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Vênus Física

Earthly Venus

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Vênus Física

Earthly Venus

Pierre-Louis Moreau de Maupertuis

Quae legat ipsa Lycoris.

Virg. Eclog. x1 1 A tradução das citações latinas feitas por Maupertuis estiveram a cargo de Adriano Machado Ribeiro, professor de letras clássicas, a quem agradecemos a colaboração prestada. "Extremum hunc, Arethusa, mihi concede laborem: punca meo Gallo, sed quae legat ipsa Lycoris, carmina sunt dicendi: neget quis carmina Gallo?" "Concede-me, Aretusa, este último trabalho: poucos versos, mas que os leia a própria Licóride, ao meu Galo serão ditos: quem negará versos a Galo?" ( Bucólicas, 10; Virgílio, 1986, p. 71).

Prefácio à Dissertação física por ocasião do negro branco (Leiden, 1744)

Eu não acreditava em nada menos do que fazer um livro, quando comecei a obra que se segue. Um dia antes, encontrava-me na casa para onde se havia levado o negro branco que atualmente está em Paris. Asseguraram-nos que essa criança nascera de pais bem negros e todos raciocinaram interminavelmente sobre esse prodígio. Uma pessoa da companhia, a quem nada posso recusar, quis que eu colocasse meus pensamentos sobre isso por escrito. Eles se multiplicaram até produzir um volume bastante espesso e no qual, talvez, se ache que eu ainda não expliquei inteiramente o fato que estava em questão.

A mesma pessoa para quem eu havia escrito exigiu ainda de mim algo mais difícil ou, pelo menos, mais perigoso: entregar a obra ao impressor. Nisso consenti; não tive amor próprio o bastante para recusá-lo. A única fraqueza foi a de não ousar nela colocar meu nome. E, com efeito, parece-me que teria sido temerário dela declarar-me o autor em um tempo em que se nos quer proibir toda operação do espírito e no qual um poderoso partido2 2 Segundo Tort (Maupertuis, 1980, p. 74, n. 1), Maupertuis possivelmente refere-se aqui a Fontenelle e seus amigos. De fato, Fontenelle revelara-se crítico importante de Maupertuis já na publicação da Figura dos astros, em 1732, opondo-se à sua adesão à física de Newton. Mas a querela com Fontenelle mais próxima de 1744, ano em que Maupertuis conhece a criança albina e publica seu primeiro estudo a respeito, ocorreu em 1743 por ocasião da eleição de Maupertuis para a Academia Francesa. Em suas Memórias, o Duque de Luynes apresenta, nas notas do dia 10 de junho desse ano, um resumo do acontecido: tenta provar que não sabemos escrever nem devemos sabê-lo. Eu temia disso oferecer uma nova prova.

Não obstante o espírito de partido, não me impedi de fazer uso das observações que encontrei nos bons autores, quaisquer que fossem. Quando elas estavam escritas em latim, um jovem doutor em medicina,3 3 Segundo Tort (Maupertuis, 1980, p. 74, n. 2), esse jovem doutor (onze anos mais novo que Maupertuis) era Julien Offray de la Mettrie (1709-1751). La Mettrie estudou em Caen, Paris e Reims, tendo feito um estágio em Leiden com Boerhaave. Publica em 1745 a Histoire naturelle de l'âme, condenada pelas autoridades parisienses em 1746 por suas idéias materialistas. Para evitar a prisão, La Mettrie exila-se na Holanda onde reencontra Boerhaave e inscreve-se, em 1747, como estudante na Faculdade de Medicina de Leiden. Em 1748 publica L'homme machine, que é igualmente condenado. La Mettrie procura, então, exílio em Berlim junto a Frederico II. É aceito e nomeado em julho desse ano para a Academia de Berlim, então presidida por Maupertuis. Como este último, La Mettrie nasceu em Saint-Malo, mas provavelmente encontraram-se pela primeira vez somente em Paris, para onde La Mettrie dirigira-se em 1742 (Beeson, 1992, p. 190-1); o auxílio com os textos latinos prestado a Maupertuis ocorrera então em 1744, por ocasião da composição da Dissertation physique, aproximadamente dois anos antes do exílio de La Mettrie na Holanda. Posteriormente, em Berlim, Maupertuis enfrentará problemas com as críticas que La Mettrie dirigirá a Haller. que me fez prometer que jamais o nomearia, fez-me o obséquio de traduzi-las.

Eu teria ganhado em todos os sentidos em permanecer desconhecido, se não fosse preciso, para isso, renunciar à satisfação de dedicar esta obra a um homem ilustre a quem devo tudo.4 4 Tort (Maupertuis, 1980, p. 74, n. 3) sugere que Maupertuis talvez se refira a Maurepas, que, além de ter apoiado sua eleição para a Academia Francesa, como vimos na nota 2, também apoiou a expedição à Lapônia realizada sob o comando de Maupertuis para obter as medições que provariam o achatamento polar da Terra. Maupertuis relata o interesse de Maurepas por essa expedição no discurso proferido na assembléia pública da Academia de Ciências de 13 de novembro de 1737: Seria antes nomeá-lo, falar da superioridade de seu mérito e do lugar que ele ocupa: mas falar das obrigações que lhe temos não é fazer-se conhecer: é confundir-se com a multidão.

VÊNUS FÍSICA

PRIMEIRA PARTE, sobre a origem dos animais

CAPÍTULO PRIMEIRO

Exposição desta obra

Recebemos, apenas há pouco tempo, uma vida que iremos perder. Colocados entre dois instantes, dos quais um nos viu nascer e o outro nos verá morrer, tentamos em vão estender nosso ser para além desses limites: seríamos mais sábios se nos aplicássemos apenas em melhor preencher o intervalo.

Não podendo tornar mais longo o tempo de nossa vida, o amor próprio e a curiosidade querem suplementá-lo concedendo-nos os tempos que virão quando não mais seremos e os que transcorreram quando ainda não existíamos. Vã esperança à qual se junta uma nova ilusão! Cremos que um desses tempos nos pertence mais que o outro. Pouco curiosos sobre o passado, interrogamos com avidez aqueles que nos prometem ensinar alguma coisa sobre o futuro.

Os homens se persuadem mais facilmente que após sua morte devem comparecer ao tribunal de um Radamante do que creriam ter antes de seu nascimento combatido contra Menelau no cerco de Tróia.(i) (i) Pitágoras relembrava dos diferentes estados pelos quais passara antes de ser Pitágoras. Havia sido primeiro Etálides, depois Eufórbio, ferido por Menelau no cerco de Tróia, Hermótimo, o pescador Pirro e, por fim, Pitágoras. 5 5 Para ilustrar o maior interesse dos homens pelo futuro do que pelo passado de sua alma, Maupertuis contrapõe Radamante, juiz dos infernos a quem se deverá prestar conta após a morte, e Eufórbio, uma das encarnações de Pitágoras. É bem provável que Maupertuis tenha tomado de Diógenes Laércio (cf. 1988, p. 229-30) estas referências às vidas passadas de Pitágoras.

Entretanto, a obscuridade é a mesma sobre o futuro que sobre o passado; e se se considera as coisas com uma tranqüilidade filosófica, o interesse deveria ser também o mesmo: é tão pouco razoável afligir-se por morrer muito cedo, quanto seria ridículo queixar-se de ter nascido muito tarde.

Sem as luzes da Religião, com respeito a nosso ser, esse tempo no qual já não vivemos e aquele no qual não viveremos mais são dois abismos impenetráveis, e dos quais os maiores filósofos não conseguiram romper as trevas mais do que a gente mais simples.

Não é portanto como metafísico que quero tocar nessas questões, mas apenas como naturalista. Deixo aos espíritos mais sublimes dizer-vos, se é que podem, o que é vossa alma, quando e como ela vos veio iluminar. Tentarei apenas fazer-vos conhecer a origem de vosso corpo e os diferentes estados pelos quais passastes antes de estardes no estado em que estais. Não vos aborreçais se vos digo que fostes um verme, ou um ovo, ou uma espécie de lodo; mas também não creiais tudo perdido quando perderes essa forma que tendes agora e quando esse corpo, que a todos encanta, for reduzido a pó.

Nove meses após uma mulher ter-se entregado ao prazer que perpetua o gênero humano, ela dá à luz uma pequena criatura que difere do homem apenas pela diferente proporção e pela debilidade de suas partes. Nas mulheres mortas antes desse prazo, encontra-se a criança envolvida por uma dupla membrana, ligada por um cordão ao ventre de sua mãe.

Quanto mais distante está a criança do momento em que deve nascer, mais seu tamanho e sua figura se afastam daqueles do homem. Sete ou oito meses antes, descobre-se no embrião a figura humana: e as mães atentas sentem que ele já tem algum movimento.

Antes, é apenas uma matéria informe. A jovem esposa leva um velho marido a ver ali sinais de seu carinho e a encontrar o herdeiro do qual um acidente fatal o privou. Os pais de uma moça vêem ali apenas uma mistura de sangue e de linfa que causava o estado de languidez no qual ela se encontrava há algum tempo.

É esse o primeiro termo de nossa origem? Como se formou essa criança que se encontra no seio de sua mãe? De onde ela veio? Esse mistério é impenetrável, ou as observações dos físicos podem lançar alguma luz sobre isso?

Vou explicar-vos os diferentes sistemas que dividiram os filósofos sobre a maneira pela qual ocorre a geração. Nada direi que possa alarmar vosso pudor: mas não é preciso que preconceitos ridículos lancem um ar de indecência sobre um assunto que, por si mesmo, não admite nenhuma. A sedução, o perjúrio, o ciúme ou a superstição não devem desonrar o ato mais importante da humanidade, por mais que algumas vezes o precedam ou o acompanhem.

O homem permanece numa melancolia que o torna inteiramente insípido até o momento em que encontra a pessoa que deve fazer sua felicidade. Ele a vê: tudo se embeleza a seus olhos, respira um ar mais doce e mais puro; a solidão o prende à idéia do objeto amado; ele encontra na multidão motivos para se gabar continuamente de sua escolha; toda a natureza favorece aquilo que ele ama: ele sente um novo ardor por tudo aquilo que empreende; tudo lhe promete feliz êxito. Aquela que o encantou se inflama do mesmo fogo do qual ele queima: ela se rende, entrega-se a seus enlevos e o feliz amante percorre prontamente todas as belezas que o deslumbraram: já alcançou o mais delicioso recanto... Ah! infelizes aqueles a quem uma faca mortal privou do conhecimento desse estado! O cinzel que tivesse cortado o fio de vossos dias ter-vos-ia sido menos funesto! Em vão habitais vastos palácios, passeais em jardins deliciosos, possuís todas as riquezas da Ásia; o último de vossos escravos que pode saborear esses prazeres é mais feliz do que vós. Mas vós, a quem a cruel avareza de vossos pais sacrificou ao luxo dos reis, tristes sombras, que já não sois senão vozes, gemei, chorai vossas desgraças, mas nunca canteis o amor.

É esse instante marcado por tantas delícias que dá existência a uma nova criatura, a qual poderá compreender as coisas mais sublimes e, o que é muito superior, poderá provar os mesmos prazeres.

Mas, como explicar essa formação? Como descrever esses lugares que são a primeira habitação do homem? Como essa morada encantada será transformada em uma obscura prisão habitada por um embrião informe e insensível? Como a causa de tanto prazer, como a origem de um ser tão perfeito é apenas carne e sangue?(i) (i) Miseret atque etiam pudet aestimantem quàm sit frivola animalium superbissimi origo! C. Plin. Nat. hist. l. vii, c. 7. 6 6 " Miseret atque etiam pudet aestimantem quàm sit frivola animalium superbissimi origo, cum plerisque abortus causa odor a lucernarum fiat extinctur" " Qualquer um apiedar-se-ia e envergonhar-se-ia ao considerar como é precária a origem do mais soberbo dos animais, já que muitas vezes o odor de uma lâmpada que acaba de se apagar provoca o aborto." ( História Natural, vii, 7, 43; Plínio, 1989, p. 534-5).

Não ofusquemos esses objetos com imagens repugnantes: que eles permaneçam cobertos pelo véu que os esconde. Que nos seja permitido romper apenas a membrana do hímen. Que a corça aqui venha no lugar de Ifigênia. Que as fêmeas dos animais sejam doravante os objetos de nossas pesquisas sobre a geração:7 7 Segundo a mitologia, os gregos exigiram que Agamenão, pai de Ifigênia, oferecesse sua filha em sacrifício à deusa Artemis para que a frota grega pudesse chegar a Tróia, já que a deusa a retera em Aulis. Mas a deusa apieda-se de Ifigênia e sacrifica uma corça em seu lugar. Além de evocar a idéia geral da utilização de animais como base comparativa para o estudo da geração humana, a referência a Ifigênia faz uma alusão direta aos estudos de Harvey sobre a geração, realizados a partir da dissecação de várias corças tomadas do parque de caça de Carlos i. Os capítulos VII a X da Vênus física falam dos trabalhos de Harvey e de sua importância para a teoria da geração de Maupertuis. procuremos em suas entranhas o que pudermos descobrir deste mistério; e, se for necessário, exploremos até mesmo as aves, os peixes e os insetos.

CAPÍTULO II

Sistema dos antigos sobre a geração

No fundo de um canal que os anatomistas chamam vagina, da palavra latina que significa bainha,8 8 Especificamente a bainha ou estojo de uma espada e, de modo geral, significa envoltório ou envelope (cf. Gaffiot, 1934). encontra-se o útero:9 9 No original matrice. Este termo aparece no francês do século IX ao XV com o sentido de mãe e não há, no período, o termo utérus (Godefroy, 1938). Bloch e Wartburg informam que o termo aparece em 1265 e que desenvolve outros sentidos a partir do século XVII, como, em 1611, o de "molde para fundir moedas" (Bloch & Wartburg, 1989). O primeiro registro no francês de utérus é dado, no Grand Robert, para o século XVI, na obra de Ambroise Paré (1560) e relacionado ao latim uterus (Robert, 1985), mas no Dictionaire universel d'Antoine Furetière, de 1690, não aparece utérus e sim matrice como "a parte das fêmeas dos animais onde ocorre a concepção e a nutrição do feto ou dos filhotes até seu nascimento" (Furetière, 1978 [1690]). A partir de então, parece que matrice se torna, no francês do século XVIII, um termo bem mais universal que utérus. Ele aparece, por exemplo, em todo o capítulo 5 da História dos animais de Buffon, de 1749, que traz uma minuciosa exposição dos sistemas sobre a geração dos animais, e nas descrições de Lemery e Littre, renomados anatomistas da época que se dedicaram ao estudo do aparelho reprodutor feminino. No francês contemporâneo fixou-se o termo utérus e matrice aparece como termo "envelhecido", ou seja, "palavra, sentido ou expressão ainda compreensível em nossos dias, mas que não mais se emprega naturalmente na língua corrente falada" (Robert, 1994, p. XXIX). Tanto o Dicionário Houaiss (Houaiss & Villar, 2001) como o Novo Aurélio século XXI (Ferreira, 1999) oferecem o vocábulo útero para significar o órgão gerativo feminino. Porém, curiosamente, o Houaiss atribui como primeiro significado para matriz "órgão das fêmeas dos mamíferos, na cavidade pélvica, onde o embrião e posteriormente o feto se desenvolvem" e, como segundo emprego, o sentido geral de "lugar onde algo é gerado e/ou criado". Já no Aurélio o primeiro sentido de matriz é o geral, "lugar onde algo se gera", aparecendo o vocábulo como sinônimo de útero apenas para o 12 o sentido. é uma espécie de bolsa fechada no fundo, mas que apresenta à vagina um pequeno orifício que pode abrir e fechar e que é muito semelhante ao focinho de uma tenca,10 10 Tenca ou tinca ( Tinca sp) é um peixe de água doce da família dos Ciprinídeos que vive em rios da Europa. A estrutura que se assemelha ao focinho deste animal corresponde à cervix do útero com seu óstio externo. Há, no português de Portugal, o termo focinho de tenca para designar especificamente tal estrutura: "extremidade inferior do útero, que é perfurada e proeminente na vagina" (Costa e Melo, 1986). do qual alguns anatomistas deram-lhe o nome. O fundo da bolsa é atapetado por uma membrana que forma várias pregas, que lhe permitem estender-se à medida que o feto cresce, e que é salpicada por pequenos orifícios, pelos quais verossimilmente sai esse líquido que a fêmea verte na cópula.

Os antigos acreditavam que o feto era formado da mistura dos líquidos que cada um dos sexos verte. O líquido seminal do macho, lançado até o interior do útero, ali se mistura com o líquido seminal da fêmea; após essa mistura, os antigos já não encontravam dificuldade para entender como dela resultava um animal. Tudo era realizado por uma faculdade geradora.

Aristóteles, até onde se pode crer, não ficou mais inibido que os outros a respeito da geração: diferiu deles somente por acreditar que o princípio da geração residia apenas no líquido que o macho emite e que aquele que a fêmea emite servia apenas para a nutrição e para o crescimento do feto. O último desses líquidos, para usar seus termos, fornecia a matéria e, o outro, a forma.(i) (i) Aristot. de generat. animal. lib. ii. cap. iv. 11 11 Podemos identificar, de forma resumida, as afirmações de Maupertuis sobre a teoria da geração de Aristóteles nas seguintes passagens da obra citada:

CAPÍTULO III

Sistema dos ovos que contêm o feto

Durante uma longa seqüência de séculos, esse sistema satisfez os filósofos pois, apesar de alguma diversidade a respeito de alguns pretenderem que apenas um dos dois líquidos fosse a verdadeira matéria prolífica e que o outro só servisse para a alimentação do feto, todos se atinham a esses dois líquidos e atribuíam à sua mistura a grande obra da geração.

Novas pesquisas anatômicas permitiram descobrir, próximo do útero, dois corpos esbranquiçados constituídos por diversas vesículas arredondadas preenchidas por um líquido semelhante à clara do ovo. A analogia se apossou imediatamente deles: consideraram esses corpos como cumprindo, neste lugar, a mesma função dos ovários nas aves, e as vesículas que continham como verdadeiros ovos. Mas dado que os ovários estão situados fora do útero, como é possível que os ovos, mesmo que deles se desprendessem, fossem transportados à sua cavidade no interior da qual, se não se quer que o feto se forme, é pelo menos certo que tome seu crescimento? Fallopio12 12 Gabrielle Fallopio (1523-1562), anatomista italiano, foi aluno de Vesálio em Pádua e sucessor do anatomista Realdo Colombo (?-1559). Em sua única obra publicada, as Observationes anatomicae, de 1561, aparecem as descrições das trompas que receberam seu nome, além de outros importantes estudos da anatomia do aparelho reprodutor. Apesar de Maupertuis afirmar que as trompas servem de caminho para a condução dos ovos até o útero, Fallopio, segundo Roger, havia observado a distância de alguns centímetros que há entre o pavilhão da trompa em repouso e os ovários, concluindo assim que as trompas não podiam servir de canal para uma semente proveniente dos testículos femininos (Roger, 1993, p. 275). percebeu dois tubos, cujas extremidades, flutuantes no ventre, terminam em espécies de franjas que podem se aproximar do ovário, abraçá-lo, receber o ovo e conduzi-lo até o útero, onde esses tubos ou trompas têm sua desembocadura.

Por esse tempo, renascia a Física, ou, antes, tomava um novo rumo. Queria-se tudo compreender e acreditava-se poder fazê-lo. A formação do feto pela mistura dos dois líquidos já não satisfazia os físicos. Exemplos de desenvolvimento, que a natureza oferece por toda parte a nossos olhos, fizeram pensar que os fetos talvez estivessem contidos e já completamente formados no interior de cada um dos ovos; e que aquilo que se tomava por uma nova produção era apenas o desenvolvimento de suas partes, tornadas sensíveis pelo crescimento. Toda a fecundidade recaía sobre as fêmeas. Os ovos destinados a produzir machos continham cada um apenas um único macho. O ovo de onde devia sair uma fêmea continha não somente esta fêmea, mas continha-a com seus ovários, nos quais outras fêmeas contidas, e já inteiramente formadas, eram a fonte de infinitas gerações. Pois todas as fêmeas contidas deste modo umas nas outras, com tamanhos cada vez menores na proporção da primeira com seu ovo, inquietavam apenas a imaginação. A matéria, divisível ao infinito, forma tão distintamente em seu ovo o feto que deve nascer em mil anos, como aquele que deve nascer em nove meses. Sua pequenez, que o oculta a nossos olhos, não o furta das leis segundo as quais o carvalho, que se vê na bolota, se desenvolve e cobre a terra com seus ramos.

