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Vida sociopolítica em mercados culturais na cidade de Porto Alegre* * Este artigo é o resultado do projeto de pesquisa “Economia criativa e desenvolvimento em Porto Alegre”, apoiado pelo CNPq, Edital Universal. A pesquisa de campo reúne dados quantitativos obtidos por meio da aplicação de questionários, bem como dados qualitativos colhidos em entrevistas. O artigo detém-se aos dados qualitativos obtidos na pesquisa, além de material de fontes secundárias. O autor agradece a contribuição dos bolsistas de iniciação científica Lis Lucas e Daniel Santos Borges pelo apoio ao trabalho de campo.

Sociopolitical life in cultural markets in the city of Porto Alegre

Resumo

As possibilidades das tecnologias de informação e comunicação conjugadas com normas e regras do sistema global têm contribuído para a transformação dos mercados culturais, recriando concepções e arranjos entre arte-tecnologia-mercado. O artigo discute centralmente as implicações sociopolíticas dessas transformações nos mercados culturais, enfocando as respostas dos agentes em distintas instâncias de ação política na cidade de Porto Alegre. Os dados resultam da combinação de diferentes fontes de investigação, destacando-se entrevistas com líderes profissionais e com gestores de empreendimentos no mundo da cultura, assim como relatórios e documentos obtidos em diversos sites na Internet. O argumento que orienta a análise é de que as referidas transformações tendem a produzir diferentes tipos de ações sociopolíticas, como as mobilizações de novos coletivos de artistas, de novas associações profissionais e a reformulação de pautas nas já existentes, e a presença em novos e antigos conselhos de políticas públicas.

Palavras-chave:
Mercados culturais; Ação sociopolítica; Porto Alegre; Sociologia econômica

Abstract

The possibilities of information and communication technologies combined with norms and rules of the global system have contributed to the transformation of cultural markets, recreating conceptions and arrangements between art-technology-market. The article discusses the sociopolitical implications of these transformations in the cultural markets, focusing the responses of the agents in different instances of political action in the city of Porto Alegre. The data are the result of a combination of different sources of research, including interviews with professional leaders and entrepreneurs in the world of culture, as well as reports and documents obtained from various websites. The argument that guides the analysis is that these transformations tend to produce different types of sociopolitical actions, such as mobilizations of new collective artists, new professional associations and reformulation of guidelines in associations previously existing, and presence in new and old public policy councils.

Keywords:
Cultural markets; Socio-political action; Porto Alegre; Economic sociology

Introdução

Os mercados de bens e serviços culturais têm experimentado, hoje, em escala mundial, rápidas e intensas transformações, destacando-se a digitalização e a consequente recolocação dos contornos dos direitos de propriedade intelectual, dos novos arranjos das cadeias de produção e geração de valor que se refletem na organização do trabalho em cultura e das regras e condições de troca cujo foco se desloca para um público situado em diferentes escalas e orientado por novas exigências de estilo de vida (Denning, 2005DENNING, Michael. A cultura na era dos três mundos. São Paulo: Francis, 2005.; Ferraz, 2015FERRAZ, Tatiana S. Quanto vale a arte contemporânea? Novos Estudos, n. 101, p. 117-132, Mar. 2015.; Herscovici, 2015HERSCOVICI, A. O capitalismo imaterial: elementos para uma análise (socio)econômica. Novos Estudos, n. 102, p. 133-151, 2015.; Rajchman, 2011RAJCHMAN, John. O pensamento na arte contemporânea. Novos Estudos, n. 91, p. 97-106, Nov. 2011.; Swedberg, 2006---- . The cultural entrepreneur and the creative industries: beginning in Viena. Journal Culture Economic, n. 30, p. 243-261, Oct. 2006.). As instituições e normas que estabilizam esses mercados se acham em transformação, condicionando as estratégias, concepções e interesses dos agentes empresariais (Fligstein, 1996---- . Markets as politics: a political-cultural approach to market institutions. American Sociological Review, v. 61, n. 4, p. 656-673, Aug. 1996.; 2006).

O debate acadêmico sobre tais transformações, demarcado pelas teses da “indústria cultural” e das “indústrias criativas”, tende, porém, a desenraizar esse processo, sabendo-se relativamente pouco sobre os interesses e os arranjos sociopolíticos concretos dos agentes nessa transformação. O antigo conceito de indústria cultural de massa tem sido reanimado em estudos sobre as imposições de cadeias de produção internacionais que levariam ao domínio de estéticas massificadas, destituindo a arte e a cultura de sentido crítico, expandindo precariedades nesse trabalho e concentrando riquezas no centro capitalista (Banks, 2010BANKS, Mark. Craft labour and creative industries. International Journal of Cultural Policy, v. 16, n. 3, p. 305-321, Aug. 2010.; Miller, 2011MILLER, Toby. La nueva derecha de los estúdios culturales - las industrias creativas. Tabula Rasa, n. 15, p. 115-135, Bogotá, Jul./Dic. 2011.). A indústria cultural exprimiria o poder do monopólio econômico que alienaria a sociedade de si mesma pela massificação da cultura. O “poder absoluto do capital” operaria por meios técnicos que desmereceriam a perícia e competência do processo de criação em artes e cultura (Adorno & Horkheimer, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.; Habermas, 2015HABERMAS, J. A nova obscuridade. São Paulo, Editora Unesp, 2015.). As formulações sobre indústrias criativas alertam, em contraste, sobre a pujança atual da transformação de valor simbólico e cultural em valor econômico-financeiro, mediante a transação mercantil de direitos de propriedade intelectual (Caves, 2003CAVES, R. Contracts between arts and commerce. Journal of Economics Perspectives, v. 17, n. 2, p. 73-83, 2003.; Flew & Cunningham, 2010FLEW, Terry; CUNNINGHAM, Stuart. Creative Industries after the first decade of debate . The Information Society, v. 26, n. 2, p. 113-123, 2010.; Howkins, 2013HOWKINS, John. Economia criativa. São Paulo: M. Books do Brasil, 2013.). As classes de profissionais criativos moveriam esses novos mercados em expansão, sendo, porém, incapazes de identificar interesses comuns e, por isso, de transformá-los em ação sociopolítica, em razão de sua diversidade e de sua crença em valores sociais, como individualismo e meritocracia (Florida, 2011FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa. Porto Alegre: L&PM, 2011.).

O esforço de análise no presente artigo tenta escapar da cilada contida na discussão entre posições sobre “as forças cegas do mercado”, que destroem a ação política, e sobre “as boas instituições ajustadas à evolução de mercados”, que prescindem da ação política. A conjectura que orienta a análise é de que transformações recentes em mercados de bens e serviços culturais tendem a produzir diferentes tipos de ações sociopolíticas, como mobilizações de novos coletivos de artistas, novas associações profissionais e mesmo reformulação de pautas nas já existentes, bem como a presença em novos e antigos conselhos de políticas públicas. Os agentes acionam repertórios de ação que oscilam entre a contestação a instituições consagradas e a participação em políticas governamentais. Essa “vocação política” surge em meio a atores escolarizados que induzem a cooperação na construção de interesses e identidades comuns. Tal argumento sustenta-se no suposto de que os mercados seriam arenas de jogos estratégicos com relações de cooperação e conflito cujos atores construiriam interesses, identidades e concepções de mercado distintas. Os agentes empresariais formulariam suas estratégias de captação de ganhos, empenhando-se na estabilização de regras que distribuem diferencialmente recursos no mercado.

