projetos de desenvolvimento. Nesses processos, o Estado é o mais presente de todos os atores, e a partir das intensificações e retrações da sua presença, uma série de fatores de geração de insegurança se torna muito mais transparente. No caso em pauta, no sub-médio Rio São Francisco, entre Bahia e Pernambuco, o ofício agrícola dos reassentados foi o eixo organizador. Caracterizaram-se quadros de geração de insegurança estrutural, relacionada à omissão do Estado perante os pobres; insegurança administrada, relacionada à intervenção e super-inclusão no projeto de desenvolvimento; e insegurança coletiva local, relacionada à formação cotidiana local das relações de poder. Foi possível acompanhar as quatro fases: preparação e divulgação, implantação, desenvolvimento, e emancipação com dados etnográficos sobre as relações entre os agricultores reassentados, o Pólo Sindical, a executora governamental (CHESF) e outros agentes, dos anos 1970 até hoje. As modificações na vulnerabilidade da população se associam às transformações nas articulações entre os diferentes quadros de inseguranças gerados pelo processo. Argumentou-se, com base nas vulnerabilidades mencionadas e no realinhamento das relações de poder, que a terceira fase, de desenvolvimento, de fato caracterizava-se como de retração, e que a presença do Estado marcava profundas e indeléveis transformações, que impossibilitavam pensar em as fases subseqüentes de emancipação.

Agricultores e trabalhadores rurais; Re-assentamento; Vulnerabilidade; Insegurança; Itaparica


From the point of view of an ambiguous State which generates insecurity, a framework for the understanding of the relation between processes of illness, suffering and health administration and phases of large development projects is presented. In these processes the presence of the State overshadows that of the other actors. The intensification and retraction of this presence brings to light a series of factors related to the generation of insecurity. For the case of the sub-médio São Francisco River Basin between Bahia and Pernambuco, the organization of agriculture of the resettled farmers guides this discussion. Three categories of insecurity generation are characterized: structural insecurity, related to State omission in dealing with poor; administrated insecurity, related to its intervention and super-inclusion, and local collective insecurity, related to daily local formation of power relations. The four resettlement project phases of preparation and communication, implantation, development and emancipation are examined in light of ethnographic data on resettled farmers, the Syndical Pole, the governmental administrator of the project (CHESF) and other agents, for the period from the seventies up to present day. The study reveals how changes in the vulnerability of the population are associated with changes in the specific set of interrelations of insecurity generation frameworks throughout the resettlement process. On the basis of these vulnerabilities and the shifting power relations, it is argued that the third phase, called "development," in fact should be designated as of "retraction", and that the profound and indelible changes make it impossible to think of any following phase of "emancipation.".

Farmers and Rural Workers; Resettlement; Vulnerability; Insecurity; Itaparica


ARTIGOS

TEMA EM DISCUSSÃO

Re-assentamento, saúde e insegurança em Itaparica: um modelo de vulnerabilidade em projetos de desenvolvimento

Resettlement, health and insecurity in Itaparica: a model of vulnerability in development projects

Parry Scott

Universidade Federal de Pernambuco E-mail: scott@hotlink.com.br

RESUMO

Da perspectiva de um Estado ambíguo, gerador de insegurança, elaborou-se, a partir de exemplos concretos do caso do re-assentamento rural de Itaparica, um quadro que pudesse facilitar a compreensão de processos de adoecimento, sofrimento e administração de saúde, como fases de grandes projetos de desenvolvimento. Nesses processos, o Estado é o mais presente de todos os atores, e a partir das intensificações e retrações da sua presença, uma série de fatores de geração de insegurança se torna muito mais transparente. No caso em pauta, no sub-médio Rio São Francisco, entre Bahia e Pernambuco, o ofício agrícola dos reassentados foi o eixo organizador. Caracterizaram-se quadros de geração de insegurança estrutural, relacionada à omissão do Estado perante os pobres; insegurança administrada, relacionada à intervenção e super-inclusão no projeto de desenvolvimento; e insegurança coletiva local, relacionada à formação cotidiana local das relações de poder. Foi possível acompanhar as quatro fases: preparação e divulgação, implantação, desenvolvimento, e emancipação com dados etnográficos sobre as relações entre os agricultores reassentados, o Pólo Sindical, a executora governamental (CHESF) e outros agentes, dos anos 1970 até hoje. As modificações na vulnerabilidade da população se associam às transformações nas articulações entre os diferentes quadros de inseguranças gerados pelo processo. Argumentou-se, com base nas vulnerabilidades mencionadas e no realinhamento das relações de poder, que a terceira fase, de desenvolvimento, de fato caracterizava-se como de retração, e que a presença do Estado marcava profundas e indeléveis transformações, que impossibilitavam pensar em as fases subseqüentes de emancipação.

Palavras-chave: Agricultores e trabalhadores rurais; Re-assentamento; Vulnerabilidade; Insegurança; Itaparica.

ABSTRACT

From the point of view of an ambiguous State which generates insecurity, a framework for the understanding of the relation between processes of illness, suffering and health administration and phases of large development projects is presented. In these processes the presence of the State overshadows that of the other actors. The intensification and retraction of this presence brings to light a series of factors related to the generation of insecurity. For the case of the sub-médio São Francisco River Basin between Bahia and Pernambuco, the organization of agriculture of the resettled farmers guides this discussion. Three categories of insecurity generation are characterized: structural insecurity, related to State omission in dealing with poor; administrated insecurity, related to its intervention and super-inclusion, and local collective insecurity, related to daily local formation of power relations. The four resettlement project phases of preparation and communication, implantation, development and emancipation are examined in light of ethnographic data on resettled farmers, the Syndical Pole, the governmental administrator of the project (CHESF) and other agents, for the period from the seventies up to present day. The study reveals how changes in the vulnerability of the population are associated with changes in the specific set of interrelations of insecurity generation frameworks throughout the resettlement process. On the basis of these vulnerabilities and the shifting power relations, it is argued that the third phase, called "development," in fact should be designated as of "retraction", and that the profound and indelible changes make it impossible to think of any following phase of "emancipation.".

Keywords: Farmers and Rural Workers; Resettlement; Vulnerability; Insecurity; Itaparica.

Introdução

Políticas governamentais são irreparavelmente ambíguas. A natureza múltipla e complexa do estabelecimento de metas e de execução do planejado sempre deixa espaços para conflitos, esquecimentos e exclusões, que atingem os cidadãos, direta ou indiretamente com as políticas. Por essa razão, políticas governamentais são geradoras de insegurança, seja qual for a ótica das teorias de Estado, que informa a compreensão da sua atuação. A idéia de um Estado benévolo, que repara as injustiças e os danos através da aplicação de políticas redistributivas, as quais corrigem as desigualdades que ocorreriam na sua ausência, não é isenta dessa geração de insegurança. Tampouco é a idéia do Estado manipulado e manipulador, que responde aos interesses de seletos segmentos da sociedade, capazes de armar mecanismos que respondam aos seus desenhos particulares. No caso em pauta, o re-assentamento de Itaparica, como em todos os grandes projetos de desenvolvimento, o Estado é o mais presente de todos os atores, e a partir das intensificações e retrações da sua presença, uma série de fatores de geração de insegurança torna-se muito mais transparente.

Dessa perspectiva de Estado ambíguo, gerador de insegurança, elabora-se, a partir de exemplos concretos do caso de Itaparica, um quadro que possa facilitar a compreensão de processos de adoecimento, sofrimento e administração de saúde, que acompanham o desenrolar temporal de grandes projetos que envolvem migração forçada e construção de meios de reparação e compensação. A forma tomada em Itaparica é de um projeto de re-assentamento rural, onde o ofício agrícola dos reassentados é o eixo organizador de todo o processo. O projeto de construção da barragem Luiz Gonzaga e o reservatório do Lago de Itaparica são muito antigos, e a sua concretização data das décadas, aparentemente remotas, dos anos 1970 e 1980, ou seja, é um processo de cerca de quatro décadas de ação e que tem resultado em uma transformação brutal do cenário cotidiano de uma população numerosa. Para além das 40 mil pessoas diretamente atingidas, que vivem ou viviam diretamente do trabalho na terra, houve um número semelhante de habitantes urbanos diretamente atingidos, que dependem da interação com esses moradores rurais como parte do seu meio de vida. São os habitantes do re-assentamento rural que recebem atenção direta neste trabalho. Eles somente podem ser entendidos no contexto das modificações na sua sub-região, que se processaram na sua relação com os atingidos urbanos que hoje moram em cidades reconstruídas, bem como com os ainda mais numerosos habitantes de municípios não diretamente atingidos, que receberam os reassentados rurais e os integraram no seu dia-a-dia da forma que foi possível.