Entretanto, apesar de todos os homens estarem já formados nos ovos de mãe em mãe, eles ali estão sem vida: são apenas pequenas estátuas confinadas umas nas outras como essas obras do torno, nas quais o operário se deleita em fazer admirar a destreza de seu cinzel, formando cem caixas que, contidas umas nas outras, estão todas contidas na última. É preciso, para produzir homens dessas pequenas estátuas, alguma matéria nova, algum espírito sutil que, se insinuando em seus membros, lhes dê o movimento, a vegetação e a vida. Este espírito seminal é fornecido pelo macho e está contido neste líquido que verte com tanto prazer. Não seria esse o fogo que os poetas supuseram ter Prometeu roubado do céu para dar a alma aos homens que eram outrora apenas autômatos? E os deuses não deveriam estar enciumados desse roubo?

Para explicar agora como esse líquido lançado na vagina vai fecundar o ovo, a idéia mais comum, e aquela que se apresenta primeiro, é que ele penetra no útero, cuja boca, nesse momento, abre-se para recebê-lo; que do útero, uma parte, pelo menos a mais espirituosa, elevando-se pelos tubos das trompas, é levada até os ovários, que cada trompa então abraça, e penetra no ovo que ela deve fecundar.

Essa opinião, ainda que um tanto verossímil, está, entretanto, sujeita a várias dificuldades.

O líquido vertido na vagina, longe de mostrar-se destinado a penetrar mais adiante, dela volta a cair imediatamente, como todo mundo sabe.

Contam-se várias histórias de jovens que foram engravidadas mesmo sem a introdução daquilo que deve verter a semente do macho na vagina, por ter deixado somente espalhar esse líquido nas suas bordas. Pode-se pôr em dúvida esses fatos, que a vista do físico não pode de modo algum constatar, e sobre os quais seria preciso acreditar nas mulheres, sempre pouco sinceras sobre esse assunto.

Mas parece que há provas mais fortes de que não é necessário que a semente do macho entre no útero para tornar a fêmea fecunda. Nos úteros de fêmeas de vários animais dissecados após a cópula não se encontrou desse líquido.

Não se poderia, entretanto, negar que ele entre às vezes. Um famoso anatomista(i) (i) Verheyen. achou-o em abundância no útero de uma novilha que acabara de receber o touro.13 13 Philippe Verheyen (1648-1710) nasceu em Verbrouck e ingressou no Collége de la Trinité, em Louvain, em 1672. Entrou para o clero, mas abandonou o trabalho eclesiástico devido à perda de uma das pernas. Dedicou-se então à medicina, tornando-se professor de anatomia na Universidade de Louvain a partir de 1689 e de cirurgia a partir de 1693. Tornou-se doutor em 1695 pela mesma Universidade que ganhou notoriedade graças a seus estudos. Maupertuis toma as observações do autor como evidência a favor da chegada do sêmen até o útero. Verheyen está entre os autores que adotaram a preformação ovista e que atribuíram ao sêmen o poder de vivificar o embrião preformado, tal como Maupertuis explicou anteriormente e, assim, a prova anatômica da entrada do sêmen no útero é fundamental para sustentar a teoria. Tal fato é igualmente ou talvez ainda mais importante para apoiar a teoria da geração pela mistura das duas sementes, que é a base da teoria de Maupertuis. A obra de Verheyen em que aparece a observação do útero da novilha não é citada, mas pode-se inferir que ela esteja no Supllementum anatomicum, sive anatomie corporis humani liber secundus. Observações e discussões teóricas sobre o sêmen masculino aparecem em algumas referências feitas à essa obra por Roger (1993, p. 287, 314, 320), tomadas de uma edição de 1712. Buffon faz ainda, no capítulo 5 da Histoire des animaux, uma citação abreviada do " sup. Anat. tom. ii" como contendo os resultados de análises químicas a que Verheyen submeteu o sêmen do touro para decompô-lo em seus componentes mais elementares (Buffon, 1853 [1749], p. 48). E, apesar de haver poucos desses exemplos, um só caso em que se encontre a semente no útero prova mais que ela ali entra do que a multidão de casos em que dele não se encontrou prova de que ela não entra.

Aqueles que pretendem que a semente não entra no útero acreditam que, vertida na vagina ou somente espalhada em suas bordas, ela se insinua nos vasos, cujas pequenas bocas a recebem e a difundem nas veias da fêmea. Pouco depois, ela é misturada com toda a massa do sangue e ali excita todos os desconfortos que atormentam as mulheres recém-grávidas; mas, enfim, a circulação do sangue conduz a semente até o ovário e o ovo torna-se fecundo somente depois que todo o sangue da fêmea foi, por assim dizer, fecundado.

De qualquer maneira que o ovo seja fecundado, seja pela semente do macho que, conduzida imediatamente até ele, o penetre; seja porque, diluída na massa do sangue, nele chegue pelas rotas da circulação, essa semente, ou espírito seminal, colocando em movimento as partes do pequeno feto que já estão todas formadas no ovo, incita-os a desenvolverem-se. O ovo, até então fixamente ligado ao ovário, desprende-se, cai na cavidade da trompa, cuja extremidade, chamada pavilhão, abraça nesse momento o ovário para recebê-lo. O ovo percorre, seja só por sua gravidade, seja mais verossimilmente por algum movimento peristáltico da trompa, todo o comprimento do canal que o conduz enfim ao útero. Semelhantemente às sementes das plantas ou das árvores quando são recebidas numa terra própria a fazê-las vegetar, o ovo produz raízes que, penetrando até o interior da substância do útero, formam uma massa que lhe está intimamente ligada, chamada placenta. Na parte superior, as raízes não formam mais que um cordão que, indo terminar no umbigo do feto, transporta-lhe os sucos destinados ao crescimento. Ele vive assim do sangue de sua mãe, até que, não tendo mais necessidade dessa comunicação, os vasos que ligam a placenta ao útero se dessecam e dele se separam.

A criança, agora mais forte e pronta para aparecer à luz do dia, rasga a dupla membrana na qual estava envolvida, como se vê o pintainho, chegando ao momento de seu nascimento, quebrar a casca do ovo que o mantinha confinado. Que uma espécie de dureza que existe na casca dos ovos das aves não impeça a comparação de seus ovos com a criança encerrada em seu envoltório: os ovos de vários animais, das serpentes, dos lagartos e dos peixes não têm essa dureza e são recobertos apenas por um envoltório mole e flexível.

Alguns animais confirmam essa analogia e aproximam ainda mais a geração dos animais que chamamos vivíparos daquela dos ovíparos. Encontram-se nos corpos de suas fêmeas, ao mesmo tempo, ovos incontestáveis e filhotes já desembaraçados de seu envoltório.(i) (i) Mém. de l'Acad. des Scienc. an. 1727. p. 32. Os ovos de vários animais eclodem apenas muito tempo depois de terem saído do corpo da fêmea; os ovos de vários outros eclodem antes.14 14 Os animais que o texto aponta como capazes de confirmar a analogia entre vivíparos e ovíparos são as salamandras estudadas pelo próprio Maupertuis no início de sua carreira como naturalista. Os resultados desses estudos encontram-se em sua Mémoire de 1727, citada no texto, Observations et expériences sur une des espèces de salamandre: A natureza não parece anunciar desse modo que há espécies nas quais o ovo eclode apenas ao sair da mãe, mas que todas essas gerações chegam ao mesmo resultado?

CAPÍTULO IV

Sistema dos animais espermáticos

Os físicos e os anatomistas que, em matéria de sistema, são sempre fáceis de satisfazer, estavam satisfeitos com este: consideravam, como se o tivessem visto, o pequeno feto como formado dentro do ovo da fêmea antes de qualquer operação do macho. Mas o que a imaginação via assim no ovo, os olhos percebiam alhures. Um jovem físico(ii) (ii) Hartsoeker. ousou examinar ao microscópio esse líquido que não é ordinariamente objeto de olhos atentos, tranqüilos e serenos. Mas que espetáculo maravilhoso, logo que ali descobriu animais vivos! Uma gota era um oceano onde nadava uma multidão inumerável de pequenos peixes em mil direções diferentes.15 15 Este capítulo apresenta as observações pioneiras que Hartsoeker e Leeuwenhoek fizeram dos espermatozóides e introduz a discussão da versão animalculista da teoria da preexistência do germe. O primeiro autor citado no texto, Nicolas Hartsoeker (1656-1725), foi um físico e fabricante de instrumentos científicos holandês. Além de fabricante, escreveu também numerosos ensaios sobre as características e as propriedades dos instrumentos ópticos. Realizou um notável trabalho de divulgação dos conhecimentos científicos de sua época, sendo forte opositor das idéias de Newton. Em 1678, conheceu Huygens a quem escreveu um conjunto de cartas relatando suas observações microscópicas dos animálculos do sêmen. Nesse mesmo ano, Hartsoeker acompanhou Huygens em sua viagem de regresso a Paris, onde foi introduzido pelo já célebre companheiro nos círculos científicos da cidade. Trabalhou em Paris de 1684 a 1696 como fabricante de instrumentos científicos, principalmente lentes, microscópios e lunetas seus instrumentos foram utilizados pelos jesuítas e no observatório de Paris. Retornando à Holanda em 1696, tornou-se instrutor de Pedro, o Grande, em física. Hartsoecker admitiu a preexistência e o embutimento dos germes nos animálculos do esperma em seu Essay de dioptrique, de 1694. Nessa obra aparece o famoso desenho de um espermatozóide contendo um homúnculo abraçando as pernas e com uma enorme cabeça na verdade trata-se do desenho do que poderia ser visto hipoteticamente, segundo Hartsoecker, caso a pele do animálculo fosse removida. Leeuwenhoek, citado mais adiante por Maupertuis, e Hartsoecker são os personagens principais da complexa história da descoberta dos espermatozóides e da teoria da preexistência animalculista, história que se articula ainda a uma grande quantidade de autores e teorias. Uma reconstrução detalhada de tal história encontra-se em Roger (1993, Cap. ii, especialmente p. 293-322) e um interessante relato de época da mesma, feita por um dos grandes opositores da teoria da preexistência, encontra-se no já citado capítulo 5 da Histoire des animaux de Buffon (1853 [1749], p. 47-51).

Ele colocou no mesmo microscópio líquidos semelhantes retirados de diferentes animais, e sempre a mesma maravilha: uma multidão de animais vivos, apenas com figuras diferentes. Procurou-se no sangue e em todos os outros líquidos do corpo alguma coisa de semelhante, mas nada se descobriu, qualquer que fosse o poder do microscópio; sempre mares desertos nos quais não se percebia o menor sinal de vida.

Não se pode deixar de pensar muito que esses animais descobertos no líquido seminal do macho eram os que deviam um dia reproduzi-lo, pois, apesar de sua pequenez infinita e de sua forma de peixe, a mudança de tamanho e de figura pouco custa para um físico conceber e não custa mais para a natureza executar. Mil exemplos de um e de outro existem sob nossos olhos, de animais cujo último crescimento não parece guardar qualquer proporção com seu estado na ocasião de seu nascimento e cujas figuras desaparecem totalmente em novas figuras. Quem poderia reconhecer o mesmo animal, se não tivesse acompanhado bem atentamente, na pequena larva e no besouro sob a forma do qual ela aparece em seguida? E quem acreditaria que a maior parte dessas moscas adornadas com soberbas cores tinham sido antes pequenos insetos rastejando no lodo ou nadando nas águas?

Eis portanto toda a fecundidade, que havia sido atribuída às fêmeas, restituída aos machos. Esse pequeno verme que nada no líquido seminal contém uma infinidade de gerações de pai em pai; ele possui seu líquido seminal no qual nadam animais tão menores do que ele quanto ele é menor do que o pai do qual saiu; e assim é para cada um deles ao infinito. Mas que prodígio, se se considera o número e a pequenez desses animais! Um homem que esboçou um cálculo disso encontrou, a partir da primeira geração, mais lúcios do que homens sobre a Terra, se esta fosse em toda parte tão habitada quanto a Holanda.(i) (i) Lewenhoek. 16 16 Anthony van Leeuwenhoek (1632-1723), microscopista e naturalista autodidata holandês, deixou uma coleção de trabalhos extraordinariamente variada sobre a estrutura microscópica de cristais, minerais, plantas e animais. Funcionário municipal em Delf, consagrava seus momentos de descanso às observações microscópicas realizadas com instrumentos de sua própria fabricação. Foi por intermédio de seu compatriota, Regnier de Graaf, que suas valiosas observações foram enviadas na forma de cartas, a partir de 1673, à Royal Society, da qual tornou-se membro em 1684. Seus escritos foram publicados nos Philosophical Transactions e mais tarde reunidos em quatro volumes sob o título Arcana Naturae ope et beneficio exquesitissimorum microscopiorum detecta (1695-1722). Em novembro de 1677 Leeuwenhoek enviou à Royal Society a célebre carta na qual expõe a descoberta dos animálculos espermáticos. Mais adiante, nesse mesmo capítulo, Maupertuis apresenta as observações do autor sobre tais estruturas. A título de exemplo, apresentamos abaixo alguns dos cálculos realizados por Leeuwenhoek do número de animálculos que caberiam em uma polegada cúbica:

Mas se se consideram as gerações seguintes, que abismo de número e de pequenez! De uma geração a outra, os corpos desses animais diminuem na proporção do tamanho de um homem para aquele desse átomo que se descobre apenas ao melhor microscópio; seu número aumenta na proporção da unidade para o número prodigioso de animais espalhados nesse líquido.

Riqueza imensa, fecundidade sem limites da natureza, não sois aqui um desperdício? Não se poderia vos acusar de muita pompa e dispêndio? Dessa multidão prodigiosa de pequenos animais que nadam no líquido seminal, só um alcança a humanidade: raramente a mais grávida das mulheres dá à luz a duas crianças, quase nunca três. E, apesar das fêmeas de outros animais produzirem um número maior, esse número é quase nada em comparação com a multidão de animais que nadam no líquido que o macho emitiu. Que destruição, que inutilidade parece mostrar-se aqui!

Sem discutir o que mais honra a natureza, uma economia precisa ou uma profusão supérflua, questão que exigiria que se conhecesse melhor suas intenções ou, antes, as intenções daquele que a governa, temos sob nossos olhos exemplos de uma conduta semelhante na produção das árvores e das plantas. Quantos milhares de bolotas caem de um carvalho, secando ou apodrecendo, para um pequeno número germinar e produzir uma árvore! Mas não se vê por isso mesmo que esse grande número de bolotas não foi inútil, pois, se aquele que germinou não o tivesse feito, não teria havido nenhuma nova produção, nenhuma geração?

É sobre essa multidão de animais supérfluos que um físico casto e religioso(ii) (ii) Wenhoek. fez um grande número de experiências, nenhuma das quais, pelo que ele nos assegura, jamais feita às custas de sua posteridade. Esses animais têm uma cauda e têm uma figura bastante semelhante àquela que tem a rã ao nascer, quando ainda está sob a forma desse peixinho negro chamado girino, dos quais as águas pululam na primavera. São inicialmente vistos em grande movimento, mas logo se tornam mais lentos; resfriando-se ou evaporando-se o líquido no qual nadam, eles perecem. Muitos outros perecem nos próprios lugares onde são colocados: perdem-se nos labirintos. Mas aquele que está destinado a se tornar um homem, que caminho ele toma? Como se metamorfoseia em feto?

Alguns lugares imperceptíveis da membrana interna do útero serão os únicos apropriados a receber o pequeno animal e a fornecer-lhe os sucos necessários para o seu crescimento. Esses lugares, no útero da mulher, serão mais raros do que nos úteros dos animais que produzem vários filhotes. O único animal ou os únicos animais espermáticos que encontram alguns desses lugares ali se fixarão, prender-se-ão a fios que formarão a placenta, e que, unindo-o ao corpo da mãe, transportam-lhe o alimento de que necessita. Os outros perecerão como os grãos semeados numa terra árida. Visto que o útero é de uma extensão imensa para esses animálculos, muitos milhares perecem sem poder encontrar algum desses lugares ou dessas pequenas cavidades destinadas a recebê-los.

A membrana na qual o feto se encontra será semelhante a um desses envoltórios que contém diferentes espécies de insetos sob a forma de crisálidas, na passagem de uma forma para outra.

Para compreender as mudanças que podem ocorrer com o pequeno animal encerrado no útero, podemos compará-lo com outros animais que sofrem mudanças igualmente grandes e cujas mudanças acontecem sob nossos olhos. Se essas metamorfoses merecem ainda nossa admiração, elas já não devem pelo menos nos causar surpresa.

A borboleta, e várias espécies de animais semelhantes, são inicialmente uma espécie de verme: um vive das folhas das plantas; outro, escondido sob a terra, rói as raízes. Após ter alcançando um certo crescimento sob essa forma, ele adquire uma outra; aparece sob um envoltório que, encerrando e escondendo as diferentes partes de seu corpo, o mantém num estado tão pouco semelhante ao de um animal que aqueles que criam bichos-da-seda chamam-no fava.17 17 O Grand Robert oferece como última acepção de feve, fava, "crisálida de bicho-da-seda" (Robert, 1985). O Aurélio indica que o vocábulo é usado como "designação comum a diversos objetos de configuração semelhante à da semente da fava" (Ferreira, 1999), mas não aparece, como no francês, a aplicação específica do termo à crisálida do bicho-da-seda. Os naturalistas chamam-no crisálida por causa de algumas manchas douradas com as quais ele é às vezes salpicado. Ele está nesse momento numa imobilidade perfeita, numa letargia profunda que mantém suspensas todas as funções de sua vida. Mas logo que o momento no qual ele deve reviver chega, rompe a membrana que o mantinha envolvido, estende seus membros, desenrola suas asas e exibe uma borboleta ou algum outro animal semelhante.

Alguns desses animais, que são tão temidos pelas jovens beldades que passeiam nos bosques, e aqueles que se vêem adejar à margem dos regatos, com longas asas, foram antes pequenos peixes; passaram a primeira parte de sua vida nas águas e delas saíram apenas quando chegaram à sua última forma.

Todas essas formas, que alguns físicos inábeis tomaram por verdadeiras metamorfoses, são, entretanto, apenas mudanças de pele. A borboleta estava inteira formada, e tal como a vemos voar em nossos jardins, sob o disfarce da lagarta.

Pode-se comparar o pequeno animal que nada no líquido seminal à lagarta ou ao verme? O feto no ventre da mãe, envolvido por sua dupla membrana, é uma espécie de crisálida e dela ele sai, como o inseto, para aparecer sob sua última forma?

Da larva à borboleta, do ventre espermático ao homem, parece que haveria alguma analogia. Mas o primeiro estado da borboleta não era o de lagarta: a lagarta já tinha saído de um ovo, e esse ovo talvez já era ele próprio apenas uma espécie de crisálida. Se se quisesse então levar adiante essa analogia, seria necessário que o pequeno animal espermático tivesse já saído de um ovo. Mas que ovo! De que pequenez ele deveria ser! De qualquer maneira, não é nem o grande nem o pequeno que devem aqui causar embaraço.

CAPÍTULO V

Sistema misto dos ovos e dos animais espermáticos

A maior parte dos anatomistas abraçou um outro sistema, que reúne os dois sistemas precedentes e que combina os animais espermáticos com os ovos. Eis como eles explicam a coisa.

Todo o princípio de vida residindo no pequeno animal, o homem completo ali estando contido, o ovo é ainda necessário: é uma massa de matéria própria para lhe fornecer seu alimento e seu crescimento. Nessa multidão de animais depositados na vagina, ou lançados no útero, um mais feliz, ou mais digno de lamento que os outros, nadando, rastejando nos fluidos com os quais estas partes estão umedecidas, consegue chegar à embocadura da trompa, que o conduz até o ovário. Aí, encontrando um ovo próprio para recebê-lo e para nutri-lo, penetra-o, nele se aloja e recebe os primeiros graus de seu crescimento. É assim que se vêem diferentes espécies de insetos penetrarem nos frutos dos quais se nutrem. O ovo picado se destaca do ovário, cai pela trompa no útero, ao qual o pequeno animal se liga pelos vasos que formam a placenta.

