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A violência urbana e suas representações sociais: o caso do Distrito Federal

A VIOLÊNCIA DISSEMINADA

A violência urbana e suas representações sociais: o caso do Distrito Federal

Maria Stela Grossi Porto

Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília

A busca de compreensão das transformações pelas quais tem passado a sociedade brasileira exige, segundo indicam evidências empíricas, a análise dos processos de sua inserção no contexto de transformações que se situam em âmbito mundial. Embora se possa admitir que, com respeito às tendências mais gerais, tais mudanças apresentem aspectos comuns em distintas sociedades, no que concerne às suas formas de concretização elas apontam para processos específicos, os quais inviabilizam qualquer assimilação entre globalização e homogeneização. Em outras palavras, a globalização adquire o estatuto de uma categoria articuladora da análise e do pensamento, levando a inserir reflexões de caráter nacional no movimento mais geral que abarca o nível planetário. Sem assimilar, no entanto, o nacional ao global.

Nesse sentido, e pensadas como pano de fundo para a análise do fenômeno da violência, objeto dessas reflexões, acreditamos ser possível apontar mudanças que a sociedade brasileira compartilha com o contexto mundial, ao lado de outras que traduzem mais especificamente a natureza de suas singularidades socioculturais e o contexto/ momento nacional.

LOCALIZAÇÃO DAS MUDANÇAS: O ESPAÇO PLANETÁRIO

Entre as primeiras formas de mudança, articulam-se duas ordens de fatores, cujas determinações são de tal forma interligadas que permitem falar em mútuo condicionamento: estamos pensando nas transformações decorrentes das mudanças científico-tecnológicas nas implicações daí decorrentes em termos das mudanças produzidas no mundo do trabalho. Ressalte-se que a radicalidade e intensidade dessas transformações não têm passado desapercebidas à análise sociológica.

Dentre elas, valeria talvez a pena destacar as que têm lugar no âmbito do processos de informação, dimensão na qual a sociedade brasileira mergulhou profundamente, sendo consumidora por excelência das novas tecnologias, em que pese o caráter seletivo e restrito desse consumo — aspecto que não será aqui abordado.

Essa característica de nossa sociedade tem importância para a argumentação que pretendemos levantar, na medida em que a abrangência das transformações daí decorrentes rompe, redefine, supera e desloca o tradicional e os processos de organização do social nele fundados, com repercussões nos níveis político, econômico, cultural e simbólico, dentre outros.

É também como decorrência das mudanças acontecidas em âmbito planetário que se inserem as transformações no mundo do trabalho, cuja análise é igualmente relevante para a argumentação aqui delineada.

Para Machado (1999), "neste final de milênio, poucos discordarão que as turbulências que nos tornam cada vez mais perplexos, desconfiados, inseguros e irados não são apenas efeitos passageiros de mais uma das muitas crises que de vez em quando abalam a acumulação de riquezas, nos inquietam durante algum tempo, e depois se mostram até positivas para a continuidade da estrutura social que conhecemos. Nos últimos vinte ou trinta anos vem se formando a convicção de que as dificuldades deste período mais recente são de outra natureza, mais profundas, duradouras e angustiantes. É claro que o trabalho está no olho do furacão destas mudanças e tem concentrado as atenções de todos, especialistas e leigos".

A argumentação de Machado busca demonstrar que os processos de transformação pelos quais vem passando o trabalho afetam sua característica de integração social, com uma configuração fundamentalmente marcada pela fragmentação.

Foi mais ou menos nessa direção que encaminhamos nossas reflexões em um texto anterior, chamando a atenção para o fato de que não só mudam as características do trabalho como também sua representação por amplas camadas da população. Em um mundo "regido" pelo trabalho, as classes sociais podiam, em alguma medida, ser pensadas como categorias "unificadoras" do social. As mudanças tecnológicas, ao incidirem diretamente sobre o mundo do trabalho, deslocando seu caráter e centralidade enquanto organizador de um ambiente sociocultural, transformam a natureza desse social e afetam igualmente o trabalho em suas dimensões simbólica, ideológica e valorativa. Enquanto valor, o trabalho era responsável não tanto pela unidade do social, mas por sua representação como algo unificado. Atualmente, as transformações desse universo e o deslocamento dos valores nele centrados evidenciam o surgimento de um social atomizado, fragmentado, carente de pontos fixos de referência (Porto, 1997:8). A argumentação para subsidiar a presente reflexão vai na mesma direção. Estamos em presença de um social heterogêneo, no qual nem indivíduos nem grupos parecem reconhecer valores coletivos. Esse contexto dá origem a múltiplos arranjos societários, a múltiplas lógicas de condutas. Predominando tal situação, é válido falar-se em sociedade fragmentada, plural, diferenciada, heterogênea, tanto no âmbito material — das organizações e movimentos sociais — quanto no simbólico, no qual diferentes sistemas de valores vivem e convivem de forma mais ou menos autônoma, numa espécie de "contigüidade", para usar ainda um noção empregada por Machado (1997:16).