Fases de Re-assentamentos em Grandes Projetos e Vulnerabilidade

Com todas as suas particularidades, o re-assentamento rural não foge de um padrão bastante sistemático, mundial, de projetos de desenvolvimento envolvendo grandes remoções de população, que receberam um auge de atenção nos anos 1980 com os estudos de Cernea (1988) Baum (1982) e Hansen e Oliver-Smith (1982), com particular destaque para o trabalho sintetizador de Scudder e Colson (1982). Estes últimos autores identificam quatro fases nos processos de re-assentamento que, sem seguir rigorosamente os rótulos identificadores destes autores, correspondem a: 1) planejamento e divulgação; 2) implantação; 3) desenvolvimento e 4) emancipação. Uma revisão crítica elaborada no início dos anos 1990 (Scott, 1996) ressalta a idealização dessas fases como parte de um mapa de planejamento que, efetivamente, quase sempre empaca na terceira fase, revelando metas subjacentes prioritárias que são pouco explicitadas nos projetos e na teorização sobre eles. Um dos resultados disso é que a intensa interação Estadopopulação, que caracteriza as primeiras duas fases, experimenta um longo processo de desarticulação, com constantes redefinições. Isso faz com que a quarta fase, de emancipação, não seja uma fase de celebração de metas atingidas e sim de renegociação da avaliação dos impactos e do esgotamento relativo de ambas as partes. Ao longo desse processo são desencadeados contextos temporais e espaciais que favorecessem diferentes tipos de adoecimento, sofrimento e administração de saúde; é a compreensão desses acontecimentos que se enfoca aqui.

O propósito deste trabalho não é oferecer elaboração crítica sobre as diversas tentativas de conceituar o processo saúde e doença (ver Capra, 1982; Duarte, 1994; Duarte e Leal, 1998; Minayo, 2005; Ayres, 1993, 1997, 2006) e sim descrever enfermidades, contemplando a sensibilidade social e cultural do fenômeno. Há muitas elaborações bem argumentadas que já conduzem a essa direção, criando idéias como vulnerabilidade, perturbações, sofrimento, males físico-morais, qualidade de vida, aflições etc., e não se trata de escolher entre elas, e sim de valorizar a busca da inserção do social e do cultural no biológico para compreender a saúde. As discussões sobre os múltiplos fatores associados à saúde mental, bem como sobre doenças com patologias mais rigorosamente identificáveis biologicamente, já contribuíram muito para alargar essas fronteiras. Ao fazer referência mais freqüente à idéia de "vulnerabilidade", está-se reconhecendo uma adequação terminológica com a condição dos reassentados, objeto dessas reflexões, ao mesmo tempo em que se sinaliza a importância de empregar algum termo cuja aplicabilidade abranja o social e o cultural.

Quando se realçam contextos espaciais e temporais relacionados à saúde, logo aparece a vivência moderna de processos que acumulam experiências de violência dos mais diversos tipos, tornando-a uma questão inevitável para a compreensão do cotidiano moderno. Tecnicamente, o crescimento da violência na sociedade é acompanhado por uma enorme rede, ou melhor, múltiplas redes, de captação, produção e divulgação de informações, bem como de prevenção, proteção e de atendimento aos reais e potenciais vítimas e agressores. Essa percepção do crescimento da violência é fruto de aumentos concretos de atos, bem como do desvendamento de ocorrências antes ignoradas, de tal maneira que não há como contestar a sua existência. Os veículos de comunicação reportam a ampliação da violência, tornando-a conhecida por todos. A violência doméstica que vitimiza, sobretudo, mulheres e crianças, mobiliza ONGs, delegacias e varas especiais para lidar com as suas particularidades. Reporta também os crimes contra os que apresentam opções sexuais alternativas; os índices de assaltos e homicídios que recheiam os jornais e os relatos dos que tiveram as suas vidas tocadas por tais infortúnios; e ainda o desmonte da confiança moral e sentimento de auto-respeito como cidadão que a divulgação das falcatruas de homens públicos e os seus parceiros trazem para todos. A lista poderia ser ampliada, e certamente merece diversificações e desdobramentos muito mais amplos, mas não há como fugir da participação em um sentimento público de que o mundo se torna cada vez mais violento. O que acompanha esse sentimento é outro que será detalhado muito mais aqui, ao tratar da compreensão das transformações nas condições de saúde dos reassentados de Itaparica: a experiência e o sentimento de insegurança.

No primeiro parágrafo deste trabalho foi declarado que o Estado gera insegurança. É evidente que o Estado não age como agente isolado. No caso de grandes projetos de desenvolvimento, como a construção de uma barragem para iluminar cidades inteiras e alimentar fábricas produtoras de saldos no balanço comercial nacional e regional, cada passo que é dado pelo Estado repercute de alguma forma na geração de insegurança para quem se encontra no caminho. Todo o projeto contribui para a continuada fabricação de novas malhas de relações sociais em espaços que têm as suas próprias histórias, dentro das quais também existem fatores que geram insegurança, agora sujeitas a grandes transformações. Antes de abordar a questão de como as inseguranças se configuram nas fases diferentes de grandes projetos, é mister sistematizar a referência a inseguranças instaladas por processos múltiplos.

Inseguranças: estrutural, administrada e coletiva local

Ao falar em insegurança, estamos realçando um sentimento coletivo que brota de várias fontes. Cada fonte merece separação e identificação para facilitar a interpretação de casos concretos, mas é a interface particular entre essas fontes no desenrolar de processos concretos que produz a particularidade de cada local, de cada contexto. Assim, em cada evento visto, em cada referência simbólica, não é a sua categorização como constituinte de uma ou outra fonte de insegurança que importa mais, e sim a maneira em que cada evento e cada referência simbólica combinam as diversas fontes para apresentar uma realidade vivida e compreendida localmente. Ao apresentar separadamente os conceitos de insegurança estrutural, insegurança administrada, e insegurança coletiva local, almeja-se contribuir para a elucidação das interpretações de como estas articulações possam ocorrer. Dificilmente qualquer observação etnográfica se restringirá à inserção em apenas uma destas qualidades de insegurança. O mais comum será alguns elementos de cada fonte serem evidentes em cada observação feita.

Há uma insegurança estrutural que compõe a natureza excludente abrangente do desenvolvimento brasileiro, sistematicamente sujeitando todos, e, sobretudo as camadas mais pobres, a serviços inadequados e insuficientes. Essa insegurança mina a crença na existência de qualquer maneira de superar obstáculos na busca de uma segurança caracterizada por uma diminuição de vulnerabilidades. Observam-se as manifestações de insegurança estrutural em discursos recorrentes sobre os contrastes entre os ricos e os pobres e a repetição de declarações sobre como os ricos e poderosos armam esquemas para beneficiar a si mesmos. As evidências contundentes são tiradas de um cotidiano que comunica essa condição de uma maneira multiforme e ubíqua, desde as decisões sobre o que comer no café de manhã até a participação nas eleições (ou aceitação das imposições) dos seus dirigentes. Na vivência dessa insegurança, políticas e planos "empacotadinhos" e alardeados publicamente como promocionais ao bem-estar da nação são percebidos como tendo pouca relevância pelas populações locais, pois uma regra desses planos é deixar essas populações locais despercebidas, mesmo que sejam contempladas formalmente nas populações amplas incluídas nos documentos e pronunciamentos elaborados pelos responsáveis!

