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Florestan Fernandes e os aspectos socio-históricos de uma integração híbrida no Brasil

Florestan Fernandes and the socio-historical aspects of a hybrid integration in Brazil

Resumo

Objetiva-se, neste texto, resgatar elementos da teoria sociológica utilizados por Florestan Fernandes para o estudo da sociedade brasileira, associando à explicação as especificidades do percurso histórico com os mecanismos ambíguos de inclusão social de seus membros. Trata-se de reconstruir interpretativamente o conceito sociológico de integração a partir da leitura imanente dos textos de Florestan Fernandes que abordam a questão da formação e desenvolvimento da sociedade brasileira. No exame das obras que tratam dos Tupinambá, dos Negros e da Revolução Burguesa, tem-se perceptível que, se no Brasil a ordem social foi mantida estável, apesar da exclusão e marginalização sistemática de grande parte de seus membros, isto se deve, segundo o autor, a um tipo especial de integração que operou e ainda opera entre os brasileiros, e que muito tem contribuído para impedir qualquer tipo de transformação ou revolução mais profunda da ordem social.

Palavras-Chave:
Integração; Pensamento Social Brasileiro; Florestan Fernandes

Abstract

This paper retrieves elements from the sociological theory applied by Florestan Fernandes in the study of Brazilian society, associating in the explanation the specificities of the historical course with the ambiguous mechanisms of social inclusion of its members. It is a matter of an interpretative reconstruction of the sociological concept of integration, based on an immanent reading of Florestan Fernandes works dealing with the question of formation and development of Brazilian society. The study of the works dealing with Tupinambá, Negros (black people) and the Bourgeois Revolution shows that, if in Brazil the social order was kept stable despite the exclusion and systematic marginalization of a large part of Brazilians, this is due, according to Florestan Fernandes, to a special type of integration that has operated and still operates among Brazilians, and which has greatly contributed to prevent any kind of transformation or deeper revolution of the social order.

Keywords:
Integration; Brazilian social thought; Florestan Fernandes

Introdução

A proposta deste estudo é resgatar itinerários conceituais básicos, presentes na Sociologia de Florestan Fernandes, que permitam lançar luz sobre o que seria, na perspectiva desse autor, uma integração híbrida. Num quadro recorrente de flagrantes e dissimulados questionamentos, de exclusão dos direitos e das garantias sociais de grupos específicos de brasileiros enquanto privilégios de toda ordem são obtusamente justificados para pequena fração de afortunados, Florestan Fernandes sugere que a gênese histórica e social dessa dicotomia deva ser encontrada em processos integrativos desencadeados de forma híbrida ao longo da colonização brasileira.

Integração, na acepção literal e lexicográfica do termo, significa o ato, modo ou processo em que partes ou elementos se unem para formar um todo único, inteiro e coerente (Hollanda Ferreira, 1989HOLLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Integrar. In: Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 365., p. 365). É com este sentido que o conceito é comumente empregado pelos diversos ramos da Ciência, como a Física, Química, Biologia, Ecologia e Matemática. Quando usado pela Sociologia, do mesmo modo, o conceito de integração não se desvia de sua característica original e etimológica de agregação, coesividade e homogeneização, porquanto estas características são aquelas observadas em sistemas sociais, nas partes que os compõem ou, ainda, nos fenômenos correspondentes, que articulam indivíduos entre si e estes com a sociedade. Em termos mais amplos, trata-se, no primeiro caso, de observar, descrever e procurar interpretar as instituições gerais da sociedade, enquanto, no segundo caso, trata-se de buscar pelos comportamentos, atitudes, práticas sociais, hábitos coletivos e fenômenos análogos que se especializam nos mecanismos de inserção do indivíduo na sociedade.

Embora Florestan Fernandes (1967FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1967. ) tenha dialogado com as obras de Émile Durkheim, Talcott Parsons, Karl Mannheim, Robert Merton e Bronislaw Malinovski para construir teoricamente os diversos aspectos do conceito de integração, na literatura sociológica mais recente tal diferenciação corresponderia às noções de integração sistêmica e de integração social, tal qual foram propostas por David Lockwood e Jurgen Habermas.

David Lockwood (1992LOCKWOOD, David. Solidarity and schism: “the problem of disorder” in Durkheimian and Marxist sociology. Nova York: Oxford University Press, 1992., p. 400) considera que, enquanto “a integração social concentra atenção sobre relações conflituosas ou consensuais entre atores, o problema da integração sistêmica está concentrado nas relações conflituosas ou consensuais entre as partes do sistema social”. Integração sistêmica, nesta perspectiva, refere-se aos processos que criam e legitimam reciprocidades e hierarquias entre as estruturas e instituições sociais, vinculando partes, quaisquer que sejam, de um sistema maior ou mais abrangente, que lhes serve de meio ou ambiente. Pode-se observar, na investigação, que essa integração sistêmica recai, de alguma forma, nas decisões coletivas, formas de relacionamento que ultrapassam as consciências individuais e que se manifestam nos ajustes e na interdependência funcional das inúmeras dimensões ou instituições que compõem os grupos sociais, criando, reorganizando ou transformando sua estrutura. Integração social, por sua vez, diz respeito aos mecanismos de socialização, de internalização de crenças, costumes e valores, adaptação, educação, instrução e todo processo social que tenha por finalidade habilitar o indivíduo para ocupar um lugar dentro de uma estrutura pré-existente - a sociedade - que, em contrapartida, torna-se capaz de oferecer a necessária segurança física, material, emocional e psicológica para que seus integrantes possam reproduzir e desenvolver as práticas que considerem satisfatórias e adequadas para garantir sua qualidade de vida. Fala-se, por isso, de integração social, quando se quer descrever o processo em que o indivíduo, quer por sua própria iniciativa, quer por iniciativa do grupo social que o recebe, é condicionado, educado, preparado ou habilitado para tomar parte no todo social inclusivo (Habermas, 1994HABERMAS, Jurgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.).

O hibridismo, por sua vez, é aqui tomado enquanto noção originalmente derivada da biologia do século XIX. Híbrido indicaria o resultado da procriação de espécies distintas de um mesmo gênero; algo como o produto resultante da união de coisas em si mesmas heterogêneas, que comportam mistura ou mestiçagem, justificando, num primeiro momento, traços degenerados ou estéreis que essa mescla implicaria. Estendendo-se, todavia, essa noção raciológica às “espécies” sociais, esta perderia qualquer traço estático, próprio das ciências naturais, para adquirir o caráter processual e histórico das ciências sociais (Kern, 2004KERN, Daniela. O conceito de hibridismo ontem e hoje: ruptura e contato. Métis: História & Cultura, v. 3, n. 6, p. 53-70, jul. 2004. , p. 54). O hibridismo ao qual se refere a literatura do final do século XX

[...] configura-se tanto como um modo de agir (seja pela ação pura e simples, seja pelo discurso) quanto como um modo de construir (resultando em uma série de objetos culturais que largamente consumimos), e sua finalidade é sempre política e, mais do que isso, agonística: ou vencer o opressor, se tomamos o conceito positivamente, ou derrotar o oprimido se o tomamos pelo contrário, de maneira negativa (Kern, 2004KERN, Daniela. O conceito de hibridismo ontem e hoje: ruptura e contato. Métis: História & Cultura, v. 3, n. 6, p. 53-70, jul. 2004. , p. 56).