Sociedades nas quais prevalecem tais situações são passíveis de múltiplas lógicas de ação, organização e reorganização do espaço social e de múltiplos recursos de atuação, entre os quais a violência.

LOCALIZAÇÃO DAS MUDANÇAS: A SINGULARIDADE BRASILEIRA

As mudanças que se processam no âmbito interno à sociedade brasileira referem-se, basicamente, a mudanças de caráter valorativo, cuja direção aponta antes para as ambigüidades, tensões e fragmentações da ordem valorativa do que para possíveis unanimidades, sinônimos de uma consciência coletiva forte.

Se os argumentos adiantados têm validade, pode-se afirmar que a fragmentação constitui uma categoria-chave para pensar a sociedade brasileira, além do que ela é igualmente pertinente para dar conta das formas como essa sociedade se representa. Pensada enquanto uma situação de fragmentação valorativa, a contemporaneidade brasileira se vê confrontada não apenas com as conseqüências dessa fragmentação no plano simbólico, mas também com um contexto de grandes desigualdades no plano material, as quais, reflexivamente, alimentam a fragmentação e a pluralidade valorativas. Violência real e representação da violência como forma de manifestação de exclusão, simbólica e material, são fenômenos interdependentes e se constituem em fatores orientadores da ação (ou da sua ausência).

FRAGMENTAÇÃO E SOCIABILIDADES

A fragmentação, enquanto forma de estruturação social, distancia a análise sociológica do conceito instituinte de processo de socialização, consoante com contextos sociais relativamente homogêneos, nos quais a maioria dos indivíduos partilha (ou partilhava) conteúdos e valores básicos de uma consciência coletiva comum. Registra, ao invés, a existência de novas sociabilidades, no plural, mais condizente com as novas possibilidades de estruturação social. Tal realidade sugere que as sociedades contemporâneas não comportam um processo de socialização, mas produzem, e são produzidas por distintas formas de sociabilidades, que, no mais das vezes, circunscrevem-se a grupos, camadas, etnias, raças os quais abrangem, não tendo vigência no conjunto da sociedade.

É assim que se pode falar em novas sociabilidades decorrentes dos processos de transformação em curso. Sociabilidades que se estruturam em razão, portanto, da existência de solidariedades, mas também a partir e em função de sua ausência. É o caso de sociabilidades estruturadas na e pela violência, quase como resposta a carências, ausências, falhas, rupturas — aspectos que são, todos eles, fruto da explosão de múltiplas lógicas de ação, recurso disponível no rol de muitos outros possíveis. Aspectos vivenciados, todos eles, como característica e condição da sociedade contemporânea, a qual envolve risco e insegurança, conteúdos, implícita ou explicitamente, presentes nas representações sociais aqui abordadas.

Na condição de recurso, a violência insere-se em um elenco de estratégias, sua utilização podendo ou não vincular-se a uma hierarquia valorativa; passa a ser questão de eficácia, oportunidade, afirmação de identidades socialmente negadas, explosão de raivas, frustrações, dentre tantas outras possibilidades, com implicações diretas nas formas de representação social do fenômeno. Não apenas as novas sociabilidades estruturam-se na violência como podem ser o conteúdo e substrato das representações sociais.

VIOLÊNCIA, REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E NOVAS SOCIABILIDADES

A pesquisa cujos resultados subsidiam essa reflexão foi realizada na área urbana do Distrito Federal. Os dois grandes recortes, em termos das variáveis a serem tratadas, foram o sexo e a idade. O questionário utilizou apenas perguntas fechadas. Buscou-se, através de muitas delas, apreender as representações sociais, utilizando-se de ditados, provérbios, ou crenças populares, tais como: mulher de malandro gosta de apanhar; homem que é homem não leva desaforo pra casa; apanhar na cara e não reagir é sinal de covardia; polícia e bandido é tudo a mesma coisa, não pensam duas vezes antes de atirar; o brasileiro é cordial; homossexualismo é falta de vergonha; a justiça tarda mais não falha; as leis existem para ser desobedecidas, entre outras. Os conteúdos das questões foram organizados em sete blocos, relacionados a violência e instituições; violência e pobreza; violência e legitimidade; violência e direitos; violência e média; violência e justiça; e violência e cordialidade.