O artigo discute, pois, centralmente, as implicações sociopolíticas decorrentes das transformações atuais nos mercados de bens e serviços culturais, enfocando as recentes ações sociopolíticas dos agentes em diferentes instâncias na cidade de Porto Alegre, notadamente em conselhos e comitês, em associações profissionais e empresariais, bem como em movimentos e coletivos de artistas. A cidade torna-se ilustrativa em razão da presença relativamente significativa desse tipo de atividade, considerando outros setores e outras cidades do país. Porto Alegre tem recebido eventos culturais e de entretenimento internacionais (Bienal do Mercosul, Copa do Mundo Fifa, feiras e espetáculos artísticos, entre outras atividades). Ao pertencer historicamente a fluxos migratórios, reúne diferentes formações étnicas e linguísticas (como portugueses, africanos, espanhóis, indígenas, judeus, muçulmanos, poloneses, alemães e italianos). A cidade é considerada polo regional em arte e cultura, em razão não apenas de seus equipamentos culturais, mas também da atuação de suas universidades na formação e difusão cultural. Dispunha, para dados de 2014, de 781 equipamentos dedicados ao seu desenvolvimento cultural, como bibliotecas, galerias, museus, teatros, centros culturais, cinemas, auditórios, memoriais, ateliês, arquivos, pinacotecas, dentre outros. Ademais, foram identificados, em 2012, 388 centros culturais, casas e espaços de cultura na cidade (ObservaPoa, 2018). Como ilustração, pode-se referir que o Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem sua origem ainda no ano de 1908, contando atualmente com diferentes cursos de graduação e Programas de Pós-Graduação em Música, Artes Visuais e Artes Dramáticas (alguns considerados de excelência internacional). A Pontifícia Universidade Católica criou o Centro Tecnológico Audiovisual do Rio Grande do Suk (Tecna), que se associa ao seu Parque Tecnológico (Tecnopuc). Outras instituições de ensino superior têm também expandido atividades de ensino, pesquisa e extensão em setores culturais na cidade, como a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Os dados resultam da combinação de diferentes fontes de investigação, destacando-se entrevistas com líderes, gestores e profissionais do mundo da cultura, assim como materiais de fontes secundárias - relatórios, documentos e informações diversas - obtidos em diferentes sites na Internet1 1 . Foram consultados, em especial, os sites das organizações selecionadas, quais sejam <http://chicolisboa.com.br/>, <https://www.apdesign.com.br/>, <https://vilaflores.wordpress.com/>, <https://distritocriativo.wordpress.com/>, <http://www.fundacine.org.br/>, <https://intercena.com.br/>, <http://www.conselhodeculturars.com.br/>. . Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com líderes e representantes de três associações profissionais, de três movimentos e coletivos de empreendimentos, e de dois conselhos de política pública, no período entre julho e dezembro de 2017. A seleção dessas organizações tentou captar expressões, diversas e significativas, da experiência sociopolítica recente nesse mercado na cidade. Os atributos enfocados na investigação referem-se à constituição e aos propósitos das organizações, às ações e às iniciativas coletivas, à visão e às posições sobre gestão do território e inserção nos mercados, às demandas ao poder público e aos vínculos institucionais. Subsidiariamente, recorre-se a entrevistas semiestruturadas com gestores/sócios de 15 pequenos empreendimentos em cultura que se distribuem em diferentes áreas, como patrimônio cultural, artes plásticas e cênicas, mídias e audiovisual, arquitetura, moda e design, tendo em vista o registro dos contornos das recentes transformações nesse mercado na cidade. As entrevistas foram realizadas entre junho e outubro de 2014.

O artigo estrutura-se, além desta introdução, em três seções, seguindo-se as considerações finais da análise: a primeira seção expõe a abordagem teórica que sustenta a proposta, valendo-se de contribuições sobre o enraizamento dos mercados, especialmente o enfoque político-cultural dos mercados; reúne, ainda, resultados de estudos sobre respostas sociopolíticas às transformações recentes em mercados de bens e serviços culturais que se acham em diferentes contextos nacionais; a segunda, examina aspectos das transformações dos mercados culturais na cidade em estudo, referindo-se à origem dos empreendimentos visitados, às suas estratégias produtivas e formas de inserção nos mercados; a terceira seção analisa as categorias consideradas de organizações de representação de interesses no mundo da cultura na cidade, reunindo organizações recentemente constituídas bem como algumas mais antigas que experimentam dissonâncias e mudanças internas em face no novo contexto de mercado.

Produção e reprodução de mercados

Parte-se do pressuposto, caro à sociologia econômica, de que o curso das atividades econômicas, como é o caso dos mercados de bens e serviços culturais, seria sempre sustentado em diferentes formas de enraizamento sócio-político-institucional, relativizando-se tanto os enfoques que atribuem ao mecanismo de mercado uma força avassaladora (como, no conceito de indústria cultural), quanto aqueles que o concebem como a resposta mais eficiente na geração e alocação de recursos (caso dos preceitos sobre indústrias criativas). Tal premissa apoia-se em variada literatura teórica e empírica que tem evidenciado não apenas a diversidade das relações sociais de cooperação e de conflito, mas também distintas combinações de interesses (materiais e ideais) implicados na produção e reprodução dos mercados.

Granovetter (2009GRANOVETTER, M. Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. In: MARTES, A. M. B. (Org.). Redes e sociologia econômica, p. 31-68. São Carlos: EdUFSCar, 2009. ) expôs a relevância das redes de relações sociais na estruturação de mercados. As interações concretas entre os agentes econômicos seriam a fonte não apenas de recursos e de informação sobre as transações econômicas, mas também a origem da confiança e de incentivos ou sanções que permitem as trocas e seus prolongamentos. O comportamento econômico dependeria, nestes termos, da inserção dos agentes nas variáveis estruturas de relações sociais. Analistas (Burt, 2004BURT, R.. Structural holes and good ideas. American Journal of Sociology, v. 110, n. 2, p. 349-399, 2004.) sugerem que as redes de relações sociais condicionariam a qualidade, a quantidade e a temporalidade das informações nos mercados, bem como influiriam nas oportunidades de solução de problemas ou de criação de novos bens e serviços pela captação de ideias mundanas em certo contexto e sua transposição como novidade eficiente para outra situação. Ademais, as interações entre grupos com identidades diversas poderiam desencadear tensões geradoras de soluções e novas ideias tecnológicas, comerciais e produtivas, constituindo-se em vantagem competitiva (De Vaan, Stark & Vedres, 2014).

Bourdieu (2003BOURDIEU, Pierre. Las estructuras sociales de la economia. Barcelona: Editorial Anagrama, 2003.) avançou a discussão ao conceber os mercados como um campo de lutas sociais entre empresas dominantes e desafiantes, cujas estratégias competitivas dependeriam, por um lado, da estrutura e composição de seus diversos capitais (com destaque para o capital tecnológico), distribuídos por regras legitimadas pelo Estado e, por outro lado, das disposições que marcariam esquemas de percepção, conhecimento e interesses dos agentes econômicos. Para Zelizer (2011ZELIZER, Viviana. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011.), as trocas mercantis seriam relações entre pessoas concretas (vendedores e consumidores) que se orientariam com base em variadas qualidades morais, ensejando permanente negociação, debate e combinação entre intercâmbio econômico e relações pessoais - e mesmo íntimas. Swedberg (2009SWEDBERG, Richard. A sociologia econômica do capitalismo: uma introdução e agenda de pesquisa. In: MARTES, A. M. B. (Org.). Redes e sociologia econômica, p.161-205. São Carlos: EdUFSCar, 2009. ) chama a atenção para a combinação de interesses materiais e ideias no impulso à ação econômica. Os interesses concretos dos agentes econômicos seriam realizados por meio de relações e instituições sociais, embora nem sempre os agentes tenham clareza sobre quais seriam seus interesses e sobre os modos de realizá-los. O desenvolvimento dos mercados dependeria, pois, da coordenação de uma pluralidade de interesses que nem sempre estariam claramente estabelecidos.

Tais contribuições sucintamente mencionadas enfocam diferentes ângulos do enraizamento de mercados, sugerindo o estudo concreto dos interesses, das relações de cooperação e do poder e conflito no seu funcionamento e reprodução. Cabe, pois, expor mais detidamente algumas das formulações que, ao compartilhar o pressuposto acima, destacam os processos sociopolíticos implicados na transformação de mercados.

Neste sentido, as formulações sobre campos de ação estratégica, como propostas por Fligstein e McAdam (2012FLIGSTEIN, N.; MCADAM, D. A theory of fields. New York: Oxford University Press, 2012.), concebem os mercados como arenas de ação social em que agentes econômicos empenhar-se-iam em jogos de captura de ganhos, requerendo concepções sobre identidades e interesses que aproximariam esses agentes assim como regras de estruturação da distribuição de recursos que facilitariam ou atrapalhariam certo curso de ação. As fronteiras desse campo de ação assumiriam contornos variáveis em razão de condições prévias (regras institucionais e recursos do ambiente), de suas interdependências com campos próximos (estatais, econômicos e societais), e das estratégias em dinâmicas de interação/ cooperação/ conflito entre os agentes.