Na situação colonial analisada por Stuart Hall em relação à presença dos colonizadores ingleses na Jamaica; por Homi Bhabha sobre os mesmos ingleses na Índia; por Nestór García Canclini sobre a presença do colonizador espanhol no México; e por Gilberto Freyre acerca dos portugueses no Brasil, Peter Burke (2010BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Madrid, Espanha: Ediciones Akal, 2010. ) sugere situações nas quais a hibridização cultural pode ocorrer em função de pressupostos básicos, tais como a complementação positiva de costumes ou a noção de iguais e desiguais, principalmente quando são evidenciadas circunstâncias em que, dada a assimetria das relações de poder, o mais forte - colonizador - acaba impondo sua forma de cultura aos colonizados, ainda que persistam elementos que assegurem a resistência cultural dos mais fracos. É desse modo que se entende a preocupação de Bhabha com o hibridismo. Na Índia pós-colonial, especialmente seus membros, e não apenas as suas elites, vivenciaram um “contexto onde pelo menos dois conjuntos desiguais de valores e verdades coexistiam simultaneamente: o conjunto de valores da cultura colonizadora e o conjunto de valores da cultura colonizada” (Souza, 2004SOUZA, Lynn M. T. M. de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (Org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 113-33., p. 113). Peter Burke (2010BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Madrid, Espanha: Ediciones Akal, 2010. , p. 65) observa que, nesse sentido, a América Latina analisada por Stuart Hall, Nestór García Canclini e Gilberto Freyre é a região híbrida por excelência, sendo um lugar de encontros, choques, mestiçagem e todo tipo de interações entre a população autóctone, os invasores europeus e os escravos africanos trazidos por estes.

Ainda que autores e obras relevantes tenham dado destaque à formação do referencial teórico utilizado por Florestan Fernandes (Mariosa, 2010MARIOSA, Duarcides F. Sumário biobibliográfico. In: FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes: leituras e legados. Vol. 1. 1. ed. São Paulo: Global Editora, 2010, p. 353-74. ), a seleção dos textos empregados neste estudo seguiu particularmente e se limita ao recorte temático proposto por autores que se debruçaram no exame da obra de Florestan, destacando aspectos socio-históricos importantes para a análise e compreensão da sociedade brasileira.

Segundo Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto (2008PINTO, Ernesto R. M. e F. A sociologia de Florestan Fernandes. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2008.), a obra de um autor deve ser tomada nos diálogos e conexões mais amplas que estabelece, pois é nestes movimentos que se tem a possibilidade de distinguir as ideias chaves e os aspectos relevantes de seu pensamento. O campo conceitual que percorre Florestan Fernandes define-se em razão dos principais núcleos de sua investigação, uma vez que foram estabelecidos tendo em vista as situações empíricas e concretas que o autor abordou em estudos como os sobre a organização social dos Tupinambá, as funções religiosas da guerra tribal, a transformação da sociedade brasileira de sociedade estamental em sociedade de classes, a revolução e contrarrevolução burguesa no Brasil, e as relações raciais na sociedade brasileira atual, que são os temas mais reconhecidos de sua produção intelectual.

Essa recorrência de temas levou Octavio Ianni (1991IANNI, Octavio (Org). Florestan Fernandes: sociologia. São Paulo: Ática , 1991. , p. 22) a afirmar que “Florestan Fernandes é o autor de uma nova interpretação do Brasil [...] construída com base na pesquisa sobre a colonização, a escravatura e a revolução burguesa”. Muito embora estes sejam momentos distintos do processo histórico de formação da identidade dos brasileiros, as consequências sociais deixadas na passagem de uma fase a outra impõem características próprias ao corpo social. Corroborando o argumento, Maria Arminda do Nascimento Arruda (1995ARRUDA, Maria Arminda do N. A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: MICELI, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil 2. São Paulo: Editora Sumaré/FAPESP, 1995. , p. 151) aponta que Florestan Fernandes “analisa a mudança enquanto processo complexo, híbrida nos seus resultados, conferindo particularidades ao tecido histórico no Brasil”, o que justifica que, em Florestan Fernandes, a interpretação do Brasil possua componentes próprios que interessam ser investigados, especialmente em razão das questões teóricas que ela evoca para a Sociologia.

Elide Rugai Bastos (2015BASTOS, Elide R. Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar. Sinais Sociais, v. 10, n. 28, p. 29-54, mai/ago 2015., p. 32) lembra como dois estudos - “Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo”, de Roger Bastide e Florestan Fernandes, publicado pela Editora Anhembi em 1955, e “A integração do negro na sociedade de classes”, de Florestan Fernandes, publicado pela editora Dominus em colaboração com a editora da Universidade de São Paulo, em 1965 - discutem um “conjunto de problemas sociológicos que analisam as diferentes formas a partir das quais os indivíduos se relacionam com a estrutura social”. Nestes estudos, metodologicamente, Florestan Fernandes

[...] opera com a afirmação de que o elo mais fraco da corrente social ilustra o funcionamento da sociedade [e que, portanto,] a escolha para análise de um grupo que carrega desvantagens maiores do que outros para integrar-se socialmente implica uma admissão teórico-metodológica: a partir da periferia percebe-se melhor o movimento da sociedade, possibilitando, assim, a percepção dos princípios que a articulam (Bastos, 2015BASTOS, Elide R. Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar. Sinais Sociais, v. 10, n. 28, p. 29-54, mai/ago 2015., p. 49).

Gabriel Cohn, da mesma forma, lembra que a passagem de uma ordem social escravocrata para uma ordem social competitiva no Brasil não se dá, na abordagem de Florestan Fernandes, de maneira estacionária.

Uma ordem social entendida como constelação (e não como mera superposição de camadas) é competitiva quando é dotada de um centro que opera como uma espécie de polo, cuja ocupação é precisamente o objeto de disputas no seu interior. Para se constituir como competitiva, tal ordem precisa, pois, satisfazer dois requisitos: ter um centro bem definido e possibilitar a formação de grupos sociais voltados para a competição pelo exercício dos papéis decisivos no conjunto (Cohn, 2015COHN, Gabriel. A margem e o centro: travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, v. 10, n. 28, p. 11-28, maio/ago. 2015. , p. 21).