Dois pressupostos ou fios condutores guiaram a pesquisa. Pelo primeiro, levava-se em consideração que as representações sociais, ao mesmo tempo em que expressam visões de mundo que objetivam explicar e dar sentido ao fenômeno da violência, participam, por essa condição mesma de representação social, da constituição do fenômeno. Coerente com o segundo, admitia-se que as representações sociais, embora resultem da experiência individual, são condicionadas pela (e nesse sentido, dependentes da) inserção social de indivíduos e grupos de indivíduos que as produzem.

Pesquisas dessa natureza, abordando temas complexos como o da violência, cujas características acabamos de apontar, obrigam a tratar com muita cautela os resultados. Em primeiro lugar, porque muitas pessoas têm dificuldades em falar sobre o tema; em seguida, porque a natureza do conteúdo induz os participantes a responderem o que se imagina socialmente desejado ou, em outras palavras, o politicamente correto. Nesse sentido, as análises que podem ser efetuadas com base nos dados apontam apenas tendências, direções por onde a reflexão poderia caminhar, com vistas ao aprofundamento do conhecimento dessa realidade tão difícil de se captar. De resto, e como já se sabe, mas vale sempre a pena repetir, representações sociais não são assertivas falsas ou verdadeiras e sim apenas a matéria-prima, o dado bruto que cabe ao sociólogo analisar, interpretar, compreender.

Uma das preocupações da pesquisa foi identificar e analisar que dimensões do social interferem mais diretamente na elaboração das representações sociais. Visando, por exemplo, a problematizar explicações cujo peso recai unicamente em determinações de natureza econômica, e que associam, por vezes de modo simplista, violência e pobreza. Nossa questão dizia respeito a uma certa transversalidade do fenômeno e de suas representações, que permitiria supor que, na atualidade, a violência e, sobretudo, suas formas de representação são um fenômeno que perpassa toda a sociedade, não podendo ser assimilados a um único grupo, classes social ou camada de indivíduos.

O QUE DIZEM AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS?

Por si só, dizem pouco, visto nada terem de objetivas. Devem ser interpretadas, e é aí que reside toda a dificuldade.

O conteúdo dessa pesquisa e as questões que estão em jogo dizem respeito, fundamentalmente, a valores. É, pois, desse nível da ordem simbólica que tratam as reflexões aqui encaminhadas. Sem que se possa, ainda, falar em conclusões, alguns resultados merecem análises mais aprofundadas.

Um primeiro refere-se ao fato de que, quando se está em presença de valores que desencadeiam situações de violência, as representações sociais elaboradas tendem a ser transversais ao conjunto da sociedade, perpassando diferentes camadas socioeconômicas, mobilizando sentimentos como medo, ódio, ressentimentos, frustrações, afetos, vingança, amor, amor-próprio, entre outros, em graus de intensidade e envolvimento que não se explicam se a única variável solicitada pela análise for de natureza econômica ou de classe social.

Assim, com relação à afirmação "homem que é homem não leva desaforo para casa", é sintomático que, independentemente da condição socioeconômica, 39,8% dos respondentes admitam a necessidade de reagir a desaforos recebidos e 46,4% concordem que apanhar na "cara" e não reagir é sinônimo de covardia, sugerindo que virilidade, força e até a demonstração de determinação de caráter sejam valores comuns a diferentes categorias socioeconômicas. Esses conteúdos valorativos são, ou parecem ser, critérios orientadores de conduta, na medida em que a concordância com eles revela um certo tom imperativo, no sentido de ser esse o comportamento esperado do homem.

A legítima defesa, a honra e o patrimônio merecem comportamentos diferenciados quando estão em questão atos de violência, como, por exemplo, atirar em alguém. Também aqui a variável socioeconômica, tomada em geral, é insignificante como reveladora de distinções. Os valores, em pauta, na vigência de cada uma delas, no entanto, têm diferenças. Se atirar em legítima defesa é apontado como comportamento válido para 68% dos respondentes, essa porcentagem cai para 17,7% quando está em jogo a defesa do patrimônio e para 8,1% quando se trata de defesa da honra, subindo, numa aparente contradição, para 48,3% de respondentes que afirmam que atirar nunca é válido. A contradição é, de fato, apenas aparente, pois a questão, envolvendo a possibilidade de mais de uma resposta, estabelece para prioridades no julgamento que é feito acerca da legitimidade de se atirar em alguém. A proporção se modifica um pouco quando a análise considera o critério de residência: os moradores das chamadas áreas nobres de Brasília, sobretudo as margens do lago Paranoá, são muito menos propensos a fazer da violência uma forma de se defender: apenas 32,4% concordam que isto é válido, contra 54,2% dos residentes nas periferias mais carentes.