Nessa arena, agentes incumbentes e desafiantes atuariam segundo seus interesses em produzir novas regras do jogo ou em reproduzir as existentes, orientando-se tanto por seus quadros identitários como pelos recursos distribuídos pelas regras vigentes (direito de propriedade, padrões de governança, regras de troca). As estratégias de atuação dos agentes empresariais nos mercados poderiam assumir diferentes formas. Os agentes econômicos tenderiam a assumir estratégias que visam à colaboração com concorrentes como forma de ampliação de suas capacidades e raio de ação, à pressão sobre o Estado para que este estabeleça regras em seu favor, e à diferenciação de produtos e geração/ adoção de inovações (Fligstein, 1996---- . Markets as politics: a political-cultural approach to market institutions. American Sociological Review, v. 61, n. 4, p. 656-673, Aug. 1996.; 2006).

O processo de formação de um mercado guardaria diferentes fases:

  1. a emergência teria agentes empresariais buscando convencer os demais sobre a adoção de sua concepção das regras, movendo-se pela aproximação de interesses na afirmação de suas concepções de organização do novo mercado;

  2. a estabilização ocorreria com a legitimação pelo Estado das instituições que informam o mercado, conformando uma hierarquia entre as empresas e suas concepções de controle do mercado; e

  3. a crise tornaria o mercado suscetível a transformações, uma vez que movimentos e coalizões políticas reivindicariam a mudança nas regras e concepções de controle existentes no mercado (Fligstein, 1996---- . Markets as politics: a political-cultural approach to market institutions. American Sociological Review, v. 61, n. 4, p. 656-673, Aug. 1996.).

Haveria diferentes razões para a desestabilização e as mudanças nos mercados, destacando-se as instabilidades da competição permanente e a redução de preços pelas empresas, o problema da manutenção da empresa como uma coalização política, as mudanças na demanda consumidora, a invasão de concorrentes situados em outros setores e as ações do Estado. Vale notar que os mercados, em seus diferentes momentos, expressariam lutas políticas, seja porque o Estado legitimaria suas condições e regras institucionais, seja porque se desenvolveriam mediante projetos de poder entre empresas e dentro das empresas, no caso, entre concepções de controle dos diferentes dirigentes (Fligstein, 1996---- . Markets as politics: a political-cultural approach to market institutions. American Sociological Review, v. 61, n. 4, p. 656-673, Aug. 1996.; 2006).

Em processos de transformação dos mercados, empreendedores institucionais explorariam dinâmicas ideacionais e discursivas que criariam recursos e aproximariam interesses, reconstruindo as identidades dos atores. Aqueles teriam a habilidade de integrar ideias e métodos que inovariam na arquitetura institucional e, com isso, organizariam um campo de ação estratégica. Isso tenderia a produzir unidades de governança interna, concorrendo para uma nova fase de estabilização do campo. Esse processo ocorreria em meio às condições previamente encontradas (instituições e recursos captados em campos correlatos), resultando em modelos, concepções e visões de mundo que orientariam a ação estratégica nas empresas. A ação tática no processo de indução da cooperação e, com isso, de construção institucional do mercado - ou seja, das regras legítimas que não apenas constrangeriam, mas também capacitariam os atores - recorreria à produção de quadros identitários comuns entre diferentes atores, à proposição de uma agenda para esses quadros, à intermediação e controle de recursos relevantes e mesmo à pressão sobre os atores com vistas a obter sua colaboração (Fligstein & McAdam, 2012FLIGSTEIN, N.; MCADAM, D. A theory of fields. New York: Oxford University Press, 2012.).

De fato, a produção científica internacional recente sobre transformações nos mercados de bens e serviços culturais tem registrado, em diferentes contextos, uma vibrante vida sociopolítica nesses processos, expressando-se na construção de novas pautas de movimentos, na liderança de associações profissionais e em novos canais de influência sobre a ação governamental.

Um tipo de resposta seria a ação de movimentos urbanos liderados por artistas, como no caso de Copenhague, na Dinamarca. Com efeito, um conjunto de artistas “alternativos” e “convencionais” teriam se mobilizado em torno da transformação de um bairro herdeiro da contracultura hippie e libertária em um território de consumo cultural com interesse de mercado e integrado à política de turismo e de cultura da cidade. O bairro teria se tornado o nó de uma ampla rede de artistas e simpatizantes dos Países Baixos, desenvolvendo novas experiências de gestão e de uso do tempo, da arquitetura e da mobilidade urbana experimentais, e laboratórios de artes plásticas. A mobilização teria sido uma resposta desses artistas na defesa de seu estilo de vida e de produção cultural à tentativa governamental de intervir na reurbanização do bairro. Isso seria percebido como ameaça de eliminação desse tipo de produção dos mercados de bens e serviços culturais (Vanolo, 2013VANOLO, Alberto. Alternative capitalismo and creative economy: the case of Chr­is­tiania. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1785-1798, Sep. 2013.). Experiências similares tiveram registro nas cidades de Berlim e Hamburgo, na Alemanha. Uma rede de produtores culturais e de artistas teria sido estruturada com vistas a intervir em projetos de desenvolvimento urbano que permitam áreas de pluralidade de expressão artística e de estilo de vida. Tratar-se-ia de uma resposta (protestos, ocupações e proposição de agenda ao poder local) ao que estes atores considerariam como instrumentalização e padronização da cultura (foco em atração de eventos, entretenimento noturno e marketing cultural). O movimento teria composição heterogênea, reunindo diferentes gerações e estilos de produção artística e cultural (Novy & Colomb, 2013NOVY, J.; COLOMB, C. Struggling for the right to the (creative) city in Berlin and Hamburg: new urban social movements, new “spaces of hope”? International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1816-1838, Sep. 2013.).

Há também experiências de associações de profissionais da cultura que participariam em projetos de desenvolvimento urbano e em processos de construção de mercados (Shin & Stevens, 2013SHIN, H.; STEVENS, Q. How culture and economy meet in South Korea: the politics of cultural economy in culture-led urban regeneration. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1707-1723, Sep. 2013.; Trigo, 2015TRIGO, José P. El debate de la creatividad y la economia em las ciudades actuales y el papel de los diferentes actores: algunas evidencias a partir del caso de estudio de Madrid. Investigaciones Geográficas, n. 87, p. 62-75, 2015.; Ulldemolins & Jiménez, 2015). Segundo Ulldemolins e Jiménez (2015), profissionais da cultura teriam sido capazes de induzir a cooperação de comunidades com o propósito de influir em projetos de regeneração urbana baseados na implantação de grandes instituições culturais, nas cidades de Barcelona, na Espanha, e de Cartagena das Índias, na Colômbia. A resposta desses agentes teria contribuído para incluir, nas propostas originais, estratégias e instrumentos de preservação da memória e cultura local, tendo em vista incluir novos atores e provocar maior pluralidade cultural aos projetos. Em Madri, Espanha, uma associação de profissionais das artes e do artesanato teria alcançado um acordo com o poder público local e outras associações de negócios, com vistas a iniciar novas atividades produtivas (concertos, exposições, feiras de alimentação, semanas de atividades, entre outras) e a reabrir postos de trabalho fechados mediante novos instrumentos de financiamento (a exemplo das cooperativas de crédito) e modelos organizacionais (como, por exemplo, autogestão) (Trigo, 2015).