Assim, as populações excluídas formam uma maioria da população da nação, que, ao longo da história de colonização e dependência, elaborou uma multiplicidade de discursos locais, incorporando a exclusão sistemática. Não é o que alguns autores têm entendido como "resignação" nem o que outros inserem em um quadro generalizado de ações e sentimentos de "resistência". É uma espécie de contra-face da exclusão, que contém os elementos constituintes das relações de poder, isolando cada grupo, ao mesmo tempo em que o insere em um conjunto imenso de grupos e populações, cada qual com a sua versão local do processo. Assim, instala-se uma insegurança estrutural, que exclui, porém não isola as populações locais. Há, simultaneamente, uma vulnerabilidade e um desalento, que realçam: a fragilidade da incorporação aos benefícios da nação, própria do conjunto dos excluídos; e uma inclusão numa população maior, mas que é muito fragmentada. Ser ouvido, ou ainda ser atendido, é uma expectativa reduzida nesse tipo de insegurança. Esse tipo de insegurança contempla tempos e locais que tomam forma de imutabilidade, pelo fato de não ser tocado direta e sensivelmente pelas políticas. Mesmo que oscile no tempo e em cada local, a insegurança estrutural, tão generalizada, diminui a credibilidade na possibilidade de aliviar a vulnerabilidade de populações locais. Em todos os setores da vida cotidiana, esse tipo de insegurança se manifesta das mais diversas formas, e entre elas sempre estão as condições que podem ser encaradas como patológicas.

A insegurança administrada ocorre quando o inusitado, ou o inesperado, se torna realidade. Essa segurança ocorre quando uma ação específica, costumeiramente correspondente a uma política do Estado, de fato toca diretamente a população local; os grupos que operam no local se vêem imperativamente motivados a se envolver nessa ação. É a criação de dramas sociais (Goffman, 1963, 1979; Turner, 1985), cujas intensidades respondem à força de cada ação desencadeada. Grupos locais enfrentam momentos históricos tão cruciais quanto as próprias proporções da ação proposta pelo Estado, nos quais o emprego de identidades coletivas, para negociar os espaços alvos das intervenções planejadas, é fundamental. A política e o programa específico que geram a insegurança administrada são uma reificação concreta do Estado. É quando a omissão vira super-inclusão. Mesmo assim, os sinais de super-inclusão não emitem mensagem clara que transforme a percepção subjacente dos grupos locais envolvidos sobre as intenções excludentes do Estado. Se a insegurança estrutural contribui para um ambiente geral favorável a uma perspectiva cética generalizada da população local em relação ao Estado, os caminhos escolhidos pelos grupos que estão sujeitos à aplicação de um projeto que gere insegurança administrada, mesmo quando variados, são muito mais concretos, elegendo pontos que são cruciais para a defesa das coletividades locais que estes grupos representam. A maneira como o Estado e seus colaboradores intervêm no cenário local redimensiona as relações de poder entre os agentes, ao conferir significados muito mais palpáveis para cada ação tomada. O surgimento, ou intensificação, de uma capacidade organizacional extraordinária (no sentido de fora do ordinário para o local em questão) entre alguns grupos faz parte de um jogo, no qual os potenciais danos do projeto anunciado, ou já em operação, expõem um espaço de vulnerabilidade que exige uma nova articulação de poder. As vulnerabilidades expostas requerem ações concretas, e a insegurança administrada torna-se uma ferramenta para a criação de uma resistência ou de uma colaboração intensiva, dependendo da leitura das implicações do projeto. Com a passagem do tempo, criam-se novas perspectivas, a partir das quais se possa avaliar a operação do redimensionamento dos domínios de poder que cada projeto, programa ou política específico possibilitou.

A insegurança administrada marca uma hora do escancarar as portas do Estado distante, trazendo-o para próximo da população, a fim de torná-lo um agente conhecido. Assim os braços de intervenção, aparentemente vagos e apagados inicialmente, vão tomando formas cada vez mais complexas e variadas. Tudo isso exige ação sistemática, concentrada, mas bastante resiliente. É necessário saber diversificar-se na identificação dos múltiplos pontos de interação entre realidades locais e projetos abrangentes, que concatenam ações direcionadas à consecução das suas metas prioritárias próprias. Então. também é preciso reforçar alguns agentes, que se tornam porta-vozes da coletividade, eleitos tanto por si mesmos quanto pelos administradores dos projetos, como interlocutores com algum grau de legitimidade. Essa legitimidade se torna peça de negociação entre as próprias ações de administração do projeto e as maneiras de executá-lo. Em termos de vulnerabilidade, a clareza das ameaças imediatas à segurança cria tanto uma intensificação de preocupações, que já eram latentes, quanto introduz preocupações novas. Os agentes do Estado ganham nomes e rostos, tanto individuais, quanto institucionais, e a possibilidade de avaliar o seu potencial para ação se aguça, diante das ações propostas e realizadas. É, em parte, um processo contrário à insegurança estrutural, pois, da expectativa de vulnerabilidades decorrentes de um Estado omisso, passa-se para uma expectativa de vulnerabilidades proveniente de um Estado presente e ativo, administrador de benefícios e de danos. O Estado torna-se alvo de vigilâncias que ele mesmo estimulou.

Contrária à insegurança estrutural e à insegurança administrada, a insegurança coletiva local não se ordena diretamente em torno do Estado. Ela está mais ligada aos indivíduos que se inscrevem em uma ou em outra identidade coletiva no cenário local e regional. O jogo de semelhanças e diferenças entre agentes sociais locais promove adesões e afastamentos de pessoas que passaram por experiências históricas locais variadas. De acordo com as inserções nos contextos locais, posicionam-se em hierarquias que se constroem e se re-configuram, contribuindo para uma heterogenia local, que se desvenda a cada instante. A presença de uma competição interna no cenário local e regional apresenta uma miríade de reivindicações e posicionamentos conflitantes que, independente da heterogeneidade ou homogeneidade entre grupos, contribuem para a construção de identidades sociais contrastantes, como mostraram Cardoso de Oliveira (1978) e Oliveira Filho (2006). A elaboração de patrimônios espirituais e materiais, associados a esses grupos, opera numa constante separação entre o "nós" e o "eles". Essa elaboração pode ser fruto explícito de esforços coletivos e colaborativos em momentos históricos bem identificáveis. Também pode ser resultado de um individualizado e paulatino acúmulo de eventos cotidianos que, pela sua própria cotidianidade repetida, se tornam coletivos.

A insegurança coletiva local é contraditória, no sentido que a adesão a uma identidade que confere patrimônio espiritual e/ou material é mais freqüentemente capaz de produzir segurança que insegurança. A natureza contrastante de toda identidade é o fator que embute a insegurança nessa realidade. O não-pertencer a um grupo de "outros", em um contexto local, sinaliza uma fragilidade inerente à própria diferenciação e desigualdade social. Os "outros" podem oscilar entre ser aliados ou ser adversários, mas em todo caso são outros, ou, em quase todos os casos, pois em certas ocasiões, um momento específico pode permitir uma troca de pertencimento, ora momentânea, ora mais duradoura, dependendo das circunstâncias. Assim, os outros não somente contribuem para uma delimitação de fronteiras para as coletividades que operam localmente, como também podem oferecer condições para que os "nós" possam tornar-se os "outros". A desigualdade nas relações de poder locais é um dos principais fatores que configuram a articulação e a permeabilidade relativa entre o conjunto de grupos operativos. Cada momento oferece uma prova para a constituição dos grupos. Nesse cenário, as vulnerabilidades de grupos se associam a diferenças, que refletem uma convivência histórica e localizada em constante rearranjo, sujeita aos impedimentos erigidos pelos atores nas suas adesões a grupos diferentes. Assim, a insegurança coletiva local compõe-se de identidades coletivas locais forjadas em trocas, de palavras, de objetos, e até de pessoas, que constantemente estão se constituindo diante da multiplicidade de possibilidades locais. É uma dinâmica tensa que ocorre em um cotidiano onde todos detêm algum grau de previsibilidade, por causa das suas trajetórias específicas, mas que mantêm a fresta aberta para transformações.