Mais à frente, desenvolvendo o assunto, Cohn continua:

Nessa perspectiva, o centro figura não apenas como lócus do poder efetivo e da dominação na sociedade, mas igualmente como a instância definidora das condições de integração e participação nela. Por sua vez, a margem não remete sem mais à exterioridade, mas às linhas de formação de novas impulsões sociais, que dinamizam o conjunto ao desafiarem a capacidade do centro de impor as regras do jogo (Cohn, 2015COHN, Gabriel. A margem e o centro: travessias de Florestan Fernandes. Sinais Sociais, v. 10, n. 28, p. 11-28, maio/ago. 2015. , p. 26).

A ironia e ambiguidade presentes nos títulos de algumas das obras de Florestan Fernandes - A (des)organização social dos Tupinambá; A (não) integração do negro na sociedade de classes; e A (contra)revolução burguesa no Brasil -, com as quais o autor reconstitui o processo de formação da sociedade brasileira, remetem, se consideradas desse modo, à ambiguidade e hipocrisia da situação nacional. Da mesma maneira que em outros espaços socio-históricos - quando ao discurso de igualdade de condições e oportunidades se contrapõe a realidade da discriminação, opressão, abandono, e a maneira particular com a qual se articulam os interesses hegemônicos dos estratos sociais superiores, sendo favorecidos mesmo com as constantes transformações do quadro econômico, político e social - é “justamente a partir dessa experiência da ironia (pós)colonial, marcada pela duplicidade e pela sobreposição de valores [a] que leva muitos críticos pós-coloniais como Bhabha à necessidade de pensar o hibridismo” (Souza, 2004SOUZA, Lynn M. T. M. de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamin (Org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 113-33., p. 115),

Em Florestan Fernandes, as relações raciais entre brancos, índios e negros são vistas sob o prisma da exclusão social na passagem da sociedade colonial para a tradicional escravista e daí para a sociedade de classes. Consequentemente, o objeto de análise, nas obras interpretativas do Brasil não é apenas o negro ou o índio, mas o povo, a sociedade brasileira que emerge na história. Uma sociedade que comporta tanto momentos de modernização, quanto de arcaísmo; de inclusão e integração como de exclusão e discriminação. Enfim, um sistema social que apresenta, ao mesmo tempo, processos integrativos e desintegrativos.

Cabe observar, ainda, que, para os efeitos da análise aqui pretendida, sistema social é tomado como um modelo explicativo que se considera, até certa medida, eficiente para contemplar a realidade social, mas - ressalte-se - não é a única forma existente de abordá-la. Um sistema seria a combinação de partes coordenadas objetivando um mesmo resultado, ou de maneira a formar um conjunto coeso e integrado em razão de um propósito (Parsons, 1974PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira , 1974. ). Como as muitas instâncias e dimensões da vida humana em sociedade resultam, objetivamente, da ação perpetrada por indivíduos, se tomadas como um sistema em que seus elementos se encontram relacionados entre si de modo coerente e complementar, pode o sociólogo considerar os fenômenos sociais como passíveis de estudo numa totalidade objetiva, mas de partes interdependentes e integradas.

Recorrendo-se ao conceito de integração, sinaliza-se, assim, para um processo de inclusão e justa participação em um sistema mais abrangente que, entretanto, após a leitura das obras interpretativas de Florestan Fernandes sobre o Brasil, não permite pensar integração como um conceito linear, amplo e inclusivo. O autor mostra que o hibridismo presente na sociedade brasileira comporta tanto uma ordem social estável, quanto a inclusão de certos setores da população de forma hierarquizada e marginal. A pergunta que norteia estes trabalhos, o problema com que dialoga Florestan Fernandes é, então, o de explicar a permanência de uma ordem social estável quando grandes contingentes da população são, ao longo do tempo, deixados à margem da sociedade. Se modernidade e exclusão coexistem de forma híbrida na sociedade brasileira, como, visto da periferia, pode-se entender a racionalidade do sistema? Florestan Fernandes, rearticulando o conceito de integração, parece ter conseguido algumas das respostas. Isto é o que se pretende recuperar do estudo acerca dos Tupinambá, dos Negros e da Revolução Burguesa.

Os Tupinambá

Florestan Fernandes investigou, de modo sistemático, entre os Tupinambá, a organização social, a economia primitiva, a função social da guerra, a educação, a reação tribal à conquista e a destribalização. A pesquisa preliminar junto às fontes quinhentistas e seiscentistas para o estudo da Organização social dos Tupinambá (Fernandes, 1963FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963.), de tão complexa e extensa mereceu uma publicação em separado: A análise funcionalista da guerra: possibilidades de aplicação à sociedade Tupinambá (Fernandes, 1949FERNANDES, Florestan. A análise funcionalista da guerra: possibilidades de aplicação à sociedade Tupinambá. Revista do Museu Paulista, São Paulo, nova série, v. III, p. 7-128, 1949.). Do mesmo material, o autor retirou os elementos de que precisava para publicar vários estudos: em 1952, A Função Social da Guerra, um estudo funcionalista da guerra (Fernandes, 1970FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. São Paulo: Pioneira, 1970. ); em 1953, outro ensaio sobre a interpretação funcionalista: O método de interpretação funcionalista na sociologia (Fernandes, 1967FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1967. ); publicou, em 1958, o ensaio metodológico Tendências teóricas da moderna investigação etnológica no Brasil, que também discorria sobre o estudo funcionalista da guerra (Fernandes, 1958FERNANDES, Florestan. A etnologia e a sociologia no Brasil: ensaios sobre os aspectos da formação e desenvolvimento das ciências no Brasil. São Paulo: Anhembi, 1958.); e, fechando os estudos sobre os Tupinambá, o ensaio Os Tupi e a reação tribal à conquista, inserido na obra organizada por Sérgio Buarque de Holanda, História geral da civilização brasileira, vol. I, São Paulo, 1960, p. 72-86, e reimpresso no livro Mudanças sociais no Brasil, São Paulo, 1960, p. 287-310, pela editora paulistana Difel.

Em sua abordagem, Florestan Fernandes procurou entender a organização social dos Tupinambá a partir do ecossistema onde se encontravam. A articulação dos elementos constitutivos da sociedade (integração sistêmica) e a forma com que o indivíduo era incorporado a essa estrutura (integração social) ajustavam-se numa totalidade descrita como tribo. Vista do ângulo dos processos integrativos, a tarefa de Florestan consistiu em indicar a existência ou não de coerência lógica entre as necessidades vitais imediatas e as formas sociais desenvolvidas para supri-las.

Antes da chegada dos europeus, os Tupinambá, nas áreas estudadas pelo autor, mantinham relações belicosas, especialmente com tribos inimigas situadas em territórios adjacentes. Na região do Rio de Janeiro-São Vicente, seus inimigos eram os índios Tupiniquim, os Tabajara, os Carijó, os Guaianá, os Timiminó, os Karajá, os Maracajá e os Goitacaz; na Bahia, foram indicados pelos cronistas como inimigos dos Tupinambá os Tupiniquim, os Tupiná, os Tabajara, os Caeté, os Aimoré (devido à sua associação com os brancos) e até os Amoipira, um ramo dos Tupinambá, por se juntarem aos Ubirajara e os Maracá. Os Tremembé, os Tabajara, os Caeté e os Potiguar eram os inimigos dos Tupinambá na região do Maranhão-Pará; e, dos Tupinambá que viveram na ilha dos Tupinambaranas, embora de forma um tanto obscura, foram designadas como inimigas as tribos dos Guayazí, Mutaiu, Curiató, Andiraz e Maraguaz (Fernandes, 1970FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. São Paulo: Pioneira, 1970. , p. 44).