CAPÍTULO VI

Observações favoráveis e contrárias aos ovos

Acha-se nas Memórias da Academia Real de Ciências(i) (a) Ano 1701. observações que parecem muito favoráveis ao sistema dos ovos; quer sejam considerados como contendo o feto, mesmo antes da fecundação, quer como destinados a servir de alimento e de primeiro asilo ao feto.

A descrição que o Sr. Littre nos dá de um ovário que ele dissecou merece muita atenção. Ele encontrou um ovo na trompa; observou uma cicatriz na superfície do ovário que pretende ter sido feita pela saída de um ovo. Mas nada disso tudo é tão notável quanto o feto que ele afirma ter podido distinguir num ovo ainda ligado ao ovário.18 18 O médico e anatomista Alexis Littre (1658-1725) está, junto de Jean Méry, citado mais adiante, entre os mais renomados cirurgiões franceses da virada do século XVII. Estudou em Montpellier e em Paris, licenciando-se em medicina em 1690 e doutorando-se no ano seguinte. Suas aulas de anatomia, ministradas em Paris por quinze anos, foram bastante procuradas. Em 1699, tornou-se membro da Academia de Ciências, publicadando em seus periódicos, entre 1700 e 1720, mais de trinta trabalhos. Apresentamos a seguir um resumo das observações de Littre às quais Maupertuis se refere no texto. Primeiramente sobre a cicatriz ovárica,

Se esta observação fosse bem segura, ela provaria muito para os ovos. Mas a própria história da Academia do mesmo ano torna-a suspeita e opõe-lhe com eqüidade as observações do Sr. Mery, que a fazem perder muito de sua força.

Este encontrou, para uma cicatriz que Sr. Littre havia encontrado na superfície do ovário, um número tão grande delas no ovário de uma mulher que, se tivessem sido considerados como causadas pela saída de ovos, implicariam uma fecundidade extraordinária. Mas, o que é bem mais forte contra os ovos, ele encontrou, na própria espessura do útero, uma vesícula totalmente semelhante àquelas que se tomam por ovos.19 19 Jean Mery (1645-1722), nascido em Vatan (Berry), transferiu-se para Paris em 1663 e logo passou a praticar intenso estudo anatômico no hospital do Hôtel-Dieu, complementado pelo estudo de peças anatômicas em sua própria residência. Em 1681 foi nomeado cirurgião da rainha e, em 1685, cirurgião do Hôtel des Invalides, onde se tornaria primeiro cirurgião em 1700. A partir de então, dedicou-se exclusivamente às pesquisas anatômicas e aos trabalhos junto à Academia de Ciências. Estudou em particular o processo de nutrição fetal e a formação da hérnia, demonstrando que nela o peritônio não se rompe, mas forma o saco hernial. As observações de Mery a que Maupertuis se refere são comentadas e confrontadas com as de Littre no artigo escrito por Fontenelle para a Histoire de l'Académie Royale de 1701, Sur la génération de l'homme par des oeufs (Fontenelle foi responsável pela redação da Histoire até 1739). Citaremos primeiramente os dois parágrafos introdutórios do artigo que apresenta de forma clara e resumida a teoria ovista, tal como era aceita e entendida no início do século XVIII:

Algumas observações do Sr. Littre e de outros anatomistas, que encontraram algumas vezes fetos nas trompas, nada provam quanto aos ovos: o feto, de qualquer maneira que seja formado, deve se encontrar na cavidade do útero, e as trompas são apenas uma parte dessa cavidade.

O Sr. Mery não é o único anatomista que teve dúvidas sobre os ovos da mulher e de outros animais vivíparos: vários físicos consideram-nos como uma quimera. Não querem de modo algum reconhecer como verdadeiros ovos essas vesículas de que está formada a massa que os outros tomam por um ovário: esses ovos que se acharam por vezes nas trompas, e mesmo no útero, são, sustentam eles, apenas espécies de hidátides.20 20 Dentre as estruturas observáveis no ovário de vivíparos que foram identificadas aos ovos estão as que atualmente são designadas como cistos ováricos, cavidades preenchidas por líquido que podem aparecer em grande quantidade e com volume variado. Opositores do ovismo, como Mery, descreviam tais estruturas como hidátides, vesículas preenchidas por líquido que, além de não possuírem o conteúdo e a estrutura de um verdadeiro ovo, podiam ser encontradas em outros órgãos como nas trompas, no útero e mesmo nos testículos masculinos.

Experiências deveriam ter decidido esta questão, se é que em física houve alguma vez algo decidido. Um anatomista que fez muitas observações sobre as fêmeas de coelhos, Graaf, que as dissecou após vários intervalos de tempo decorridos depois que receberam o macho, pretende ter encontrado, ao cabo de vinte e quatro horas, mudanças no ovário; após um intervalo mais longo, pretende ter encontrado os ovos mais alterados; algum tempo depois, os ovos na trompa; nas fêmeas dissecadas um pouco mais tarde, ovos no útero. Enfim, ele afirma que sempre encontrou nos ovários vestígios de tantos ovos desprendidos quantos deles encontrou nas trompas ou no útero.(i) (i) Regnerus de Graaf, de mulierium organis. 21 21 Régnier de Graaf (1641-1673), médico e anatomista holandês, estudou em Leiden e na Universidade de Angers, onde obteve o título de doutor. Posteriormente, estabeleceu-se como médico prático em Delft como católico não pôde lecionar na universidade protestante de Leiden. Sua obra versa principalmente sobre anatomia e fisiologia, tendo obtido o doutorado com um estudo sobre a secreção pancreática introduziu a técnica de coletar amostra da secreção em cães por meio de uma cânula inserida no ducto pancreático. Mas são seus estudos sobre os sistemas reprodutores masculino e feminino que lhe proporcionaram maior notoriedade, sobretudo aqueles de anatomia e fisiologia comparada dos ovários de mamíferos e aves. A "descoberta" dos ovos dos mamíferos é frequentemente atribuída a Graff, mas os estudos a que a Vênus física se referem mostram o quão polêmica era a questão ainda no século XVIII (a solução final, com a descoberta dos óvulos no ovário, viria apenas no século XIX com os estudos de von Baer). O título completo da obra citada por Maupertuis é De mulierum organis generationi inservientibus tratactus novus, demonstrans tam homines et animalia caetera amnia, quae vivipara dicuntur, haud minus quam ovipara, ab ovo originem ducere. Publicada em 1672, ela contém as famosas dissecações de coelhas que Maupertuis apresenta sumariamente. Em seu programa de observações anatômicas, Graaf dissecou primeiramente "uma [coelha] que nunca estivera sob o macho. [...] [seus] testículos [...] encerravam uma grande quantidade de ovos bem límpidos e claros dos quais saía, após abertos, um líquido viscoso como a clara do ovo" (Graaf, 1991, p. 33). Em seguida, dissecou fêmeas a intervalos de tempo cada vez maiores após a cópula (meia hora, 6h , 24h, 27h , 48h, 52h e 72 h, de 4 até 10 dias, 12 dias e 14 dias). Um resumo das observações feitas nas coelhas dissecadas 5, 12 e 14 dias após a cópula podem ilustrar a descoberta de Graaf de que o número de "vestígios" causados pela saída dos ovos dos ovários é igual ao número de ovos (ou de embriões) presentes no útero:

Mas um outro anatomista tão exato e pelo menos tão fiel, predisposto ao sistema dos ovos, e mesmo o dos ovos prolíficos que já contêm o feto antes da fecundação, Verheyen quis fazer as mesmas experiências e não obteve o mesmo êxito. Viu alterações ou cicatrizes no ovário, mas enganou-se quando quis julgar por elas o número de fetos que estavam no útero.22 22 Como aconteceu anteriormente no capítulo iii, Maupertuis não indica aqui a obra de Verheyen de onde obteve as informações citadas, mas ela também pode ser identificada no capítulo 5 da Histoire des animaux, na parte em que Buffon discute a mesma questão, a saber, o desacordo entre as observações de Graaf e de Verheyen:

CAPÍTULO VII

Experiências de Harvey

Todos esses sistemas tão brilhantes e mesmo tão verossímeis que acabamos de expor, parecem destruídos pelas observações que haviam sido feitas anteriormente e às quais parece que não se soube dar muito peso: são aquelas desse grande homem a quem a anatomia deve mais que a todos os outros apenas por sua descoberta da circulação do sangue.

Carlos i, rei da Inglaterra, príncipe curioso e amante das ciências, para colocar seu anatomista em condições de descobrir o mistério da geração, deu-lhe todas as corças e cervos de seus parques. Harvey23 23 Maupertuis passa a relatar as experiências de William Harvey (1578-1657). Após sua formação em filosofia em Cambridge, Harvey realizou uma série de viagens e chega a Pádua em 1597, onde se associou aos estudantes reunidos em torno de Fabrizio d'Acquapendente. Após quatro anos de estudo, doutorou-se em medicina e retornou à Inglaterra em 1602 para exercer a profissão em Londres. Foi eleito, em 1615, membro do Royal College of Physicians. Após vários sucessos na carreira, foi nomeado, em 1618, médico do rei Jaime i e, depois, em 1625, de Charles i, com quem Harvey estabeleceu uma forte e leal amizade. Durante a guerra civil, deixou Londres junto com o rei sua casa foi saqueada e suas coleções destruídas. Foi então nomeado professor em Oxford, mas a cidade também foi posteriormente capturada pelo exército parlamentar após a derrota de Charles i. Harvey retirou-se então para a vida privada até sua morte. Sua famosa obra sobre a circulação do sangue foi publicada em 1628, um pequeno livro com 72 páginas intitulado Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus. Os estudos sobre a geração dos animais, aqueles a que Maupertuis se refere, estão nas suas Exercitationes anatomicae de generatione animalium, publicadas apenas em 1651, quando o autor contava com 73 anos. De forte inspiração aristotélica, a obra estabelece o ovo como a unidade reprodutiva universal dos animais: todos os animais provém de um primordium oviforme que, no caso dos vivíparos, é um conceptus, identificado ao feto com suas membranas embrionárias. Os ovíparos produzem um ovo "típico" em seus ovários e nos vivíparos o ovo é produzido no útero da fêmea. Mas o que mais interessa a Maupertuis das pesquisas de Harvey é a explicação epigenética da geração, pois ele a utilizará, como ficará claro na seqüência do texto, tanto para apoiar sua própria teoria, baseada na mistura das duas sementes, quanto para combater a preexistência dos germes. realizou um massacre científico; mas suas experiências deram-nos alguma luz sobre a geração? Ou, antes, não espalharam elas sobre essa matéria trevas mais espessas?

Imolando todos os dias, para o progresso da física, alguma corça na época em que recebe o macho, dissecando seus úteros e examinando tudo com os olhos mais atentos, Harvey nunca achou algo que se assemelhasse com o que Graaf pretende ter observado, nem com o que os sistemas dos quais acabamos de falar parece poder concordar.

Ele nunca encontrou no útero líquido seminal do macho; jamais ovos nas trompas; jamais alterações no pretenso ovário, que ele chama, como muitos outros anatomistas, o testículo da fêmea.24 24 O termo é aplicado, por exemplo, na descrição anatômica dos órgãos reprodutores femininos das corças: "os dois cornos do útero juntamente com os testículos e todos os outros vasos do útero estão conectados às partes adjacentes" (Harvey, 1981 [1651], p. 343). Vimos este mesmo uso de testículo para designar a gônada feminina nas experiências de Graaf com as coelhas na nota 21.

As primeiras mudanças que ele percebeu nos órgãos da geração foram no útero: encontrou essa parte inchada e mais mole que de costume. Nos quadrúpedes ela mostra-se dupla; embora tenha apenas uma única cavidade, seu fundo forma como dois redutos, que os anatomistas chamam seus cornos, nos quais se encontram os fetos. Foram principalmente esses locais que parecem os mais alterados. Harvey observou várias excrescências esponjosas, que comparou aos bicos das mamas das mulheres. Cortou algumas delas, que encontrou salpicadas de pequenos pontos brancos cobertos por uma matéria viscosa. O fundo do útero que formava suas paredes estava inchado e tumefacto como os lábios das crianças quando picados por abelhas, e tão mole que parecia de uma consistência semelhante à do cérebro. Durante os meses de setembro e outubro, época na qual as corças recebem o cervo, todos os dias, e por experiências de vários anos, eis tudo o que Harvey descobriu sem nunca perceber em todos esses úteros uma só gota de líquido seminal, pois pretende estar seguro de que uma matéria purulenta que encontrou no útero de uma corça, separada do cervo por vinte dias, não era o líquido.

Aqueles a quem ele comunicou suas observações sustentaram que, e talvez ele mesmo o temesse, as corças que dissecou não haviam sido cobertas. Para convencê-los, ou para se assegurar, encerrou doze delas após o cio num jardim cercado; dissecou algumas, nas quais não encontrou mais vestígios da semente do macho do que antes; as outras geraram enhos. De todas essas experiências, e de muitas outras feitas com fêmeas de coelhos, cães e outros animais, Harvey conclui que a semente do macho não permanece e nem mesmo entra no útero.

No mês de novembro, o tumor do útero estava diminuído, as carúnculas esponjosas tornaram-se flácidas. Mas, o que foi um novo espetáculo, fios delgados, estendidos de um corno a outro do útero, formavam uma espécie de rede, parecidas com teias de aranha; e, insinuando-se entre as pregas da membrana interna do útero, eles se entrelaçavam ao redor das carúnculas, quase como se vê a pia-máter percorrer e abraçar os contornos do cérebro.

Essa rede logo formou uma bolsa, cujas partes externas estavam revestidas por uma matéria fétida; o interior, liso e polido, continha um líquido semelhante à clara do ovo, no qual nadava um outro envoltório esférico cheio de um líquido mais claro e cristalino. Foi dentro desse líquido que se percebeu um novo prodígio. Não era um animal totalmente organizado, como se deveria esperar segundo os sistemas precedentes: era o princípio de um animal, um ponto vivo,(i) (i) Punctum saliens. antes que alguma das outras partes estivesse formada. Vê-se que salta e pulsa dentro do líquido cristalino, absorvendo seu crescimento de uma veia que se perde no líquido onde ele nada; ele pulsava ainda quando exposto aos raios do Sol, e Harvey fê-lo ver ao rei.25 25 A descrição de Harvey é a seguinte:

As partes do corpo logo vêm a ele se juntar, mas em diferente ordem e em tempos diferentes. De início, é apenas uma mucilagem dividida em duas pequenas massas, uma das quais forma a cabeça e a outra o tronco. Pelo fim de novembro, o feto está formado e toda essa admirável obra, tão logo tenha uma vez começado, completa-se muito rapidamente. Oito dias após o primeiro aparecimento do ponto vivo, o animal está tão avançado que é possível reconhecer-lhe o sexo. Mas, uma vez mais, esta obra se faz apenas por partes: as internas são formadas antes das externas; as vísceras e os intestinos são formados antes de serem cobertos pelo tórax e pelo abdômen; e essas últimas partes, destinadas a pôr as outras a coberto, parecem acrescentadas apenas como um telhado ao edifício.

Até aqui não se observa qualquer aderência do feto ao corpo da mãe. A membrana que contém o líquido cristalino no qual ele nada, que os anatomistas chamam âmnio, nada ela própria no líquido que está contido no córion, que é essa bolsa que vimos formar-se em primeiro lugar; e o todo está no útero sem nenhuma aderência.

No começo de dezembro, descobre-se o uso das carúnculas esponjosas das quais falamos, que se observam na superfície interna do útero e que comparamos com os bicos das mamas das mulheres. Estas carúnculas estão ainda colocadas contra o envoltório do feto apenas pela mucilagem da qual estão cheias; mas elas logo a ele se unem mais intimamente ao receberem os vasos que o feto produz e que servem de base à placenta.

Todo o resto já não é mais que diferentes graus de crescimento que o feto recebe cada dia. Enfim, tendo chegado o momento em que deve nascer, ele rompe as membranas nas quais estava envolvido; a placenta se destaca do útero e o animal, saindo do corpo da mãe, vem à luz. As fêmeas dos animais, mastigando elas mesmas o cordão dos vasos que ligavam o feto à placenta, destroem uma comunicação tornada inútil; as parteiras fazem uma ligadura nesse cordão e cortam-no.

Eis quais foram as observações de Harvey. Elas parecem tão pouco compatíveis com o sistema dos ovos e com aquele dos animais espermáticos que se eu as tivesse contando antes de expor esses sistemas, temeria que elas muito predisporiam contra eles e impedissem de escutá-los.

Em vez de ver crescer o animal por intussuscepção de uma nova matéria, como deveria acontecer se ele estivesse formado no ovo da fêmea, ou se fosse o pequeno verme que nada na semente do macho, trata-se aqui de um animal que se forma pela justaposição de novas partes.26 26 Intussuscepção designa o modo de crescimento dos organismos vivos, por transformação e assimilação de matéria "de dentro para fora", em contraste com justaposição, que é o crescimento por aposição de partes, "de fora para dentro", tal como se observa sobretudo nos cristais. Contudo, acreditamos que há uma importante diferença entre a interpretação de Maupertuis e a de Harvey acerca destes dois processos de crescimento. Certamente Harvey entende que o feto cresce pela justaposição de novas partes, e não pela intussuscepção de matéria em um embrião já formado. Mas estas novas partes que vão se justapondo são geradas in loco, ou seja, são produzidas no próprio sítio de formação do embrião. Bem ao contrário, para Maupertuis essas partes que se justapõem são novas em relação ao feto, mas elas já estão preformadas pelo processo de pangênese e, assim, não são formadas in loco. Harvey vê primeiro formar-se o saco que o deve conter; e esse saco, em vez de ser a membrana de um ovo que se dilataria, produz-se sob seus olhos como um tecido do qual ele observa o progresso. Primeiramente são apenas fios estendidos de uma extremidade a outra do útero; esses fios se multiplicam, se estreitam e formam, enfim, uma verdadeira membrana. A formação desse saco é uma maravilha que deve acostumar-nos a outras.

Harvey não fala da formação do saco interior, do qual, sem dúvida, ele não foi testemunha, mas viu o animal que ali nada se formar. Ele é de início apenas um ponto, mas um ponto que tem vida e ao redor do qual se arranjam todas as outras partes, para logo formar um animal.(i) (i) Guillelm. Harvey, de cervarum & damarum coïtu. Exercit. lxvi. 27 27 Os estudos de Harvey sobre os vivíparos, realizados com as corças, estão nos Exercícios ( Exercitationes) 63 a 70 do De generatione. A exposição resumida que Maupertuis faz desses estudos começa no Exercício 67, no qual Harvey descreve as primeiras alterações no útero das corças fecundadas, e vai até o Exercício 70, no qual as fases finais do desenvolvimento são descritas. Mas a formação da membrana que posteriormente envolverá o punctum saliens que Maupertuis comenta no texto está descrita no Exercício 69 e nada tem a ver com o citado Exercício 66, De cervarum & damarum coïtu ( Sobre o coito das cervas e corças), que descreve o comportamento de cópula dessas animais.

CAPÍTULO VIII

Opinião de Harvey sobre a geração

Todas essas experiências, tão opostas aos sistemas dos ovos e dos animais espermáticos, pareceram a Harvey destruir o próprio sistema da mistura das duas sementes, pois esses líquidos de modo algum se encontravam no útero. Esse grande homem, desesperando de dar uma explicação clara e distinta da geração, ficou limitado a arranjar-se com comparações: diz que a fêmea é tornada fecunda pelo macho como o ferro, após ter sido tocado pelo ímã, adquire a virtude magnética; ele faz sobre essa impregnação uma dissertação mais escolástica que física e acaba por comparar o útero fecundado ao cérebro, do qual, nesse caso, ele imita a substância. Aquele concebe o feto, como o outro as idéias que nele se formam; explicação estranha que deve muito humilhar aqueles que desejam penetrar os segredos da natureza!28 28 Tais idéias encontram-se, por exemplo, na seguinte passagem:

É quase sempre a resultados semelhantes que as pesquisas mais profundas conduzem. Faz-se um sistema satisfatório enquanto se ignoram os sintomas do fenômeno que se quer explicar: tão logo eles são descobertos, vê-se a insuficiência das razões que se oferecia, e o sistema se desfaz. Se acreditamos saber alguma coisa, é apenas porque somos muito ignorantes.