Essa questão parece indicar uma a mudança no valor atribuído à defesa da honra: conteúdo central no imaginário, sobretudo da população masculina no Brasil de há poucos anos atrás, parece hoje ter perdido importância, o que talvez demonstre uma efetividade na atuação de movimentos da sociedade civil e também do Estado no sentido de uma representação mais igualitária dos sexos. Interessante comentar também a baixa proporção de pessoas que admitem ser válido atirar em alguém para defender o patrimônio. É de se supor que, realizada no campo, onde a questão da terra é fonte de conflitos e mortes violentas, a pesquisa tivesse respostas diferentes para esse item.

Ainda quanto a este aspecto, algumas nuances chamam a atenção, quando a análise considera a dimensão econômica: são os menos favorecidos economicamente que assumem a validade de atirar para defender o patrimônio.

Outra diferença parece importante como resultado, na medida em que contribui para dissolver o mito das "classes perigosas": os ricos, na defesa de seu patrimônio, se revelam mais violentos do que os pobres na defesa de sua sobrevivência, embora se admita, no geral, que ambos podem ser violentos. O mais interessante, quase surpreendente, é que são sobretudo os mais pobres e os pertencentes às camadas médias de renda que, nesse particular, representam os privilegiados como mais violentos. Ou seja, é quase o mito às avessas, sendo os ricos as classes perigosas.

Essa questão oferece uma comparação interessante com a anterior. Se, no geral, o patrimônio não aparece como algo importante a ser defendido, ficando bem abaixo da legítima defesa, quando focalizados do ponto de vista da condição socioeconômica os ricos são apontados como mais violentos, quando o que está em jogo são seus bens.

Como foi dito anteriormente, essa temática é das mais difíceis de se pesquisar empiricamente, tendo seus resultados caráter bastante relativo. Nesse sentido, é sobretudo às ambigüidades que recobrem o objeto que se deve computar o fato de que, contrariamente à questão anterior, 38% dos entrevistados acreditam que há mais pobres do que ricos presos porque os primeiros cometem mais crimes do que os últimos. É possível que o imaginário popular esteja sendo alimentado por cenas televisivas e notícias da imprensa em que a população carcerária mostrada induz a essa representação — o que aponta para a importância de uma revolução nos processos de produção e circulação da informação. Interessante que, para essa questão, a variável relativa à escolaridade muda o comportamento dos respondentes: ainda que no total as proporções se mantenham, os mais escolarizados (ensino superior) são muito menos enfáticos no estabelecimento da relação.

Esta é outra conclusão da pesquisa que, se não chega a ser surpreendente, é uma indicação de que as representações sociais da violência são mais dependentes da dimensão cultural do que da econômica. Ou seja, continua sendo importante a inserção social dos indivíduos, mas no âmbito do cultural. A dimensão econômica tem importância na medida em que viabiliza (ou é a condição para ) o acesso à educação, aos valores, enfim, ao estilo de vida possibilitado pelo capital cultural ou simbólico. Este, mais do que o capital propriamente dito, pode interferir nas representações sociais sobre violência.

É por esta razão que as variações no nível de escolaridade são mais relevantes na explicação de determinados conteúdos das representações sociais sobre violência do que os diferenciais de renda ou o pertencimento a tal ou qual classe social.

Um exemplo é que 67,7% dos respondentes com curso superior discordam da afirmação de que transformar as superquadras de Brasília em condomínios seria a forma de se proteger da miséria que invadiu a cidade, contra 46,6% dos indivíduos que têm apenas o ensino fundamental. Esses últimos estariam, por assim dizer, elaborando uma representação da representação, ou seja, estariam representando o que imaginam ser a forma de se comportar da população com mais poder aquisitivo.

Já as questões ligadas à justiça, e de novo se revelam as ambigüidades, apontam para um relativo descrédito quanto ao poder da Justiça de fazer justiça, valendo a afirmação também para as camadas mais instruídas, neste caso com algumas nuances.

Ainda que seja fundamental uma análise que discuta questões de natureza filosófica e jurídica que envolvem o conceito e a definição de justiça, a preocupação desse artigo é a representação empírica de justiça, no âmbito das ações e interações sociais, tal como aparece nas respostas ao questionário. Buscou-se apreender como é representada a credibilidade na atuação da Justiça e se essa credibilidade poderia se constituir em fator protetor contra a violência.

