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FOUCAULT, Michel. 2018. Histoire de la sexualité IV: Les aveux de la chair

FOUCAULT, Michel. . 2018. Histoire de la sexualité IV: Les aveux de la chair. Paris: Gallimard. Coll. Bibliothèque des Histoires. Édition établie par Frédéric Gros. 448 pp.

As confissões da carne dá continuidade à problematização histórica do prazer sexual empreendida por Michel Foucault com vistas a uma genealogia do sujeito de desejo. Publicado finalmente em fevereiro de 2018, o quarto volume de História da sexualidade completa a reflexão foucaultiana relativa à Antiguidade clássica, período examinado primeiro em suas bases que remontam ao pensamento grego antigo (cf. Uso dos prazeres) e, em seguida, em função dos desdobramentos da filosofia greco-romana nos dois primeiros séculos da era cristã (cf. O cuidado de si). Foucault analisa agora a “experiência da carne” na doutrina dos autores eclesiásticos que sucederam os padres de tradição apostólica. Partindo de Justino (séc. II), Clemente de Alexandria (séc. III) e Agostinho (séc. IV), ele quer mostrar que a doutrina cristã de “austeridade sexual” não elabora seus princípios a partir do cristianismo primitivo ou dos textos apostólicos. É uma sociedade pagã que fornece o regime de aphrodisia encontrado na filosofia patrística dos primeiros séculos. Esse regime é definido em função do casamento (vínculo de simpatia intensa e respeitosa), da procriação e da desqualificação do prazer (LAC: 09).

Perseguindo a continuidade entre o paganismo greco-romano e a filosofia patrística, a História da sexualidade de Michel Foucault pode ser lida como arqueologia de uma ciência sexual fundada na palavra. A fórmula dire vrai (dizer a verdade), que ocupava o último Foucault em suas conferências de 1982 em Toronto e em 1983 em Berkeley, surge em As confissões da carne como problema central. Foucault quer recuperar a emergência da ideia segundo a qual haveria uma verdade a ser dita no interior de cada um, essa verdade correspondendo às práticas sexuais. Parece evidente que Foucault tinha em mente a psicanálise quando anunciou o projeto de estudar o dispositivo moderno da sexualidade (séculos XVI-XIX). Este objetivo, contudo, foi abandonado logo após a publicação do primeiro volume (A vontade de saber, 1976FOUCAULT, Michel . 1976. Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir. Paris: Gallimard.). Foucault inicia em 1977 um estudo sistemático sobre os padres da igreja e decide deslocar sua História da sexualidade em alguns séculos (LAC: III-IV). Ele começa imediatamente a trabalhar em As confissões da carne, e seus cursos no Collège de France registram esse novo caminho: em 1978, o autor estuda a governamentalidade pastoral como técnica de direção e controle que articula “atos de verdade” e práticas de obediência. Em 1980, ele apresenta uma série de pesquisas históricas sobre as obrigações relativas à verdade na preparação ao batismo, os ritos cristãos de penitência e a direção monástica entre os séculos II e IV.

Pode-se afirmar que, em 1980, Foucault já havia realizado uma grande parte da pesquisa de fontes para As confissões da carne, cujo manuscrito foi entregue à editora Gallimard em 1982. Mas ele decide preceder seu estudo sobre a carne cristã por uma análise do regime de aphrodisia no contexto do paganismo antigo. Seus seminários no Collège de France registram então entre 1980 e 1981 uma radical virada greco-latina: Foucault examina a codificação do comportamento sexual na Antiguidade grega e romana como parte de uma arte de viver atravessada pela preocupação em ocupar-se de si mesmo. Este último trabalho de pesquisa seria desmembrado em dois volumes que conhecemos - Uso dos prazeres e O cuidado de siFOUCAULT, Michel . 1984. Histoire de la sexualité III: Le souci de soi. Paris: Gallimard . - publicados dez dias antes da morte de Foucault em junho de 1984FOUCAULT, Michel . 1984. Histoire de la sexualité II: L’Usage des plaisirs. Paris: Gallimard ., quando ele retomava o texto de As confissões da carne para correção final. O volume que acaba de ser publicado está portanto na origem da reestruturação do projeto de uma História da sexualidade que passa a buscar na Antiguidade clássica o arcabouço elementar da moral sexual moderna. As confissões da carne é uma peça móvel na tetralogia de Foucault: ao mesmo tempo em que estabelece uma continuidade histórica com os dois volumes precedentes, manifesta uma continuidade intelectual com o primeiro volume.