Antes de passar para a caracterização da articulação entre inseguranças e vulnerabilidades na saúde de populações rurais sujeitas a deslocamentos e re-assentamentos, vale destacar que os conceitos de insegurança e de vulnerabilidade são entendidos como forças que geram ação, e não como impedimentos à ação como uma leitura mais superficial dessas terminologias poderia sugerir. Assim, em momento algum insegurança está sendo usada como sinônimo de falta de ação ou de reação.

Saúde, Vulnerabilidades e Inseguranças ao longo do Processo de Re-assentamento

O tema que ocupa o restante deste trabalho é uma compreensão da vivência de saúde, vulnerabilidades e inseguranças, que acompanharam, e ainda acompanham, o re-assentamento da população rural de Itaparica. A intenção é aproveitar uma experiência etnográfica de quase 20 anos (Araújo e col., 2000) para elucidar um processo de exclusão, cujos componentes têm uma relativa previsibilidade relacionada à repetição de fases, que são reproduzidas nos grandes projetos de desenvolvimento, levados a remover populações que se encontram no caminho. Qualquer evento observado reporta a seu tempo, que é irrecuperável e oferece elementos únicos, garantindo a impossibilidade da sua replicabilidade. O processo histórico cuida de borrar tentativas de montar modelos comparativos com aplicação geral. O re-assentamento rural de Itaparica ocorreu na saída de um período de ditadura, intensificou-se durante o período de democratização, prolongou-se até a estabilização democrática, e perdura até hoje. Esses fatores são inseparáveis da sua história e sinalizam contra o tratamento caricatural de fases associadas a modelos, cujas temporalidades parecem ter sido suspensas na percepção de alguns planejadores.

Em nome da clareza de exposição, um dos eixos organizadores desta discussão de vulnerabilidades e fases é a trajetória do Pólo Sindical do sub-médio São Francisco, uma entidade sindical que acompanhou todo o processo de estruturação de Sindicatos Municipais de Trabalhadores Rurais (STRs) em Pólos multi-municipais de articulação de ações. O Pólo assumiu o papel de representante dos trabalhadores rurais e agricultores atingidos pela construção da barragem. Isso permitiu que na região do Projeto de Itaparica, a adesão ao Pólo pelos STRs ocorreu de forma particularmente intensa, quando comparada com outros Pólos em formação na época (Araújo, 1990). Por mediar sistematicamente o contato da enorme diversidade de agricultores e trabalhadores nos municípios da região com o Estado, e pela complexidade que a sua abrangência geográfica implica, o Pólo tem uma sensibilidade particularmente aguçada para as vulnerabilidades e inseguranças que afetam os trabalhadores e agricultores. Assim, evitam-se muitas digressões explicativas que, mesmo relevantes para o caso, alongariam demasiadamente este relato.

Planejamento e Divulgação

O Rio São Francisco, desde as nascentes em territórios mineiros até a foz entre Sergipe e Alagoas, tem sido alvo de projetos de modificação arquitetados por homens sonhadores de processos produtivos grandes e organizados e de energia farta. Esses projetos sempre esbarram no sonho de outros homens, de uma vida digna para si mesmos e para suas famílias no trabalho diário na terra. Na construção das Barragens de Paulo Affonso e Moxotó foi assim. Dos anos 1970 para os 1980, a construção da barragem de Sobradinho, entre as cidades de Petrolina e Juazeiro, foi um exercício exemplar de um processo cujo projeto dos grandes sonhadores resultou no fim dos sonhos da vida digna das pessoas que moravam na beira do Rio. Esse fato repercutiu no meio sindical, alertando sobre a vulnerabilidade das populações que viviam do Rio São Francisco e de suas terras férteis, como trabalhadores e agricultores. Nas folhas, não menos férteis, dos projetos dos engenheiros, cabia à região ainda mais densamente povoada de Itaparica a construção da próxima barragem. Este fato foi fundamental na articulação dos sindicatos de trabalhadores rurais para a formação do Pólo Sindical, cujo propósito era defender essa população contra os potenciais efeitos deletérios da execução de mais um grande projeto de desenvolvimento.

Nem a sua condição histórica privilegiada de rio de Integração Nacional e de ponto de atração para o processo de migração de produção em beira do rio aproximou a grande maioria dos moradores da área do Estado. A distância e a omissão, junto com uma atuação apenas esporádica e pontual, permitiram a formação em Itaparica de uma população rural composta de posseiros, pequenos proprietários e meeiros, todos agricultores familiares, que organizavam o seu dia-a-dia na base de um ethos de trabalhador. Entre agricultores, a idéia de desocupação era desconhecida, exceto no aglomerado urbano de Barreira, onde se concentravam os diaristas que trabalhavam em olarias e em um projeto de irrigação conhecido como "as granjas", promovido pelo governo em Petrolândia. Os agricultores familiares relacionavam-se com fazendeiros, arrendatários e donos de bombas que distribuíam a água do rio para as terras vizinhas. Esses senhores dispuseram-se a fornecer à população os meios de sobrevivência por um preço negociado entre fortes e fracos. As hierarquias eram mais pronunciadas no lado pernambucano, com predomínio de meeiros associados a fazendeiros, e menos no lado baiano, onde mais agricultores tinham condições de ser pequenos proprietários e posseiros, dependentes mais do fornecimento da água bombeada do que de acesso à terra.

Nos termos descritos neste trabalho, na região, predominava a combinação de uma insegurança estrutural e uma insegurança coletiva local. A insegurança estrutural deixava os agricultores e trabalhadores à vontade para produzir de uma forma módica, sem que esperassem resultados de ações do Estado. Eles é que, sem formar identidades coletivas locais fortes, dependiam das relações travadas com os "outros", detentores de maiores recursos: terra, bombas, redes comerciais de tamanhos variados e meios de transporte. As vulnerabilidades de saúde vividas nessas condições relacionavam-se com o contato cotidiano com a natureza (diarréias, dermatites, pequenas lesões, contaminação por parasitas, resfriados), e a sua resolução sublinhava o isolamento e a super-inserção em redes solidárias e ao mesmo tempo hierárquicas, onde problemas eventuais de saúde reforçavam essa dependência. Utilizava-se do apoio de quem tinha mais recursos localmente para tratar desses problemas. Os serviços de saúde disponíveis nos municípios, além de serem de difícil acesso físico para muitos, ofereciam número limitado de profissionais e não respondiam à demanda. Localmente, circulavam curandeiros, benzedeiras e raizeiros e muitos agricultores e agricultoras empregavam os seus próprios conhecimentos sobre substâncias e práticas, associadas à melhora de saúde, comuns na região. Recorrer a esses meios costumeiramente era um ato de redes mais solidárias – não reforçava a dependência dos agricultores nos detentores de maiores recursos materiais. Ao mesmo tempo, a diversidade de problemas invariavelmente levava alguns a pedir remédios, transporte, contatos e outros tipos de ajuda. Essas soluções reforçavam as redes personalistas e clientelísticas localizadas, e, simultaneamente, imprimiam a noção da fraqueza e inoperância do Estado (muitas vezes totalmente ausente de consideração). Assim, diante da insegurança coletiva local, procurar resolver problemas de saúde promovia uma divisão entre "nós" e os "outros" próximos, porém mais fortes.