Outro tipo de resposta política refere-se à incidência nas políticas públicas. A literatura tem mostrado o ingresso de uma nova geração de profissionais da cultura que, atenta aos mecanismos de geração de valor econômico de seus produtos, buscaria influir nos incentivos e nas regras institucionais desses mercados (Comunian, 2012COMUNIAN, R. Uma cidade criativa de tipo relacional: para uma cartografia das ligações em rede entre os setores público, privado e sem fins lucrativos nas indústrias criativas. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 99, p. 99-124, 2012.; Köster, 2013KÖSTER, Pau R. (Coord.). La cultura como factor de innovación económica y social. Valência: Econcult; IIDL; Universitat de València, 2013. Disponível em: <http://www.uv.es/soste/pdfs/Sostenuto_Volume1_CAST.pdf>. Acesso em: 23 Nov. 2015.
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; Kong, 2012KONG, Lily. Ambitions of a global city: arts, culture and creative economy in “pós-crisis” Singapore. International Journal of Cultural Policy, v. 18, n. 3, p. 279-294, Jun. 2012.). Como ilustração, em Singapura, os mercados de bens e serviços culturais teriam sido estruturados entre os anos 1960 e 1980 em torno da exploração de seu potencial turístico, sendo a política governamental para o setor baseada na concessão de subsídios para as artes. Porém, as tendências recentes, acentuadas nos anos 2000, passariam a focalizar o valor das artes e da cultura na promoção da educação, do conhecimento e da sociedade, com reflexos na preparação da transição de uma economia industrial para uma economia baseada em conhecimento. No caso, a nova geração de políticos e de formuladores de políticas culturais apostariam na integração entre artes, cultural, tecnologia, design e mídias, enfocando o valor social da cultura para o desenvolvimento nacional. Os instrumentos governamentais abandonariam os subsídios, adotando uma visão de investimento e retorno de longo prazo nos mercados de bens e serviços culturais, mediante a atração de organizações, companhias e profissionais para a capacitação local (Kong, 2012).

Portanto, é razoável supor que transformações em mercados de bens e serviços culturais tenderiam a produzir diferentes tipos de respostas sociopolíticas dos agentes envolvidos. Tais reações não seriam automáticas, acionando repertórios de ação que oscilariam entre, de um lado, a contestação e mesmo o confronto político, e, de outro lado, a participação em políticas governamentais e em associações de classe. Como sugere a literatura (Kong, 2012KONG, Lily. Ambitions of a global city: arts, culture and creative economy in “pós-crisis” Singapore. International Journal of Cultural Policy, v. 18, n. 3, p. 279-294, Jun. 2012.; Novy & Colomb, 2013NOVY, J.; COLOMB, C. Struggling for the right to the (creative) city in Berlin and Hamburg: new urban social movements, new “spaces of hope”? International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1816-1838, Sep. 2013.; Trigo, 2015TRIGO, José P. El debate de la creatividad y la economia em las ciudades actuales y el papel de los diferentes actores: algunas evidencias a partir del caso de estudio de Madrid. Investigaciones Geográficas, n. 87, p. 62-75, 2015.; Ulldemolins & Jiménez, 2016ULLDEMOLINS, J. R.; JIMÉNEZ, L. P. Cultura, transformación urbana y empoderamiento ciudadano frente a la gentrificación: comparación entre el caso de Getsemaní (Cartagena de Indias) y el Raval (Barcelona). Eure, v. 42, n. 126, p. 97-122, Mayo 2016.; Vanolo, 2013VANOLO, Alberto. Alternative capitalismo and creative economy: the case of Chr­is­tiania. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1785-1798, Sep. 2013.), essas ações sociopolíticas surgiriam em meio a atores escolarizados e capazes de induzir a cooperação de outros atores, a redes de ação coletiva, a acúmulos de experiência de participação no debate público e a maior ou menor apoio do poder público local.

Contornos e tendências de mercado

Os mercados de bens e serviços culturais encontram-se, hoje, mundialmente sob os efeitos da digitalização e Internet móvel, da internacionalização de cadeias produtivas e da estetização nas demandas de consumidores que se orientam por novos estilos de vida (Denning, 2005DENNING, Michael. A cultura na era dos três mundos. São Paulo: Francis, 2005.; Ferraz, 2015FERRAZ, Tatiana S. Quanto vale a arte contemporânea? Novos Estudos, n. 101, p. 117-132, Mar. 2015.). Isso se reflete não apenas na expansão de empreendimentos e de profissionais ocupados, mas também nos processos de produção e trabalho nesses mercados (Herscovici, 2015HERSCOVICI, A. O capitalismo imaterial: elementos para uma análise (socio)econômica. Novos Estudos, n. 102, p. 133-151, 2015.; Swedberg, 2006---- . The cultural entrepreneur and the creative industries: beginning in Viena. Journal Culture Economic, n. 30, p. 243-261, Oct. 2006.). A cultura passa, na atualidade, a ser não apenas consumida em novos estilos de vida (Rajchman, 2011RAJCHMAN, John. O pensamento na arte contemporânea. Novos Estudos, n. 91, p. 97-106, Nov. 2011.), mas também assumida como insumo crucial na geração de novidade em diferentes setores econômicos (Köster, 2013KÖSTER, Pau R. (Coord.). La cultura como factor de innovación económica y social. Valência: Econcult; IIDL; Universitat de València, 2013. Disponível em: <http://www.uv.es/soste/pdfs/Sostenuto_Volume1_CAST.pdf>. Acesso em: 23 Nov. 2015.
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).

No Brasil, diagnósticos têm reiteradamente registrado o crescimento do número de empregados em diferentes setores culturais, embora esse desempenho seja bastante variável entre os mesmos (Firjan, 2014). Ao considerar o período entre 2004 e 2013, o segmento de patrimônio cultural teve expansão de 60,9% no emprego no país; o segmento de música, 60,4%; o segmento editorial, 82,5%; arquitetura, 98,5%; design, 104,3%; e publicidade, 238,5% (todos acima da média nacional, que foi de 56% para o período). No entanto, alguns segmentos cresceram abaixo dessa média para o período: artes cênicas, 54,9%; expressões culturais, 22,7%. O setor de moda experimentou retração de 6,3% (Firjan, 2014).

Com relação aos rendimentos desse mesmo período, os ganhos foram mais destacados nos setores de moda (42,1%), de música (33,3%), de audiovisual (32,7%) e de expressões culturais (31,6%). Esses setores tiveram elevação de rendimentos acima da média dos trabalhadores brasileiros no período (29,8%) (Firjan, 2014). No conjunto dos setores, o rendimento médio desses trabalhadores foi de R$ 5.422,00, revelando-se superior à média de rendimento do trabalhador brasileiro no ano de 2013 (R$ 2.073,00). Contudo, em alguns segmentos dos mercados culturais, o rendimento pouco superou essa média brasileira no ano de 2013, como na música (R$ 2.216,00), nas artes cênicas (R$ 3.157,00) e no patrimônio cultural (R$ 3.721,00). O setor de expressões culturais teve rendimento de R$ 1.508,00, mostrando-se inferior à média do trabalhador brasileiro (Firjan, 2014). Os dados suscitam a questão sobre mudanças tecnológicas, competitivas e político-institucionais e seus efeitos no desempenho dos diferentes setores culturais no país.

Para melhor detalhar as transformações, recorre-se a dados qualitativos coligidos em estudo realizado junto a empresas localizadas na cidade de Porto Alegre, enfatizando-se atributos como a origem das atividades realizadas, a estratégia produtiva adotada e a dinâmica de inserção nos mercados. As 15 empresas visitadas são, predominantemente, estabelecimentos de micro e pequeno porte (apenas uma é de médio porte), distribuindo-se nas áreas de patrimônio cultural, de artes visuais e cênicas, e de mídias e design. São empresas fundadas na cidade de Porto Alegre e, em sua maioria, entre as décadas de 2000 e 2010 (uma foi fundada em 1992 e outra em 1960).

Quanto à origem das atividades realizadas pelas empresas, observam-se três caminhos percorridos nesses mercados. As empresas mais antigas tiveram origem como negócios familiares, familiar desde o capital investido. Este é o caso de uma editora que se constituiu em 1992 e de uma gráfica e editora que se constituiu em 1960. Os empreendimentos iniciados nas décadas de 2000 e de 2010 tiveram origem em diferentes formas de relação com a universidade ou na migração dos sócios para novas áreas de atuação, demarcando uma invasão de novos concorrentes nos mercados culturais. Um conjunto de empresas tem origem no acúmulo de experiências profissionais dos sócios em áreas diversas (às vezes, internacionais) combinada com a percepção de oportunidade de iniciar uma nova trajetória em setores culturais que se mostravam dinâmicos em face da demanda por cultura em novos estilos de vida.