Retraçando as bases do princípio de verbalização e da obrigação de verdade, Foucault reintroduz em As confissões da carne o problema da correspondência entre discurso e veridição, questão fundamental em A vontade de saber. O autor argumenta que a obrigação de confessar não aparece na Idade Média, com a contrarreforma, mas acompanha o surgimento de duas práticas cristãs: a disciplina de penitência, a partir da segunda metade do século II, e o ascetismo monástico, a partir do final do século III. A penitência e a vida ascética reorganizam as relações entre fazer o mal (mal faire) e dizer a verdade (dire vrai), produzindo um modo novo de relação do sujeito consigo mesmo: a direção da consciência, o exame de si, a busca pelos erros que estão escondidos, a operação de levar a luz até o lugar mais escuro de si mesmo, a constituição de si como objeto de investigação e discurso. Essa experiência, caracterizada simultaneamente como um modo de presença em si mesmo e um esquema de transformação de si, foi colocando pouco a pouco o problema da carne no centro do seu dispositivo. Foucault argumenta que um código sexual organizado em torno do casamento e da procriação aparece antes do cristianismo. A experiência da carne surge então nos primeiros séculos de modo a mobilizar o código de uma maneira nova, fazendo a regra ganhar corpo: “a carne é um modo de subjetivação” (LAC: 51).

A incidência da regra no sujeito (por meio da experiência da carne) é o que permite a Foucault, mais uma vez, fazer oposição àquilo que o autor chamou de hipótese repressiva (A vontade de saber: 23). Ao longo de todo o seu trabalho sobre a sexualidade, Foucault percorre um caminho alternativo às teorias da troca simbólica, cujas explicações estão fundamentadas em sistemas de código (por exemplo, a psicanálise e o estruturalismo). Foucault não está interessado nos códigos e nas interdições de conduta (o tabu do incesto, por exemplo), mas empreende “uma história da ética entendida como a elaboração de uma forma de relação consigo que permite ao indivíduo se constituir como sujeito de uma conduta moral” (Uso dos prazeres: 324). Foucault notou que, desde o nascimento da filosofia clássica, a “majoração da austeridade sexual na reflexão moral não assume a forma de um estreitamento do código que define os atos proibidos, mas corresponde à intensificação da relação consigo” (Cuidado de si: 57-58). Essa compreensão perpassa os quatro volumes e parece chegar à sua formulação conclusiva em As confissões da carne. O autor argumenta então que o estudo do quadro normativo não permite entender os processos de subjetivação. Nesse sentido, o que interessa a Foucault nos primeiros séculos do cristianismo não é o regime de aphrodisia que poderia eventualmente se integrar às regras gerais de vida direita (em oposição às interdições). Ele está interessado em uma postura em relação à carne, que surge como crucial na penitência e na vida ascética para dar conta de uma triangulação importante: a remissão do mal, a manifestação da verdade e a descoberta de si.

O primeiro capítulo é dedicado à obra de Clemente de Alexandria (:150-215), teólogo de inspiração platônica que procurou harmonizar o pensamento grego e o cristianismo por meio de um duplo registro: o vocabulário estoico, em que a noção de Logos aparece como definidora das “condutas adequadas” (kathêkonta); e a temática cristã relativa à forma de existência que pode conduzir à vida eterna. Foucault privilegia a análise do texto intitulado O pedagogo, em que Clemente propõe aos cristãos uma regra de vida precisa após a conversão e o batismo. Foucault chama a atenção para o fato de que a teologia de Clemente está em profunda continuidade com a filosofia e a moral pagãs da época, fundadas na prescrição de um regime de vida ou “técnica de existência” (tekhnê peri bion) que estabelece ocasiões precisas para a legitimidade do ato sexual (casamento e objetivo de procriação, jamais durante a menstruação ou gravidez, sempre à noite).

