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A condição espacial

RESENHA

A condição espacial

Luiz Gustavo Leonel dos Reis

Curso de Graduação em Geografia/UFTM, Uberaba/MG - Brasil. luis.gl@hotmail.com

CARLOS, Ana Fani A. A condição espacial. São Paulo: Contexto, 2011. 157 p.

O livro "A Condição Espacial", de Ana Fani Alessandri Carlos, atualiza a discussão sobre a produção do espaço como categoria indispensável do conhecimento geográfico e enquanto realidade concreta articulada ao movimento de reprodução da sociedade. A autora defende a tese de que o espaço é uma realidade prática que se constitui no decorrer da história da humanidade enquanto "condição, meio e produtoda reprodução social".

Na Introdução, a autora traz elementos importantes para refletir sobre a produção do espaço, destacando-a como possibilidade para compreensão do mundo contemporâneo sob a égide da globalização. Para Carlos, o espaço é revelado enquanto produto social e como condição para que as transformações sociais, políticas e econômicas se materializem no decorrer da história. E acrescenta que a produção do espaço consiste na realização das próprias condições da existência humana, orientando a práxis social na construção do mundo objetivo. Nesse sentido, "A produção do espaço apareceria como imanente à produção social no contexto da constituição da civilização". (p. 17). Nessa perspectiva, o espaço é produto histórico e está sujeito às mudanças pelas quais passam a sociedade face às exigências do modo de produção capitalista. Desse modo, a expansão do capitalismo fundou uma contradição intrínseca no movimento de produção e reprodução do espaço e, nesse sentido, o espaço passa a ser reproduzido de acordo com as necessidades de acumulação e do lucro, com conseqüências diretas sobre as condições de realização da vida. Na modernidade, o espaço se tornou mercadoria e condição para a reprodução continuada do capital.

Carlos assevera que o espaço, assim como o tempo, assinalaram as transformações que a sociedade vivenciou a partir da modernidade e da expansão do capitalismo no plano global. Para a autora, tempo e espaço são categorias do pensamento indissociáveis que revelam os conteúdos do processo de reprodução social. As mudanças do tempo e do espaço, sejam elas a aceleração do tempo e o espaço efêmero, refletem as transformações no bojo da sociedade ao mesmo tempo em que dão sustentação para novas mudanças. Sendo assim, o espaço possui uma perspectiva histórica e aparece no seu movimento de produção e reprodução enquanto materialização das relações sociais. As mudanças históricas da sociedade capitalista apontam para a expansão do modo de produção de forma a abarcar vastas porções do planeta enquanto condição de sua reprodução. Ao trazer para o debate tais questões, a autora salienta que enquanto conhecimento engajado na compreensão da realidade sócio-espacial, a Geografia, necessita desvendar a dinâmica da sociedade em seu movimento de transformação por meio da análise da produção do espaço como momento da reprodução social, categoria central do raciocínio desenvolvido pela autora.

A noção de produção apresentada no livro transcende a ideia da produção de objetos e coisas materiais para se estender à (re)produção das relações sociais e sua materialização enquanto relações temporais e espaciais. Nesse sentido, para Carlos, o processo de produção e reprodução da realidade sócio-espacial também se estende à produção da subjetividade do homem, a par da construção do mundo objetivo, pois à medida que homem e sociedade produzem suas condições de existência, sendo o espaço uma condição essencial, tendem a formar uma consciência acerca do processo em curso, reproduzindo suas representações e significados. "O homem se objetiva construindo um mundo real e concreto, ao mesmo tempo em que se subjetiva no processo ganhando consciência sobre essa produção". (p. 11). Com este capítulo a autora nos convida a refletir sobre a produção do espaço, mostrando suas contradições.