Em relação ao inimigo indígena, a competitividade militar dos envolvidos, em termos do equipamento disponível e dos demais recursos materiais empregados, não apresentava grandes disparidades para um ou outro lado. A supremacia territorial conquistada pelos Tupinambá podia ser creditada, na análise de Florestan Fernandes (1963FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963.), à coesão dos diversos grupos locais solidários que, emocionalmente movidos pela vingança, transformavam-se em verdadeiros alaúdes humanos. Como consequência e diante da situação de equilíbrio estável em relação ao meio, incluída aí a concorrência humana, havia uma forte tendência ao conservantismo cultural. Neste particular, a influência da organização social nas situações de contato faz-se notar claramente sob dois aspectos distintos: estaticamente, por intermédio da “capacidade de manter, em situações sociais mais complexas e instáveis, a integridade e a autonomia da ordem social estabelecida”; e dinamicamente, conforme a “capacidade de submeter as situações sociais emergentes ao controle social eficiente, mediante a reintegração estrutural e funcional do padrão de equilíbrio inerente à ordem estabelecida” (Fernandes, 1975aFERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes. 1975a., p. 21). No caso dos Tupinambá, porém, a rigidez e a indiferenciação do seu sistema organizatório foram os principais entraves para que agissem com rapidez e eficiência diante de alterações bruscas, tanto na relação dos indígenas com a natureza, quanto deles com seus iguais. A sociedade Tupinambá, em vista das soluções tradicionais que adotava, constituía-se num universo único, sagrado, autossuficiente e fechado. Um universo que o conquistador europeu viria solapar.

O estudo da evolução da situação de contato é indicativo, portanto, dos limites e condições que o sistema organizatório tribal pôde impor às formas assumidas pelos Tupinambá de reação à presença dos brancos. Enquanto estes estavam em pequeno número, podiam ser tolerados e incorporados à vida social aborígine, pois em nada afetavam a unidade e autonomia do sistema social. Porém, quando os portugueses resolveram colonizar a terra, transplantando para cá seu estilo de vida e suas instituições, esta situação provocou efeitos desintegradores à sociedade Tupinambá (Fernandes, 1963FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963.).

Relata Florestan Fernandes (1963FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963., p. 25-33) que até 1530, aproximadamente, não se sabia ao certo se eram os franceses ou os portugueses os “donos” dessas terras. Os portugueses apoiavam-se no tratado com a Espanha, nas concessões papais e no fato de terem descoberto o Brasil para justificar a posse destes territórios. Contudo, a escassa presença de súditos da Coroa Portuguesa facilitava a tarefa de piratas e mercadores franceses e de outras nacionalidades na exploração das riquezas aqui encontradas, especialmente o pau-brasil e certas especiarias tropicais. Logo, franceses e portugueses procuravam aliar-se às populações nativas para obstar a presença de um e de outro. Em vista dessa situação, os Tupinambá, durante muito tempo, mantiveram contato amigável com os portugueses. Por meio do escambo, artefatos como o machado, a foice, a enxada, a faca e outras quinquilharias eram trocados regularmente com produtos da terra. Além disso, os indígenas eram fontes indispensáveis de suprimento de víveres, de bens de exportação e de segurança para os viajantes; também de refúgio e companheiras para os primeiros habitantes brancos aqui deixados. Anchieta atribui exclusivamente ao comportamento dos portugueses o rompimento brusco das relações amigáveis com os Tupinambá. Grandes agravos, maus tratos e injustiças haviam sido praticados contra os nativos, desde 1504, pelos colonos que ficaram numa feitoria deixada por Américo Vespúcio. Desde então os Tupinambá, não se sabe exatamente se por esse fato ou uma sucessão de fatos semelhantes, tomaram o partido dos franceses, enquanto que os portugueses se aliaram aos Tupiniquim, grandes inimigos dos Tupinambá.

Com a adoção, a partir de 1533, das donatarias ou capitanias hereditárias, os portugueses puderam alterar, em diferentes regiões ao mesmo tempo, as características das relações interpostas com os aborígines. A exploração colonial da terra veio dissolver o equilíbrio estável da sociedade Tupinambá, colocando em seu lugar padrões favoráveis aos desígnios dos brancos. Como os portugueses não admitiam a presença de não lusitanos nas terras do além-mar, a ofensiva contra os franceses e seus aliados Tupinambá buscou alcançá-los onde quer que fossem. Em outros termos, isto significou, com o tempo, tanto a expulsão dos franceses e outros invasores europeus, quanto o extermínio quase que completo da população aborígine.

Entre São Vicente e Rio de Janeiro, no período de 1560 a 1575, os portugueses conseguiram, cumulativamente, expulsar os franceses, conquistar a terra e submeter completamente as populações indígenas. Os combates travados foram verdadeiramente sangrentos porque opunham, de forma irreconciliável, interesses conflitantes. Do ponto de vista tribal, o objetivo da guerra era a expulsão e extermínio dos portugueses e o restabelecimento do poderio tribal sobre aquela região, procurando-se, especialmente, vingar a morte dos guerreiros Tupinambá abatidos pelos brancos e seus aliados; já do ponto de vista dos portugueses, a expulsão dos Tupinambá e de seus aliados franceses, ou sua submissão incondicional, representava a própria viabilidade da colonização do Brasil.

As batalhas de Cabo Frio, encerradas por volta de 1574, sinalizaram a capitulação final dos Tupinambá. Gabriel Soares deixou registrado que, nestes confrontos, foram mortos entre oito e dez mil índios. Outros cronistas informaram que muitos fugiram para o sertão, espantados com o que viram, e os poucos que restaram foram viver nas aldeias dos jesuítas, juntamente com índios de outras origens ou, então, escravizados. Dos provavelmente muitos milhares de Tupinambá que habitavam essa região da costa brasileira antes da chegada do conquistador europeu, ao final do século XVI poucos deviam existir, pois deixaram de ser mencionados nos documentos históricos face à sua pouca importância numérica.