Nosso espírito parece destinado a raciocinar apenas sobre as coisas que nossos sentidos revelam. Os microscópios e as lunetas deram-nos, por assim dizer, sentidos para além de nossa capacidade, como se pertencesse a inteligências superiores, e que sem cessar revelam a insuficiência da nossa.

CAPÍTULO IX

Tentativas para fazer concordar essas observações com o sistema dos ovos

Mas seria permitido alterar um pouco as observações de Harvey? Poderíamos interpretá-las de maneira a aproximá-las do sistema dos ovos ou dos vermes espermáticos? Poderíamos supor que algum fato escapou a esse grande homem? Não poderia acontecer, por exemplo, que um ovo desprendido do ovário tivesse caído no útero no momento em que se forma o primeiro envoltório, e aí tivesse sido encerrado; que o segundo envoltório fosse apenas a própria membrana desse ovo no qual estaria contido o pequeno feto, seja porque o ovo o contivesse antes mesmo da fecundação, como pretendem aqueles que crêem nos ovos prolíficos, seja porque o pequeno feto ali tivesse entrado sob a forma de um verme? Poder-se-ia crer, enfim, que Harvey estivesse enganado em tudo o que nos relata sobre a formação do feto; que membros já inteiramente formados lhe tivessem escapado por causa da sua moleza e transparência e que ele os tivesse tomado por partes recentemente acrescentadas, quando não teriam senão se tornado mais sensíveis por seu crescimento? O primeiro envoltório, essa bolsa que Harvey viu formar-se da maneira que ele relata, também seria muito embaraçosa. Teria sua organização primitiva escapado ao anatomista ou teria ela se formado sozinha da matéria viscosa que sai dos mamilos do útero, como a nata que se forma sobre o leite?

CAPÍTULO X

Tentativas para fazer concordar essas observações com o sistema dos animais espermáticos

Se se quiser aproximar as observações de Harvey do sistema dos pequenos vermes, mesmo que, como ele pretende, o líquido que os transporta não entre no útero, seria bem fácil para qualquer um deles ali se introduzir, visto que seu orifício se abre na vagina. Poder-se-ia agora propor uma nova conjectura, que poderá parecer muito ousada para os anatomistas comuns, mas que não surpreenderá aqueles que estão acostumados a observar o comportamento e os procedimentos dos insetos, que são aqui os mais utilizáveis? O pequeno verme introduzido no útero não teria tecido a membrana que forma o primeiro envoltório, seja que ele tenha tirado de si próprio os fios que Harvey observou no início, e que estavam estendidos de uma extremidade à outra do útero, seja que ele tenha apenas arranjado sob essa forma a matéria viscosa que nela encontrou? Temos exemplos que parecem favorecer essa idéia. Muitos insetos, quando estão prestes a se metamorfosearem, começam a tecer ou formar de alguma matéria estranha um envoltório no qual ele se encerra. É assim que o bicho-da-seda forma seu casulo: assim que despe sua pele de verme, aquela que a sucede é a da fava ou da crisálida, sob a qual todos seus membros estão como que enfaixados e da qual só sai sob a forma de borboleta.

Nosso verme espermático, após ter tecido seu primeiro envoltório, que corresponde ao casulo de seda, nele se encerraria, se despiria e ficaria então sob a forma de crisálida, isto é, sob um segundo envoltório que seria apenas uma de suas peles. O líquido cristalino encerrado nesse segundo envoltório, no qual aparece o ponto animado, seria o próprio corpo do animal, mas transparente como o cristal e mole até a fluidez, no qual Harvey não teria reconhecido a organização. O mar lança freqüentemente em sua orla matérias viscosas e transparentes que não parecem muito mais organizadas que a matéria da qual falamos e que são, entretanto, verdadeiros animais. O primeiro envoltório do feto, o córion, seria obra sua; o segundo, o âmnio, seria sua pele.

Mas teríamos o direito de causar tais prejuízos a observações tão autênticas e de sacrificá-las assim a analogias e sistemas? Mas, por outro lado, para as coisas que são tão difíceis de observar, não poderíamos supor que algumas circunstâncias tivessem escapado ao melhor observador?

CAPÍTULO XI

Variedades nos animais

A analogia livra-nos da dificuldade de imaginar coisas novas e de uma dificuldade ainda maior, que é a de permanecer na incerteza. Ela agrada nosso espírito, mas agrada ela a natureza?

Há, sem dúvida, alguma analogia entre os meios que as diferentes espécies de animais utilizam para se perpetuar, pois, apesar da variedade infinita que existe na natureza, as mudanças nela nunca são súbitas. Mas, na ignorância em que estamos, corremos sempre o risco de tomar como vizinhas espécies tão distantes que esta analogia, que de uma espécie a outra muda apenas por nuanças insensíveis, perde-se ou pelo menos é irreconhecível nas espécies que queremos comparar.

Com efeito, que variedade não se observa na maneira pela qual diferentes espécies de animais se perpetuam!

O impetuoso touro, orgulhoso de sua força, não se diverte com carícias: lança-se instantaneamente sobre a novilha, penetra profundamente em suas entranhas e ali emite a grandes jatos o líquido que a deve tornar fecunda.

A rola, através de ternos gemidos, anuncia seu amor: mil beijos, mil prazeres precedem o último prazer.

Um inseto de asas longas(i) (i) Libélula, perla em latim. 29 29 O francês aplica os nomes populares "demoiselle" e "libellule" respectivamente para os odonatos que mantêm, em repouso, as asas paralelamente ou verticalmente ao dorso. Não pudemos identificar a razão para Maupertuis associar as "demoiselles" ao latim "perla". Parece que o termo latino, posteriormente utilizado para compor a nomenclatura científica de outra ordem de insetos, os plecópteros ou perlídeo (gênero Perla), foi anteriormente utilizado para designar os odonatos. persegue sua fêmea nos ares: agarra-a, abraçam-se, prendem-se um ao outro e pouco preocupados nesse momento do que lhes aconteça, os dois amantes voam juntos e se deixam levar pelos ventos.

Animais,(ii) (ii) Hist. des insectes do Sr. de Réaumur, tomo iv. que se desconheceu por muito tempo e que se tomou por galhas, estão bem longe de assim passear com seus amores. A fêmea, sob esta forma tão pouco semelhante à de um animal, passa a maior parte de sua vida imóvel e fixa contra a casca de uma árvore; ela fica coberta por uma espécie de escama que esconde seu corpo de todos os lados; uma fenda quase imperceptível é, para este animal, a única porta aberta à vida. O macho dessa estranha criatura não se assemelha em nada a ela; é um mosquito do qual ela não poderia ver as infidelidades e do qual espera pacientemente as carícias. Após o inseto alado ter introduzido seu aguilhão na fenda, a fêmea torna-se de uma tal fecundidade que parece que sua escama e sua pele não são mais que um saco repleto de uma multidão inumerável de filhotes.30 30 A partir daqui, Maupertuis passa a utilizar as Mémoires pour servir a l'histoire des insectes de Réaumur como fonte para suas próprias considerações acerca da biologia reprodutiva dos insetos. René Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757) formou-se em direito em Paris, mas abandonou a carreira jurídica para dedicar-se integralmente às ciências naturais. Sustentado por uma fortuna que recebeu como herança, pôde dedicar-se aos estudos de forma privada, o que não o impediu de ser recebido como membro da Académie des Sciences. Realizou estudos sobre a dilatação dos gases e sobre o calor específico, sendo conhecido pela invenção da escala termométrica dividida em 80 graus que leva seu nome. Suas pesquisas sobre o mundo vivo são também variadas e importantes. Estudou, entre outras coisas, o processo de secreção das conchas dos moluscos, a produção de eletricidade das raias, a ação dos sucos digestivos em vertebrados e o processo de regeneração nos crustáceos. Sua obra mais famosa é, entretanto, o monumental estudo em seis volumes sobre os insetos acima citado. Os animais tratados nesta parte do texto são, tal como Maupertuis os designa logo adiante, os gallinsectes. Trata-se de pequenos insetos homópteros da família Coccidae cujas fêmeas, em muitas das espécies, não possuem olhos, patas e asas e são recobertas por uma cera secretada ou uma escama em forma de concha. Muitas espécies são importantes pragas agrícolas. O nome popular mais comum em português para estes animais é cochonilha, termo que preferimos utilizar no lugar de "inseto-galha"; este último, que seria a tradução "ao pé da letra" do francês, poderia confundir-se com os "insetos de galha", termo aplicado para designar outros tipos de insetos (sobretudo vespas e moscas) que colocam seus ovos em tecidos vegetais, causando a produção de um intumescimento típico na planta chamado galha. Apresentamos abaixo uma síntese das informações sobre as cochonilhas a que Maupertuis se refere, presentes no volume 4 das Mémoires pour servir a l'histoire des insectes:

A cochonilha não é a única espécie de animal cujo macho voa nos ares, enquanto a fêmea, sem asas e de figura totalmente diferente, rasteja sobre a terra. Esses diamantes dos quais reluzem os matagais durante as noites de outono, os vermes luminosos, são as fêmeas de insetos alados que se perderiam verossimilmente na escuridão da noite não fossem guiados pelo pequeno facho que elas trazem.(i) (i) Hist. de l'Acad. des Scienc. an. 1723. 31 31 Maupertuis refere-se aqui ao artigo Sur la lumière des dails, que integra a Histoire de l'Académie Royale des Sciences para o ano de 1723. O artigo comenta um estudo de Réaumur, publicado nas Mémoires do mesmo ano, sobre a luminosidade produzida por moluscos denominados "dails", provavelmente Pholas dactylus, um bivalve marinho fosforescente que, no escuro, brilha com uma luz verde-azulada. Nesse contexto, é feita, no parágrafo final, uma breve referência aos vermes luminosos:

Falarei de animais cuja figura inspira o desprezo e o horror? Sim: a natureza não tratou nenhum deles como madrasta. O sapo mantém sua fêmea abraçada durante meses inteiros.

Enquanto vários animais são tão apressados em seus amores, o tímido peixe dele serve-se com uma moderação extrema; sem atrever-se a atacar sua fêmea, nem se permitir o menor contato, ele cansa de segui-la nas águas e se dá por muito feliz em ali fecundar seus ovos, após que ela os tenha eliminado.

Trabalham esses animais na geração de uma maneira tão desinteressada? Ou a delicadeza de seus sentimentos supre o que parece lhes faltar? Sim, sem dúvida; um olhar pode ser um gozo; tudo pode fazer a felicidade daquele que ama. A natureza tem o mesmo interesse em perpetuar todas as espécies: ela teria inspirado em cada uma o mesmo motivo; e esse motivo, em todas, é o prazer. É ele que, na espécie humana, faz tudo desaparecer diante de si; é ele que, apesar de mil obstáculos que se opõem à união de dois corações, de mil tormentos que devem segui-la, conduz os amantes ao objetivo que a natureza se propôs.(ii) (ii) . . . . . Ita capta lepore, Illecebrisque tuis omnis natura animantum, Te sequitur cupid, quo quamque inducere pergis. Lucret. lib. i. 32 32 "Inde ferae, pecudes persultant pabula laeta et rapidos tranant amnis: ita capta lepore te sequitur cupide quo quamque inducere pergis" "Depois as feras, os rebanhos percorrem os alegres pastos e atravessam a nado os rápidos rios: assim tomada pelo encanto desejosamente cada uma segue aonde quer que a leves." ( De rerum natura, i, 15; Lucrécio, 1982, p. 2).

Se os peixes parecem colocar tanta delicadeza em seu amor, outros animais levam o seu até a mais desregrada orgia. A abelha rainha tem um harém de amantes e satisfaz a todos eles. Ela esconde em vão a vida que leva no interior de suas muralhas; em vão ela enganara até mesmo o sábio Swarmerdam: um ilustre observador(iii) (iii) Hist. des insect. do Sr. de Réaumur, t. v. p. 504. convenceu-se por seus próprios olhos de suas prostituições. Sua fecundidade é proporcional a sua intemperança; ela torna-se mãe de 30 a 40 mil filhos.33 33 O tomo 5 das Mémoires pour servir a l'histoire des insectes trata da reprodução das abelhas e nele Réaumur discute as idéias de Swammerdam sobre o assunto. Jam Swammerdam (1637-1680), começou seus estudos naturalistas em sua cidade natal, Amsterdã. Ingressou na Universidade de Leiden em 1661 e adquiriu fama por sua habilidade como dissecador. Após um período de estudos em Paris, volta a Leiden e gradua-se em 1667 com um estudo sobre a respiração. Além desta tese inaugural, Swammerdan publicou em vida um estudo sobre a anatomia e a vida dos insetos (1669), sobre a estrutura do útero (1672) e sobre o ciclo de vida das efemerópteras (1675). Após sua morte, o primeiro e o último destes estudos foram reunidos junto a um considerável corpo de material inédito para constituir a Biblia naturae, publicada em 1737, cujo título foi criado por seu editor, Boerhaave. É bem provável que a breve referência de Maupertuis a Swammerdam tenha sido feita a partir do texto de Réaumur, no qual aparece um confronto entre suas observações sobre a fecundação da abelha rainha, apresentadas resumidamente por Maupertuis, com a explicação de Swammerdam, que é consistente com a noção de preexistência do germe:

Mas a quantidade dessa população não é o que há de mais maravilhoso; é o de não ser restrita a dois sexos, como os outros animais. A família da abelha é composta por um pequeníssimo número de fêmeas, cada uma delas destinadas a ser, como ela, a rainha de um novo enxame, com cerca de dois mil machos e um número prodigioso de neutros, moscas sem nenhum sexo, infelizes escravos destinados apenas a fazer o mel, nutrir os filhotes desde que eclodem e sustentar com seu trabalho o luxo e a abundância da colméia.

Entretanto, chega uma época em que os escravos se revoltam contra aqueles a quem tão bem serviram. Assim que os machos saciaram a paixão da rainha, parece que ela ordena sua morte e os abandona à fúria dos neutros. Muito mais numerosos que os machos, eles executam um horrível massacre e essa guerra só termina quando o último macho do enxame tiver sido exterminado.

Eis uma espécie de animal bem diferente de todos aqueles de que falamos até aqui. Nos primeiros, dois indivíduos formavam a família, se ocupavam, e eram suficientes, para perpetuar a espécie; no presente caso, a família tem apenas uma única fêmea, enquanto que o sexo do macho apresenta-se repartido entre milhares de indivíduos e milhares, ainda muito mais numerosos, carecem absolutamente de sexo.

Em outras espécies, pelo contrário, os dois sexos se acham reunidos em cada indivíduo. Cada caracol tem ao mesmo tempo as partes do macho e as da fêmea; esses animais prendem-se um ao outro, entrelaçam-se por longos cordões que são seus órgãos da geração e, após esse duplo acasalamento, cada caracol põe seus ovos.

Não posso omitir uma singularidade que se acha nesses animais. Perto da época de seu acasalamento a natureza arma cada um com um pequeno dardo, formado de uma matéria dura e crustácea(i) (i) Heister de cochleis. . Algum tempo depois, esse dardo cai por si só, sem dúvida depois do uso para o qual serviu.34 34 Na Table de matières que aparece no final da edição de 1745 da Vênus física há uma errata para esta nota: "p. 78, à nota: Heister, leia Lyster" (Maupertuis, 1745, p. 194) e, assim, a citação correta é "Lyster de cochleis". A correção é fundamental, pois sem ela é impossível recuperar a fonte da qual Maupertuis tomou as informações sobre o comportamento dos caracóis. Trata-se dos estudos sobre moluscos do médico e naturalista inglês Martin Lister (1638-1712). Doutorando-se em medicina em Oxford, em 1684, Lister mudou-se para Londres onde, a partir de 1697, atuou junto ao College of Physicians. Ocupou, de 1702 até sua morte, o cargo de segundo médico ordinário da rainha Ana. Como naturalista, Lister foi nomeado, em 1681, membro da Royal Society, da qual ocupou a presidência em 1685. Apresentou à sociedade grande quantidade de comunicações sobre história natural que foram publicadas em seus Proceedings. Lister publicou entre 1685 e 1692 um grande tratado sobre os moluscos, a Historia conchyliorum, dedicado aos moluscos terrestres, de água-doce e marinhos. Wilkins realizou um estudo em que procura identificar o provável método utilizado por Lister na produção dessa obra e, segundo o autor, "esse trabalho verdadeiramente monumental começou com um modesto volume [...] publicado pela primeira vez em 1685 sob o título de Cochleis, sob as custas do autor, para circular entre seus amigos" (Wilkins, 1957, p. 196). É este título, de cochleis, que aparece citado por Maupertuis. Mas é possível que, como aconteceu para outras obras referidas por Maupertuis, o título tenha sido abreviado e refere-se a alguma edição mais acessível da obra de Lister. Mas qual é esse uso? Qual é o ofício desse órgão passageiro? Talvez esse animal, tão frio e tão lento em todas suas operações, tenha necessidade de ser excitado por essas picadas? Pessoas congeladas pela idade ou cujos sentidos estão embotados, às vezes recorreram a meios tão violentos para nelas despertar o amor. Infelizes! Vós que procurais excitar pela dor sentimentos que devem nascer apenas da volúpia, permanecei na letargia e na morte. Poupai-vos de tormentos inúteis: não é de vosso sangue que Tíbulo disse que Vênus havia nascido.(ii) (ii) . . . . . . . . Is sanguine natam Is Venerem, & rapido sentiat esse mari. Tibull. lib. i. Eleg. ii. 35 35 "nam fuerit quicumque loquax, is sanguine natam, is Venerem e rabido sentiet esse mari" "Pois todo aquele que for loquaz, este perceberá que Vênus nasceu com sangue e que ela é do mar que arrebenta." ( Elegia i, 2, 39-40; Tíbulo, 1995, p. 200). É preciso aproveitar com tempo os meios que a natureza vos deu para serdes felizes; ou, se tiverdes aproveitado desses meios, não procureis prolongar-lhes o uso além do limite que ela prescreveu. Em vez de irritar as fibras de vosso corpo, consolai vossa alma do que ela perdeu.

Entretanto, seríeis mais desculpável ainda do que esse rapaz que, numa mistura bizarra de superstição e de galanteria, rasga a pele com mil golpes aos olhos de sua amante para dar-lhe provas dos tormentos que por ela pode sofrer e como garantia dos prazeres que a fará experimentar.

Jamais terminaria de falar em tudo o que a atração por essa paixão fez os homens imaginarem para fazê-la exceder ou para prolongar-lhe o uso. Inocente caracol, sois talvez o único para quem esses meios não são criminosos, pois eles são em vós apenas os efeitos da ordem da natureza. Recebei e devolvei mil vezes os golpes desses dardos com que ela vos armou. Os que ela reservou para nós são cortejos e olhares.

Apesar desse privilégio que tem o caracol de possuir ao mesmo tempo os dois sexos, a natureza não quis que eles pudessem privar-se uns dos outros; são necessários dois para perpetuar a espécie.(i) (i) Mutuis animis amant, amantur. Catull. Carm. xliii. 36 36 "nunc ab auspicio bono profecti mutuis animis amant amantur" ( Poemas, 45, 19-20; Catulo, 1995, p. 54). Com bom auspício então eles partiram,/ com mútuas almas amam-se um ao outro" (trad. de João Ângelo Oliva).

Mas eis um hermafrodita bem mais perfeito. É um pequeno inseto muito comum em nossos jardins que os naturalistas chamam pulgão. Sem qualquer acasalamento, eles produzem seu semelhante, dão à luz um outro pulgão vivente.37 37 Os pulgões ou afídios (da família Aphidae) são insetos homópteros que incluem muitas espécies que se reproduzem por partenogênese, ou seja, o processo no qual o embrião se desenvolve a partir de um óvulo não fecundado. Leeuwenhoek foi o primeiro a observar, em 1695, o fenômeno nos pulgões. Posteriormente ele foi estudado principalmente por Charles Bonnet e Réaumur, além de outros naturalistas. A existência de animais que se reproduzem sem a necessidade de um macho foi utilizada, como era de se esperar, para sustentar empiricamente a preexistência ovista. Não se poderia acreditar nesse fato maravilhoso se ele não tivesse sido visto pelos naturalistas mais fidedignos e se não tivesse sido constatado pelo Sr. Réaumur, a quem nada do que está na natureza escapa, mas que nunca vê nela mais do que existe.

