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Uma perspectiva para os dez anos de Sexualidade, Saúde e Sociedade - Revista Latino-Americana: atualizando problemáticas caras à região

É com enorme satisfação que a Equipe Editorial de Sexualidade, Saúde e Sociedade - Revista Latino-Americana publica seu trigésimo número. Prestes a completar dez anos de existência, a Revista mantém sua trajetória como publicação quadrimestral, contínua, regular e de acesso aberto, livre e gratuito, hospedado no portal de publicações da UERJ. Procuramos durante todos esses anos levar a cabo a missão de fazer circular entre os países da região o conhecimento científico produzido em cada um deles. É um conhecimento que privilegia a perspectiva das ciências humanas e sociais e que, voltando-se para questões relativas à sexualidade e ao gênero, reveste-se de inegável importância social.

Nesse sentido, ressaltamos que, complementando o dossiê publicado no número 29, o que agora divulgamos aprofunda a discussão em torno de uma dessas questões - a que se refere às doenças ou infeções sexualmente transmissíveis - cuja “solução” permanece como um enorme desafio para a saúde pública ou coletiva. Se em diferentes países da região o objetivo de controlar a epidemia de AIDS continua distante, outros males sexuais que pareciam já ter sido afastados voltam a assombrar. É o caso do recrudescimento da incidência da sífilis no Brasil, cujo número aumentou, entre 2015 e 2016, em 4,7% para os casos de sífilis congênita, atingindo 20.474 crianças, e em 26,8% para os casos de sífilis adquirida, atingindo 87.593 indivíduos (Brasil, 2017BRASIL, MS/SVS. 2017. Boletim Epidemiológico. Vol. 48, n. 36.).

Apresentar no número 30 da Revista um importante conjunto de artigos sobre AIDS - através do dossiê “HIV/AIDS: sexualidades, subjetividades e políticas” - tem especial significado para nós, uma vez que a história recente dos estudos sobre sexualidade na região imbrica-se em larga medida com a própria história da construção de uma resposta à epidemia que, em toda a sua complexidade, buscou aliar conhecimento científico sobre a doença e sobre as populações mais duramente atingidas por ela ao respeito e à promoção dos direitos fundamentais, especialmente do direito à liberdade, à dignidade e à saúde. Em certo sentido, foi a partir desse desafio que se renovaram os estudos sobre diversos outros temas igualmente cruciais na produção de diferenciados padrões de vulnerabilidade social (Parker & Aggleton, 2003PARKER, Richard & AGGLETON, Peter. 2003. HIV and AIDS-related stigma and discrimination: a conceptual framework and implications for action. Social Science & Medicine. Nº 57, p. 13-24.). Entre eles, destacamos (i) o da interseção entre gênero e sexualidade, central aos estudos sobre as convenções sexuais que continuam a separar masculinidades e feminilidades; (ii) o da interseção entre sexualidade/gênero e geração (ou momento do ciclo de vida) que mantém em foco a preocupação com a vulnerabilidade de “jovens” ou “idosos”; e (iii) finalmente, tem sido explorado o tema relativo à crítica de certas convenções de gênero e sexualidade, inclusive as que são produzidas por diferentes saberes científicos como a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, e de suas implicações na (re)produção de hierarquias e desigualdades sociais.

É importante ainda situar a produção acadêmica no desenvolvimento da resposta brasileira à AIDS nas décadas iniciais da epidemia. Essa produção foi pautada por uma reflexão acerca do papel da ciência e do fazer científico, atenta à formulação de políticas públicas e orientada por princípios éticos. Neste sentido, vinculou-se à história dos próprios nichos de reflexão acadêmica, incluindo aí o Instituto de Medicina Social, sede da Revista. A construção da resposta à AIDS trouxe à tona uma postura eticamente crítica das respostas inspiradas na equação tradicional da saúde pública depois do advento da bacteriologia. Essa equação postulava que, assim como se procurava uma medicação capaz de localizar o micro-organismo no interior do corpo doente e eliminá-lo, uma “bala mágica” (Brandt, 1987BRANDT, Allan M. 1987. No Magic Bullet: A Social History of Venereal Disease in the United States since 1880. Oxford: Oxford University Press.), também as políticas de saúde deviam localizar os doentes no interior do corpo social e isolá-los, o que em muitos casos significou sua morte civil (Daniel, 1989DANIEL, Herbert. 1989. Vida antes da morte. Rio de Janeiro: ABIA.). Rompendo com esta lógica, a resposta brasileira à epidemia, por exemplo, derivou na formulação de políticas inovadoras nos planos preventivo e assistencial, cujos resultados foram internacionalmente reconhecidos.