De 1562 até o final do século XVI, os portugueses atacaram indistintamente os grupos tribais, pois cobiçavam suas terras muito férteis, queriam desalojar os franceses daquele ponto privilegiado da costa, e procuravam obter mão de obra escrava para suas lavouras. E a isto se atiravam determinados. A violência dos ataques portugueses não poupava nem mesmo os índios que viviam sob o jugo dos jesuítas nas aldeias da Companhia de Jesus, fossem eles guerreiros ou não, mulheres, velhos ou crianças. Para conseguir mão de obra escrava, para remover possíveis obstáculos à colonização, ou para afastar o concorrente europeu dessas plagas, os portugueses não faziam diferença entre índios aliados ou inimigos. Por isso, os Tupinambá que não foram mortos em combate refugiaram-se no sertão. Os que foram viver com os jesuítas ou entregues como escravos aos colonos, em sua maioria morreram de tristeza, de doenças e de fome. Em meados do século XVIII, se existissem Tupinambá ainda vivos, deveriam ter penetrado profundamente no interior do Brasil. Os que ficaram no litoral, convivendo com os brancos em suas vilas ou fazendas, e enquanto unidade sociocultural autônoma, estavam praticamente exterminados (Fernandes, 1963FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963., p. 50-8).

Assim, o que era para ser, no início, apenas uma forma de travar relações comerciais com o elemento indígena, por meio do escambo, transformou-se em conflito social quando se buscou implantar o sistema econômico, as crenças e valores dos europeus na nova terra. A cultura do invasor o levava a expandir reinos, amealhar riquezas e propagar a fé onde estivesse. No Brasil, estas tarefas foram desempenhadas respectivamente por administradores, colonos e jesuítas, enviados para estes fins. No anseio de submeter o nativo, cada qual via o indígena à sua maneira e segundo seu próprio interesse. O colono queria suas terras, suas mulheres, suas coisas, torná-los escravos e sujeitá-los às formas mais cruéis de dominação. O administrador, por sua vez, tinha um comportamento ambíguo: ora fazia vista grossa às atrocidades cometidas pelos colonos, ora continha-lhes o ímpeto, conforme fosse necessário manter ou desfazer alianças para a conquista e conservação dos territórios ocupados. O jesuíta, neste processo, trabalhava a retaguarda: era o responsável pela implantação de uma política continuada de destribalização. Isto é, sua ação junto aos nativos visava deliberadamente retirá-los de suas crenças e convicções e colocá-los sob a tutela espiritual da Igreja. O índio, por seu turno, não tinha muitas opções. Quando resistia à conquista, tentando expulsar os invasores por meio da ação guerreira, defrontava-se com o poder superior das armas de fogo. Quando tentava acomodar-se ao branco, tornando-se seu “aliado” ou sujeitando-se à escravidão, sucumbia às doenças letais ou não resistia aos trabalhos forçados, à fome, e à destruição de sua cultura. Quando procurava evadir-se do contato com o branco, indo refugiar- se em áreas distantes no interior do país, era logo alcançado por “entradas” e “bandeiras” (Fernandes, 1975aFERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes. 1975a., p. 25-8).

Como o invasor atuava em várias frentes, minando as resistências de diversas formas, após dois séculos de alianças, combates e fugas, os Tupinambá sucumbiram ao domínio estrangeiro, quando foram quase que literalmente exterminados. O que restou de sua cultura, de seus usos e costumes, de suas técnicas, de sua estrutura e organização social perdeu a existência concreta em razão do confronto mortal com os colonizadores. Ficou apenas o relato parcial e etnocentrado dos europeus e seus descendentes que com eles estiveram. A forma de organização social, competitiva e cooperativa, adotada pelos Tupinambá, foi viável e suficiente enquanto não tiveram que enfrentar fatores externos que provocavam grande desequilíbrio, como a presença do conquistador europeu. Enquanto os brancos não opunham obstáculos ao domínio territorial por eles exercido, a convivência era pacífica. Até aí, os indígenas revelavam suficiente plasticidade social ao travar contatos amigáveis e manter relações comerciais contínuas com o visitante europeu. O conflito surgiu somente quando os portugueses reconheceram, na supremacia territorial dos Tupinambá, o obstáculo maior aos seus objetivos de colonização.

Ademais, se para os portugueses as alianças podiam ser firmadas ou desfeitas de acordo com critérios objetivos de ocupação territorial, o mesmo não se podia afirmar dos Tupinambá. Para estes, era impossível conseguir aliados fora do círculo de parentesco, porque ódios seculares impediam qualquer aliança. Sem aliados os Tupinambá não conseguiram resistir muito tempo à tecnologia militar dos brancos. Os que não foram mortos, fugiram, tornaram-se escravos, ou foram “reeducados” pelos jesuítas.

É desse modo que, segundo Florestan Fernandes (1963FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963.), na história da sociedade brasileira que ali começava a se formar, tribos autônomas passaram a fornecer contingentes para a formação de uma camada social heteronômica de uma sociedade organizada com base na estratificação interétnica. De um lado, surgia um grupo de privilegiados a quem a vitória nos combates e o desenrolar da conquista e ocupação dava o “direito” de apoderar-se de todas as vantagens políticas, econômicas e sociais que o desenvolvimento e o progresso material faziam crescer nessas terras; colocados de outro lado, estavam os vencidos, os fugidos e os escravizados. Estes ocupariam, daí em diante, uma posição subordinada na sociedade, onde tinham obrigações e deveres a cumprir, normas e regras a respeitar, porém nada podiam reclamar quanto a direitos, benefícios, distribuição de riquezas e progresso dos estratos sociais “superiores”.

Nos trabalhos de Florestan Fernandes sobre o início da colonização das terras brasileiras, pode-se inferir que a integração do indivíduo na sociedade que a partir daí se desenvolveu passou a seguir esta forma híbrida: uns podiam tudo, outros não podiam nada, mas todos faziam parte de uma mesma e única realidade. É que a estratificação social engendrada pelos conquistadores portugueses, salvo raríssimas exceções, excluía pelo nascimento os que não fossem da “raça branca”. Assim, se o tradicionalismo das instituições tribais Tupinambá não foi capaz de reagir à necessidade de adaptação no confronto com os brancos, por outro lado, neste conflito mortal é que Florestan Fernandes encontra a base histórica e cultural da separação interétnica da sociedade brasileira. Uma separação que se aprofundaria cada vez mais com a introdução do elemento negro, que persistiria mesmo com a abolição da escravatura, e que se transmutaria, após a adoção do capitalismo, em formas inesperadas de manifestação de preconceitos e de discriminação racial e social.

Os negros e a revolução burguesa

O processo de colonização seguido pelos conquistadores portugueses e o modelo adotado de exploração econômica deixaram marcas indeléveis na estrutura e organização da sociedade brasileira. Sequelas que ainda hoje não foram seriamente ultrapassadas. A submissão e o extermínio de povos nativos, especificamente os Tupinambá, é um exemplo; a situação dos negros, durante e após a escravidão, rica em episódios de discriminação, abandono e segregação, é outro.