Há empresas que se formam pela experiência acadêmica internacional (estudos de graduação ou pós-graduação) de algum de seus sócios. Outras constituíram-se em experiência de incubação em importantes universidades na cidade. Existem, ainda, empresas desencadeadas a partir de pesquisas de mestrado ou doutorado dos sócios, expressando-se a importância do conhecimento acadêmico e da tecnologia para a fase atual do mundo da cultura. Parece, pois, haver novas tendências nas trajetórias de formação de empreendimentos na cidade nos mercados de bens e serviços culturais, destacando-se o papel assumido mais recentemente não apenas pela atração de segmentos considerados dinâmicos, mas também a importância assumida pela universidade. Como ilustração, vale notar a galeria de vídeo-arte criada a partir de pesquisa de mestrado da sócia, apostando na aplicação de novas tecnologias no processo de criação artística.

Na minha pesquisa de mestrado, observei que não havia nenhum espaço, nenhuma galeria de arte voltada para as demandas aqui da comunidade artística de Porto Alegre. Eu queria abrir uma galeria que se voltasse para o conhecimento e que fomentasse o conhecimento sobre vídeo-arte, que é um segmento das artes visuais, em que se trabalha com vídeo, mas se produz arte. Então, é muito desconhecido ainda do público leigo; é muito conhecido na academia. Em função da minha pesquisa de mestrado isso ocorreu: me dei conta de que não havia um espaço que se dedicasse a isso. Parte do investimento é isso. Pensei: bom, essa não deve ser uma necessidade só minha, deve ser uma necessidade de todos. Então, decidi abrir o espaço, com uma parte dele voltada para isso, para a investigação da vídeo-arte. Criei junto com a galeria de arte um projeto que é o núcleo de vídeo, um espaço institucional da galeria, onde se desenvolvem pesquisas voltadas a vídeo-arte, novas mídias, tecnologias nas artes. A galeria de arte funciona, enfim, com vendas que objetivam o lucro (sócia de empresa visitada, Porto Alegre, 12 Ago. 2014).

As estratégias produtivas dos empreendimentos revelam o empenho na busca por novos insumos, por pessoal com conhecimentos complementares e por novas tecnologias. As empresas visitadas tendem a absorver e a adaptar conhecimentos e tecnologias externas. Isso ocorre, com frequência, mediante consultorias, participação em eventos especializados e uso de dados da Internet. O conhecimento é insumo crucial, sendo acessado de diferentes formas, conforme o caso. Há ampla participação dos sócios em eventos, tais como seminários, congressos e cursos, assim como realização de treinamentos com pessoal próprio - quando é o caso - e, eventualmente, com fornecedores. Esses empreendimentos tendem a empenhar-se na aquisição de software ou absorção e adaptação (no caso de código aberto). As residências têm sido bastante valorizadas nas áreas de artes. Trata-se de estágios de artistas juniores ou seniores vinculados a outros grupos, companhias ou ateliês do país ou do exterior realizados na empresa. Ao contrário, alguns artistas vinculados às empresas visitadas foram também recebidos em outros empreendimentos, proporcionando troca de conhecimentos e habilidades entre grupos. Isso ocorre não apenas por meio de bolsas e de apoios de fundações, mas também pelo custeio com recursos próprios dos envolvidos. Parte das empresas distingue-se pela realização, em maior ou menor intensidade, de atividades de pesquisa, resultando na geração de conhecimentos, na propensão ao investimento na formação de pessoal e na capacitação para interagir com infraestrutura externa. Há o envolvimento de pessoal escolarizado (graduação e pós-graduação) e com experiências profissionais significativas (às vezes, adquirida em âmbito internacional).

Como se trata de pequenos empreendimentos, a construção e a mobilização de redes de interação pessoal e/ou organizacional tornam-se cruciais para o acesso a insumos, conhecimentos e tecnologias. Isso se expressa em termos de interações mais ou menos duráveis com clientes, fornecedores, concorrentes, profissionais diversos, pesquisadores, líderes políticos e empresariais, permitindo prospectar recursos pertinentes ao negócio. Em menor medida, observam-se colaborações interorganizacionais, com patrocinadores, fundações de apoio cultural, universidades e mesmo concorrentes. Afirma um entrevistado:

Cada um de nós tem uma rede de compradores dos nossos trabalhos. Nós trabalhamos com galerias em outros estados, temos amigos e circulamos muito em outros lugares. Então, nós acabamos tendo a nossa rede. Os artistas que participam também têm as suas redes. Têm também que usufruir dessas redes e das pessoas que estão ali. As nossas enquanto artista, enquanto gestores, as do espaço e mais dos artistas que a gente convida e que pedimos para divulgar a coisa, que é do interesse deles venderem o trabalho. Nesse último leilão fizemos assim: comissão para vendedores de fora que chamamos para nos ajudar, que é essa exposição que abre amanhã. [...] Foi a primeira parceria que a gente fez com uma galeria. Muita gente nos conhece por sermos uma galeria, a Galeria Subterrânea, mas na verdade a gente nunca se colocou como uma galeria porque a gente nem acha que temos perna para ser uma galeria. Trabalhar com essas parcerias externas é muito bom, porque daí eles fazem um trabalho que eu acho que é importante, ainda mais aqui, que como eu disse, não tem (sócio de empresa visitada, Porto Alegre, 30 Jul. 2014).

No que se refere à inserção nos mercados, as empresas visitadas têm buscado ora explorar nichos locais, ora ampliar escalas de atuação para o âmbito nacional ou internacional. As empresas tendem a privilegiar a conquista de nichos, com vistas a se distanciar dos atuais concorrentes. Observaram-se situações em que a atuação se deslocou para novos setores ou áreas de atuação no setor. Em certos casos, empresas passaram a explorar segmentos novos no mercado local ou nacional. Uma agência visitada na área de memória e patrimônio cultural realiza pesquisas sobre a origem arquitetônica e autoral de imóveis na cidade e sobre a diversidade da flora e botânica de diferentes bairros, podendo contribuir para a aplicação em marketing pelo contratante do serviço ou para a aplicação e divulgação cultural no bairro e na cidade. Outro exemplo é a editora que propõe novo estilo de ilustração e projeto gráfico nas edições, visando a valorizar o potencial pedagógico das ilustrações, acompanhando tendências desse mercado. O ateliê de grafite criou uma galeria virtual e propõe oficinas, exposições, eventos de rua e em organizações, como meio de divulgação de sua produção.

Outras empresas passaram de mercados locais para nacionais ou mesmo internacionais. Pode-se mencionar a empresa de audiovisual que busca coproduções internacionais, assim como a combinação entre produção e distribuição dos produtos. Trata-se de esforço de internacionalização, sendo a busca de parcerias crucial para enfrentar os limites da difusão do idioma português no mercado de audiovisual global. A citação a seguir ilustra esse esforço de inserção:

Todo este pessoal aqui dentro está livre pra inventar coisas, e hoje temos uma força de venda. A empresa já atuou no Brasil inteiro e fora também; temos em Londres seis acordos operacionais com gravadoras de lá; masterizamos nossas músicas todas em Nova York. Segunda-feira, estou indo a Los Angeles passar uma semana vendo estúdios e coisas novas. Então estamos sempre nos infiltrando em coisas diferentes e hoje criamos coisas aqui e levamos para fora. Às vezes, temos ideias, mas não temos quem desenvolva e então vamos atrás. Recentemente, fizemos uma parceria com uma empresa de software, algo para som em ponto de venda, para ir além do rádio em ponto de venda, pois ele interage com o celular do cliente quando este entra na loja, através do disparo de um sinal sonoro. Ficamos inventando essas coisas que aos poucos nos encaminham (sócio de empresa visitada, Porto Alegre, 09 Set. 2014).