É nesse cenário que a notícia dos planos do Estado de construir uma barragem e remover toda a população chegou, espalhada por dois veículos principais: os contratados da CHESF (Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco), responsável pelo projeto, para preparar toda a construção da barragem e para cadastrar todos os que seriam removidos; e os associados ao sindicato, que formavam um Pólo articulado para defender a população rural que seria atingida pela construção do reservatório. Instalou-se um anúncio de ação administrada do Estado, que ameaçava diretamente o acesso à terra e a todos os recursos utilizados para produzir. A insegurança administrada operou uma modificação radical na relação de forças local e regional. O Estado omisso virou Estado presente, e pior ainda, expropriador. A perspectiva da perda da terra expunha toda a população à sua condição de extraordinária vulnerabilidade diante de um representante de poder extra-regional. O ceticismo acerca do Estado, criado ao longo da história, contribuía para a desconfiança generalizada: o Projeto poderia ser nocivo para os agricultores? O Pólo, versado nos documentos que orientavam as ações do Estado e bem-assessorado por pessoas e instituições com experiência na defesa dos direitos dos excluídos, não permitia que os agricultores sossegassem, insistindo que suas redes de relações para garantir acesso à terra não geravam mais nenhuma segurança diante de um projeto tão poderoso e tão palpável. Começaram a se desmantelar os intricados liames das redes de relações locais, e, em seu lugar, figurou um único agente, capaz de homogeneizar todos sob o rótulo de "atingido".

Essa unificação teve uma forte influência sobre as evidências de vulnerabilidade da população. A intensificação do sofrimento psíquico, a ansiedade sobre o futuro, as sensações de desespero diante da perda imanente das raízes, o desconhecimento da nova moradia se juntaram e ofuscaram os outros sofrimentos. Para resolver essa nova vulnerabilidade, teve início uma atividade de inclusão. Em primeiro lugar, era preciso juntar-se às ações de mobilização em defesa de um re-assentamento digno, organizado pelo Pólo. Isso possibilitou a parada da construção da barragem para que fosse forçada a assinatura de um acordo escrito de proposta do governo. As salvaguardas neste documento, mesmo que incapazes de aliviar boa parte da expectativa de sofrimento por perda imanente, abriram uma fresta para a inclusão formal de todos os participantes como "reassentados beneficiados", com direito a lotes irrigados de terra, correspondentes às suas capacidades de trabalho familiar. Para alguns dos que já tinham abandonado a região, em busca de melhores oportunidades em terras distantes, como São Paulo, essas promessas serviram como opção de retorno às origens, na tentativa de estabelecer um patrimônio, do qual anteriormente não dispunham. Na própria região, quem era posseiro, proprietário, meeiro, arrendatário, fazendeiro seria "reassentado". A CHESF distribuiu imagens de pássaros voando para o céu e panfletos que usavam o mote "mudar para melhor". Mostravam-se os desenhos de arquitetos das novas agrovilas, projetadas para a moradia semi-urbanizada, para preparar a população para a mudança.

As opções de soluções ainda permitiam que alguns não almejassem se tornar "reassentados". Alguns optaram por indenizações monetárias, quando não investidas posteriormente na montagem de novas formas de subordinação da população local e garantias individuais de sustento, despendidos de uma maneira frívola, ou usadas para estabelecer-se em outros locais – seja nas cidades locais seja em locais muito distantes. Alguns organizaram-se para promover a continuação de grupos clientelísticos ou fazendas em novos locais encontrados por eles mesmos. O grupo de agricultores irrigadores das "granjas", que tinham tido o privilégio de se beneficiar do projeto de irrigação em Petrolândia, alcançou a antecipação da implantação de lotes maiores e com equipamento instalado, o que permitiu a sua permanência como camada elitizada da sociedade local. A regra era ser re-assentado e viver na expectativa de ter condições de voltar a produzir em pouco tempo.

Muitos procuravam ser assentados próximo ao lugar de origem, que ficaria inundado. Entretanto, havia uma visão diferenciada dos financiadores e executores dos projetos de habitação e de terras (agrovilas) em relação à capacidade produtiva das terras agrícolas (baseando-se no custo da tecnologia empregada) e das populações atingidas, baseada em laços sentimentais. Alguns ficaram perto, outros foram alocados em projetos distantes do local de origem. Houve também uma disputa entre os Índios Tuxá, que resultou no deslocamento de mais de 1000 km para o seu re-assentamento especial.

Este "cardápio variado" de soluções foi dado pelos administradores do projeto para aliviar a ansiedade que eles mesmos criaram. Ambulâncias, serviços de emergência e uma equipe para prestar apoio psicológico e de assistência social foram contratados, e algumas melhoras ocorreram nos hospitais locais. Esses serviços foram incluídos com a efemeridade que o próprio projeto demandava. Criava-se a ilusão de que o Estado estava sensibilizado com os problemas de saúde da população atingida e disposto a saná-los. A efemeridade não escapava aos olhos críticos da população, que desconfiava se isso continuaria depois do re-assentamento. Outras ações também foram montadas para aliviar as tensões dessa fase. Equipes de assistentes sociais e profissionais afins ocupavam-se com a organização de conversas, panfletos, e visitas a locais da futura moradia. O investimento foi significativo e vigiado pelos membros do Pólo Sindical.

Essa fase de planejamento e divulgação, mesmo se desenvolvendo por um período relativamente extenso, evidencia uma dinâmica que se intensifica quanto mais perto se chega da próxima fase. Essa dinâmica modifica as condições de vulnerabilidade, tanto de saúde quanto de poder das populações atingidas. Inicialmente as inseguranças são imersas em uma malha complexa de relações sociais, estabelecidas em ritmo mais ou menos paulatino, apresentando-se como estruturais e associadas à esparsa atuação local e à perpetuação de pobreza, e como coletivas locais, reafirmadoras de diferenciações e hierarquias entre múltiplos atores locais. Essas estão abruptamente superpostas por uma insegurança administrada, que, além de ser imperativa pelas fortes conseqüências advindas da execução do projeto, é profundamente transformadora das relações que compõem as estruturas de poder locais. As vulnerabilidades cotidianas, que entravam na formação das redes interconectadas da vida local, mesmo ainda existindo, estavam suplantadas por uma vulnerabilidade generalizada, que acometeu a todos e homogeneízou os atores diante das esferas de atuação, transformando a instituição executora (CHESF) e a instituição de resistência (Pólo) em guias nesse processo.

Implantação

Essa fase marcou o ápice da insegurança administrada, pois projetos de desenvolvimento que incluem programas de re-assentamento não são projetos de re-assentamento. Como as finalidades do projeto são outras e a população é um elemento que deve ser removido para que se alcance sucesso, na fase da implantação a concentração de esforços fica na garantia do êxito da criação de um espaço esvaziado para que o seu novo uso possa ser promovido pelos planejadores. Evidentemente, há espaços institucionais reservados para cuidar do re-assentamento, mas é somente durante a implantação da remoção que as ações junto a essa população tomam precedência sobre outras ações. No caso da construção de barragens, esse fato é cristalino, pois quem se mantém no seu local de origem é inundado, e tal acontecimento seria um fracasso para os planejadores. O sucesso é fornecer energia, sem tropeçar nos empecilhos, para se atingir a meta.

Nesse momento do processo de re-assentamento de Itaparica, a meta era anular as considerações sobre insegurança estrutural e sobre insegurança coletiva local, ou seja, jogar um manto protetor sobre os atingidos, com ar de onipotência e em ritmo ofegante, realçando o status de aparentes beneficiados, para poder celebrar a consecução da limpeza do espaço na seqüência imediata.

O desafio para as entidades de defesa, como o Pólo Sindical, foi posto. Findou a primeira luta para conscientizar a população sobre a necessidade de batalhar para não somente evitar perdas, mas para angariar benefícios, como administrar o trabalho de colaboração e de contestação junto aos executores do projeto; acompanhar o traslado da população; dar assistência; assessorar; contabilizar; observar; responder a incidentes específicos, chamar a atenção para os defeitos nos novos locais. O próprio ritmo acelerado do trabalho de traslado para as novas casas e lotes, determinado pela CHESF, como executora, quase impossibilitou a fiscalização que esse tipo de ação merece. O ritmo e a abrangência comunicaram uma falta de tolerância a falhas, um espaço fechado para a manifestação de vulnerabilidades, que deveriam ter sido sanadas na fase anterior. Evidentemente não foram, e disso todos sabem. Sabendo que, efetivamente, esta fase foi a do ápice da vulnerabilidade da população atingida, o Pólo assumiu a função de apontar e amenizar essas fragilidades e chamar a atenção para as outras vulnerabilidades não-tratadas.