Tomou-se um pulgão saindo do ventre de sua mãe ou de seu pai, foi separado cuidadosamente de todo comércio com qualquer outro e foi nutrido em um vaso de vidro bem fechado: viu-se o dar à luz a um grande número de pulgões. Um destes foi apanhado saindo do ventre do anterior e encerrado como sua mãe: ele logo produziu, como ela, outros pulgões. Obteve-se desse modo cinco gerações bem confirmadas sem qualquer acasalamento. Mas o que pode parecer uma maravilha tão grande como esta é que os mesmos pulgões que podem engendrar sem acasalamento também se acasalam muito bem quando querem.(ii) (ii) Hist. des insect. do Sr. de Réaumur, tom. vi. 38 38 As experiências de Réaumur estão relatadas e discutidas na Décima-terceira memória. Adição à história dos pulgões apresentada no terceiro volume. (Réaumur, 1742, p. 523-68).

Teriam esses animais, que produzem outros mesmo quando separados de todo animal de sua espécie, se acasalado no ventre de sua mãe? Ou quando um pulgão, ao se acasalar, fecunda um outro, fecundaria ele ao mesmo tempo várias gerações? Qualquer partido que se tome, qualquer coisa que se imagine, toda analogia é aqui violada.

Um verme aquático, chamado pólipo, possui meios ainda mais surpreendentes para se multiplicar. Como uma árvore produz ramos, um pólipo produz jovens pólipos; estes, logo que alcançam um certo tamanho, se separam do tronco que os produziu; mas, antes de se separaram, eles próprios freqüentemente produziram filhotes e todos esses descendentes de diferentes ordens prendem-se, ao mesmo tempo, ao pólipo ancestral. O autor dessas descobertas quis examinar se a geração natural dos pólipos a isso se reduzia e se eles não tinham anteriormente se acasalado. Ele empregou, para assegurar-se disso, os mais engenhosos e assíduos meios; precaveu-se contra todas as astúcias de amor que os mais estúpidos dos animais sabem às vezes utilizar tão bem quanto e melhor que os mais refinados. O resultado de todas suas observações foi que a geração desses animais ocorre sem qualquer espécie de acasalamento.

Mas poderia isso surpreender mais do que saber a outra maneira pela qual os pólipos se multiplicam? Falarei desse prodígio? Nele se acreditaria? Sim, ele é constatado por experiências e testemunhos que não permitem dele duvidar. Para que este animal se multiplique é preciso apenas cortá-lo em pedaços: o pedaço que contém a cabeça reproduz uma cauda, aquele no qual a cauda permaneceu reproduz uma cabeça e os pedaços sem cabeça e sem cauda reproduzem uma e outra. Hidra mais maravilhosa que a da fábula, pode-se abri-la em seu comprimento, mutilá-la de todas as maneiras; tudo é logo reparado e cada parte é um novo animal.(i) (i) Philosoph. transact. No. 567. A obra aparecerá e nela o Sr. TREMBLEY oferece ao público todas suas descobertas sobre esses animais. 39 39 Abraham Trembley (1710-1784) estudou inicialmente matemática em Genebra, sua cidade natal, e posteriormente na Holanda e na Inglaterra. Foi preceptor dos filhos do conde de Bentinck em Sorvliet (Holanda) e depois trabalhou para o Conde de Richmond, com quem viajou pela Europa. Viveu por muitos anos na Holanda, mas retornou a Genebra em 1757, onde foi nomeado bibliotecário e membro do Conselho. Manteve contato com cientistas franceses da época, em especial com Réaumur; foi membro correspondente da Académie de Sciences. Sua reputação como naturalista decorre principalmente de sua monografia sobre os pólipos de água-doce. Nesta obra oferece uma descrição detalhada de certo número de "espécies de pólipos", incluindo entre elas a hidra (nome popular do cnidário hidrozoário de água-doce estudado por Trembley; o termo geral "pólipo" ficou posteriormente reservado para designar a forma séssil dos cnidários). Estudou o comportamento locomotor, alimentar e reprodutivo desses organismos e foi o primeiro a reconhecer com clareza o caráter animal dos mesmos. Também realizou experimentos sistemáticos sobre a regeneração das hidras, que constitui o fenômeno discutido por Maupertuis. Os estudos de Trembley sobre os pólipos foram publicados em 1744 na obra Mémoires pour servir à l'histoire d'un genre de polypes d'eau douce, à bras en forme de cornes, cuja tradução inglesa foi publicada no mesmo ano nas Philosophical Transactions of the Royal Society of London, tal como cita Maupertuis. Na série de experimentos realizados sobre a regeneração Trembley cortou as hidras em vários planos e acompanhou minuciosamente a restituição dos órgãos nas partes seccionadas (um resumo do programa experimental de Trembley, organizado em uma tabela útil para consulta, encontra-se em Lenhoff & Lenhoff (1991, p. 54-5). Contrariamente à partenogênese, a regeneração dos pólipos trazia grande dificuldade à aceitação dos germes preexistentes.

O que se pode pensar dessa estranha espécie de geração, desse princípio de vida espalhado em cada parte do animal? Seriam esses animais apenas acúmulos de embriões, todos prontos para se desenvolverem desde que se lhes dê a chance? Ou meios desconhecidos reproduzem tudo o que falta às partes mutiladas? A natureza, que em todos os outros animais uniu o prazer ao ato que os multiplica, faria estes aqui sentir alguma espécie de volúpia quando são cortados em pedaços?

CAPÍTULO XII

Reflexões sobre os sistemas dos desenvolvimentos

A maioria dos físicos modernos, levado pela analogia com o que se passa nas plantas, onde a produção aparente de partes é apenas o desenvolvimento destas partes, já formadas no grão ou no bulbo, e não podendo compreender como um corpo organizado seria produzido, esses físicos querem reduzir todas as gerações a simples desenvolvimentos. Eles acreditam ser mais simples supor que todos os animais de cada espécie estavam contidos já totalmente formados em um único pai, ou em uma única mãe, do que admitir alguma nova produção.

Não lhes objetarei a pequenez extrema em que as partes desses animais deveriam encontrar-se nem a fluidez dos líquidos que nelas deveriam circular. Mas peço-lhes permissão para aprofundar um pouco mais seu sentimento e de examinar, 1o se o que se vê na produção aparente das plantas é aplicável à geração dos animais; 2o se o sistema do desenvolvimento torna a física mais clara do que ela seria admitindo novas produções.

Quanto à primeira questão, é verdade que se percebe no bulbo da tulipa as folhas e a flor já completamente formada e que sua produção aparente é apenas um verdadeiro desenvolvimento de suas partes, mas, se se quiser comparar os animais às plantas, a que isso se aplica? Será apenas ao animal já formado. O bulbo será apenas a própria tulipa; e como se poderiam provar que todas as tulipas que nela estão contidas deverão nascer dela? Assim, este exemplo das plantas, com o qual esses físicos contam tanto, não prova outra coisa a não ser que há um estado para a planta no qual sua forma ainda não é sensível a nossos olhos, mas no qual ela precisa apenas do desenvolvimento e do crescimento de suas partes para aparecer. Os animais possuem efetivamente um estado parecido, mas é antes desse estado que seria preciso saber o que eles seriam. Enfim, que certeza temos aqui a partir da analogia entre as plantas e os animais?

Quanto à segunda questão, se o sistema do desenvolvimento torna a física mais luminosa do que ela seria admitindo novas produções, é verdade que não se compreende como, a cada geração, um corpo organizado, um animal, pode se formar; mas compreende-se melhor como essa seqüência infinita de animais contidos uns dentro dos outros teria sido toda formada ao mesmo tempo? Parece-me que aqui se produz uma ilusão e que se crê resolver a dificuldade afastando-a. Mas a dificuldade permanece a mesma, a menos que não se julgue uma dificuldade maior conceber como todos esses corpos organizados teriam sido formados uns dentro dos outros, e todos em um só, do que acreditar que eles foram formados apenas sucessivamente.

Descartes acreditou, como os antigos, que o homem era formado pela mistura dos líquidos que os dois sexos vertem. Esse grande filósofo, em seu tratado do homem, acreditou poder explicar como, apenas com as leis do movimento e da fermentação, formar-se-ia um coração, um cérebro, um nariz, olhos etc.(i) (i) L'Homme de DESCARTES, & la formation du foetus. 40 40 Maupertuis remete a teoria da geração de Descartes ao Tratado do homem e ao Da formação do feto. Porém, no primeiro texto, Descartes apresenta uma explicação do funcionamento de um homem completo, estando na segunda obra a explicação propriamente dita de como são geradas, segundo as leis do movimento e da fermentação, as diversas partes do corpo. De qualquer forma, o Tratado do homem enuncia a suficiência do mecanicismo para explicar a vida do homem no que depende exclusivamente da extensão corporal, não sendo necessário conceber, para tanto,

A idéia de Descartes sobre a formação do feto pela mistura de duas sementes possui algo de notável e que predisporia a seu favor se razões morais pudessem aqui contribuir para alguma coisa, pois não se acreditará que ele a tenha adotado por complacência aos antigos nem por incapacidade de imaginar outros sistemas.

Mas se se acredita que o Autor da natureza não abandona a formação dos animais apenas às leis do movimento, se se acredita que seja preciso que ele coloque a mão diretamente e que tenha primeiramente criado todos esses animais contidos uns dentro dos outros, o que se ganhará em acreditar que ele os formou todos ao mesmo tempo? E o que perderá a física se se pensa que os animais são formados apenas sucessivamente? Há mesmo para Deus alguma diferença entre o tempo que consideramos como o mesmo e aquele que se sucede?

CAPÍTULO XIII

Razões que provam que o feto participa igualmente do pai e da mãe

Se não vemos qualquer vantagem, qualquer simplicidade maior em acreditar que os animais, antes da geração, estavam já totalmente formados uns dentro dos outros do que em pensar que eles se formam a cada geração, se o âmago da coisa, a formação do animal, permanece para nós igualmente inexplicável, razões muito fortes mostram que cada sexo contribui igualmente para ela. A criança nasce tanto com os traços do pai quanto com os traços da mãe; ela nasce com seus defeitos e seus hábitos e parece deles conter até as inclinações e as qualidades de espírito. Ainda que essas semelhanças não se observem sempre, são muito freqüentemente observadas para que possam ser atribuídas a um efeito do acaso e, sem dúvida, elas ocorrem mais freqüentemente do que se possa pensar.

Nas espécies diferentes, essas semelhanças são mais sensíveis. Se um homem negro desposa uma mulher branca, parece que as duas cores são misturadas; a criança nasce olivácea e bipartida com os traços da mãe e os do pai.

Mas nas espécies mais diferentes a alteração do animal que delas nasce é ainda maior. O asno e a jumenta formam um animal que não é nem cavalo nem asno, mas que é visivelmente um composto dos dois e a alteração é tão grande que os órgãos do mulo são inúteis para a geração.

Experiências mais profundas e sobre espécies mais diferentes mostrariam ainda verossimilmente novos monstros. Tudo leva a crer que o animal que nasce é um composto das duas sementes.

Se todos os animais de uma espécie já estavam formados e contidos em um único pai ou em uma única mãe, seja sob a forma de vermes, seja sob a forma de ovos, observar-se-ia essas alternativas de semelhanças? Se o feto era o verme que nada no líquido seminal do pai, por que se assemelharia ele às vezes com a mãe? Se ele era apenas o ovo da mãe, o que teria sua figura em comum com a do pai? O pequeno cavalo, já totalmente formado dentro do ovo da jumenta, adquiriria orelhas de asno porque um asno teria colocado as partes do ovo em movimento?

Acreditar-se-ia, poder-se-ia imaginar que o verme espermático, por ter sido nutrido pela mãe, adquiriria sua semelhança e seus traços? Não seria isso muito mais ridículo do que acreditar que os animais devessem assemelhar-se com alimentos com os quais se nutriram ou com lugares que habitaram?

CAPÍTULO XIV

Sistema sobre os monstros

Encontra-se nas Memórias da Academia de Ciências de Paris uma longa disputa entre dois homens célebres que, pelo modo como combatiam, nunca teria terminado sem a morte de um deles. A questão era sobre os monstros. Em todas as espécies vê-se freqüentemente nascer animais disformes; animais aos quais faltam algumas partes ou que possuem algumas partes a mais. Os dois anatomistas concordavam com o sistema dos ovos, mas um queria que os monstros nunca fossem senão o efeito de algum acidente ocorrido com os ovos e o outro pretendia que houvesse ovos originariamente monstruosos que contivessem monstros tão bem formados quanto os outros ovos conteriam animais perfeitos.41 41 Os dois anatomistas envolvidos na controvérsia são Lémery e Winslow. Louis Lémery (1677-1743) nasceu em Paris e licenciou-se na Faculdade de Medicina dessa cidade em 1698. Foi médico do rei, membro da Académie des Sciences e professor de química no Jardin du Roy. Entre suas obras estão o Traité des aliments (1702), a Dissertation sur la nourriture des os (1704) e vários trabalhos publicados nas Mémoires da Academia de Ciências. Jacques-Bénigne Winslow (1669-1760) foi um dos mais brilhantes anatomistas do século XVIII. Nascido em Odense, Dinamarca, realizou seus estudou em Paris e doutorou-se em 1705. Tornou-se membro da Academia de Ciências e foi professor de anatomia no Jardin du Roy entre 1742 e 1758. O anfiteatro anatômico por ele criado foi inaugurado em 1745. Dentre suas várias contribuições para a anatomia humana destacam-se os três volumes da Exposition anatomique de la structure du corps humains (1732), cujas numerosas edições exerceram grande influência sobre a literatura anatômica do período. São particularmente importantes seus estudos sobre o sistema nervoso simpático. No artigo Sobre os monstros, redigido para a Histoire da Academia de Ciência de 1740 (publicada em 1742), Mairan apresenta uma revisão do debate travado pelos dois médicos ao qual Maupertuis se refere:

Um explicava claramente o bastante como as desordens ocorridas nos ovos faziam nascer monstros: bastaria que algumas partes, no momento em que estavam moles, fossem destruídas no ovo por algum acidente para que nascesse um monstro por escassez, uma criança mutilada. A união ou a confusão de dois ovos, ou de dois germes de um mesmo ovo, produziria os monstros por excesso, as crianças que nascem com partes supérfluas. O primeiro grau de monstros seria dois gêmeos simplesmente aderidos um ao outro, como se viu algumas vezes. Nestes, nenhuma parte principal dos ovos teria sido destruída; algumas partes superficiais dos fetos, dilaceradas em alguma região e reatadas uma na outra, teriam causado a aderência dos dois corpos. Os monstros com duas cabeças sobre um só corpo ou com dois corpos sob uma única cabeça difeririam dos anteriores apenas porque mais partes teriam sido destruídas em um dos ovos: num, todas aquelas que formavam um dos corpos; noutro, aquelas que formavam uma das cabeças. Enfim, uma criança que possui um dedo a mais é um monstro composto por dois ovos, num dos quais todas as partes, exceto esse dedo, foram destruídas.

O adversário, mais anatomista que argumentador, sem se deixar seduzir por uma espécie de luz que esse sistema difunde, a isso objetava apenas a partir dos monstros que ele próprio havia na maioria dissecado e nos quais havia encontrado monstruosidades que lhe pareceriam inexplicáveis por qualquer desordem acidental.

Os raciocínios de um tentaram explicar essas desordens; os monstros do outro se multiplicaram; a cada razão que o Sr. Lemery alegava, sempre havia algum novo monstro que o Sr. Winslow apresentava para rivalizar.

Enfim, chegou-se às razões metafísicas. Um julgava escandaloso pensar que Deus tivesse criado germes originalmente monstruosos; o outro acreditava que era limitar o poder de Deus restringi-lo a uma regularidade e a uma uniformidade muito grande.

Aqueles que desejarem consultar o que foi dito sobre essa disputa, procurem nas Memórias da Academia(i) (i) Mém. de l'Acad. Royale des Sciences, années 1724, 1733, 1734, 1738 & 1740. .

Um famoso autor dinamarquês teve uma outra opinião sobre os monstros: atribuía sua produção aos cometas. É uma coisa curiosa, mas bem humilhante para o espírito humano, ver esse grande médico tratar os cometas como abscessos do céu e prescrever um regime para se prevenir de seu contágio.(ii) (ii) Th. Bartholini de Cometa consilium medicum, eum monstrorum in Dania natorum historia. 42 42 Thomas Bartholin (1616-1680), membro de uma ilustre família de anatomistas, nasceu em Copenhague e fez seus estudos em Leiden, Paris, Montpellier e Pádua. Após doutorar-se em 1645, retorna à sua cidade natal, onde torna-se professor de matemática (1647), de anatomia (1648) e decano do colégio dos médicos (1654). Deixou uma vastíssima obra em anatomia e medicina na qual se destacam, entre outras coisas, seus estudos sobre o sistema linfático, a circulação do sangue e a função hepática e pancreática. A obra do autor citada por Maupertuis, De cometa consilium medicum, eum monstrorum in Dania natorum historia, é de 1665. Em sua Carta sobre o cometa, Maupertuis apresenta uma série de idéias sobre os cometas que considera "estranhas", mas não cita as de Bartholin:

CAPÍTULO XV

Acidentes causados pela imaginação das mães

Parece-me que um fenômeno ainda mais difícil de explicar, que os monstros dos quais acabamos de falar, seria esta espécie de monstros causados pela imaginação das mães, essas crianças às quais as mães teriam estampado a figura do objeto de seu temor, de sua admiração ou de seu desejo. Teme-se geralmente que um negro, um macaco ou qualquer outro animal cuja visão pode surpreender ou assustar mostre-se aos olhos de uma mulher grávida. Teme-se que uma mulher nesse estado deseje comer alguma fruta ou que tenha algum apetite que não possa satisfazer. Contam-se mil histórias de crianças que trazem as marcas de tais acidentes.

Parece-me que aqueles que raciocinaram sobre esses fenômenos confundiram duas coisas absolutamente diferentes.

Que uma mulher agitada por uma paixão violenta, que se encontra em um grande perigo ou que foi assustada por um animal medonho, dá à luz a uma criança disforme, nada é mais fácil de compreender. Há certamente entre o feto e sua mãe uma comunicação íntima o bastante para que uma violenta agitação nos espíritos ou no sangue da mãe se transmita ao feto e nele cause desordens às quais as partes da mãe podiam resistir, mas às quais as partes demasiadamente delicadas do feto sucumbem. Todos os dias vemos ou experimentamos desses movimentos involuntários que se comunicam a uma distância muito maior do que a existente entre a mãe e a criança que ela carrega. Se um homem que caminha à minha frente dá um passo em falso, meu corpo toma naturalmente a atitude que esse homem deveria tomar para não cair. Não poderíamos ver os outros sofrer sem também sentir uma parte de suas dores, sem experimentar revoluções às vezes mais violentas do que experimenta aquele sobre o qual agem o ferro e o fogo. É um laço pelo qual a natureza uniu os homens entre si. Ela ordinariamente torna-os compadecidos apenas fazendo-lhes sentir os mesmos males. O prazer e a dor são os dois mestres do mundo. Sem um, poucas pessoas se preocupariam em perpetuar a espécie dos homens; se não se temesse o outro, muitos não quereriam viver.

Se, pois, esse fato tão relatado é verdadeiro, que uma mulher tenha dado à luz a uma criança cujos membros estavam rompidos nos mesmos lugares onde ela os tinha visto romperem-se em um criminoso, não há nada, parece, que deva muito surpreender, não mais do que em todos os outros fatos dessa espécie.