Portanto, os mercados de bens e serviços culturais experimentam certa dinâmica de expansão, distinta entre setores, que se verifica em decorrência de diferentes fatores, sublinhando-se novos espaços de geração de produtos culturais relacionados às mudanças na demanda e às possibilidades da Internet e da digitalização, assim como maior integração entre escalas locais, nacionais e internacionais de criação e circulação de produtos culturais. No caso de Porto Alegre, os empreendimentos visitados têm-se constituído principalmente desde o interesse em explorar esses novos espaços de mercado e o suporte em conhecimentos gerados nas universidades. As estratégias desses empreendimentos privilegiam o acesso às novas tecnologias, pessoal com conhecimentos diversos e identificação de novos insumos para a criação de novidade. Isso exige a ativa tecedura de redes de interação, mais ou menos complexas, para acessar esses recursos que se tornam relevantes para a inserção em nichos ou para a aventura em novos âmbitos de mercado. Há alta instabilidade nessas lógicas de organização dos projetos e iniciativa das empresas, sendo os rendimentos alcançados bastante díspares entre setores culturais.

Vida sociopolítica

Que implicações sociopolíticas decorrem das transformações acima apresentadas? Quais as respostas dos agentes ao novo contexto?

Podem-se apontar três categorias de organizações de representação de interesses no mundo da cultura na cidade: os movimentos coletivos e as redes de artistas; as associações profissionais e empresariais; e, por fim, os conselhos de políticas públicas (ver Quadro 1). Tais organizações são distribuídas entre aquelas mais recentes, surgidas no novo contexto de transformações dos mercados de bens e serviços culturais, e aquelas mais antigas, que experimentaram dissonâncias e mudanças internas em face das pressões geradas por essas transformações de mercado. No seu conjunto, o que se tem é a expressão de uma viva dinâmica sociopolítica em que se acham enraizados os mercados de bens e serviços culturais na cidade, aproximando-se das formulações indicadas por Fligstein (1996---- . Markets as politics: a political-cultural approach to market institutions. American Sociological Review, v. 61, n. 4, p. 656-673, Aug. 1996.; 2006) e por Fligstein e McAdam (2012).

Quadro 1
Organizações de representação em Porto Alegre

Entre os movimentos e os coletivos do mundo da cultura, podem-se destacar as experiências do “Distrito Criativo”, da “Associação Cultural Vila Flores” e do “Programa Intercena”. A rede chamada Distrito Criativo - ou Distrito C - desencadeou-se, no ano de 2013, pela iniciativa de uma autodenominada agência de inovação e intervenção social existente na região do chamado Quarto Distrito de Porto Alegre2 2 . O Quarto Distrito é uma região da área central de Porto Alegre, abrangendo os bairros Floresta, São Geraldo, São João, Navegantes e Humaitá. Foi a principal área industrial da cidade no século XX, tendo abrigado plantas industriais como as da cervejaria Brahma e da siderurgia Gerdau, entre muitas outras. Sofreu, contudo, uma dinâmica de esvaziamento econômico e de degradação dos equipamentos urbanos, a partir do deslocamento desse parque industrial para outras regiões do estado e do país. . Trata-se da formação de uma rede de aproximadamente 60 artistas, profissionais e empreendedores culturais que trabalham nessa região da cidade. O mapeamento desses profissionais permitiu identificar sua concentração numa área entre os bairros Floresta e São Geraldo que passou a ser denominada pelo movimento de Distrito Criativo de Porto Alegre.

A proposta teve sua origem na identificação pela liderança de que aquela região da cidade era objeto de um debate público sobre revitalização urbana cujo foco seria a atração de novos empreendimentos, ignorando, segundo o movimento, a existência de um potencial artístico-cultural já existente no local. O propósito principal da rede é ampliar a visibilidade pública desse potencial e construir a marca de polo criativo da cidade, com vistas à inserção econômica e à influência política da nova rede. Entre as iniciativas da organização, destacam-se projetos de reconstrução e divulgação da memória dos bairros e de seu patrimônio arquitetural, a exposição da rede de empreendedores em diferentes mídias e a ação para a melhoria da qualidade de vida nos bairros. Entre as repercussões, a rede espera fortalecer os profissionais já existentes e atrair novos profissionais do mundo da cultura para fortalecer essa agenda na região.

A Associação Cultural Vila Flores surge no ano de 2013, com o uso de um prédio residencial, antes desocupado, que fora local de residência de operários (pequenos apartamentos) de uma antiga fábrica na região do Quarto Distrito de Porto Alegre. No ano de 2012, um movimento de cerca de 60 artistas ocupa o espaço, levando os proprietários a uma redefinição de uso do imóvel e a integrar a nova associação. O coletivo conta, em 2017, com mais de 100 artistas em 35 empreendimentos, em especial, nas áreas de artes visuais, artes cênicas, música e audiovisual, realizando atividades de formação cultural (seminários, cursos e oficinas), de fomento ao debate sobre desenvolvimento urbano e qualidade de vida, e de incentivo às interações entre empreendedores culturais. A organização visa representar ainda os empreendedores culturais junto ao mercado, à comunidade do bairro e ao poder público, desde o seu interesse na melhoria da infraestrutura do território e no controle das pressões da especulação imobiliária e atração de grandes empreendimentos na região. A associação empenha-se na tecedura de vínculos entre os residentes e destes com outros atores de mercado, com vistas a sua potencialização econômica. São mantidos vínculos com casas colaborativas, com universidades, especialmente com as faculdades de arquitetura e artes e com outras iniciativas de intervenção sociopolítica na região da cidade, como o Distrito Criativo. Conta com apoio do Fundo de Apoio à Cultura, buscando suporte em editais de apoio aos residentes.

O Intercena é um programa de internacionalização das artes cênicas do Rio Grande do Sul que se desenvolve pela iniciativa dos artistas e produtores culturais na área. Com início no ano de 2017, a proposta origina-se, por um lado, na experiência dos Festivais de Teatro de Rua de Porto Alegre, criados em 2009, e, por outro lado, na identificação da retração das captações de recursos mediante leis de incentivo à cultura e políticas de subsídio ao teatro. O programa organiza-se em torno de diferentes eixos de atividades, como a formação e capacitação de 22 companhias de teatro para a internacionalização. Há também a promoção de rodadas de negócios que se propõem à aproximação das companhias gaúchas de curadores e programadores de festivais nacionais e internacionais, por exemplo, Bogotá, Santiago, Buenos Aires, Córdoba, Cádiz, Valladolid, Barcelona, Miami, entre outros. Outro eixo refere-se à promoção de estudos sobre a circulação de espetáculos teatrais em circuitos nacionais e internacionais, visando ao mapeamento das rotas, salas e dos festivais para a circulação dos espetáculos. As atividades do programa se completam com o apoio às companhias para o intercâmbio internacional. O programa busca, pois, promover novos mercados, desde esforços de redução do trabalho precário, de profissionalização dos artistas e de alcance de certa independência do financiamento público.

Os dados relativos aos movimentos estudados, obtidos em depoimentos de seus líderes e em seus sites na Internet, mostram tendências comuns, como certo discurso de independência em relação ao suporte governamental, especialmente seu financiamento, sublinhando, ao mesmo tempo, a autonomia de sua agenda e do que consideram seus interesses. Outra convergência refere-se à interação com universidades (grupos de pesquisa, laboratórios e pesquisadores). Vale notar ainda a lógica organizacional em torno de projetos econômicos ou políticos em que são acionados agentes e recursos específicos para o propósito de cada iniciativa planejada. Os resultados são congruentes com a literatura especializada (Novy & Colomb, 2013NOVY, J.; COLOMB, C. Struggling for the right to the (creative) city in Berlin and Hamburg: new urban social movements, new “spaces of hope”? International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1816-1838, Sep. 2013.; Vanolo, 2013VANOLO, Alberto. Alternative capitalismo and creative economy: the case of Chr­is­tiania. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1785-1798, Sep. 2013.).