O poder de imaginação da perda das orientações espaciais e da base de sustento costumeira, que marcava a fase anterior, materializou-se: Foram deixados para trás roçados plantados, levados alguns animais de criação, enaquanto outros foram vendidos a preço reduzido. Os re-assentados despediram-se de uma paisagem conhecida, e entraram num caminhão para ocupar uma casa idealizada por um planejador, com um vizinho ao lado, e ainda com boa parte do preparo do solo e da implantação de equipamento a fazer. A técnica de plantio no novo local ainda era pouco conhecida e requeria assistência de agrônomos! A sensação de ganho sucumbe à sensação de perda! Passaram a se sentir vulneráveis dada a dependência dos executores do projeto.

A mobilização e o reforço dos serviços de saúde do município e, sobretudo, a montagem de serviços especiais para tratar dos problemas decorrentes da mudança ocuparam parte do planejamento da CHESF e de seus colaboradores. Tanto quanto o trabalho de resgate de animais silvestres e domésticos ameaçados pela subida das águas! Equipes inteiras foram mobilizadas para convencer os velhos ocupantes da beira do Rio, como Sr. Francisco, que se agarrou a uma árvore no seu sítio e se recusava a soltar, enquanto as águas subiam! Cenas semelhantes a essa repetiam-se; houve também muito choro no apartar de vizinhos cujas novas moradias não coincidiam, mesmo que o trabalho planejado procurasse preservar alguns laços comunitários. Vivido pela CHESF quase como uma operação de guerra, o traslado assumiu características de instituição total instantânea, determinando todos os passos dos atingidos, tratando-os como "parte da obra". Da mesma forma, os atingidos, cada um do seu jeito, procuravam compreender individualmente a sua situação. A programação cotidiana da instituição era tão corrida e abrangente que deixava escapar a multiplicidade de situações individuais nos grupos que chegaram juntos para se instalarem nas novas moradas. A saída dos Caminhões que tinham feito o transporte para os novos locais comunicava que as pessoas estavam sozinhas, por mais que se professasse assistência institucional garantida para os meses vindouros. Maravilhados ou decepcionados com as casas de alvenaria, dispostas lado a lado na agrovila; esperançosos ou com medo dos desafios tecnológicos de trabalho nos lotes, que ficavam a uma distância razoável do local onde a população havia sido instalada, a sensação de vazio era visível em quase todos.

A nova disposição das casas e a terra ainda não pronta mexiam muito com as expectativas da nova moradia. Como lidar com a briga na casa dos vizinhos? Antes não era possível ouvi-la, agora era. Se o lote ainda necessitava de equipamento, do que os homens e as mulheres acostumados à labuta diária iriam se ocupar? Iriam se entregar à bebida? Como ensinariam aos seus filhos o ofício agrícola?

A negociação hábil do Pólo Sindical garantiu a compensação monetária mensal pela falta de condições de render benefícios de terra plantada (designada VMT – verba de manutenção temporária, aquém de dois salários mensais por família). A VMT, que era paga pela CHESF em dia estipulado, não oferecia nenhuma atividade que podia ser incorporada a um investimento na continuação da ética de trabalho.

Essa fase foi de absoluta hegemonia da insegurança administrada e da confirmação da vulnerabilidade, exacerbada pelo fato de ter apenas o governo para responsabilizar pelos problemas enfrentados e poder apenas a ele recorrer soluções. Na área de saúde, isso ocorria em problemas cotidianos, que teriam de ser levados aos serviços especiais montados ou reforçados, e em emergências ocasionadas pelo stress da situação, que tinham sido previstos parcialmente pela CHESF, mas nunca tratados como ocasiões previsíveis nas famílias na qual ocorriam. Foi um momento de plena vulnerabilidade social. As velhas redes haviam sido desmanteladas e sua reconstrução nas novas moradas, sob novas bases, ainda incipiente, era frágil; a própria reafirmação cotidiana da moralidade de agricultura familiar tinha sido colocada em cheque. O Pólo Sindical, organizado para defender o agricultor e o trabalhador rural, teve que focalizar os seus esforços na reivindicação e na fiscalização da ação do governo. Ele oferecia um dos poucos contrapontos possíveis para procurar assegurar que essa vulnerabilidade não resultasse em esquecimento e exclusão. Os próprios responsáveis pelo financiamento externo, do Banco Mundial, reconhecendo a importância desse período e da observação da interação e respeito mútuos entre a CHESF e o Pólo, exigiram a presença de uma equipe de pesquisa para acompanhar essa fase, função desempenhada pela Fundação Joaquim Nabuco, também em caráter temporário.

A implantação era passageira e ofuscava momentaneamente as inseguranças estruturais e coletivas locais, porém elas ficaram latentes. O Estado não podia ser mais presente, mas em sua atuação se revelou omisso das responsabilidades para com os mais pobres. Com as populações homogeneizadas na sua condição de "re-asssentadas," as redes e as malhas locais se renderam a um movimento maior do que elas, porém seus atores continuaram com o objetivo de re-estabelecer a complexidade das malhas das relações de poder locais sobre as novas bases em implantação.

Desenvolvimento

Será que a mudança para melhorar a vida, melhora? O reservatório está no lugar e a barragem é um símbolo da competência dos engenheiros. A energia está garantindo que as fábricas não parem e que as pessoas não vivam no escuro. Isso é positivo, mas os agricultores familiares e os trabalhadores rurais, agora inseridos na fase do projeto que os planejadores consideram de "desenvolvimento", estão, realmente, vivendo melhor? De fato, eles estão em período de retração dos mecanismos geradores da insegurança administrada, permitindo o reaparecimento das outras inseguranças; assim, voltam a se multiplicar os liames das referências de suas vulnerabilidades. Os olhos institucionais, e os esforços do jornalismo comunicativo da CHESF passaram para a barragem de Xingó, a uma centena de quilômetros à jusante do Rio São Francisco, em um canyon rochoso e pitoresco. Os novos desafios, ainda mais espetaculares para a engenharia, são vencer a natureza e manter tudo aceso para os citadinos e donos de fábricas. Foi substituída a prioridade de Itaparica, com a sua complicada e grande população. Em função da natureza inóspita, poucos moradores teriam de ser reassentados, o que simplificava o trabalho administrativo da CHESF. O projeto de re-assentamento, supostamente em andamento, foi vítima previsível dessa transformação, e o Pólo Sindical precisava se reorganizar com a modificação do cenário de ação.

Os atos pós-inauguração da barragem da CHESF reinstalam uma vontade de alcançar o que nunca havia sido alcançado completamente: um reconhecimento de que não era mais necessário intervir. O Estado onipresente, uma vez tendo atingida a sua meta prioritária, preferia retornar ao seu papel de gerador de insegurança, não pelas suas ações, mas pelas suas omissões, ou seja, esta seria uma fase do recrudescimento da insegurança administrada, e da retomada, já em novas bases, da insegurança estrutural e da insegurança coletiva local. Quem estava reassentado, contava com si próprio e com o Pólo Sindical, para continuar o diálogo com o Estado e para cobrar o cumprimento dos termos do acordo. Com o decorrer dos anos, a composição das novas relações de poder mostrou novas vulnerabilidades por causa das transformações operadas sob a base inicial.

As mostras deste processo de retração do Estado são extraordinariamente numerosas e diversificadas. Primeiro, a CHESF argumentou que o re-assentamento foi uma obra social cujas exigências de competência fogem às competências de uma companhia organizada tecnicamente para gerar energia. Agora, passada a construção da barragem, o re-assentamento virou parte da "dívida social" da companhia, virtualmente impagável, administrada por um dos setores de menor autonomia e de recursos menos independentes da Companhia. Fracassou a tentativa de passar a administração técnica dos novos lotes irrigados para a CODEVASF, companhia governamental associada a empresários do setor de produção da agricultura irrigada ao longo do São Francisco, sediada em Brasília, com escritório regional principal em Petrolina. Nesse fracasso, a CODEVASF produziu um relatório de denúncias de incompetência técnica da CHESF, comprometedor da capacidade produtiva na implantação dos lotes.