Foucault reconhece no período que vai de Clemente a St. Agostinho (:354-430) a transição para um cristianismo pessimista e sombrio, que encontrou seu centro de gravidade no pecado original e na queda do paraíso. Contudo, afirma o autor, “não podemos permanecer na constatação dessa diferença” (LAC: 49). É verdade que, na obra de Clemente, a sexualidade não aparece em sua dimensão de sombra, mas permite atualizar o ato mesmo da criação. Foucault, no entanto, procura evitar uma interpretação desse período que esteja fundada na transformação de uma sexualidade “solar”, ainda banhada pelas luzes da Grécia antiga, supostamente mais permissiva, em uma sexualidade “obscura” e triste. Foucault argumenta que o sistema de códigos não apresenta uma verdadeira mudança, isto é, não se pode encontrar entre os séculos II e V um reforço das interdições relativas à prática sexual. O que muda é o formato da experiência em relação à carne. Para entender essa nova forma de experiência, o autor estuda os rituais de batismo e de penitência nos primeiros séculos do cristianismo (cap. 2 e 3), analisando em seguida a instituição dos primeiros monastérios no século IV (cap. 4).

O batismo é, até o século II, o único ato eclesiástico que pode garantir a remissão dos pecados. Desde a época dos padres apostólicos, a remissão batismal está condicionada ao acesso à verdade por meio da noção de metanoia, cuja tradução latina é paenitentia. Central ao batismo, metanoia exprime arrependimento e ruptura com um modo de vida, iluminação e desejo de regeneração, isto é: renúncia e promessa. Nos textos apostólicos, esse movimento de elevação da alma não se organiza como uma prática regulamentada ou desenvolvida. Foucault quer mostrar a transformação da penitência batismal (metanoia) em um conjunto de ações que produz no sujeito uma consciência dos erros cometidos, estimulando o pecador a explorar as profundezas de sua alma na busca pelas origens do mal e suas formas escondidas. A redenção passa a depender de um trabalho contínuo de vigilância e renúncia, em que se inflige a si mesmo os rigores punitivos proporcionais à gravidade das faltas. Os textos de Tertuliano (:165-220) são testemunhas de mudanças importantes que vão na direção da institucionalização da penitência cristã como prática disciplinar organizada. O capítulo VI de seu livro De paenitentia atribui ao período de preparação ao batismo uma importância inédita. Foucault analisa essa novidade por meio de três deslocamentos: no tempo, pois a purificação deve agora preceder o perdão e o rito; na ação ritual, visto que o agente da purificação é então o pecador agindo sob ele mesmo; na natureza da operação, uma vez que o exercício moral passa a ser mais importante que a iluminação. Tertuliano desenvolve o tema das provas penitenciais (probatio paenitentiae): demonstrações tangíveis e autênticas da mudança que se opera em si mesmo.

A tradição apostólica de Hipólito de Roma (:170-235) apresenta o testemunho mais detalhado sobre os procedimentos de provação anteriores ao batismo no início do século III. Foucault agrupa essas provas penitenciais em três grandes formatos: (1) interrogatório relativamente simples sobre a vida do postulante ao batismo; (2) exorcismo praticado como um modo de exame e purificação da alma; (3) confissão detalhada ou inventário das faltas cometidas. Ausente como exigência prévia ao batismo nos textos de Justino (:100-165), a confissão aparece regularmente nos escritos de Tertuliano e surge então nos cânones atribuídos a Hipólito como modalidade probatória diferente da audiência de interrogatório. Foucault desenvolve aqui uma compreensão pragmática do contexto ritual, insistindo no fato de que a confissão não se presta a fornecer informações. De acordo com esta perspectiva, a confissão é uma confirmação da passagem de todas as faltas pela memória e pela palavra. Inventariar, ao invés de lembrar. Foucault caracteriza assim a confissão como uma atividade diferente da confidência. No contexto da confissão batismal, não se trata ainda de rememorar o pecado de acordo com sua gravidade ou circunstância respectivas (como será o caso na Idade Média). A confissão batismal é um ato que produz uma posição para si, cujo objetivo é reconhecer a si mesmo como pecador e manifestar essa consciência diante de Deus. Um ato de produção de si em relação ao outro. A pragmática relacional de Michel Foucault se tornará evidente quando o autor estuda o princípio de direção na literatura monástica, situação em que se multiplicam as figuras de alteridade.