Mas é preciso não confundir esses fatos com aqueles em que se pretende que a imaginação da mãe imprime no feto a figura do objeto que a assustou ou da fruta que desejou comer. O pavor pode causar grandes desordens nas partes moles do feto, mas ele em nada se parece com o objeto que o causou. Creio antes que o medo que uma mulher tem de um tigre fará sua criança perecer completamente ou a fará nascer com as maiores deformidades do que se me faria crer que a criança possa nascer listrada ou com garras, a menos que isso seja um efeito do acaso que nada tem de comum com o pavor do tigre. Do mesmo modo, a criança que nasceu mutilada é bem menos prodígio do que seria aquela que nascesse com a impressão da cereja que sua mãe quisera comer, pois o sentimento que uma mulher experimenta pelo desejo ou pela visão de uma fruta em nada se assemelha ao objeto que excita este sentimento.

Entretanto, nada é tão freqüente quanto encontrar desses sinais que se pretende formados pelos desejos das mães: Ora é uma cereja, ora uma uva, outras vezes um peixe. Observei um grande número deles, mas confesso que nunca vi algo que não pudesse ser facilmente reduzido a alguma excrescência ou alguma mancha acidental. Vi até mesmo um camundongo no pescoço de uma senhorita cuja mãe fora assustada por este animal; uma outra trazia no braço um peixe que sua mãe teve vontade de comer. Esses animais pareciam para alguns perfeitamente desenhados mas, para mim, o primeiro se reduzia a uma mancha escura e felpuda, da mesma espécie que várias outras que às vezes se vê situadas sobre a face e às quais, por falta de imaginar com o que se parecem, não se dá nenhum nome; o peixe era apenas uma mancha cinzenta. O relato das mães, a lembrança de que tiveram tal temor ou tal desejo, não deve causar muita complicação: elas se lembram de que tiveram esses desejos ou esses temores somente depois que deram à luz a uma criança marcada; sua memória oferece-lhes, então, tudo o que elas querem e, de fato, é difícil que num intervalo de nove meses uma mulher nunca tenha tido medo de algum animal nem desejo de comer alguma fruta.

CAPÍTULO XVI

Dificuldades sobre os sistemas dos ovos e dos animais espermáticos

É tempo de retornar à maneira pela qual se faz a geração. Tudo isso que acabamos de dizer, longe de esclarecer essa matéria, talvez tenha apenas difundido mais dúvidas. Fatos maravilhosos foram descobertos por toda a parte, os sistemas se multiplicaram e, nessa grande variedade de objetos, não há nada mais difícil do que reconhecer o objeto que se busca.

Eu conheço demais os defeitos de todos os sistemas que expus para adotar um dentre eles; encontro muita obscuridade espalhada sobre essa matéria para ousar construir qualquer sistema. Tenho apenas alguns pensamentos vagos que proponho mais como questões para exame do que opiniões a receber; não ficaria surpreso nem acreditaria ter motivos para me lamentar se forem rejeitados. E como é muito mais difícil descobrir a maneira pela qual um efeito é produzido do que mostrar que ele não é produzido, nem dessa nem daquela maneira, começarei por mostrar que não se poderia razoavelmente admitir nem o sistema dos ovos nem o dos animais espermáticos.

Parece-me então que esses dois sistemas são igualmente incompatíveis com a maneira pela qual Harvey viu o feto se formar.

Mas um e outro desses dois sistemas parecem-me ainda mais seguramente destruídos pela semelhança da criança tanto com o pai quanto com a mãe e pelos animais híbridos que nascem de duas espécies diferentes.

Talvez não se consiga explicar como uma criança, qualquer que seja a maneira pela qual o pai e a mãe contribuam para sua geração, possa parecer-se com eles; mas do fato de que a criança se parece com ambos, creio que se pode concluir que um e outro participaram igualmente de sua formação.

Não mais recordaremos aqui o sentimento de Harvey, que reduzia a concepção da criança no útero à comparação da concepção das idéias no cérebro. O que esse grande homem disse sobre isso pode servir apenas para mostrar quanta dificuldade ele encontrou nessa matéria ou para fazer ouvir mais pacientemente todas as idéias que possam ser propostas, por mais estranhas que sejam.

O que parece tê-lo mais confundido e tê-lo lançado nessa comparação foi nunca encontrar a semente do cervo no útero da corça. Ele daí conclui que a semente não entrava nele de modo algum. Mas estava ele certo em concluir isso? Os intervalos de tempo que ele estabeleceu entre o acasalamento desses animais e sua dissecação não foram muito maiores que o necessário para que a maior parte da semente que entrou no útero tivesse tempo dele sair ou nele impregnar-se?

A experiência de Verheyen, que prova que às vezes a semente do macho entra no útero, é quase uma prova de que ela entra nele sempre, mas que raramente aí permanece em quantidade suficiente para que se possa percebê-la.

Harvey podia observar apenas uma quantidade sensível de semente e pelo fato de não a ter encontrado em tal quantidade, não tem razão para assegurar que não houvesse algumas gotas espalhadas sobre uma membrana já totalmente coberta de umidade. Mesmo que a maior parte da semente voltasse a sair imediatamente do útero, ainda que nela entrasse apenas muito pouco, esse líquido misturado com o que a fêmea verte talvez seja muito mais do que o necessário para dar origem ao feto.

Portanto, peço desculpa aos físicos modernos se não posso admitir os sistemas que tão engenhosamente imaginaram, pois não sou daqueles que acreditam que se faz a física avançar aderindo a um sistema mesmo que certo fenômeno lhe seja evidentemente incompatível e que, tendo reparado em algum ponto a partir do qual segue necessariamente a ruína do edifício, terminam assim mesmo de construí-lo e habitam-no com tanta segurança quanto se ele fosse o mais sólido.

Apesar dos pretensos ovos, apesar dos pequenos animais que se observa no líquido seminal, eu não sei se é preciso abandonar o a opinião dos antigos sobre a maneira pela qual se faz a geração, opinião com a qual as experiências de Harvey estão em bastante conformidade. Quando acreditamos que os antigos permaneceram nesta ou naquela opinião apenas porque não foram tão longe quanto nós, talvez devessemos antes pensar que é porque eles tinham ido mais longe e que experiências de uma época mais remota tinham feito que reconhecessem a insuficiência dos sistemas com os quais nos contentamos.

É verdade que, quando se diz que o feto é formado pela mistura das duas sementes, se está bem longe de ter explicado essa formação, mas a obscuridade que resta não deve ser atribuída à maneira pela qual raciocinamos. Aquele que deseja conhecer um objeto muito distante e que o avista apenas confusamente, é mais bem sucedido do que aquele que vê mais distintamente objetos que não são aquele.

Apesar de respeitar infinitamente Descartes e acreditar, como ele, que o feto é formado pela mistura das duas sementes, não posso acreditar que alguém esteja satisfeito com a explicação que ele oferece, nem que se possa explicar por uma mecânica inteligível como um animal é formado da mistura dos dois líquidos. Porém, mesmo que a maneira pela qual esse prodígio acontece permaneça oculta para nós, não a tenho por menos certa.

CAPÍTULO XVII

Conjecturas sobre a formação do feto

Nesta obscuridade sobre a maneira pela qual o feto é formado da mistura dos dois líquidos, encontramos fatos que são, talvez, mais comparáveis a esse do que com o que se passa no cérebro. Quando se misturam prata e espírito de nitro com mercúrio e água, as partes dessas matérias se combinam por si só para formar uma vegetação tão semelhante a uma árvore que não se pode recusar-lhe o nome.(i) (i) Árvore de Diana.

Após a descoberta dessa admirável vegetação, encontraram-se muitas outras: uma, em que o ferro é a base, imita tão bem uma árvore que nela se vê não apenas um tronco, ramos e raízes, mas até folhas e frutos.(ii) (ii) Veja Mém. de l'Acad. Royale des Sciences de Paris, ann. 1706. 43 43 A árvore química cristalina que impressionou Maupertuis por sua semelhança com uma árvore orgânica é uma Árvore de Marte ou árvore de ferro, cuja produção está descrita na Memória Que les plantes contiennent réelement du fer, & que ce métal entre necessairement dans leur composition naturelle, de Louis Lémery, o mesmo que vimos envolvido na querela sobre os monstros: Que milagre seria se uma tal vegetação se formasse fora do alcance de nossa vista! Apenas o hábito diminui o maravilhoso da maior parte dos fenômenos da natureza;(iii) (iii) Quid non in miraculo est, cum primùm in notitiam venit? C. Plin. Nat. Hist. Lib. vii. Cap. i. 44 44 "quis enim Aethiopas antequam cerneret credidit? aut quid non miraculo est cum primum in notitiam venit?" "Pois quem acreditou nos etíopes antes que os visse? O que não é admirável quando se tem notícia pela primeira vez?" (História Natural, vii, 1, 6; Plínio, 1989, p. 510). acredita-se que o espírito os compreende quando os olhos estão a eles acostumados. Mas, para o filósofo, a dificuldade permanece e tudo o que ele deve concluir é que há fatos indubitáveis para os quais não poderia conhecer as causas e que seus sentidos lhes são dados apenas para humilhar seu espírito.

Não poderíamos duvidar que ainda se achem várias outras produções semelhantes, se forem buscadas, ou talvez quando menos forem buscadas. E, apesar destas parecerem menos organizadas que os corpos da maioria dos animais, não poderiam elas depender de uma mesma mecânica e de algumas leis semelhantes? Bastariam aí as leis ordinárias do movimento ou seria necessário apelar para o auxílio de novas forças?

Essas forças, incompreensíveis que sejam, parecem ter penetrado até a Academia de Ciência de Paris, onde tanto se ponderam as novas opiniões antes de admiti-las. Um dos mais ilustres membros dessa companhia, cuja perda nossas ciências lamentarão por muito tempo,(i) (i) Sr. Geoffroy. 45 45 Etienne-François Geoffroy (1672-1731) nasceu em Paris, foi primeiramente boticário e posteriormente praticou a medicina. Após estudar em Montpellier, acompanhou o marechal Tallard em sua embaixada em Londres em 1698 e, então, trabalhou na Holanda e na Itália. Regressando a Paris, tornou-se professor de química no Jardin du Roi, de farmácia e medicina no Collège de France e decano da Faculdade de Medicina. Seu nome ficou conhecido graças à sua noção de afinidade química, sobre a qual Maupertuis falará logo a seguir, e à sua tabela de diferentes afinidades observadas em química, apresentadas à Académie des Sciences em 1718 e 1720. Também tornou-se célebre seu Tratactus de materia medica, publicado postumamente em 1741. um daqueles que penetrara mais profundamente o interior dos segredos da natureza, sentiu a dificuldade de reduzir suas operações às leis comuns do movimento e foi obrigado a apelar para forças que julgou que seriam recebidas mais favoravelmente sob o nome de afinidades, mas afinidades que determinam que todas as vezes que duas substâncias que possuem alguma disposição de se unirem uma com a outra se encontrem juntas simultaneamente, se sobrevém uma terceira que tenha mais afinidade com uma das duas, ela se une a esta fazendo com que a outra a deixe escapar.(ii) (ii) Mém. de l'Acad. des Scienc. de Paris, ann. 1718. 46 46 A definição de afinidade que Maupertuis apresenta no texto aparece na Memória Table des différents rapports observés en Chimie entre différentes substances. Para Geoffroy, as afinidades possuem diferentes graus e leis particulares. Isso pode ser constatado, segundo o autor, pelo fato de que "entre várias matérias misturadas que têm alguma disposição de unir-se, percebe-se que uma dessas substâncias une-se sempre [e] constantemente com uma certa [substância] preferencialmente a todas [as outras]" (Geoffroy, 1741, p. 19). Há, pois, uma seletividade nas uniões segundo a natureza da substância em questão. As leis envolvidas são inferidas a partir da especificidade com que certos pares de substâncias mantêm-se unidas:

Eu não posso deixar de aqui advertir que essas forças e essas afinidades não são outra coisa senão o que outros filósofos mais audazes denominam atração. Este antigo termo, restituído na época atual, exasperou primeiro os físicos que acreditavam poder explicar sem ele todos os fenômenos da natureza. Os astrônomos foram os que primeiro sentiram a falta de um novo princípio para os movimentos dos corpos celestes e que acreditaram o haver descoberto nesses próprios movimentos. A química reconheceu depois sua necessidade e os mais famosos químicos de hoje admitem a atração e a aplicam mais além do que fizeram os astrônomos.

Por que, se essa força existe na natureza, não teria ela lugar na formação do corpo dos animais? Que haja em cada uma das sementes partes destinadas a formar o coração, a cabeça, as entranhas, os braços, as pernas e que estas partes tenham cada uma maior afinidade de união com aquela que, para a formação do animal, deve ser sua vizinha do que com qualquer outra; o feto se formará e, fosse ele ainda mil vezes mais organizado do que é, ele se formaria.

Não se deve acreditar que haja nas duas sementes apenas precisamente as partes que devem formar um feto ou o número de fetos que a fêmea deve conter; cada um dos dois sexos fornece sem dúvida muito mais do que é necessário. Mas estando uma vez unidas as duas partes que se devem tocar, uma terceira, que poderia fazer a mesma união, não encontra mais seu lugar e permanece inútil. É assim que, por essas operações repetidas, a criança é formada das partes do pai e da mãe e freqüentemente traz marcas visíveis de que ela participa de ambos.

Se cada parte está unida àquelas que devem ser suas vizinhas, e apenas a estas, a criança nasce em sua perfeição. Se algumas partes se encontram muito distantes, de uma forma muito pouco apropriada ou muito fraca em afinidade de união para se unirem àquelas que devem estar unidas, nasce um monstro por escassez. Mas se ocorrer que as partes supérfluas ainda encontrem seu lugar e se unam às partes cuja união já era suficiente, eis um monstro por excesso.

Uma observação sobre esta última espécie de monstro é tão favorável ao nosso sistema que parece dele ser uma demonstração: é que as partes supérfluas se encontram sempre nos mesmos lugares que as partes necessárias. Se um monstro possui duas cabeças, ambas estão situadas sobre um mesmo pescoço, ou sobre a união de duas vértebras; se há dois corpos, eles estão juntos da mesma maneira. Há vários exemplos de homens que nascem com dedos supranumerários, mas é sempre na mão ou no pé que eles se encontram. Ora, se se pretende que esses monstros sejam o produto da união de dois ovos, ou de dois fetos, crer-se-ia que essa união se faça de tal maneira que as únicas partes de um dos dois que se conservam se encontrem sempre situadas nos mesmos lugares que as partes semelhantes daquele que não sofreu qualquer destruição? Eu vi uma maravilha ainda mais decisiva sobre tal matéria: é o esqueleto de uma espécie de gigante que não possui outra deformidade além de uma vértebra a mais, colocada na seqüência das outras vértebras e formando com elas uma mesma espinha(i) (i) Esse esqueleto singular está em Berlim, na sala anatômica da Academia Real de Ciências e Belas Letras. Eis aqui a descrição que o Sr. Buddaeus, professor de anatomia, me enviou. Conforme vossas ordens, que recebi ontem, tenho a honra de muito humildemente vos comunicar que há efetivamente em nosso anfiteatro um esqueleto que possui uma vértebra a mais. Ele tem uma altura de seis pés e S. M. o falecido Rei aqui o enviou para guardá-lo dada sua raridade. Eu o examinei com cuidado e vê-se que a vértebra supranumerária deve estar situada entre as lombares. As vértebras do pescoço possuem suas marcas particulares, pelas quais são reconhecidas muito facilmente; assim, seguramente não pertence a elas, menos ainda àquelas do dorso, pois as costelas as caracterizam. A primeira vértebra lombar possui sua conformidade natural, em relação à sua união com a décima segunda do dorso; e a última das lombares possui sua figura ordinária para se aplicar ao osso sacro. Assim, é preciso buscar a vértebra supranumerária entre o restante das lombares, ou seja, entre a primeira e a última lombar. . Pode-se acreditar, pensar que esta vértebra seja o resto de um feto?

Se se pretende que os monstros nasçam de germes originariamente monstruosos, será menor a dificuldade? Por que os germes monstruosos observariam essa ordem na posição de suas partes? Por que nunca se encontram orelhas nos pés nem dedos na cabeça?

Quanto aos monstros humanos com cabeça de gato, de cachorro, de cavalo etc., eu aguardarei ter visto um para explicar como eles podem ser produzidos. Eu examinei vários que se dizia serem tais, mas tudo se reduzia a alguns traços disformes; eu nunca encontrei em qualquer indivíduo uma parte que pertencesse incontestavelmente a uma outra espécie que à sua; e se me mostrassem algum minotauro ou algum centauro, acreditaria antes em alianças odiosas do que em prodígios.

Parece que a idéia que propomos sobre a formação do feto faria face, melhor que qualquer outra, aos fenômenos da geração: à semelhança da criança tanto ao pai quanto à mãe; aos animais mistos que nascem de duas espécies diferentes; aos monstros tanto por excesso quanto por escassez e, enfim, esta parece ser a única idéia que se possa manter com as observações de Harvey.

CAPÍTULO XVIII

Conjecturas sobre o uso dos animais espermáticos

Mas esses pequenos animais que se descobre ao microscópio na semente do macho, em que se tornarão? A que uso a natureza os teria destinado? Não imitaremos aqui alguns anatomistas que negaram sua existência; seria preciso ser muito inábil em se servir do microscópio para não os poder perceber. Mas podemos muito bem ignorar seu emprego. Não podem eles ser de alguma utilidade para a produção do animal sem ser o próprio animal? Talvez eles sirvam apenas para colocar os líquidos prolíficos em movimento e, com isso, aproximar as partes muito distantes e facilitar a união daquelas que se devem juntar fazendo-as apresentarem-se diversamente umas às outras.

Eu procurei várias vezes com um excelente microscópio se não haveria animais semelhantes no líquido que a fêmea produz. Aí nada vi, mas não gostaria, a partir disso, de assegurar que eles não existissem. Além do líquido que considero como prolífero nas mulheres, que talvez exista apenas em pequena quantidade e que talvez permaneça no útero, elas emitem outros sobre os quais é possível enganar-se; e mil circunstâncias sempre tornarão essa experiência duvidosa. Mas, mesmo que houvesse animais na semente da fêmea, eles apenas teriam aí a mesma função que têm na do homem. Se não há deles, os do homem aparentemente bastam para agitar e misturar os dois líquidos.

Que este uso, ao qual imaginamos que os animais espermáticos poderiam estar destinados, não vos espante: a natureza, além de seus agentes principais para a produção de suas obras, emprega às vezes ministros subalternos. Nas ilhas do Arquipélago, cultiva-se com grande cuidado uma espécie de mosca que trabalha na fecundação dos figos.(i) (i) Veja a viagem do Lev. de Tournefort. 47 47 Trata-se do processo de caprificação, que consiste em colocar ramos da figueira-macho silvestre ou caprifigo sobre os ramos da figueira doméstica, que possuem apenas flores femininas, com o objetivo de que as vespas-do-figo (gênero Blastophaga) que vivem nos frutos (siconodos) da figueira-macho deles saiam e fecundem, com o pólen que trazem das flores masculinas, as flores femininas da planta cultivada que com isso se desenvolverão em figos (Quer, 1985, p. 158). O processo é utilizado desde a Antigüidade e é relatado pelo botânico Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708) em sua Relation d'un voyage au Levant, citada por Maupertuis, cuja redação foi concluída em 1707. Ao adotar a teoria da dupla semente, Maupertuis encontra dificuldade, tal como aconteceu com muitos dos autores da época, para explicar a função dos espermatozóides. Ao compará-los a "ministros subalternos" da natureza, aproxima-se da idéia de que os vermes espermáticos são parasitas ou comensais obrigatórios do sêmen masculino; tal como as "moscas" que fecundam o figo, os espermatozóides constituem uma espécie diferente daquela a que auxiliam na reprodução.

SEGUNDA PARTE,

variedades na espécie humana

CAPÍTULO PRIMEIRO

Distribuição das diferentes raças de homens segundo as diferentes partes da Terra

Se os primeiros homens brancos que viram negros os tivessem encontrado nas florestas, talvez não lhes teriam atribuído o nome de homens. Mas aqueles que se encontrou nas grandes cidades, que eram governados por sábias rainhas,(i) (i) Diodore de Sicile, liv. 3. 48 48 Os etíopes são descritos no livro 3 da História universal de Diodoro de Sicília (1737, p. 337 e ss). que faziam florescer as artes e as ciências na época em que quase todos os outros povos eram bárbaros, esses negros bem poderiam não querer considerar os brancos como seus irmãos.