O Capítulo 2, intitulado Thaumazein, reúne os argumentos de Carlos para sustentar a ideia geral de que espaço e sociedade mantêm uma relação intrínseca em que a produção das condições de existência da humanidade acarreta a produção de um espaço necessário à sua materialização. Destaca que no decorrer do processo civilizatório, a realização da atividade produtiva do homem acompanhou a sedentarização e a constituição do local como condição, meio e produto da reprodução da espécie enquanto indivíduo e sociedade. Dessa forma, no momento histórico em que os nômades se fixaram no solo, também surge a história do espaço em constante transformação, ou seja, produzindo e reproduzindo-se. "Nesse longo movimento, a homem cria-se através do conjunto de produções, dentre as quais se situa a produção do espaço". (p. 40). A produção do espaço pressupõe a atividade criadora do homem que domina e transforma a natureza em algo que lhe é útil. Portanto, o espaço é obra e produto social gerado a partir do processo de trabalho na materialização das condições de vida da humanidade e da reprodução social em contraste com a natureza primeira. Nesse sentido, a autora afirma que "o processo de produção do espaço tem como pressuposto a natureza, envolve um conjunto de elementos fundados na atividade humana produtora, transformadora, bem como na vontade e disposição, acasos e determinações, conhecimentos todos estes voltados à reprodução da sociedade". (p. 44). A apropriação do tempo e do espaço pelo sujeito é essencial para que desempenhe qualquer atividade produtiva, pois como nos lembra Carlos, nenhuma ação é a-temporal ou a-espacial. Por conseguinte, o acesso ao espaço enquanto condição da realização da vida humana é mediado por modos de apropriação que definem por quem e de que forma estes espaços serão utilizados . Contudo, as formas de apropriação produzidas pela modernidade e pelo modo de produção vigente passaram a se fundamentar na propriedade privada e no processo de valorização em busca do lucro. Sendo assim, os produtos da sociedade, entre eles o espaço da reprodução da vida, serão distribuídos ao conjunto da sociedade de forma hierarquizada, de acordo com a organização das classes sociais. Nesse sentido, Carlos nos alerta destacando que a produção do espaço capitalista possui uma contradição fundamental: a produção social se contrapõe à apropriação privada. Nessa perspectiva, o capital passa a direcionar a práxis humana e social e o espaço capitalista se reproduz a partir, sobretudo, das necessidades de acumulação e do lucro, tornando-se mercadoria. Como conseqüência, o espaço é alienado do sujeito que o produz e, dessa forma, aliena-se também o direito à reprodução da vida em todas as suas dimensões, recriando a paisagem sob a forma da segregação. Segundo a autora, os processos de expropriação do espaço e do direito à reprodução da vida ampliados pela lógica da propriedade privada imposta ao conjunto da sociedade não se faz sem que haja resistências. Nesse sentido, "as lutas de classe, que se realizam em torno da distribuição da riqueza social gerada pelo produto social do trabalho, desdobram-se em lutas pelo espaço". (p.51). Neste capítulo a autora chama a atenção do leitor para contradição existente na produção do espaço.

Ao longo do Capítulo 3 "Da organização à produção do espaço", a autora discute mais detalhadamente a questão da "generalização da produção do espaço sob a determinação do mundo da mercadoria" (p. 64). Segundo a autora, o espaço tornou-se produto vinculado ao valor de troca, o que supõe o processo de valorização como momento da reprodução continuada do capital, sob a égide da propriedade privada. A propriedade privada do espaço e o processo de valorização determinado pela lógica do mercado limitaram as formas de apropriação do mundo objetivo pelos membros da sociedade de classes, repercutindo sobre as possibilidades da reprodução das condições de realização da vida e, particularmente, sobre o cotidiano dos sujeitos. O cotidiano se reveste dos signos do capital, invadido pelo mundo da mercadoria, e perde o sentido da obra e da liberdade. A autora assevera que o entendimento sobre a reprodução do espaço de acordo com as necessidades capitalistas é fundamental para a compreensão dos diversos níveis da realidade, a saber: o econômico, o político e o social; e sobre as escalas que os interpenetram: o espaço mundial, o lugar e a metrópole como mediação entre o local e o global. Desse modo, no nível econômico, o espaço aparece como elemento produtivo que permite a reprodução do capital em seu processo de mundialização. Já no nível político, o espaço é revelado enquanto produto das estratégias políticas visando à dominação, principalmente o planejamento estratégico. O nível social é aquele em que as estratégias econômicas e políticas entram em conflito com as necessidades de reprodução da vida, gerando tensões que se revelam na luta pela retomada do espaço que permite a apropriação e o uso para a reprodução social. Ao tratar das escalas, a autora vê atualmente a constituição de um espaço mundial como exigência da continuidade do processo de reprodução do capital e a extensão do mundo da mercadoria. Estabelecem-se redes e fluxos entre os lugares, permitindo a realização da circulação e da troca, reproduzindo o local em função de novas necessidades de acumulação. O lugar permite a materialização da reprodução das relações sociais e suas contradições face aos conflitos entre as necessidades do capital e as necessidades da existência humana. Já a escala intermediária, traduzida na metrópole, integra o local ao global, reproduzindo as condições da acumulação pari passu à extensão da urbanização e da segregação dos espaços-tempos da vida cotidiana de acordo com as possibilidades de apropriação do mundo objetivo que cada grupo da sociedade de classes possui. Na metrópole, vai se produzindo um novo espaço à medida que o capital financeiro torna-se hegemônico e ampliam-se as estratégias de acumulação dos setores imobiliário, do turismo e do lazer, indicando um novo momento em que "a reprodução do capital se realiza através do espaço, que também é mercadoria como extensão do mundo da mercadoria". (p. 87). Neste capítulo, a autora traz à baila elementos para compreensão da produção do espaço a partir dos níveis de realidade e escalas, que vai do local ao global, tendo como intermediário a metrópole. Em suas análises a autora tem como referência a metrópole paulistana, seu principal objeto de pesquisa.