Entre as associações profissionais, acha-se a Associação dos Profissionais do Design do Rio Grande do Sul (AP Design), com fundação em 1995 e com sede em Porto Alegre. A AP Design tem orientado sua ação mais recente no esforço de institucionalização da área, mediante o apoio e interlocução para a criação da nova Associação Brasileira de Empresas de Design, em 2005, e com regional no estado desde 2006, o apoio para a criação, em 2010, do Sindicato das Empresas de Design do Rio Grande do Sul e do Sindicato dos Trabalhadores que aguarda autorização pelo Ministério do Trabalho. Nesse percurso, há o esforço de permanente aproximação com universidades, tentando influir nos currículos de formação dos novos profissionais e interagindo com o novo conhecimento. Outra estratégia recente tem sido a aposta em premiações na área, como forma de valorização e elevação da qualidade da produção em design. A associação tem-se empenhado ainda na provocação de um debate público sobre a identidade visual na cidade e sobre temas de qualidade de vida, como poluição visual e sustentabilidade ambiental.

A Fundação de Cinema do Rio Grande do Sul (Fundacine) experimenta também certa reorientação em suas estratégias de ação. Foi fundada no ano de 1998, tendo sede em Porto Alegre. A primeira fase da fundação esteve orientada pela defesa da diversidade na produção audiovisual junto a diferentes níveis de governo, destacando-se a elaboração da Carta de Porto Alegre, no âmbito do Fórum Mundial do Audiovisual. Mais recentemente, a agenda da fundação volta-se para a promoção de melhores condições e recursos para a produção competitiva de audiovisual na cidade, destacando-se a criação e gestão do APL Audiovisual e a cooperação com a PUC-RS para a criação do Centro Tecnológico Audiovisual - Tecnapuc. A Fundacine tem-se empenhado na internacionalização da produção audiovisual gaúcha e na disputa por recursos e atenções (fundos, editais, linhas de crédito) no âmbito da Ancine, com sede no Rio de Janeiro e dominada por grandes conglomerados do país, em meio a significativas transformações nesse mercado provocadas pela competição internacional e pela digitalização.

A Associação dos Artistas Plásticos do Rio Grande do Sul - Chico Lisboa - representa os artistas plásticos ou visuais, desde 1938. Experimenta, desde meados dos anos 2000, uma reorientação em sua estratégia de ação, que se acentua em anos mais recentes. Ao considerar as dificuldades dos artistas visuais da cidade em alcançar retorno financeiro com o trabalho artístico, passou a empenhar-se na profissionalização da atividade e na construção de novos espaços de comercialização, mediante o apoio na produção de portfólios e preparação para editais, o estímulo à integração de diferentes artistas em ateliês de arte-fotografia-design, a realização de novos salões e leilões de artes que reúnem artistas anônimos e consagrados, e a representação na elaboração de editais, exposições, concursos e leilões pelo poder público e organizações privadas. Nesse percurso, reforça-se a parceria com universidades, em especial Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e com diferentes pequenas empresas. Abre-se certa controvérsia sobre a identidade profissional entre aqueles que advogam pela formação acadêmica e produção na área em diferentes espaços como critérios definidores e aqueles que defendem a avaliação e reconhecimento pelos críticos e curadores de museus e espaços consagrados.

O que se tem, nos dados de entrevistas e nas informações disponíveis em sites da Internet, sobre as associações em estudo são tendências de mudanças que, por diferentes caminhos, visam à ampliação de seus respectivos mercados, como já observado em outros estudos (Shin & Stevens, 2013SHIN, H.; STEVENS, Q. How culture and economy meet in South Korea: the politics of cultural economy in culture-led urban regeneration. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1707-1723, Sep. 2013.; Trigo, 2015TRIGO, José P. El debate de la creatividad y la economia em las ciudades actuales y el papel de los diferentes actores: algunas evidencias a partir del caso de estudio de Madrid. Investigaciones Geográficas, n. 87, p. 62-75, 2015.). Um caminho tem sido a aposta nos ganhos de qualidade e na capacidade de oferecer novidade por meio da formação acadêmica e profissional e do reconhecimento dos contornos do trabalho do designer. Outro caminho parece ser o empenho na criação de novas sinergias e condições de produção dos bens e serviços para a inserção em escala nacional e internacional da produção audiovisual. Há ainda o esforço em promover novas formas de comercialização e segmentos de atuação dos artistas visuais, requerendo novas delimitações dos contornos profissionais. Em qualquer caso, as mudanças apontam para a maior aproximação com universidades, seja para o acesso ao novo conhecimento e tecnologias disponíveis em grupos e laboratórios de pesquisa, seja na interessada discussão sobre conteúdos curriculares que estabelecem parâmetros de formação profissional no mundo da cultura.

Essa viva dinâmica sociopolítica reflete-se nos conselhos de políticas públicas. O Comitê Municipal de Economia Criativa, da Prefeitura de Porto Alegre, foi instituído no ano de 2013, em meio às pressões do debate público sobre o potencial de uma economia criativa para o desenvolvimento da cidade. O comitê assume a relevância das novas possibilidades tecnológicas na promoção de mercados de bens e serviços culturais, assumindo, assim, um foco na relação entre cultura, tecnologia e mercado para a promoção do desenvolvimento (InovaPoa, s/d). O comitê constitui-se de 38 representações institucionais que se distribuem entre órgãos do poder público municipal (em especial, secretarias de governo), associações profissionais e empresariais da área e universidades. Entre as ações realizadas, destacam-se, segundo representante entrevistado, a elaboração de um plano municipal para a área, a realização de um estudo diagnóstico dos empreendimentos na cidade, a promoção de oficinas internas e externas ao comitê, interações com agentes públicos e privados estrangeiros em torno de experiências de revitalização urbana e a conquista de uma nova legislação que concede incentivos fiscais para empreendimentos em economia criativa na região do Quarto Distrito de Porto Alegre.

O Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul foi instituído, conforme seu site, no ano de 1968, no contexto das demandas por uma política cultural no estado e, posteriormente, por arbitragem de projetos a serem beneficiados por leis de incentivo à cultura e por apoios de fundos e editais no mundo da cultura. Conta com 24 conselheiros remunerados, sendo 16 de associações profissionais (nas áreas de artes visuais, de artes cênicas, de música, de humanidades, de carnaval, folclore e tradição, de museus e patrimônio cultural, de cinema e audiovisual, e de livro e literatura) e oito de instâncias de governo. Há, segundo depoimentos colhidos, mudanças no conselho, em especial na presente década, como:

  1. melhoria da infraestrutura para trabalho (remuneração dos conselheiros, sede própria, equipamentos e material de escritório);

  2. sessões mais abertas à comunidade artística, bem como maior transparência e esclarecimento sobre a emissão de pareceres; e

  3. maior atenção para o retorno financeiro do trabalho artístico (por exemplo, hoje, exige-se especificação da remuneração do artista nos projetos, antes, esse nível de detalhamento não era requisitado na avaliação de projetos).

Essas mudanças decorrem, em parte, do ingresso de um novo perfil de conselheiros: hoje, há maior presença de produtores culturais, de professores universitários, e de jovens artistas, que tendem a valorizar a experiência na prática artística; antes, o conselho orientava-se pela presença de “intelectuais” reconhecidos pelo “notório saber” no mundo da cultura, sem necessariamente produzirem arte ou cultura.

Essas experiências institucionais no mundo da cultura mostram certa convergência no sentido de maior presença de atores universitários nesse universo, em meio às pressões de mudanças tecnológicas e competitivas nos mercados. Porém, o comitê municipal já nasce com o propósito de promover interações entre agentes diversos que permitam a construção de novos espaços de ação econômica, ao passo que o conselho estadual, mais antigo, experimenta novas tensões internas entre atores que consideram necessário certo distanciamento do mundo da arte e da cultura em relação aos governos e mercados com vistas a preservar sua autonomia e novos atores que pressionam pela maior aproximação entre essas diferentes esferas institucionais com vistas a criar novos espaços de mercado e com isso de independência dos profissionais da cultura. O processo não impede ações de contestação dos conselheiros às práticas governamentais ou mercantis, como nas mobilizações lideradas por esses atores contra a proposta de fechamento da Biblioteca Pública Estadual e contra a anunciada extinção do Ministério da Cultura pelo governo federal. Os dados são compatíveis com as pistas deixadas por pesquisas realizadas em outros contextos (Comunian, 2012COMUNIAN, R. Uma cidade criativa de tipo relacional: para uma cartografia das ligações em rede entre os setores público, privado e sem fins lucrativos nas indústrias criativas. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 99, p. 99-124, 2012.; Köster, 2013KÖSTER, Pau R. (Coord.). La cultura como factor de innovación económica y social. Valência: Econcult; IIDL; Universitat de València, 2013. Disponível em: <http://www.uv.es/soste/pdfs/Sostenuto_Volume1_CAST.pdf>. Acesso em: 23 Nov. 2015.
http://www.uv.es/soste/pdfs/Sostenuto_Vo...
; Kong, 2012KONG, Lily. Ambitions of a global city: arts, culture and creative economy in “pós-crisis” Singapore. International Journal of Cultural Policy, v. 18, n. 3, p. 279-294, Jun. 2012.).