Foucault examina então a emergência de uma segunda penitência, isto é, a institucionalização do arrependimento após o batismo e a possibilidade, a partir do século III, de reiterar o procedimento de purificação. A penitência eclesiástica - solicitada, concedida, recebida - apresenta um caráter mais restrito que o batismo, que está disponível a todas as pessoas como doação voluntária de Deus (gratuita donatio). O perdão solicitado pelo penitente, de outro modo, será concedido como resultado de um trabalho árduo realizado sobre si mesmo. Foucault argumenta que, a partir do século III, podem-se notar nuances no emprego da noção de metanoia, que passa a apresentar sentidos específicos quando utilizada em relação ao batismo ou em relação à penitência eclesiástica. Trata-se, nos dois casos, de um desapego em relação à vida profana, um movimento de elevação da alma que se produz por meio do arrependimento. No caso do batismo, contudo, a ênfase recai na imagem de liberação. Por outro lado, a metanoia necessária à reconciliação corresponde sobretudo ao trabalho que a alma realiza sobre ela mesma e sobre os pecados que cometeu. Pragmática da relação consigo mesmo.

Foucault demonstra que o desenvolvimento de formas rituais de penitência canônica está atravessado por procedimentos que visam manifestar a verdade da alma penitente. Esses procedimentos, mais numerosos e mais complexos que aqueles prescritos para o batismo e sua preparação, são organizados pelo autor em diferentes eixos, finalmente resumidos em dois polos: (1) formulação verbal e privada; (2) expressão global e pública. Cabe notar que a repartição entre estas duas modalidades não é equivalente: a enunciação verbal dos pecados é solicitada apenas quando se trata de determinar a penitência e verificar se o requerente pode ser admitido, isto é, se ele merece ser reconciliado. A confissão como veridição da falta é portanto anterior e mesmo exterior ao ritual de penitência. A dimensão essencial e constante da penitência corresponde à demonstração ostensiva, gestual, corporal e expressiva daquilo que o pecador é. Mais que dizer a verdade (dire vrai), o penitente deve fazer a verdade (faire vrai), produzi-la concretamente, performar aquilo que é por meio de uma dramatização de si.

Por que, quando pecamos, o arrependimento não é suficiente? Por que não é suficiente que nos imponhamos rigores e macerações? Por que devemos mostrar o que fizemos mas também nos mostrar como somos? A resposta para os questionamentos evocados por Foucault estaria, segundo o autor, na organização da religião cristã em Igreja dotada de uma organização hierárquica e forte estrutura comunitária. Nesse contexto histórico, nenhuma infração poderia ser perdoada sem recurso às provas e garantias. Interessante perceber como o tema das provações, desenvolvido primeiro para o ritual de batismo, assume uma importância ainda maior no contexto da penitência eclesiástica em um momento de fortalecimento da Igreja em face da crise do império romano no século III. Foucault nos oferece assim uma história das formas rituais no cristianismo primitivo, que vão se organizando em relação aos eventos históricos e para dar conta deles. A obrigação de verdade, que aparece na cosmologia cristã em relação ao princípio de verbalização, é agenciada pela História na forma dos ritos de penitência.

Foucault retorna ao princípio cosmológico de verbalização quando analisa as exegeses de St. Ambrósio (:340-397) e S. João Crisóstomo (:344-407) em relação à maldição de Caim: mais grave que matar seu irmão é mentir para Deus! Foucault chama a atenção para o fato de que a falta de Caim não era irremissível. Perguntando o que ele fez de seu irmão, Deus ofereceu a Caim a oportunidade de confessar. O que torna o pecado de Caim imperdoável é sua resposta: eu não sei. Caim recusou verbalizar. A recusa da verdade é a ofensa mais grave e que não pode ser reparada.