No Capítulo 4 "Espaço como condição da reprodução" a autora retoma a discussão da renda da terra e a produção do espaço urbano como momento do processo de valorização do capital, da transformação do espaço em mercadoria. Carlos elucida o momento em que o espaço se torna o principal elemento que orienta a reprodução do capital. Na atualidade, "o espaço, ele próprio, é o elemento central da reprodução do capital". (p. 100). Nessa condição, novas formas de consumo e produção do espaço emergem como necessidade do lucro, entre elas o turismo, o lazer, o narcotráfico e a atividade imobiliária. Na escala da cidade, são produzidos "espaços produtivos" que permitem a acumulação por meio da materialização das novas atividades econômicas. Nesse cenário, o solo urbano está sujeito ao constante processo de valorização visando à reprodução das frações do capital em detrimento das necessidades da realização da vida humana. Dessa forma, a par do movimento que reproduz o espaço na condição de mercadoria, produz-se o conjunto de lutas que tentam retomar o sentido da vida na reprodução do espaço e sua apropriação de acordo com as necessidades da reprodução social. O momento atual expõe as fragilidades do modo de produção que ao se reproduzir, contraditoriamente, reproduz também as barreiras que se opõem à continuidade da acumulação que se revelam sob a forma de crises estruturais. De acordo com a autora, a crise atual indica novas possibilidades pelas quais a reprodução do espaço adquire importância sui generis para a realização do lucro através de novas atividades econômicas como o turismo, o lazer e o setor imobiliário. Nesse sentido, "O capitalismo se dirige ao espaço" (p. 101) e a superação da crise aparece na ação orientada por estratégias que tornam o espaço mercadoria e que, além disso, o reproduzem enquanto "produto imobiliário" sujeito ao processo de valorização. Dessa forma, o espaço transcende a condição de capital fixo e passa a ser destino para os investimentos de diversas frações do capital que visam o lucro através da realização do valor de troca por meio da produção do espaço. O espaço ressurge enquanto elemento central da produção capitalista, revelando sua condição de mercadoria. A autora afirma que o processo é significativo quanto à reprodução do espaço urbano, principalmente na metrópole, onde a atividade imobiliária produz edifícios de escritórios que irão abrigar os serviços modernos, cuja forma de apropriação assentada na propriedade privada acontece por meio do contrato de "aluguel". A locação de imóveis se tornou um setor lucrativo da economia e passa a orientar a reprodução do espaço urbano enquanto espaço produtivo e fonte de lucro como realização da reprodução do capital na atualidade. Por conseguinte, "o solo urbano muda de sentido para o capital, deixando de ser um lugar de fixidez de investimento para ser o lugar através do qual vai se realizar, com fluidez". (p. 118). A locação de imóveis, bem como a atividade turística, revela o "consumo produtivo" do espaço como necessidade da reprodução do capital à medida que as necessidades da reprodução da vida humana estão subordinadas. Neste capítulo, a autora convida o leitor a discutir sobre a renda da terra e a produção do espaço urbano, sua transformação em mercadoria.