Portanto, as entrevistas realizadas com líderes, gestores e profissionais que atuam em diferentes cadeias dos mercados de bens e serviços culturais na cidade de Porto Alegre - complementadas com informações disponíveis em seus sites - indicam não apenas a existência de agentes ativos na identificação e construção de instâncias de promoção e defesa dos seus interesses, mas também a formação dos contornos de certa agenda política. Isso repercute, outrossim, na constituição de um espaço de disputas entre diferentes atores sobre as regras e concepções de troca que estruturam os seus segmentos de mercado (Fligstein, 1996---- . Markets as politics: a political-cultural approach to market institutions. American Sociological Review, v. 61, n. 4, p. 656-673, Aug. 1996.; 2006).

Considerações finais

As transformações recentes nos mercados de bens e serviços culturais têm, de fato, implicado em uma vibrante vida sociopolítica. A desestabilização e a mudança nesses mercados decorrem da combinação entre as possibilidades das novas tecnologias de Internet móvel e digitalização e as demandas por bens e serviços culturais em meio à pluralização de estilos de vida, deflagrando ingressos de concorrentes e pressões para mudanças nas regras e normas de produção e competição no mundo da cultura, em escala internacional.

Os empreendimentos visitados têm origem, principalmente, em interações com universidades e na migração de sócios para novas áreas dos mercados culturais (apenas os mais antigos têm origem como negócios familiares). As estratégias produtivas desses entrantes no mercado voltam-se para a diversificação e a inovação em produtos e serviços, desafiando, portanto, atores consolidados no mundo da cultura; ademais, aspiram, em certos casos, a ampliação de seus mercados, buscando relações de cooperação para inserção em escalas nacionais e mesmo internacionais de mercado (Fligstein & McAdam, 2012FLIGSTEIN, N.; MCADAM, D. A theory of fields. New York: Oxford University Press, 2012.).

As estratégias de produção de bens e serviços culturais adotadas levam à valorização de recursos como conhecimento acadêmico, novas tecnologias, memória e insumos territoriais, capacidade de interação com atores em diferentes escalas nos respectivos processos de criação artística e cultural. Isso tem se traduzido em interesses que geram demandas e pautas políticas, bem como a pressões por regras institucionais que estabilizem os mercados, concorrendo para mobilizar os agentes em diferentes instâncias. Cabe notar o recente surgimento de associações profissionais, coletivos entre profissionais e empreendimentos e comitês/conselhos de políticas públicas, assim como mudanças de organizações já existentes, que guardam relação com tais setores econômicos. No processo, abre-se uma disputa em torno de quadros identitários, regras e recursos, demarcando uma arena de lutas sociopolíticas entre desafiantes e incumbentes que se empenham em manter as condições de distribuição de recursos. Por exemplo, o Conselho Estadual de Cultura tem experimentado mudanças em sua composição e agenda: há pressões pela integração de uma nova geração de profissionais universitários e de produtores culturais, constituindo-se a questão sobre os contornos do que seja arte-cultura e suas relações com tecnologia e mercado frente às concepções dominantes de artistas e intelectuais consagrados no mundo da cultura.

Vale sublinhar um achado de campo: a centralidade das universidades na experiência de transformação dos mercados culturais na cidade de Porto Alegre. Isso se expressa desde a origem dos empreendimentos mais recentes, muitas vezes, relacionada a estudos e pesquisas acadêmicas ou experiências de incubação, avançando para a escolarização do pessoal ocupado e para a capacitação para interagir com conhecimentos, infraestruturas e tecnologias externas. Igualmente, entre as organizações de representação de interesses visitadas (movimentos, associações e conselhos), as relações com universidades são bastante visíveis (vínculos com pesquisadores e artistas, com grupos de pesquisa, com laboratórios, em eventos e com consultorias). Esses dados mereceriam a atenção para a realização de outros estudos, no sentido de verificar em que contextos as organizações universitárias assumiriam importância na fase atual de transformação dos mercados culturais e de sua vida sociopolítica.

Finalmente, a apreensão de certa “vocação política” entre os agentes econômicos no mundo da cultura, requer do analista uma perspectiva processual e multidimensional sobre o enraizamento dos mercados, mais próxima do que vem sugerindo a já extensa e profícua literatura em sociologia econômica. Como lembram diferentes estudos (Novy & Colomb, 2013NOVY, J.; COLOMB, C. Struggling for the right to the (creative) city in Berlin and Hamburg: new urban social movements, new “spaces of hope”? International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1816-1838, Sep. 2013.; Rajchman, 2011RAJCHMAN, John. O pensamento na arte contemporânea. Novos Estudos, n. 91, p. 97-106, Nov. 2011.; Trigo, 2015TRIGO, José P. El debate de la creatividad y la economia em las ciudades actuales y el papel de los diferentes actores: algunas evidencias a partir del caso de estudio de Madrid. Investigaciones Geográficas, n. 87, p. 62-75, 2015.; Ulldemolins & Jiménez, 2016ULLDEMOLINS, J. R.; JIMÉNEZ, L. P. Cultura, transformación urbana y empoderamiento ciudadano frente a la gentrificación: comparación entre el caso de Getsemaní (Cartagena de Indias) y el Raval (Barcelona). Eure, v. 42, n. 126, p. 97-122, Mayo 2016.; Vanolo, 2013VANOLO, Alberto. Alternative capitalismo and creative economy: the case of Chr­is­tiania. International Journal of Urban and Regional Research, v. 37, n. 5, p. 1785-1798, Sep. 2013.), as atuais condições tecnológicas e de mercado envolvem resistência, cooperação e plena construção sociopolítica no manejo de instituições econômicas no mundo da cultura. O prosseguimento de pesquisas poderia esclarecer sobre os desdobramentos desse ativismo sociopolítico em face do dilema entre o confronto/resistência e a participação/cooperação com governos e comunidades locais. Outra questão seria saber sobre o “peso” de interesses definidos por relações capital e trabalho e de interesses situados em projetos identitários nesses mercados.

Isso poderia contribuir para captar novos aspectos do que vem ocorrendo no mundo da cultura.

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  • *
    Este artigo é o resultado do projeto de pesquisa “Economia criativa e desenvolvimento em Porto Alegre”, apoiado pelo CNPq, Edital Universal. A pesquisa de campo reúne dados quantitativos obtidos por meio da aplicação de questionários, bem como dados qualitativos colhidos em entrevistas. O artigo detém-se aos dados qualitativos obtidos na pesquisa, além de material de fontes secundárias. O autor agradece a contribuição dos bolsistas de iniciação científica Lis Lucas e Daniel Santos Borges pelo apoio ao trabalho de campo.
  • 1
    . Foram consultados, em especial, os sites das organizações selecionadas, quais sejam <http://chicolisboa.com.br/>, <https://www.apdesign.com.br/>, <https://vilaflores.wordpress.com/>, <https://distritocriativo.wordpress.com/>, <http://www.fundacine.org.br/>, <https://intercena.com.br/>, <http://www.conselhodeculturars.com.br/>.
  • 2
    . O Quarto Distrito é uma região da área central de Porto Alegre, abrangendo os bairros Floresta, São Geraldo, São João, Navegantes e Humaitá. Foi a principal área industrial da cidade no século XX, tendo abrigado plantas industriais como as da cervejaria Brahma e da siderurgia Gerdau, entre muitas outras. Sofreu, contudo, uma dinâmica de esvaziamento econômico e de degradação dos equipamentos urbanos, a partir do deslocamento desse parque industrial para outras regiões do estado e do país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2018
  • Aceito
    21 Jan 2019
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