O Pólo constantemente lembra os compromissos não honrados pelos governos sucessivos. O não-financiamento de alguns dos projetos especiais de re-assentamento, calcado em relatórios contundentes de impraticabilidade, por causa das condições ecológicas e dos custos altos, retorna constantemente à mesa de negociações, incomodando pela maneira como mostra que alguns reassentados foram particularmente prejudicados, tornando-se dependentes unicamente da VMT, sem ganhar uma nova base para produzir. Muitos dos que defendiam o Estado também usavam a perpetuação da existência da VMT (extinta em 2005) para argumentar que os reassentados não queriam trabalhar e preferiam viver dependentes do Estado. Antes do re-assentamento quase não havia desemprego na região, depois trabalhadores e agricultores ativos perderam suas bases de produção. Demoras de mais que uma década e meia na instalação do equipamento de irrigação, que teve sua instalação anunciada com prazo de seis meses após o traslado, também mancharam a imagem da companhia (as firmas declaram não construir por não estarem recebendo!), e levaram a CHESF a encontrar novas condições e companhias parceiras (grandes empresas construtoras, engenheiros do exército, etc.) para realizar o trabalho. Muitos dos agrônomos e técnicos agrícolas, contratados para orientar os novos irrigadores reassentados, elaboravam uma imagem acusatória de incompetência, resistência tradicional e limitações cognitivas dos agricultores deslocados. Eram tentativas de repassar a responsabilidade dos insucessos produtivos às vítimas do processo. A montagem e a constante remontagem de comissões específicas para lidar com todas as pendências do projeto de re-assentamento criaram um cenário de aparente preocupação governamental. Também geraram alguns resultados pontuais, mas, acima de tudo, contribuíram para que o Estado se apresentasse à região sempre se modificando, reinstalando-se, re-arrumando suas responsabilidades, e com poucas resoluções concretas.

O próprio Pólo enfrentou uma grande dificuldade na administração sindical pós-re-assentamento. Ele se encarregou de contribuir para o estímulo da formação de associações de produtores que pudessem organizar racionalmente a produção e a comercialização dos produtos das agrovilas. O grau e a velocidade de sucesso eram muito variados, dependendo dos contatos e dos esforços dos seus administradores particulares, sendo esses reassentados considerados "pessoas com tino para o negócio". A não-adesão de muitos reassentados a essas associações reascendeu a discórdia entre os reassentados, servindo para acirrar diferenças entre as avaliações dos esforços dos que se aproximavam mais do sindicato. Entre acusações mútuas de visão curta e auto-interesse, associados e não-associados encontraram dificuldades em organizar de forma colaborativa e coletiva a sua produção. Contra os que não se associaram, alguns argumentos circulavam. Em alguns casos, alegava-se que quem não queria se associar estava mal-acostumado com a dependência em um patrão; em outros casos que era por estar afastado da produção agrícola anteriormente ao traslado, e ainda em outros casos insistia-se em uma atitude obstinada, de autonomia familiar, que provocava limitações na realização de um trabalho coletivo. Alguns dos que participam das associações eram suspeitos de trabalhar por interesse próprio, em outras coisas, e não com a terra, de enriquecer às custas de quem devia estar lucrando com a cooperação. A aquisição de um carro, de um computador, de um trator, de um equipamento de beneficiamento de produto, de abertura de uma linha de crédito ou mesmo a assinatura de um acordo para fornecimento de produtos despertavam um olhar crítico e questionador de associados e de não-associados. Foram novas re-configurações das relações de poder locais cujas linhas demarcadoras foram costuradas pelo processo ao qual todos foram expostos.

Para o Pólo, essa fase implicou em grandes modificações. O seu papel de representante e negociador tinha ficado muito claro na primeira e na segunda fase, embora exigisse, a contragosto, um certo grau de colaboração em tarefas administrativas de execução. Uma vez reassentada, a população que se homogeneizasse em relação ao projeto administrado, retomaria um rumo de heterogeneização. Os reassentados ficariam espalhados por centenas de quilômetros, alguns em municípios regidos por outros Pólos, todos inseridos em uma multiplicidade de contextos locais, cada grupo com líderes e associados com pretensões e características diferentes, dependendo do local. O tratamento desigual pela CHESF contribuiu ainda mais para que cada conjunto, cada bloco, cada projeto, cada agrovila apresentasse as suas particularidades no processo. Havia desde quem já estivesse produzindo e exportando em poucos meses após o re-assentamento, até quem não tinha canos, ou bomba, instalados. A CHESF e as novas faces do Estado, que apareceram com a retração em andamento, diversificaram a composição das negociações e ações, exigindo uma ampliação da estrutura da, já carregada, burocracia sindical e uma abertura de campos de atuação novos para responder a essa diversidade. Ao acrescentar o papel de promotor de desenvolvimento dos reassentados ao seu papel de representar os interesses de agricultores e trabalhadores na mediação das relações com o Estado interventor, o Pólo se viu pressionado para se modificar. Com essa volta à heterogeneidade e correspondente ampliação de atividades, seu papel unificador esmaeceu significativamente. Os seus componentes se envolveram em novos empenhos na política de representação; alguns caíram, vítimas de grupos fortes de contraventores locais (em pleno combate ao plantio e tráfico de maconha, o líder Fulgêncio foi assassinado); outros entraram na política; outros encontraram postos para articular as relações do sindicato com a sociedade mais ampla. Internamente, organizou-se um Departamento de Mulheres e Jovens, que promovia uma visão mais diversificada das demandas dos agricultores. Ao destacar-se neste setor, a diretora, Rita de Cássia, conseguiu tornar-se Coordenadora do Pólo, cargo que ocupa atualmente. O Pólo não perdeu a sua importância, nem o foco da sua atenção, mas a retração da intervenção direta do Estado o tornou uma instituição muito mais multifacetada.

Chamar tudo isso de "fase de desenvolvimento" é maquilar uma realidade com palavra inadequada. Mesmo com os responsáveis pela supervisão desse chamado "desenvolvimento" recheando os discursos com referências à importância dos projetos se auto-sustentarem e da necessidade de encontrar parceiros e mercados fortes para a sua produção, o que se identificava era um processo de retração ou de recrudescimento, visando a uma liberação da responsabilidade do Estado. A referência temporal dessa fase é o exato oposto da segunda. Nada de ritmos ofegantes; idas, vindas, rodeios, retornos, largadas e retomadas. Terminou caracterizando-se por uma morosidade a partir da qual velhas e novas vulnerabilidades apareçeram.

Nos termos de "inseguranças" empregados neste trabalho, na terceira fase o aumento da vulnerabilidade se associou a uma despedida da insegurança administrada direta, quando o Estado se fez presente e atuante, ameaçando e acolhendo ao mesmo tempo. Foi uma despedida com seqüelas indeléveis e um reencontro reafirmador da insegurança estrutural e das inseguranças coletivas locais. A desconfiança do Estado omisso reapareceu e pôde ser percebida como proposital. Os atores locais se articulavam no novo contexto para re-estabelecer, nestas novas bases, as hierarquias que perduraram aparentemente à revelia do Estado, o qual interveio e se retraiu. A marcha do país se confundiu com a marcha do projeto, aparelhando o Estado para lidar com vulnerabilidades de acordo com políticas instaladas em resposta às questões tratadas em outros níveis. A questão da vulnerabilidade revestiu-se de múltiplos desprezos e ataques à moralidade e à base de sustento dos reassentados, os quais foram encaminhados a lidar com atores das áreas de segurança pública, de moradia, de produção e comércio e de serviços de saúde.