A obrigação de verdade ganha uma estrutura complexa na análise foucaultiana da vida monástica, examinada principalmente por meio da obra de João Cassiano (:360-435). Cassiano trata da vida dos monges como arte e disciplina. Foucault chama a atenção para a centralidade do princípio de direção, que assume uma forma densa, organizada e institucional na fase de iniciação à vida nos monastérios. Especialmente importante na fase de iniciação, a disposição em se deixar dirigir é uma constante que deve caracterizar toda a vida monástica. O princípio de direção é analisado por Foucault como adestramento à obediência que está estruturado por um jogo de anulação e substituição: anulação da própria vontade e substituição pela vontade de um outro. Foucault argumenta que a relação entre direção e obediência pode ser verificada desde a Antiguidade, mas com uma diferença importante: na vida filosófica antiga, a palavra estava a cargo do mestre. Foucault encontra em João Cassiano uma observação crucial: “ensinamos aos debutantes a não esconder nenhum pensamento que lhes rói o coração”. Para alcançar a obediência, então, um exercício duplo e indispensável: o exame permanente de si e a confissão perpétua.

Recuperando a teologia relativa ao pecado original, Foucault chama a atenção para o fato de que, a partir da queda do paraíso, o espírito do mal estabeleceu seu império sobre a humanidade. O espírito do mal tem origem e aparência comuns aos humanos, ele pode ocupar um lugar no corpo dos homens, aproveitar-se dessa semelhança, agitar o corpo, imprimir movimentos, enviar sugestões, imagens e pensamentos cuja procedência não se pode discernir facilmente. A teologia cristã apresenta a figura de Satanás como princípio mesmo da ilusão no interior do pensamento. Aquele que busca uma vida virtuosa está em risco constante de se enganar em relação a si mesmo, risco de se enganar na trama do seu próprio pensamento. Contra as armadilhas que se instalam no pensamento (escondendo a origem e a finalidade das ideias), é preciso recorrer à perspectiva do outro (diretor). Cassiano define o aprendizado dos monges por meio de um exercício duplo: por um lado, observar os movimentos do seu pensamento, jamais fechar o olho interior; por outro lado, abrir sua alma ao outro, de modo que nada permaneça escondido.

O modelo descrito por Foucault está fundado em uma suspeição sistemática ou desconfiança de si: sou eu mesmo quem está na origem dos meus pensamentos? A dúvida é então administrada por um desdobramento discursivo: tudo aquilo que atravessa o meu espírito deve se tornar discurso. Em outras palavras, eu me constituo como sujeito no momento em que me torno objeto de um discurso endereçado a alguém. Finalmente, desconfiança de si e objetivação de si produzem um sistema ternário organizado por alteridade dupla, isto é, duas figuras do outro que colaboram. E a pessoa se torna três: eu; aquele de quem eu desconfio; e o diretor de confiança.

Foucault sustenta que o combate interior e a necessidade da confissão produzem um paradoxo essencial às práticas de espiritualidade cristã: a veridição de si está em relação intrínseca com a renúncia de si mesmo. Ele caracteriza então a prática confessional como exercício de mortificação agenciado por um dispositivo complexo em que o dever de se projetar indefinidamente no interior da alma (exame de si) é vinculado à obrigação de uma exteriorização permanente no discurso endereçado ao outro (confissão). De acordo com o modelo proposto por Foucault, esse dispositivo de exagoreusis (exame de consciência seguido de confissão) faz com que a busca pela verdade de si se traduza em uma maneira de morrer de si mesmo.

Perseguindo a história de um estilo de governamentalidade, Foucault quer mostrar que nossa maneira de obedecer é formulando uma questão precisa: quem somos nós? Aceitando nos colocar esta pergunta, buscando nos conhecer, renunciamos em seguida àquilo que somos. A primeira parte de As confissões da carne chega ao fim com uma crítica contundente aos dispositivos de produção de verdade, entendidos por Foucault como instâncias de assujeitamento. Estudando a preparação ao batismo, a penitência canônica e a vida monástica, Foucault desenvolveu seu argumento principal sobre a experiência da carne como subjetivação da regra no contexto do cristianismo primitivo. As próximas seções fazem eco à mesma problemática de fundo, que atravessa toda a sua obra sobre a sexualidade: o código moral de interdições relacionadas à prática sexual não apresenta modificações essenciais ao longo da História; o que muda é o formato da experiência. Nas seções Être vierge e Être marié, Foucault quer mostrar que a virgindade e a economia interna ao casamento serão os pontos privilegiados de elaboração teológica e os lugares de transformação da experiência da carne no contexto da queda definitiva do império romano e passagem para a Idade Média entre os séculos V e VI.