Em questões como "manda quem pode, obedece quem tem juízo"; ou "na falta de uma justiça competente vale a lei do mais forte", e ainda "Justiça é coisa pra privilegiado, pobre é tratado é na marra", os respondentes tendem a concordar com o ditado popular. Na imaginação destes predominam as seguintes idéias: privilégios; ausência de direitos ou de critérios particularistas na aplicação do direito; e, ainda, a ineficiência da justiça ao não garanti-los. Na prática, vigoraria o "salve-se quem puder", comportamento característico de situações de fragmentação social.

Para os indivíduos que têm apenas o ensino fundamental completo, é verdadeira a afirmação de que a "justiça tarda mas não falha", numa proporção de 54,3% contra 38,8% de respondentes com curso superior completo. Assim, os menos instruídos acreditariam mais no poder da Justiça de fazer justiça que os detentores de algum capital cultural. Sinal de que houve aumento no grau de exigência da população diante de fatos de impunidade.

A inclinação ao politicamente correto revelou-se importante em questões como: o que fazer diante de uma lei considerada injusta? as leis existem para ser desobedecidas? As respostas à primeira questão foram no sentido de que, ainda que injusta, a lei deve ser cumprida, mas que se devem empreender esforços para mudá-la — situação que não se observa na prática. Quanto à segunda, as respostas foram negativas, o que também não é confirmado pela realidade: tentativas de burlar a lei, de apelar para o "jeitinho brasileiro", ou outras soluções como a consagrada "você sabe com quem está falando" já tornada clássica pela análise de Da Matta (1980) são sugestões de representações particularistas da justiça e da forma particular de se relacionar com ela.

Isso posto, não deixa de ser importante ressaltar que estas são indicações de que a sociedade brasileira pode estar diante de novas formas de sociabilidade, que incluem a violência como forma de estruturação do social e de solucionar tensões e conflitos, pelo que se pode depreender das análises até aqui elaboradas.

Alguma aparente homogeneidade das respostas não deve induzir ao engano — os dados são férteis: da suposta unidade, do consenso em relação ao politicamente correto vai se delineando uma pluralidade de vozes e de representações, a partir das quais pouco a pouco, constroem-se diferenças. Exemplo disso é afirmar-se que é preciso tentar mudar a lei considerada injusta e, ao mesmo tempo, admitir que, na falta de uma justiça competente, vale a lei do mais forte — demonstração de representações do social que inserem a violência nas modalidades possíveis de estruturação social. Aqui, mais uma vez, a representação, tal como elaborada por indivíduos com instrução superior, aponta na direção do que parece ser, até agora, um importante achado dessa pesquisa, a saber, que as variáveis ou dimensões de ordem cultural, escolaridade ou educação, sobretudo, "explicam", mais do que a inserção socioeconômica, as diferenças de representações sociais sobre a violência, com as conseqüências possíveis que tais representações possam vir a ter para o agir. O que parece também importante ressaltar é o fato de que boa parte dessas representações não passa pelo nível do consciente. Prova disso é que as perguntas mais indiretas, as mais capciosas, que foram introduzidas com intenção de controle, são as que têm maior potencial explicativo. As mais diretas e evidentes em boa parte reproduziram o que seria o socialmente correto ou desejável. O caráter consciente ou inconsciente das representações não interfere, no entanto, nessa sua característica essencial para os objetivos de conhecimento da realidade, isto é, o fato de que, enquanto representação, são produtoras de sentidos que, por sua vez, são orientadores de conduta. Dessa representação não ficam isentos os conteúdos de insegurança e risco que podem estar na raiz de soluções violentas. Violência real e representação da violência, enquanto formas das complexas relações entre inclusão e exclusão social, são fenômenos interdependentes e se constituem, igualmente, em importantes fatores orientadores de conduta.

NOTAS

E-mail da autora: msgrossi@unb.br

Esse texto insere-se no contexto da pesquisa Violência e alteridades: as representações sociais como produção de sentido, financiada pelo CNPq. Participam da pesquisa oito alunos, entre bolsistas e voluntários. Para a elaboração desse texto o tratamento dos dados, através do SPSS, ficou sob a responsabilidade de Simone de Paula Gomes, Clodoaldo de Almeida Souza e Rafael Ferreira de Paiva. Os demais integrantes são: Thais Moreira de Araújo, Viviane Matos de Aquino, Clarisse Drummond Martins Malhado, Júlio César Batista da Silva e Carolina Codeço Velloso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2004
  • Data do Fascículo
    Dez 1999
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