Dos inúmeros temas com os quais trabalhou, Florestan Fernandes abordou a questão das relações raciais de modo mais enfático em três principais blocos. O primeiro refere-se às pesquisas realizadas nos anos iniciais da década de 1940 e que tratam, basicamente, de estudos sobre o folclore em São Paulo, como fonte de estereótipos e influência sobre o comportamento social dos indivíduos. O segundo bloco engloba textos vinculados à pesquisa sobre relações raciais em São Paulo, patrocinada pela Unesco e Revista Anhembi: O preconceito racial em São Paulo: projeto de estudo por Roger Bastide e Florestan Fernandes, publicado em 1951; Brancos e negros em São Paulo, resultado da pesquisa realizada para a Unesco, juntamente com Roger Bastide, entre os anos 1950 e 1951, e publicado pela primeira vez em 1953, pela Revista Anhembi, sob o título Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. O terceiro bloco de textos sobre relações raciais refere-se a balanços e revisões críticas, em que Florestan Fernandes retoma questões tratadas anteriormente, como é o caso de A integração do negro na sociedade de classes, trabalho apresentado como tese ao concurso realizado em 1964 para o cargo de Professor Titular da cadeira de Sociologia I, na Universidade de São Paulo; O negro no mundo dos brancos, coletânea de diversos textos produzidos entre 1962 e 1969, publicada em 1972; e do livro Significado do protesto negro, publicado em 1989.

Nestes estudos, embora Florestan Fernandes compreendesse os fatos sociais como totalidades, ou seja, como aspectos interligados de movimentos complexos, em termos sociológicos não se pode falar exclusivamente do problema do negro. O tema das relações raciais se entrelaça com o tema da revolução burguesa de modo tal, que não é suficiente tratá-los isoladamente: no processo de formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, o colonialismo, a escravidão e o surgimento de uma ordem social competitiva fazem parte do cenário em que se conformou um tipo específico de organização social. Porquanto, se por um lado alcançou-se alguma forma de desenvolvimento econômico, e certas conquistas políticas, econômicas e sociais que acalentaram o sonho de nação, de outro, a discriminação racial e social, o preconceito, a exclusão e a marginalização de amplas camadas da população continuaram reunidas no lado oposto dessa moeda chamada Brasil, e mantidas hipocritamente pelo manto de uma pseudoigualdade jurídica e política.

Florestan Fernandes resgata a história das vítimas, dos esquecidos, dos construtores anônimos da nação. Embora suas pesquisas sobre as relações raciais se concentrassem apenas na cidade de São Paulo, é correto dizer que a história do negro no Brasil é inseparável e se confunde com a própria história econômica do país. Segundo o autor, “os africanos, transplantados como escravos para a América, viram a sua vida e o seu destino associar-se a um terrível sistema de exploração do homem pelo homem, em que não contavam senão como e enquanto instrumento de trabalho e capital” (Fernandes; Bastide, 1953FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. Revista Anhembi, São Paulo, v. X, n. 30, p. 433-90, maio 1953., p. 440). Em vista disso, nenhum outro grupo viveu tão intensamente os “ciclos” e “fases” da economia brasileira como a população negra.

Numa economia capitalista, subsiste um padrão típico de democracia, inerente à sociedade de classes, cujos princípios básicos são a igualdade e a liberdade de todos os indivíduos, condição básica para firmar contratos, e comprar e vender força de trabalho. Nela, as posições sociais encontram-se definidas e organizadas por meio da produção econômica, do trabalho e da propriedade privada, em que não interferem os mesmos símbolos e critérios de status e prestígio que vigoram na ordem escravocrata, por exemplo. Como observa Florestan Fernandes (1965FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 - O legado da raça branca. São Paulo: Dominus/Editora Universidade de São Paulo, 1965.), no Brasil, a passagem do colonialismo - baseado na exploração da mão de obra escrava - para a ordem social competitiva - baseada na livre disposição da força de trabalho -, fez-se acompanhar de fenômenos igualmente importantes na esfera da cultura e das relações sociais. Mais exatamente em São Paulo, o negro passara a ocupar posições específicas dentro do quadro da sociedade paulista somente após o período da mineração. Antes, sua presença era ocasional, dadas as dificuldades de sua importação direta, o alto preço em relação ao escravo indígena e os limites dos capitais paulistas. Por razões históricas, o grande progresso de São Paulo deveu-se, fundamentalmente, à expansão agrícola ocorrida no século XIX, e esta não seria possível sem a utilização do escravo negro. Seria muito simples considerar o negro como agente passivo desse processo, ou seja, como mero instrumento de trabalho, mas inexpressivo como fator histórico. Porém, a escravidão, enquanto instituição social, articula-se dinamicamente com o sistema econômico do qual faz parte, determinando e sendo determinada por ele. Por isso, no juízo textualmente apresentado por Florestan Fernandes, em algumas situações histórico-sociais particulares, como a ocorrida na fase de desenvolvimento da economia paulista, pode-se apreciar a escravidão como um “fator social construtivo” (Fernandes; Bastide, 1953FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. Revista Anhembi, São Paulo, v. X, n. 30, p. 433-90, maio 1953., p. 452). Na formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, as diferentes formas de escravidão - de diferentes grupos étnicos, “raças” ou culturas - não são o resultado ou produto da história, mas, também, uma de suas causas. Para Florestan Fernandes, a definição do que seja ou não histórico:

[...] determina-se ao nível do significado ou da importância que certa ocorrência (ação, processo, acontecimento etc.) possua para dada coletividade, empenhada em manter, em renovar ou em substituir o padrão de civilização vigente. Tomado nesse nível, o histórico tanto se confunde com o que varia, quanto com o que se repete, impondo-se que se estabeleçam como essenciais as polarizações dinâmicas e que orientem o comportamento individual ou coletivo dos atores (manter, renovar ou substituir o padrão de civilização vigente) (Fernandes, 1975bFERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975b. , p. 17).

Para o elemento negro que, juntamente com o indígena, veio a ser a vítima mais visível de todo o processo de colonização, mesmo a abolição da escravatura só agravou sua condição. Acontece que, ainda para Florestan Fernandes (1972FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difel, 1972., p. 37), durante o período em que foi escravo, o “negro viveu em estado de dependência social tão extrema, que não chegou a participar, autonomamente, das formas de vida social organizadas mínimas, como a família e outros grupos primários, de que se beneficiavam os brancos”. Como ele era, dentro da ordem social colonial, apenas um item econômico, foi-lhe sempre negada a inserção nesta mesma ordem. E como junto ao processo abolicionista não ocorreu nenhuma outra forma de inserção, ou preparação apropriada para a nova realidade, os negros “perderam o único ponto de referência que os associava ativamente à nossa economia e à nossa vida social”. Não é outra a razão pela qual “viram-se convertidos em párias da cidade, formando o grosso da população dependente de São Paulo nos três primeiros decênios” do século XX. Faltou-lhes a base social adequada à formação e integração na sociedade que, embora existente, estava sujeita ao interesse e ao domínio dos estratos superiores ou, o que é pior, reproduzia a ideologia e os interesses das elites dominantes, como é o caso da família, da escola, do trabalho etc.