Quando trata da virgindade, Foucault não está interessado em concebê-la como interdição maior ou negação da sexualidade. A continência é elaborada a partir do século IV como elevação, sublimação, experiência espiritual, trabalho constante, arte de viver, modo de existência. A virgindade é analisada como um exercício intenso e permanente de consciência de si. Foucault quer mostrar que ser cristão é constituir a si mesmo como sujeito sexual e que o cristianismo colocou o sexo no centro da experiência do sujeito por meio da noção de tentação. Estudando os textos de S. Basílio de Ancira (:336-362), o autor ressalta o caráter positivo da continência: interrupção do desejo natural, ruptura com as leis da natureza e, portanto, instauração da sexualidade no domínio da cultura. Foucault sustenta que o tema teológico da continência foi transformado e sistematizado pelas tecnologias de si que são próprias à vida monástica e ao combate espiritual que caracteriza essa experiência. No pensamento de Cassiano, o ascetismo da castidade surge justamente para substituir o problema da continência. De acordo com a perspectiva mantida por Cassiano, a incorruptibilidade da carne não reside na privação (ou continência), mas diz respeito à integridade do coração, que guarda santidade por temer a Deus. A continência é para alguns, mas a castidade - entendida como postura da alma, pureza das intenções - pode ser alcançada por todos. Como então atingir a castidade no interior do casamento?

Quando trata do casamento, Foucault está no campo de uma economia de serviços. Dever conjugal, o ato sexual é pensado a partir do século IV como contexto de interação em que o casal está em condições de salvar um ao outro da sua própria continência. Foucault observa que o casamento não aparece nos textos patrísticos como uma economia geral servindo à procriação. O casamento é apresentado sobretudo como limite e como lei, isto é, refreamento do desejo a uma só pessoa e obrigação para todos aqueles que não podem atingir a perfeição do estado de virgindade. O matrimônio corresponde então a uma economia individual do desejo e da concupiscência, economia comum às regras de casamento e à tekhnê de exercício da virgindade. Foucault observa que a virgindade é superior ao casamento, sem que o casamento seja um mal nem a virgindade uma obrigação. Ele está agora em franco diálogo com St. Agostinho, que surge como interlocutor difícil. Retraçando um sistema de relações espirituais que articula virgindade e casamento (começando pela virgem que se casa com Deus), Foucault argumenta que a conjunção carnal não foi introduzida mas modificada pela queda do paraíso.

É Agostinho quem coloca o problema teológico das relações sexuais em regime paradisíaco. A sexualidade de Adão é habitada pela vontade, completamente controlada. Após a queda, o ato sexual estará marcado pelo desgoverno: a febre da excitação, o descontrole do orgasmo, a ereção involuntária mas também a impotência. Foucault argumenta que essa dimensão involuntária está inscrita na estrutura do sujeito agostiniano por meio de zonas de habitação de si. De acordo com esta perspectiva, a castidade conjugal corresponde a uma maneira de habitar o corpo no momento do ato sexual, de modo a administrar o incontrolável e não consentir ao prazer. O involuntário é uma parte da alma que deve ser controlada para conservar o privilégio hierárquico daquela parte que governa. O involuntário não está contra a vontade, mas é aquilo sem o qual a vontade não pode querer. O controle da dimensão involuntária é o que transforma uma alma em sujeito.

Chegamos às páginas finais de As confissões da carne diante de um pensador dos processos, e não das essências, em todo o seu vigor crítico. Desnaturalizando a libido freudiana, o autor sustenta que a queda do paraíso teria atuado na libidinização do ato sexual, isto é, disjunção psíquica entre as dimensões de vontade e descontrole. A História da sexualidade de Michel Foucault é a história de uma invenção cristã: história da possibilidade de interrogar o desejo, de questioná-lo e de pedir contas àquela parte involuntária de nós mesmos. História da subjetivação da sexualidade e da produção de sujeitos de desejo.

Referências bibliográficas

  • FOUCAULT, Michel . 1976. Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir Paris: Gallimard.
  • FOUCAULT, Michel . 1984. Histoire de la sexualité II: L’Usage des plaisirs Paris: Gallimard .
  • FOUCAULT, Michel . 1984. Histoire de la sexualité III: Le souci de soi Paris: Gallimard .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018
  • Data do Fascículo
    Abr 2018
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