A região do sub-médio São Francisco é amplamente reconhecida como parte do Polígono da Maconha, o que contribuiu para uma ação particularmente acirrada dos agentes de segurança pública. Reclamações de mal tratos, insultos, arbitrariedades, invasões domésticas, aprisionamentos e assassinatos, em nome da busca de contraventores associados à maconha ou ao roubo e assalto a cargos e passageiros, eram constantes entre reassentados, mesmo que eles insistissem serem trabalhadores. O perigo do envolvimento na contravenção, atividade atrativa para enriquecimento rápido, não deixou de existir, mas, ao debelar esse perigo, a polícia atingiu o moral dos que foram alcançados pelo reservatório. Assim, os agentes de segurança pública eram considerados verdugos em vez de protetores, cargo que alguns almejavam, pelas possibilidades que a ronda de viatura de segurança pública nas agrovilas poderia trazer.

Ser considerado produtor, traficante de drogas ou assaltante ajudava a produzir um contra-discurso dos reassentados, que insistiam que o lugar da paz e do trabalho produtivo é o campo, enquanto a cidade é o espaço dos desordeiros. A tentativa de recuperar o status envolveu um desmonte das acusações dos outros e o redirecionamento delas para os moradores da cidade. Era na cidade, eterna atração, abrigo dos que não encontravam casas nas agrovilas ou pretendiam ter outro meio de vida, que as novas dependências dos reassentados se concretizam. A VMT era buscada no banco e boa parte era deixada logo em seguida, na feira realizada nas lojas, no dia do pagamento (dia decorado nos calendários, tanto dos próprios reassentados, quanto dos comerciantes), ou no dia costumeiro da feira. Na criação de um mercado local aquecido pelos pagamentos em dinheiro, os comerciantes proliferaram nas cidades locais. Assim, a apropriação do dinheiro do agricultor trabalhador ocorria por roubo ou assalto ou por sistemático endividamento. A produção de produtos para consumo nos lotes irrigados em áreas de menor fertilidade que as que eles possuíam na beira do rio era mais difícil, e a necessidade dos complementos aumentava. Isso foi dificultado pela restrição imposta ao uso do criatório, cuja venda constituía uma válvula de escape nas horas de maior aperto. O estímulo era para a produção de bens comercializáveis, mas o volume era reduzido e a coordenação dos esforços, difícil. Assim, as redes comerciais continuaram fracas e os agricultores vitimas dos preços oferecidos por atravessadores que continuaram desempenhando papel importante na região. Alguns eram conhecidos e confiáveis, mas ofereciam oportunidades de pouco lucro; outros eram desconhecidos e geravam desconfiança ao oferecer oportunidades de maior lucro. Não são poucas as histórias de reassentados enganados e prejudicados por atravessadores.

A dependência em um dono da terra particular ou de bomba foi substituída pela dependência no trabalho jurídico moroso da CHESF: passar títulos para os novos donos dos lotes, lidar com heranças, permitir ou proibir arranjos de terceirização do trabalho, acesso a terras invadidas por outros.

Um dos trabalhos constantes da CHESF era o de informar os reassentados da aproximação do dia de pagamento da água ao Estado, novo dono das bombas, ou seja, no dia-a-dia, o controle sobre os meios que antes serviam para estabelecer hierarquias locais entre agentes de patrimônios relativamente pequenos foi centralizado no Estado. No novo contexto, o Estado era muito menos maleável e muito menos disposto a trocar favores por essa dependência. A vulnerabilidade tomou nova forma. Aos olhos dos reassentados, o Estado tornou-se mais presente, embora mais omisso que os antigos "patrões".

Na área específica de administração de serviços de saúde, os tempos da nação foram favoráveis aos reassentados. Assim, a elaboração da Constituição de 1988 forneceu as bases para a implementação de uma política de atendimento territorializado das famílias, através do Programa de Saúde da Família (PSF), promovendo o atendimento in loco dos agricultores reassentados, por agentes provenientes da própria área rural, bem como por médicos e enfermeiros contratados para oferecer serviços. Esses programas ocuparam espaços que haviam sido criados para a operação das equipes especiais em fases anteriores do processo, servindo à desejada liberação dos administradores do projeto. Os serviços públicos na região expandiram, mesmo diante de uma permanente busca de profissionais escassos, e o cenário político local se viu povoado de profissionais de saúde que se articulavam com os outros profissionais de serviços públicos e privados, comerciantes, transportadores e produtores rurais na afirmação do poder local.

Encerra-se esta discussão sobre as vulnerabilidades criadas na longa fase de "retração do Estado" e desenvolvimento das novas relações de poder local apontando quatro áreas de saúde que caracterizam as novas condições para os reassentados. A primeira é a constante vivência com o perigo de intoxicação trazida pelo uso excessivo de agrotóxicos na moderna forma de agricultura irrigada – estudos demonstram um crescimento das doenças decorrentes desse manejo; as associações, os sindicatos, o Pólo e os responsáveis pela vigilância sanitária procuram achar formas de se precaverem contra esse mal moderno, pouco presente anteriormente. A segunda é o problema intensificado com a implantação das agrovilas. O alcoolismo associado à desocupação, tanto de adultos quanto, especialmente, dos jovens, vem preocupando os moradores das agrovilas, como foi revelado em grupos de discussão, em observações diárias. A terceira, é como lidar com a incompreensão da AIDS, que tem gerado atos de exclusão e marginalização em locais onde residiram pessoas com exames confirmatórios e que desenvolveram sintomas. Isso tem exigido colaboração entre as secretarias de saúde, os profissionais do PSF, e a população. A quarta é o levantamento de uma consciência da diversidade de demandas na área de saúde reprodutiva, que tem sensibilizado muitas mulheres por capacitações promovidas pelo Departamento de Mulheres e Jovens e pela coordenação geral do Pólo Sindical e das diretorias dos Sindicatos. Elas sentem mais necessidade de qualidade em serviços de atendimento, seja nas áreas de saúde física, seja na proteção contra violência doméstica.

Esse conjunto de novas vulnerabilidades na área de saúde, bem como das outras áreas afins, mostra o quanto são intrincados os percursos seguidos pelo re-assentamento e pela nação para modificar um quadro local no qual a sensibilidade às vulnerabilidades retrata uma região totalmente transformada. Novas inseguranças realçam que ainda se vive uma realidade em que o Estado, mesmo quando irremediavelmente mais presente decorrente do projeto administrado por ele e da expansão histórica dos seus serviços, continua omisso pelas suas próprias fraquezas e indisposições. Essas inseguranças também se relacionam ao rearranjo profundo das relações de poder nos cenários locais, fazendo com que a cada passo redefinam-se e realinhem-se os reassentados na busca de uma vida de agricultor digno e trabalhador, resistente às constantes ameaças a sua moralidade e as suas bases de sustento, bases da identidade coletiva.

Emancipação

Relato e processo tão longos quanto os apresentados aqui merecem ser finalizados com a idéia, veiculada pelos planejadores dos re-assentamentos, de que haverá uma "emancipação", que marcará o final de uma intervenção, e o início de algo totalmente novo. É evidente que não é isso o que acontece. Os próprios sistematizadores dessa fase idealizada, Scudder e Colsen, reconhecem que muitos projetos não chegam a ela. De fato, não é para chegar a essa fase. Constantemente, ao longo da terceira fase, a retração do Estado caracteriza um novo descortinar da insegurança estrutural vivida pelas populações pobres. O Estado, mesmo quando se torna mais visível, decorrente da ampliação das suas atividades em dado período histórico, como tem sido o caso em Itaparica durante todo o período de consolidação da democrática brasileira, constantemente manifesta as suas reticências, indisposições e ausências. Fazendo-se extraordinariamente presente com uma remoção que gerou uma insegurança administrada, a sua emancipação já vem prenunciada reiteradamente. A sua saída e o fechamento do projeto são eventos impossíveis de ocorrer, mesmo no papel, pois a sua influência sobre a região e a maneira particular como vive as suas vulnerabilidades ao longo dos realinhamentos de poder redefinem as identidades coletivas e abrem espaços para novas negociações e articulações, sempre acompanhadas pela sombra da sua intervenção.

Recebido em: 25/09/2006

Aprovado em: 17/11/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2006

Histórico

  • Aceito
    17 Nov 2006
  • Recebido
    25 Set 2006
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