Se, portanto, a escravidão gerou os recursos e impôs o dinamismo necessário para que a economia a abandonasse em favor do trabalhador livre, por outro lado, o destino social do negro não acompanhou este mesmo desenvolvimento. Seja porque teve que competir em desvantagem com o trabalhador imigrante, que estava sendo requisitado dentro de um processo deliberado de “branqueamento” da população (Azevedo, 1987AZEVEDO, Célia Maria M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.); seja porque os negros se concentraram nas regiões economicamente menos dinâmicas; o fato é que, nas décadas posteriores à abolição, a população negra e mestiça incorporou-se de maneira tardia ao ambiente urbano-industrial em desenvolvimento (Fernandes, 1965FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 - O legado da raça branca. São Paulo: Dominus/Editora Universidade de São Paulo, 1965.). Os negros só foram chamados às fábricas quando cessou a imigração europeia e sobreveio o aumento da industrialização e urbanização no Brasil. Até aí, por costume, qualificação, ou por mais bem adaptado que estivesse ao trabalho, o negro permaneceu majoritariamente ligado à agricultura.

Com o fim do escravismo, do monocultivo e do colonialismo emergiu uma sociedade burguesa competitiva, centrada no individualismo e na racionalidade que, no entanto, manteve-se escravista e estamental em suas representações coletivas. Em relação ao negro, inclusive, o comportamento dúbio dos demais integrantes de uma sociedade híbrida continuava a manifestar-se em alguns aspectos e disposições culturais. É o caso do preconceito de cor e da democracia racial, por exemplo. Como o preconceito era inerente ao regime de castas, a ideia de que o negro e o mestiço eram inferiores ao branco justificava a ordem social escravocrata e o padrão de relações raciais construído pela sociedade tradicional escravista. Com o fim da escravidão, entretanto, continuaram comportamentos e atitudes ainda justificados por um passado que não mais existia. Sobreviveram no Brasil várias mentalidades e idades histórico-sociais simultâneas, de modo tal que “os brancos continuam a desfrutar de uma hegemonia completa, como se a sociedade fosse um produto híbrido do regime de castas e do regime de classes” (Fernandes, 1965FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 - O legado da raça branca. São Paulo: Dominus/Editora Universidade de São Paulo, 1965., p. XII).

A escolha do elemento negro ou mulato para fins de análise do processo de mutação social não foi, portanto, aleatória, pois, segundo Florestan Fernandes, foi esta parcela da população nacional a “que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil” (Fernandes, 1965FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 - O legado da raça branca. São Paulo: Dominus/Editora Universidade de São Paulo, 1965., p. XI). Concretamente, o dilema racial a que se refere Florestan Fernandes (1978aFERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 2 - No limiar de uma nova era. São Paulo: Ática, 1978a. , p. 460) encontra-se objetivado de diferentes maneiras e níveis nas relações raciais. Pode-se verificar, até com certa facilidade, “nos lapsos das ações dos indivíduos que acreditam não ter preconceito de cor” e, que de modo até imperceptível, demonstram “inconsistências das atitudes, normas e padrões de comportamento inter-racial”. Ou ainda, “nos contrastes entre a estereotipação negativa, as normas ideais de comportamento e os comportamentos efetivos nos ajustamentos raciais”, como, também, “nos conflitos entre os padrões ideais da cultura, que fazem parte do sistema axiológico da civilização brasileira; nas contradições entre os tipos ideais de personalidade e os de personalidade básica modelados através desta civilização, etc.” Mas, o dilema racial tem sua origem, contudo, numa causa geral e comum: “os requisitos estruturais e funcionais da sociedade de classes só se aplicam fragmentária, unilateral e incompletamente às situações de convivência social em que os socii se apresentam, se consideram e se tratam como brancos e negros” (Fernandes, 1978aFERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 2 - No limiar de uma nova era. São Paulo: Ática, 1978a. , p. 460). Dito em outras palavras, as estruturas da sociedade de classes não lograram eliminar de maneira efetiva as estruturas reinantes na esfera das relações raciais, pois a ordem social competitiva não alcançou plena vigência na motivação, na coordenação e no controle de tais relações.

É dessa forma que as descrições feitas por Florestan Fernandes permitem compreender e explicar genericamente este fenômeno de demora cultural, situando o problema do negro em uma perspectiva realmente sociológica. Ela se produz de forma recorrente porque o negro é constantemente pressionado a assimilar os valores, hábitos e costumes da sociedade competitiva e, apesar de responder positivamente a essas pressões “através de aspirações integracionistas ainda mais profundas e persistentes, não encontra vias adequadas de acesso às posições e aos papéis sociais do sistema societário global” (Fernandes, 1978bFERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: HUCITEC, 1978b., p. 460). Falta a equiparação social progressiva entre negros e brancos.

Tem-se que, na análise empreendida por Florestan Fernandes, elementos dinâmicos e estáticos da sociedade conjugam-se para explicar processos de mudança social. Afinal, se existe uma estrutura característica da sociedade, são as alterações nos componentes dessa estrutura que exigem ou determinam mudanças adaptativas das demais partes que a integram. Implicando, consequentemente, que as redefinições dos papéis sociais de cada indivíduo ou subgrupo social sejam a principal fonte das angústias e inquietações manifestas no funcionamento normal da sociedade. Ora, é possível admitir que há, neste caso, duas maneiras de ver a integração do negro a partir da análise que faz Florestan Fernandes. A primeira forma seria a de integração social. Nesta, a inclusão do elemento negro, ex-escravo ou já liberto à época da abolição da escravatura no Brasil, se daria, a princípio, por meio de sua participação efetiva como integrante de um processo produtivo mais amplo, de uma divisão de trabalho mais complexa, em que, sabendo que ocupa um espaço específico na sociedade, poderia se sentir identificado com essa sociedade e, portanto, integrado a ela. A segunda forma veria um corpo social mais inter-relacionado e complexo, em que apenas um conceito amplo e abrangente como o de cidadania, por exemplo, poderia permitir a integração definitiva do negro na sociedade de classes. Conforme observou Florestan Fernandes,

[...] não bastava alfabetizar o negro ou prepará-lo, intelectualmente, para certos ofícios. Impunha-se prepará-lo para todas as formas sociais de vida organizada, essenciais na sua competição com os brancos por trabalho, por prestígio e por segurança e garantir-lhe, além e acima disso, aproveitamento regular de suas aptidões e autonomia para pôr em prática os seus desígnios (Fernandes, 1965FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 - O legado da raça branca. São Paulo: Dominus/Editora Universidade de São Paulo, 1965., p. 58).