De modo geral, a linha editorial da Revista vem se alinhando a esta perspectiva crítica em relação a abordagens universalizantes ou essencializadoras, promovendo a discussão dos pressupostos e dos conceitos científicos com os quais pesquisadores e pesquisadoras operam. Esta perspectiva alicerçou ainda um olhar para a sexualidade e para os agentes causadores de doenças e enfermidades (vírus, bactérias etc.) como entes políticos, no sentido de serem passíveis de crítica e transformação. Resgatar esse passado e as suas marcas vai muito além de reconhecer seu valor histórico, trata-se também de uma empreitada necessária e em fase de revigoramento. Desejamos contribuir nessa direção através do dossiê que integra o presente número da Revista.

Acompanhando o referido dossiê, os artigos regulares publicados neste número são excelentes exemplos dessa renovação de temas e problemáticas, trabalhadas a partir de realidades sociais distintas, envolvendo os contextos argentino, brasileiro, chileno e mexicano. Em seu texto, Estefania Martynowskyj traz contribuição fundamental para a compreensão do modo como se renovam as historicamente tensas e complexas relações entre feminismo/movimento de mulheres e prostituição. Acompanhando a trajetória dos encontros nacionais de mulheres argentinas (ENM), indaga-se que feminilidades têm sido construídas como legítimas para a reivindicação de direitos. É também sobre a naturalização de certas convenções sociais de gênero que se debruça Felipe Magaldi ao tratar das instituições psiquiátricas e dos saberes médico-psicológicos durante o século XX, através da trajetória de Adelina Gomes, que viveu internada por quase cinquenta anos em um hospital psiquiátrico carioca. Sua produção de mais de 17.500 obras, entre pinturas e esculturas, vincula-se ao papel da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) na construção de um modelo de cuidado terapêutico humanizado em diálogo com a teoria jungiana.

Outros dois artigos neste número, o de Karla Alejandra Contreras Tinoco e Jimena Silva-Segovia, por um lado, e o de Daniel Hernández-Rosete Martínez e Rocío Estrada Hipólito, por outro, colocam em foco as representações e os significados atribuídos ao prazer/desejo sexual e à interrupção voluntária da gravidez por jovens estudantes mexicanos e chilenos, respectivamente. Finalmente, temos neste número a contribuição de Suellen Maria Vieira Dantas e Marcia Thereza Couto sobre o Programa de Saúde do Homem implantado pelo governo brasileiro. Como nos dois artigos anteriores, também aqui se explora o modo como a contestação de certas convenções de gênero - neste caso, a noção de que homens são invulneráveis - se faz através da afirmação de outros pressupostos, como a ideia de que a ameaça à potência sexual seria a principal via de medicalização dos corpos masculinos.

Por fim, convidamos nossas leitoras e nossos leitores a acompanhar as celebrações dos dez anos de Sexualidade, Saúde e Sociedade - Revista Latino-Americana nos números vindouros.

Referências bibliográficas

  • BRANDT, Allan M. 1987. No Magic Bullet: A Social History of Venereal Disease in the United States since 1880 Oxford: Oxford University Press.
  • BRASIL, MS/SVS. 2017. Boletim Epidemiológico Vol. 48, n. 36.
  • DANIEL, Herbert. 1989. Vida antes da morte Rio de Janeiro: ABIA.
  • PARKER, Richard & AGGLETON, Peter. 2003. HIV and AIDS-related stigma and discrimination: a conceptual framework and implications for action. Social Science & Medicine Nº 57, p. 13-24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2018
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