O Capítulo 5 "A representação arcaica do o espaço e espaço público, para além da esfera pública, e seu sentido atual", a autora retoma o conceito "arcaico" de espaço tal qual era compreendido pela sociedade grega, iluminando a dialética entre espaço público e espaço privado. O objetivo desta parte do livro é compreender os fundamentos do espaço público enquanto lugar da realização da vida coletiva em contraposição ao significado de espaço público para a sociedade capitalista, quando a esfera privada se expande em detrimento da sociabilidade e da participação. Para Carlos, a reprodução do espaço contrapõe, dialeticamente, a constituição da esfera individual e a esfera coletiva, articulando o espaço privado (casa) ao espaço público (troca). Enquanto o espaço privado é aquele da necessidade e da subsistência, o espaço público representa a liberdade e a participação, constituindo o espaço da troca e da sociabilidade. "Nessa perspectiva, podemos afirmar que o espaço público aparece como o lugar da realização concreta da história individual como história coletiva, pela mediação dos lugares da vida". (p. 132). Entretanto, o momento atual revela que o espaço público na sua concepção "arcaica" está em crise, pois o capital subverteu a lógica da produção do espaço em favor do valor de troca e o mundo da mercadoria se generalizou fazendo com que os assuntos da vida particular e as necessidades de subsistência se tornassem as únicas preocupações socialmente reconhecidas, expondo o individualismo. Este capítulo traz elementos importantes para reflexão sobre o espaço público e o espaço privado, chama-nos a atenção para a crise do espaço público na sociedade atual, para transformação do espaço em mercadoria.

Nas "Considerações Finais: construindo a metageografia", a autora nos leva a crer que existe uma crise real que atravessa a reprodução da sociedade capitalista: trata-se da crise gerada pelo modo de produção em seu processo de expansão, que devastou as formações sociais, políticas e ecológicas preexistentes e criou a percepção de uma degradação generalizada. A crise concreta da existência humana enquanto crise da reprodução sócio-espacial é acompanhada pelo estado crítico do próprio conhecimento geográfico sobre a realidade. Para Carlos, a Geografia apresenta certas limitações no entendimento da realidade social que se desdobra e da potencialidade do espaço para a compreensão da modernidade. A seu ver, a superação dessa crise teórica e prática começa pela construção de um novo conhecimento, representado pela "metageografia"."A exigência é a da construção de um conhecimento que desnude as relações sociais e que nesta condição permita fundar o projeto de uma outra sociedade". (p. 150). Nessa perspectiva, a metageografia exige a retomada do conhecimento crítico e radical e a superação das barreiras ideológicas que sustentam a Geografia pragmática, tecnicista e estritamente funcional, que permita vislumbrar as bases de uma nova sociedade que supera os termos atuais da reprodução capitalista. "A radicalidade exige a construção de um projeto de sociedade nova, fundada numa ciência renovada, capaz de colocar no centro do debate as necessidades da realização da humanidade do homem". (p. 150).

De forma geral, A Condição Espacial é uma obra que atualiza a teoria proposta por Carlos ao longo de sua trajetória intelectual na Geografia. Os principais conceitos e categorias são tratados a partir do viés teórico-metodológico do materialismo histórico, com referência, principalmente, aos estudos de Karl Marx e Henri Lefebvre. Fica evidente a preocupação da autora com a articulação entre teoria e prática, pois praticamente todos os capítulos do livro trazem reflexões que relacionam a análise da produção do espaço enquanto realidade concreta à crítica acerca do modo como a ciência, e principalmente a Geografia, tem analisado o espaço e sua relação com os processos de mudança por que passam a sociedade contemporânea. A crítica também diz respeito àquela ciência que se contenta com o "óbvio" em vez de tentar desvendar a "raiz" dos processos sócio-espaciais e que tende a abandonar a preocupação com os problemas contemporâneos da sociedade em favor do pragmatismo e do tecnicismo, ignorando a função social do conhecimento científico.Enfim, trata-se de uma leitura prazerosa e interessante que propõe reconciliar a Geografia com a realidade social, cuja materialidade se realiza através da produção do espaço, que se constitui na contemporaneidade em seu movimento constante de transformação, ou seja, reprodução. Este processo é orientado pelas necessidades de expansão do capital, mas, por outro lado, não exclui as possibilidades de retomar o espaço enquanto condição, meio e produto da reprodução da vida e das relações sociais em suas várias dimensões. O movimento que vai da reprodução do espaço de acordo com as necessidades de reprodução do capital à reprodução do espaço reconciliada com as necessidades da reprodução social, requer uma estratégia que abrange teoria e prática, revelando o caminho possível que devemos percorrer para reencontrar o sentido da vida para além do econômico. Fica aqui um convite à leitura do livro para os interessados em fazer uma leitura crítica da realidade, da produção do espaço.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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