O conceito de cidadania, se aplicado, permitiria ao negro participar da nova sociedade, que se formou a partir da mudança do processo produtivo, em condições de igualdade com os demais membros, pois

quando todos os 'escravos' se converteram não em 'libertos', propriamente falando, mas em 'homens livres' e, em seguida, em 'cidadãos', sob a concorrência intensa e aberta com outros agentes de trabalho, o problema assumiu uma complexidade que não possuía no seio da sociedade escravocrata (Fernandes, 1965FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. 1 - O legado da raça branca. São Paulo: Dominus/Editora Universidade de São Paulo, 1965., p. 60).

Consequentemente, seria necessário que o universo do trabalho, da cultura, do processo político e social, religioso, econômico, dos direitos e deveres estivesse aberto à participação do negro, do mulato ou pardo, como sempre esteve à camada branca, mais rica e privilegiada economicamente (Fernandes; Bastide, 1959FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.).

Considerações Finais

Florestan Fernandes, ao inverter o ângulo de análise para ver a organização social sob o prisma da periferia do sistema, postou-se em oposição aos autores mais conservadores que o precederam, mostrando, criticamente, as contradições e conflitos inerentes à formação social da sociedade brasileira.

A situação dos índios Tupinambá, inicialmente aliados, depois escravos e, enfim, dizimados pelo conquistador europeu; dos negros que foram abandonados à própria sorte na passagem da escravidão para a liberdade de uma economia capitalista; e, por fim, a tentativa de implantação de uma ordem social burguesa no país, referem-se a momentos distintos, tanto do ponto de vista cronológico, como do objeto investigado, mas que possuem em comum a descrição de formas de perpetuação do domínio de uma parcela privilegiada da sociedade com a exclusão e marginalização de outra. Surpreendentemente, no entanto, ambas são, como o mitológico “Janus”, faces opostas de uma mesma realidade: a sociedade brasileira. Contradizendo, em termos lógicos e socio-históricos, a noção de integração.

É que, segundo a concepção funcionalista adotada por Florestan Fernandes nos trabalhos aqui examinados, o todo, para sobreviver, depende das partes que o compõem para executarem funções necessárias à sua continuidade e manutenção (integração sistêmica). Igualmente, para a sobrevivência das partes, é vital que estas se integrem ao todo, ou seja, que não oponham obstáculos à execução das tarefas que o todo requer (integração social). Assim, enquanto os objetivos são continuamente atingidos, tudo é equilíbrio e estabilidade. Caso contrário, porém, a realidade torna-se caótica e instável.

Florestan Fernandes (1967FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1967. , p. 180) afirma que desde os seus “primeiros trabalhos sobre o folclore paulistano até os estudos mais recentes sobre a guerra na sociedade Tupinambá e as manifestações do preconceito de cor em São Paulo”, ele tem “lidado com problemas sociológicos cuja análise depende do recurso à interpretação dos fenômenos investigados em termos de função”. A escolha do instrumental teórico fornecido pela teoria funcionalista decorre, para ele, do fato “de certas analogias entre organismo e sociedade e de certos paralelismos entre a explicação biológica e a sociológica” terem dado origem a “todo um corpo de noções, de ideias, de hipóteses de trabalho e de regras interpretativas que constituem uma teoria especial dentro da sociologia geral” (Fernandes, 1967FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1967. , p. 213). Apesar de considerar a vida social fundamentalmente diversa da fisiologia dos organismos, e de não existir, para ele, uma similaridade precisa entre ambas, contudo, a interpretação funcionalista de fenômenos de mudança social é bastante fecunda, possuindo uma força explicativa que atravessa toda a história humana (Fernandes, 1967FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1967. , p. 60).

Cabe, entretanto, ressaltar mais uma vez que o funcionalismo de Florestan Fernandes é, como ele mesmo afirma (Fernandes, 1978bFERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: HUCITEC, 1978b., p. 106), meramente instrumental nessa sua fase de produção acadêmica. De modo algum, por exemplo, a guerra determinava o comportamento e o funcionamento geral da sociedade Tupinambá. Todavia, por meio dela, da relação de interdependência que integra sistemicamente todos os elementos do conjunto tribal, é possível apreender a organização social dos Tupinambá em sua especificidade, e encontrar uma explicação racional para comportamentos tidos, num primeiro momento, como irracionais.

Para os membros da sociedade Tupinambá, por sua vez, integrar-se ao todo significava assumir os valores socioculturais daquela sociedade em detrimento de qualquer outro estranho a ela, principalmente do branco europeu. O elemento devidamente integrado era aquele que, com pequenas variações, conseguia exibir o que dele esperava a coletividade, sendo, por isso, reconhecido como um autêntico Tupinambá. Ocorre que, diante do conquistador branco, a sociedade Tupinambá não conseguiu se impor, nem mesmo se manter como um conjunto uniforme e organizado, desaparecendo. Como consequência, outra forma social emergiu do processo de conquista e, nela, não havia espaços igualitários para aqueles que não fossem os vitoriosos.

Na sociedade brasileira, a partir daquele momento, floresceram duas realidades opostas: de um lado, surgiu um grupo de privilegiados, pois a vitória nos combates e o desenrolar da ocupação lhes dava o “direito” de apoderar-se de todas as vantagens políticas, econômicas e sociais que o desenvolvimento e o progresso material faziam crescer nessas terras; colocados de outro lado, estavam os vencidos, os fugidos e os escravizados. Estes ocupariam, daí em diante, uma posição subordinada na sociedade, onde tinham obrigações e deveres a cumprir, normas e regras a respeitar, porém nada podiam reclamar quanto a direitos, benefícios, distribuição de riquezas e progresso material. Como consequência, a integração do indivíduo na sociedade passaria a se construir nesta forma híbrida: uns que julgam que podem tudo; outros que não conseguem acesso a nada ou a muito pouco. Depois dos índios, vieram os negros; depois dos negros vieram os pobres, e a situação não mudou, pois, o hibridismo que caracteriza a sociedade brasileira decorre do modelo de estratificação social adotado e a integração parcial de seus membros é sua característica mais evidente.

Por fim, ao resgatar elementos da teoria sociológica utilizados por Florestan Fernandes no estudo da sociedade brasileira, associando as especificidades do percurso histórico com os mecanismos ambíguos de inclusão e exclusão social de seus membros, acredita-se ter alcançado neste trabalho a reconstrução interpretativa do conceito sociológico de integração. A partir da leitura imanente dos textos de Florestan Fernandes que abordaram a questão da formação e desenvolvimento socioeconômico e cultural brasileiro, entendeu-se que a visão - ao mesmo tempo histórica, sociológica e antropológica - com que o autor detalhou aspectos fundamentais dessa questão permite refletir sobre padrões, métodos e noções acessórias e constitutivas do conceito de integração. Ademais, o conjunto de temas tratados por Florestan Fernandes em diferentes momentos sugere a continuidade do debate acerca da questão da ambiguidade e do hibridismo que caracteriza a sociedade brasileira e a divide em estratos sociais opostos em termos de privilégios, prestígio e poder, apresentando-se, neste autor, em uma forma de abordagem sociologicamente crítica.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2018
  • Aceito
    20 Set 2018
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