Desde o trópico de câncer até o trópico de capricórnio, a África possui apenas habitantes negros. Não apenas sua cor os distingue, mas eles diferem dos outros homens por todos os traços de sua face: narizes largos e chatos, grossos lábios, lã no lugar do cabelo, parecem constituir uma nova espécie de homens.(ii) (ii) Aethiopes maculant orbem, tenebrisque figurant, Per fuscas hominum gentes. Manil. lib. IV vers. 723. 49 49 Breve descrição dos etíopes que aparece na Astronomica, 4, 724 (Manilius, 1977, p. 280).

Se se afasta do equador na direção do pólo antártico, o negro se clareia, mas a feiúra permanece: encontra-se esse povo feio que habita a ponta meridional da África.(iii) (iii) Os HOTENTOTES. 50 50 Hotentotes, povo habitante da África do Sul.

Se se subir para o oriente, ver-se-á povos cujos traços se suavizam e tornam-se mais regulares, mas cuja cor é tão negra quanto aquela que se encontra na África.

Após estes, um grande povo moreno distingue-se dos outros povos por seus olhos longos, estreitos e situados obliquamente.

Se se atravessa esta vasta parte do mundo que parece separada da Europa, da África e da Ásia, encontra-se, como se pode crer, muitas novas variedades. Não há homens brancos: esta terra é povoada por nações avermelhadas e morenas com mil nuances, acaba na direção do pólo antártico por um cabo e ilhas, diz-se, habitadas por gigantes. Se se acredita no relato de vários viajantes, encontra-se nesta extremidade da América uma raça de homens cuja altura é quase o dobro da nossa.

Antes de sair de nosso continente, poderíamos falar de uma outra espécie de homens bem diferentes destas. Os habitantes da extremidade setentrional da Europa são os menores de todos aqueles que nos são conhecidos: os lapões ao norte, os patagões ao sul, parecem os limites extremos da raça dos homens.

Eu não terminaria se falasse dos habitantes das ilhas que se encontram no mar das Índias e daquelas que estão nesse vasto oceano que preenche o intervalo entre a Ásia e a América. Cada povo, cada nação, tem sua forma.

Se se percorresse todas essas ilhas, talvez se encontraria em algumas habitantes bem mais perturbadores para nós que os negros, aos quais teríamos bastante dificuldade em recusar ou atribuir o nome de homens. Esses habitantes das florestas de Bornéu, dos quais falam alguns viajantes, de resto tão semelhantes aos homens, pensariam menos por possuir caudas de macacos? E isto que não se fez depender nem do branco nem do negro, dependeria do número de vértebras?

Neste istmo que separa o mar do norte do mar pacífico, diz-se(i) (i) Veja de Wafer, description de l'isthme de l'Amérique. que se encontram homens mais brancos do que todos aqueles que conhecemos: seus cabelos seriam considerados como a mais branca lã, seus olhos, muito fracos para a luz do dia, se abririam apenas na obscuridade da noite; eles fazem parte do gênero de homens que habitam entre as aves, os morcegos e os mochos. Quando o astro do dia desapareceu e deixou a natureza em luto e em silêncio, quando todos os outros habitantes da Terra, esgotados por seus trabalhos ou cansados de seus prazeres, se entregam ao sono, o darienita acorda, louva seus deuses, se regozija da ausência de uma luz insuportável e vem ocupar o vazio da natureza. Ele ouve os gritos da coruja com tanto prazer quanto o pastor de nossas terras ouve o canto da cotovia quando, na primeira alvorada, fora da vista do gavião, ela parece ir buscar no céu o dia que ainda não está sobre a Terra; ela marca pelo batimento de suas asas a cadência de seus gorjeios; ela eleva-se, perde-se nos ares e não mais a vemos quando ainda a escutamos; seus sons, não há nada mais distinto, inspiram a ternura e o devaneio; esse momento reúne a tranqüilidade da noite com os prazeres do dia. O Sol aparece: ele vem restituir à Terra o movimento e a vida, marcar as horas e determinar os diferentes trabalhos dos homens. Os darienitas não esperaram esse momento; todos eles já se acolheram. Talvez ainda encontraríamos alguns deles à mesa que, após terem recheado o ventre de acepipes, consomem o espírito com troças e sutilezas. Mas o único homem razoável que vela é aquele que espera o meio-dia para um encontro: é a esta hora, graças à mais viva luz, que ele deve enganar a vigilância de uma mãe e introduzir-se na casa de sua amante indecisa.51 51 A obra citada, na qual Maupertuis obtém as informações que utiliza em sua própria descrição dos darienitas é A new voyage & description of the Isthmus of America, escrita pelo viajante e cirurgião inglês Lionel Wafer (1660?-1705?). A primeira edição da obra é de 1699, mas possivelmente Maupertuis tenha consultado alguma das edições publicadas no século XVIII. A localização da região denominada Darién dada pelo próprio Wafer é a seguinte:

O fenômeno mais notável e a lei mais constante sobre a cor dos habitantes da Terra é que toda esta banda larga que envolve o globo de oriente a ocidente, que se chama zona tórrida, é habitada apenas por povos negros ou bem morenos. Mesmo com as interrupções que o mar nela causa, que se a siga através da África, Ásia e América, seja nas ilhas, seja nos continentes, aí encontramos apenas nações negras, visto que esses homens noturnos sobre os quais acabamos de falar e alguns brancos que nascem às vezes não precisam ser aqui tomados como excepcionais.

Afastando-se do equador, a cor dos povos se clareia por nuances. Ela é ainda bem morena para além do trópico e a encontramos totalmente branca apenas quando se avança na zona temperada. É nas extremidades dessa zona que se encontra os povos mais brancos. A dinamarquesa dos cabelos louros fascina por sua brancura o viajante surpreso: ele não poderia acreditar que o objeto que vê e a africana que acabou de ver sejam duas mulheres.

Mais longe ainda ao norte e até a zona glacial, nesse país que o Sol não se digna iluminar no inverno, onde a terra, mais dura que a relha do arado, não sustenta nenhum dos produtos dos outros países, nesses climas horríveis encontram-se tezes de lis e de rosas. Ricas regiões do sul, terras do Peru e do Potosi, formai o ouro em vossas minas; não irei de modo algum extraí-los. Golconda, filtrai o suco precioso que forma os diamantes e os rubis;52 52 Potosi, cidade boliviana famosa por sua produção de prata. Golconda, cidade indiana que ganhou fama pelos diamantes abundantes em sua proximidade e que eram nela lapidados; posteriormente, o nome da cidade tornou-se substantivo comum para "fonte de riquezas". eles de nenhum modo embelezarão vossas mulheres e são inúteis às nossas: que eles sirvam apenas para definir todos os anos o peso e o valor de um monarca(i) (a) O Grande Mongol faz-se pesar todos os anos e os pesos que se coloca na balança são diamantes e rubis. Ele acaba de ser destronado por Kouli-Can e reduzido a vassalo dos reis da Pérsia. imbecil que, enquanto está nessa ridícula balança, perde seus Estados e sua liberdade.

Mas nessas regiões extremas, onde tudo é branco e tudo é negro, não há demasiada uniformidade? E a mistura, não produz novas belezas? É nas margens do Sena que se encontra esta ditosa variedade: nos jardins do Louvre, num belo dia de verão, vereis tudo o que a Terra inteira pode produzir de maravilhas.

Uma morena de olhos negros brilha com todo o fogo das belezas do Sul; olhos azuis adoçam os traços de uma outra: esses olhos levam a toda parte onde estão os charmes da loira. Cabelos castanhos parecem ser os da nação. A francesa não possui nem a vivacidade daquelas que o Sol queimou, nem a languidez daquelas que ele não aquece; mas ela tem tudo o que as faz agradar. Que brilho a acompanha! Ela parece feita de alabastro, de ouro e lápis-lazúli: amo nela até os erros da natureza, quando sobrecarrega um pouco a cor de seus cabelos. Quis compensá-la com novos traços de branco por um dano que ela de modo algum causou. Belezas que temeis que sejam um defeito, não recorrais ao pó; deixai que se espalhem as rosas de vossa tez; deixai-as levar a vida até vossos cabelos... Vi olhos verdes nessa multidão de belezas e reconheci-os de longe: não se assemelhavam nem àqueles das nações do Sul, nem àqueles das nações do Norte.

Nesses jardins deliciosos, o número de belezas ultrapassa o das flores e não existe nenhuma que, aos olhos de alguém, não supere todas as outras. Colhei dessas flores, mas não façais ramalhetes: vagai, amantes, visitai todas elas, mas regressai sempre à mesma, se quereis saborear os prazeres que preenchem vosso coração.

CAPÍTULO II

Explicação do fenômeno das diferentes cores, nos sistemas dos ovos e dos vermes

Todos esses povos que acabamos de percorrer, tantos homens diversos, saíram eles de uma mesma mãe? Não nos é permitido duvidar disso.

O que nos resta examinar é como de um único indivíduo podem nascer tantas espécies tão diferentes. Vou arriscar sobre isso algumas conjecturas.

Se os homens estavam desde o início totalmente formados de ovo em ovo, teria existido na primeira mãe ovos de diferentes cores que conteriam seqüências inumeráveis de ovos da mesma espécie, mas que deveriam eclodir apenas em sua ordem de desenvolvimento, após um certo número de gerações e no tempo em que a Providência havia fixado para a origem dos povos que neles estivessem contidos. Não seria impossível que, um dia, vindo a falhar a seqüência de ovos brancos que povoam nossas regiões, todas as nações européias mudassem de cor; como também não seria impossível que, tendo se esgotado a fonte dos ovos negros, a Etiópia não mais tivesse senão habitantes brancos. É assim que numa mina, quando o veio de mármore branco se esgota, já não se encontram senão pedras de diferentes cores que se sucedem umas às outras. É assim que novas raças de homens podem aparecer sobre a Terra e que as antigas podem se extinguir.

Se se admitisse o sistema dos vermes, se todos os homens estivessem primeiramente contidos nesses animais que nadavam na semente do primeiro homem, seria preciso dizer dos vermes o que acabamos de dizer dos ovos: o verme pai dos negros continha, de verme em verme, todos os habitantes da Etiópia; o verme darienita, o verme hotentote e o verme patagão, com todos seus descendentes, já estariam completamente formados e um dia deveriam povoar as partes da Terra onde se encontram esses povos.

CAPÍTULO III

Produções de novas espécies

Esses sistemas dos ovos e dos vermes talvez sejam apenas muito cômodos para explicar a origem dos negros e dos brancos: eles explicariam mesmo como espécies diferentes poderiam ter saído dos mesmos indivíduos. Mas vimos na dissertação precedente quais dificuldades podem ser contrapostas.

Não é só ao branco e ao negro que se reduzem as variedades do gênero humano; encontram-se outras mil e as que saltam mais à nossa vista talvez não custem mais à natureza do que as que dificilmente percebemos. Se se pudesse certificar-se disso por experiências decisivas, talvez achássemos tão raro ver nascer com olhos azuis uma criança cujos ancestrais tiveram todos olhos negros, quanto ver nascer uma criança branca de pais negros.

As crianças ordinariamente assemelham-se aos seus pais e as próprias variações com as quais nascem são freqüentemente efeitos dessa semelhança. Essas variações, se se pudesse acompanhá-las, talvez tivessem sua origem em algum ancestral desconhecido. Elas se perpetuam através de repetidas gerações de indivíduos que as possuem e se apagam nas gerações de indivíduos que não as possuem. Mas talvez ainda mais surpreendente é, após a interrupção dessas variações, vê-las reaparecer, ver a criança que não se parece nem com seu pai nem com sua mãe nascer com os traços de seu avô. Esses fatos, por mais maravilhosos que sejam, são muito freqüentes para que possam ser colocados em dúvida.

A natureza contém o fundamento de todas essas variedades, mas o acaso ou a arte as colocam em marcha. É assim que aqueles cujo engenho dedica-se a satisfazer o gosto dos curiosos são, por assim dizer, criadores de novas espécies. Vemos aparecer raças de cães, de pombos, de canários que antes não existiam na natureza. Foram inicialmente apenas indivíduos fortuitos; a arte e as gerações repetidas fizeram deles novas espécies. O famoso Lyonnès cria todos os anos alguma espécie nova e destrói aquelas que não estão mais na moda. Ele corrige as formas e varia as cores: inventou as espécies do arlequim, do mopso etc.

Por que essa arte se limita aos animais? Por que esses sultões, cansados dos haréns que contém apenas mulheres de todas as espécies conhecidas, não mandam lhes fazer espécies novas? Se eu estivesse limitado, como eles, apenas ao prazer que a forma e as feições podem oferecer, logo recorreria a essas variedades. Mas, por mais belas que fossem as mulheres que lhes fizessem nascer, eles jamais conheceriam senão a menor parte dos prazeres do amor, enquanto ignoram aqueles que o espírito e o coração permitem apreciar.

Se não vemos formarem-se entre nós essas novas espécies de beleza, vemos muito freqüentemente produções que, para o físico, são do mesmo gênero, a saber, raças de vesgos, de coxos, de gotosos, de tísicos; e, infelizmente, não é preciso uma longa seqüência de gerações para seu estabelecimento. Mas a sábia natureza, pelo desagrado que inspirou por esses defeitos, não quis que se perpetuassem; cada pai, cada mãe fazem o possível para apagá-las. As belezas são mais seguramente hereditárias; o porte e a perna que admiramos são a obra de várias gerações que se dedicaram a formá-los.

Um rei do norte(i) (i) Fréderic-Guillaume, rei da Prússia. conseguiu educar e embelezar sua nação. Ele tinha um gosto excessivo por homens de alta estatura e de bela figura: atraía-os de todas as partes de seu reino; a fortuna tornava feliz todos aqueles que a natureza formou grandes. Vê-se hoje um exemplo singular do poder dos reis: esta nação se distingue pelas mais avantajadas estaturas e as mais regulares figuras. É assim que se vê erguer uma floresta acima de todos os bosques que a cercam se o olho atento do mestre se aplica a aí cultivar árvores retas e bem escolhidas. O carvalho e o olmo, ornados com as mais verdes folhagens, estendem seus ramos até o céu; apenas a águia pode atingir seu topo. O sucessor desse rei embeleza hoje a floresta com loureiros, mirtos e flores.

Os chineses ousaram acreditar que uma das maiores belezas das mulheres seria ter pés sobre os quais não pudessem se sustentar. Esta nação, tão dedicada em seguir em tudo as opiniões e o gosto de seus ancestrais, chegou a ter mulheres com pés irrisórios. Vi chinelas de chinesas nas quais nossas mulheres poderiam colocar apenas um dedo do pé. Essa beleza não é nova. Plínio, segundo Eudóxo, fala de uma nação das Índias cujas mulheres tinham o pé tão pequeno que se lhes chamavam pés-de-avestruz.(ii) (ii) C. Plin. Natur. Hist. lib. 7. cap. 2. 53 53 "Eudoxus in meridianis Indiae viris plantas esse cubitales, feminis adeo parvas ut Struthopodes appellentur" "Segundo Eudoxo, no sul da Índia os homens têm os pés do tamanho de um cubital [côvado], as mulheres tão pequenos que foram chamadas pés-de-avestruz." ( História natural, vii, 2, 24; Plínio, 1989, p. 522). É verdade que ele acrescenta que os homens tinham um pé com um côvado de comprimento, mas pode-se acreditar que a pequenez do pé das mulheres levasse a exagerar o tamanho do dos homens. Não seria tal nação a dos chineses, pouco conhecida na época? De resto, não se deve atribuir a pequenez do pé das chinesas apenas à natureza; durante os primeiros tempos de sua infância, mantêm-se seus pés apertados para os impedir de crescer. Mas há grande possibilidade de que as chinesas nasçam com pés menores que os das mulheres de outras nações. É uma observação curiosa a se fazer e que merece a atenção dos viajantes.

Beleza fatal, desejo de agradar, que desordens não causais no mundo! Não vos limitais a atormentar nossos corações, mudais a ordem de toda a natureza. A jovem francesa que zomba da chinesa a censura apenas por acreditar que será mais bela sacrificando a graça no caminhar à pequenez do pé pois, no fundo, não acha que seja pagar demasiado caro por um encanto adquirido pela tortura e pela dor. Ela mesma, desde sua infância, tem o corpo encerrado em um espartilho ou forçado por uma cruz de ferro que a incomodam mais do que todas as ataduras que apertam o pé da chinesa. Sua cabeça, eriçada por papelotes durante a noite, encontra para se apoiar, em vez da brandura de seus cabelos, apenas as pontas de um papel duro; neles dorme tranqüilamente, repousa sobre seus encantos.

CAPÍTULO IV

Os negros-brancos

Eu esqueceria aqui de bom grado do fenômeno que tentei explicar; gostaria bem mais de me ocupar do sonho de Íris do que falar sobre o pequeno monstro do qual é necessário que vos conte a história.

É um menino de quatro ou cinco anos que possui todos os traços dos negros e cuja pele muito branca e pálida apenas faz aumentar a fealdade(i) (i) Ele foi levado a Paris em 1744. . Sua cabeça é coberta por uma lã branca tendendo ao ruivo; seus olhos de um azul claro parecem ferir-se com o brilho do dia; suas mãos grossas e mal formadas mais parecem com as patas de um animal do que com as mãos de um homem. Nasceu, pelo que se afirma, de pai e mãe africanos e muito negros.

A Academia de Ciências de Paris mencionou(ii) (ii) Hist. de l'Acad. Royale des Sciences, 1734. um monstro semelhante que nascera no Suriname, de raça africana. Sua mãe era negra e afirmava que o pai também era. O historiador da Academia parecia colocar esse último fato em dúvida ou, antes, parecia persuadido de que o pai era um negro-branco.54 54 Tal relato foi publicado na sessão Observações de física geral da Histoire de l'Académie: Mas não creio que isso fosse necessário; bastaria que essa criança tivesse algum negro-branco entre seus avós ou que fosse, talvez, o primeiro negro-branco de sua raça.

A falecida Senhora Condessa de Vertillac, que possuía um gabinete repleto das mais maravilhosas curiosidades da natureza, mas cujo espírito ia muito mais além, tinha o retrato de um negro dessa espécie. Apesar daquele que ele representa, que atualmente encontra-se na Espanha e que Milord Maréchal disse-me ter visto, ser bem mais velho do que aquele que está em Paris, nele vê-se a mesma tez, os mesmo olhos e a mesma fisionomia.

Asseguraram-me que se encontravam no Senegal famílias inteiras dessa espécie e que nas famílias negras não era extraordinário e nem mesmo muito raro ver nascer negros-brancos.

A América e a África não são as únicas partes do mundo onde se encontra esse tipo de monstros; a Ásia também os produz. Um homem tão distinto por seu mérito quanto pelo lugar que ocupou nas Índias Orientais, mas respeitável sobretudo por seu amor à verdade, o Sr. du Mas, viu entre os negros, brancos cuja brancura se transmitia de pai para filho. Quis gentilmente satisfazer minha curiosidade sobre isso. Ele considera essa brancura como uma moléstia da pele(iii) (iii) Ou antes da membrana reticular que é a parte da pele cuja pigmentação produz a cor dos negros. e é, segundo ele, um acidente, mas um acidente que se perpetua e que subsiste durante várias gerações.55 55 Não é possível saber se o fenômeno aqui mencionado é um caso de vitiligo, caracterizado como despigmentação parcial da pele, ou se de albinismo, com despigmentação total. Maupertuis não menciona o primeiro fenômeno, mas, de qualquer forma, a opinião do Sr. du Mas é bem conveniente para a teoria de Maupertuis, como ele próprio reconhece, já que a causa patológica do fenômeno é interpretada como um acidente que se torna hereditário.

Fiquei encantado em encontrar as idéias de um homem tão esclarecido conforme às que eu tinha sobre essas espécies de monstros. Pois, mesmo que se tome esta brancura por uma moléstia ou por qualquer acidente que se queira, será sempre uma variação hereditária que se confirma ou que se apaga pela seqüência de gerações.

Essas mudanças de cor são mais freqüentes nos animais do que nos homens. A cor negra é tão inerente aos corvos e aos melros quanto aos negros; entretanto, várias vezes vi melros e corvos brancos. E se as cultivássemos essas variações formariam verossimilmente novas espécies. Vi regiões onde todas as galinhas eram brancas. A brancura da pele, geralmente ligada à brancura da plumagem, fez que se preferisse a essas galinhas que às outras e, de geração em geração, chegou-se a ver eclodir apenas as brancas.

De resto, é muito provável que a diferença do branco para o preto, tão sensível aos nossos olhos, seja pouca coisa para a natureza. Uma ligeira alteração da pele do mais negro cavalo aí faz crescer pelos brancos, sem nenhuma passagem pelas cores intermediárias.

Se fosse preciso investigar o que se passa nas plantas para confirmar o que eu disse aqui, aqueles que as cultivam vos diriam que todas as espécies de plantas e de arbustos multicoloridos que admiramos em nossos jardins são devidas a variações tornadas hereditárias e que desaparecem se se negligencia delas cuidar.(i) (i) Vidi lecta diu, & multo spectata labore, Degenerare tamen, ni vis humana quotannis Maxima quaeque manu legeret. Virg. Georg. lib. 2. 56 56 " vidi lecta diu et multo spectata labore degenerara tamen, ni vis humana quotannis maxima quaeque manu legeret" (Maupertuis citou incorretamente o livro 2 da obra). "Eu já vi, contudo, sementes selecionadas e verificadas com muito trabalho degenerar, se a força humana todo ano não recolhesse as maiores uma a uma com a mão." ( Bucólicas, i, 197-199; Virgílio, 1986, p. 94).

CAPÍTULO V

Tentativa de explicação dos fenômenos precedentes

Para explicar agora todos esses fenômenos, a produção de variações acidentais, a sucessão dessas variações de uma geração à outra e, enfim, o estabelecimento ou a destruição de espécies, eis aqui, segundo me parece, o que seria preciso supor. Se isso que vou dizer vos revolta, rogo-vos considerá-lo apenas como um esforço que fiz para vos satisfazer. Não espero de modo algum vos oferecer explicações completas para fenômenos tão difíceis; para mim já seria bastante se os acompanhasse até poder ligá-los a outros fenômenos dos quais eles dependem.

É preciso, então, considerar como fatos que a experiência, parece, nos força a admitir:

1o Que o líquido seminal de cada espécie de animais contém uma multidão inumerável de partes próprias a formar, por suas reuniões, animais da mesma espécie.

2o Que, no líquido seminal de cada indivíduo, as partes próprias para formar caracteres semelhantes àqueles desse indivíduo são as que ordinariamente estão em maior número e que têm maior afinidade, apesar de haver muitas outras para caracteres diferentes.

3o Quanto à matéria da qual se formarão no sêmen de cada animal as partes semelhantes a esse animal, seria uma conjectura bem ousada, mas que, talvez, não fosse destituída de verossimilhança, pensar que cada parte fornece seus germes. A experiência poderia talvez elucidar este ponto se se tentasse, durante longo tempo, mutilar alguns animais de geração em geração; talvez ver-se-ia as partes amputadas diminuir pouco a pouco; talvez, no final, ver-se-ia aniquilarem-se.

As suposições precedentes parecem necessárias e, uma vez sendo admitidas, parece que poderiam explicar todos os fenômenos que vimos acima.

As partes análogas às do pai e da mãe, sendo as mais numerosas e as que têm maior afinidade, seriam aquelas que se uniriam mais ordinariamente e que formariam animais semelhantes àqueles dos quais teriam saído.

O acaso ou a escassez de traços de família às vezes produzirão outros agregados e ver-se-ia nascer um menino branco de pais negros ou mesmo talvez um negro de pais brancos, apesar deste último fenômeno ser muito mais raro que o primeiro.

Falo aqui apenas desses nascimentos singulares nos quais a criança que nasce de um pai e de uma mãe de uma mesma espécie teria traços que deles não dependeriam; pois, assim que há mistura de espécies, a experiência nos ensina que a criança se parece com ambas.

Essas uniões extraordinárias de partes que não são as partes análogas àquelas dos pais são verdadeiramente monstros para o temerário que quer explicar as maravilhas da natureza. São apenas belezas para o sábio que se contenta em admirar-lhes o espetáculo.

Essas produções são de início apenas acidentais. As partes originárias dos ancestrais ainda se encontram muito abundantes nas sementes; após algumas gerações, ou a partir da geração seguinte, a espécie original restaura-se e a criança, ao invés de assemelhar-se a seu pai e à sua mãe, assemelhar-se-á a ancestrais mais longínquos(i) (i) É isso que acontece todos os dias nas famílias. Uma criança que não se parece nem com seu pai nem com sua mãe parecerá com seu avô. . Para fazer dessas espécies raças que se perpetuam, é preciso verdadeiramente que essas gerações sejam repetidas várias vezes; é preciso que as partes próprias para produzir os traços originários, menos numerosas a cada geração, se dissipem ou permaneçam em número tão pequeno que seria necessário um novo acaso para reproduzir a espécie originária.

De resto, ainda que eu aqui suponha que o fundamento de todas essas variações encontra-se nos próprios líquidos seminais, não excluo a influência que o clima e os alimentos possam ter. Parece que o calor da zona tórrida seja mais conveniente para excitar as partes que tornam a pele negra do que aquelas que a tornam branca; e não sei até aonde pode ir esta influência do clima ou dos alimentos após longas seqüências de séculos.

Seria algo que certamente bem mereceria a atenção dos filósofos testar se certas singularidades artificiais dos animais não passariam, após várias gerações, para os animais que nascessem daqueles; se caudas ou orelhas cortadas de geração a geração não diminuíram ou mesmo se, por fim, não se aniquilariam.

O que há de certo é que todas as variações que poderiam caracterizar novas espécies de animais e de plantas tendem a se extinguir; são desvios da natureza nos quais ela persevera apenas pela arte e pelo regime. Suas obras sempre voltam à primeira condição.

CAPÍTULO VI

Que é muito mais raro que nasçam crianças negras de pais brancos do que ver

nascerem crianças brancas de pais negros. Que os primeiros pais do gênero

humano eram brancos. Dificuldade sobre a origem dos negros eliminada

Desses nascimentos súbitos de crianças brancas no meio de povos negros poder-se-ia talvez concluir que o branco é a cor primitiva dos homens e que o negro é apenas uma variação que se tornou hereditária após vários séculos, mas que não apagou inteiramente a cor branca, que tende sempre a aparecer. Pois não se vê de nenhum modo acontecer o fenômeno oposto: não se vêem nascer crianças negras de ancestrais brancos.

Sei que se sustentou que esse prodígio havia acontecido na França, mas ele é tão destituído de provas suficientes que não se pode nele crer razoavelmente. O gosto de todos os homens pelo maravilhoso deve sempre tornar os prodígios suspeitos quando não são indiscutivelmente constatados. Uma criança nasce com qualquer deformidade e as mulheres que a recebem logo fazem dele um monstro horrível; se sua pele for mais morena que de costume, é um negro. Mas todos os que viram nascer crianças negras sabem que elas não nascem escuras e que nos primeiros tempos de sua vida ter-se-ia dificuldade de distingui-las de outras crianças. Assim, quando uma criança negra nascesse em numa família branca, ficar-se-ia algum tempo incerto de que ela assim o fosse; não se pensaria inicialmente em escondê-la e não se poderia furtá-la da notoriedade pública, pelo menos nos primeiros meses de sua existência; nem depois se poderia ocultar no que ele se tornou, sobretudo se a criança pertencesse a pais importantes. Porém, o negro que nascesse entre o povo, assim que adquirisse toda a sua negrura, seus pais não poderiam e nem desejariam escondê-lo; seria um prodígio que a curiosidade do público tornaria útil e a maioria da gente do povo amaria tanto seu filho negro quanto o branco.

Ora, se esses prodígios acontecessem às vezes, a probabilidade deles acontecerem mais entre as crianças do povo do que entre as crianças dos grandes é imensa; em relação à quantidade do povo, para uma criança negra de um Grão-Senhor seria preciso que nascessem mil crianças negras entre o povo. E como esses fatos poderiam ser ignorados? Como poderiam ser duvidosos?

Se crianças brancas nascem entre os povos negros, se esses fenômenos não são mesmo raros entre os povos poucos numerosos da África e da América, quão mais freqüentemente não deveriam nascer negros entre os inumeráveis povos da Europa, se a natureza produzisse tão facilmente um e outro desses acasos? E se temos conhecimento desses fenômenos assim que acontecem nesses países tão distantes, como poderia acontecer de se ter ignorado semelhantes fenômenos se ocorressem entre nós?

Parece-me portanto demonstrado que, se nascem negros de pais brancos, esses nascimentos são incomparavelmente mais raros do que os nascimentos de crianças brancas de pais negros.

Isso talvez bastaria para fazer pensar que o branco seja a cor dos primeiros homens e que foi apenas por algum acidente que o negro se tornou uma cor hereditária das grandes famílias que povoam a zona tórrida entre as quais, entretanto, a cor primitiva não se apagou tão facilmente para que não reapareça às vezes.

Portanto, esta dificuldade sobre a origem dos negros, tão debatida e que algumas pessoas gostariam de fazer valer contra a história do Gênesis, que nos ensina que todos os povos da Terra saíram de um só pai e de uma só mãe, esta dificuldade está suprimida se se admite um sistema que é pelo menos tão verossímil quanto tudo o que se imaginou até agora para explicar a geração.

CAPÍTULO VII

Conjectura sobre porque os negros só se encontram na zona tórrida e os anões e os gigantes em direção aos pólos

Vêem-se ainda nascer, e mesmo entre nós, outros monstros que verossimilmente são apenas combinações fortuitas de partes das sementes ou os efeitos de afinidades muito potentes ou muito fracas entre essas partes. Homens de uma altura excessiva e outros de um pequenez extrema são espécies de monstros, mas que originariam povos se nos aplicássemos a multiplicá-los.

Se o que relatam os viajantes das terras magelânicas e das extremidades setentrionais do mundo é verdadeiro, essas raças de gigantes e de anões ali teriam se estabelecido pela conveniência dos climas ou, antes, porque, nos tempos em que começaram a aparecer, teriam sido expulsas de outras regiões pelos outros homens, que teriam temido esses colossos ou desprezado esses pigmeus.

Que gigantes, anões e negros tenham nascido entre os outros homens, o orgulho ou o temor teria precavido contra eles a maior parte do gênero humano e a espécie mais numerosa teria relegado essas raças disformes aos menos habitáveis climas da Terra. Os anões ter-se-iam retirado para o pólo ártico; os gigantes haveriam de habitar as terras de Magalhães; os negros teriam povoado a zona tórrida.

CAPÍTULO ÚLTIMO

Conclusão desta obra: dúvidas e questões

Não espero que o esboço de sistema que propusemos para explicar a formação dos animais agrade a todo mundo; eu mesmo dele não estou muito satisfeito e lhe concedo apenas o grau de assentimento que merece. Não fiz mais do que propor dúvidas e conjecturas. Para descobrir algo sobre uma matéria tão obscura, eis aqui algumas questões que seria preciso primeiro resolver e que verossimilmente nunca se resolverá.

I

Esse instinto dos animais, que os faz buscar o que lhes convém e fugir do que lhes prejudica, não pertence às menores partes de que um animal é formado? Esse instinto, apesar de disperso nas partes das sementes e menos forte em cada uma do que no animal todo, não bastaria, entretanto, para produzir as uniões necessárias entre essas partes, pois vemos que, nos animais completamente formados, ele faz seus membros moverem-se? Pois quando se diz que é por uma mecânica inteligível que esses movimentos se executam, quando se os tiver completamente explicado pelas tensões e relaxamentos que a abundância ou a ausência de espíritos ou do sangue causa aos músculos, seria preciso sempre retornar ao próprio movimento dos espíritos e do sangue que obedece à vontade. E se a vontade não é a verdadeira causa desses movimentos, mas simplesmente uma causa ocasional, não se poderia pensar que o instinto seria uma causa semelhante dos movimentos e das uniões das pequenas partes da matéria? Ou que, em virtude de alguma harmonia preestabelecida, esses movimentos estariam sempre de acordo com as vontades?

II

Esse instinto, como o espírito de uma República, está distribuído por todas as partes que devem formar o corpo? Ou, como num Estado monárquico, pertence apenas a alguma parte indivisível?

Neste caso, essa parte seria aquela que constitui propriamente a essência do animal, enquanto as outras seriam apenas envoltórios ou espécies de vestimentas?

III

Não sobreviveria essa parte à morte? E, livre de todas as outras, não conservaria inalteravelmente sua essência? Sempre pronta a produzir um animal, ou, melhor dizendo, a reaparecer revestida de um novo corpo após ter sido dissipada no ar ou na água, oculta nas folhas das plantas ou na carne dos animais, se reencontraria na semente do animal que deveria reproduzir?

IV

Essa parte nunca poderia reproduzir senão um animal da mesma espécie? Ou poderia produzir todas as espécies possíveis apenas pela diversidade de combinações das partes com as quais se uniria? (i) (i) Non omnis moriar; multaque pars meî Vitabit Libitinam. Q. Hor. Carm. lib. iii. 57 57 " non omnis moriar multaque pars mei vitabit Libitinam: uesque ego postera crescam laude recens" " Não morrerei inteiro e grande parte de mim evitará Libitina [Morte]: continuamente nascerei renovado pela glória." ( Odes, iii, 30, 9; Horácio, 1995, p. 278).

Notas

Faz alguns dias que a vaga da Academia, disponível com a morte do abade de Saint-Pierre, foi preenchida pelo Sr. de Maupertuis, da Academia de Ciências. O Sr. de Maupertuis é aquele que foi enviado ao Norte para fazer as observações sobre a figura da Terra. Apesar dele possuir muita ciência e capacidade, foram necessárias muitas solicitações para obter os votos; vários dos acadêmicos desejavam que esta vaga fosse preenchida pelo abade Girard, autor das Synonymes, livro bastante estimado. A eleição de Maupertuis foi feita, há dez ou doze dias; entretanto, seus amigos temiam que ele ainda encontrasse dificuldades, pois exige-se que a primeira eleição seja apenas uma espécie de deliberação para saber que pessoa se apresentará ao Rei e que, se na assembléia seguinte, houver um terço de votos contrários, a eleição não aconteceria. Entretanto, não sei se se pode citar um único exemplo em que uma segunda assembléia tenha suprimido o que fora feito na primeira. A regra da Academia Francesa é, para que uma eleição seja decisiva, que haja pelo menos vinte acadêmicos, sem o que se pode reclamar contra a eleição. Havia apenas dezenove acadêmicos na assembléia em que o Sr. de Maupertuis foi recebido; entretanto, não se reclamou. Os amigos de Maupertuis temeram muito o Sr. de Fontenelle, decano da academia, que tinha uma querela pessoal com Maupertuis, por ocasião de algumas expressões colocadas nas obras deste último, com as quais o Sr. de Fontenelle não ficou contente; mas, enfim, engajou-se o Sr. de Fontenelle em uma reconciliação que se realizou diante da assembléia (Luynes, 1861, p. 28-9).

Além de Fontenelle, Maupertuis também teve que enfrentar a oposição de Boyer, antigo bispo de Mirepoix, cujo cargo de ministro da folha de benefícios permitia-lhe obter a interdição real. Inimigos de Maupertuis revelaram a Boyer que no Essai de cosmologie, que então circulava ainda sob a forma de manuscrito (a obra será publicada apenas em 1750), o candidato à Academia apresentava idéias claramente deístas e contrárias à religião o problema estava na tentativa de demonstrar a existência de Deus por meio de uma fórmula algébrica. Sem revelar o nome do acusador de Maupertuis, Boyer declara que vetará sua eleição. Maupertuis recorre, então, à influência de Maurepas, seu amigo e ministro da marinha que, juntamente com Montesquieu, apoiava a sua candidatura. Autorizado a falar em nome do amigo ministro, Maupertuis enfrenta novamente Boyer, agora de forma mais enérgica, e consegue seu apoio após ameaçá-lo com uma queixa ao Rei pela recusa ao direito de resposta às acusações (cf. Kerviller, 1889, p. 331-3). Maupertuis foi eleito para a Academia Francesa no dia 6 de junho de 1743 e dez dias depois pronunciou seu discurso de recepção.

O Sr. conde de Maurepas, que ama as ciências e que deseja fazê-las servir ao bem do Estado, encontrou reunidos nesta empreitada a vantagem da navegação e a da Academia: e esta visão de utilidade pública mereceu a atenção do Sr. cardeal de Fleury; em meio à guerra, as ciências encontraram nele uma proteção e o auxílio que dificilmente elas poderiam ousar esperar na mais profunda paz. O Sr. conde de Maurepas logo enviou à Academia ordens do Rei para decidir a questão da figura da Terra (Maupertuis, 1965b [1768], p. 93).

Jean-Frédéric Phélippeaux, conde de Maurepas (1701-1781), foi ministro da marinha e secretário da Maison du Roi, posição que o tornava ministro tutelar da Academia de Ciências. Além de Maupertuis, também apoiou Buffon em sua carreira como naturalista.

Enquanto o corpo provém da fêmea, é a alma que provém do macho, pois a alma é a realidade de um corpo particular [...] Uma vez que o embrião já é potencialmente um animal, mas um animal imperfeito, ele deve obter sua nutrição em outra parte; conseqüentemente, ele utiliza o útero e a mãe, como uma planta utiliza a terra, para obter nutrientes até que esteja perfeito a ponto de ser um animal potencialmente locomotivo [...] A fêmea, então, proporciona a matéria, e o macho, o princípio de movimento (Gen. Anim., II, 4).

É importante destacar, como faz Maupertuis, que o fato de Aristóteles acreditar que o princípio de geração residia apenas no sêmen masculino constitui uma diferença fundamental em relação à teoria da dupla semente, citada no texto como sendo a teoria dos "antigos". Esta última foi combatida por Aristóteles sobretudo por estar associada à idéia de que a semente é constituída por partículas que se originam por pangênese, ou seja, a partir de todas as partes corporais de cada um dos pais.

Tendo aberto algumas salamandras, fiquei surpreso ao encontrar no interior da mesma, ao mesmo tempo, ovos e filhotes tão perfeitos quanto os dos vivíparos. Os ovos formavam dois cachos semelhantes aos ovários das aves, exceto que estes cachos eram mais alongados e os filhotes estavam encerrados em dois longos canais, cujo tecido era tão transparente que se via através deles muito distintamente. Eu contei dentro de uma salamandra 42 filhotes e dentro de uma outra 45, quase todos vivos, tão bem formados quanto as salamandras adultas e mais ágeis que elas. Estes animais parecem muito convenientes para esclarecer o mistério da geração pois, mesmo que haja alguma variedade na natureza, as coisas acontecem, no fundo, mais ou menos da mesma maneira (Maupertuis, 1727, p. 32).

Penso que trezentos ou quatrocentos dos menores animálculos, colocados um ao lado do outro, atingem o comprimento do eixo de um grão comum de areia; e tomando apenas o número mais baixo, 300, então 300 vezes 300 = 90.000; 90.000 vezes 90.000 = 27.000.000 de animálculos juntos têm o tamanho de um grão de areia.

Vamos supor que tal grão de areia tenha o seguinte tamanho: 80 deles, colocados um ao lado do outro, atingiriam o comprimento de uma polegada.

80 grãos de areia do comprimento de uma polegada vezes 80 = 6.400

6.400 vezes 80 = 512.000 de animálculos numa polegada cúbica.

512.000 vezes 27.000.000 de animálculos correspondem ao tamanho de um grão de areia = 13.824.000.000.000 de animálculos numa polegada cúbica (Leeuwenhoek, apud Pinto-Correia, 1999, p. 355).

Eu notei que o ovário direito desta mulher [...] tinha em sua superfície um buraco com 3 linhas de diâmetro [...] a trompa direita estava maior que de ordinário; [...] no interior da cavidade, dessa trompa, bem próximo do útero, havia uma vesícula de 3 linhas de diâmetro que aí tinha caído do ovário pelo buraco do qual falei [...]; o ovário esquerdo [...] possuía em sua superfície uma pequena cicatriz aberta centralmente [...] que terminava em uma pequena bolsa [...]. Há muita evidência de que algum tempo antes havia saído pela abertura dessa bolsa uma vesícula que deve ter caído no interior do ventre, pois o pavilhão [da] trompa [esquerda] estava colado [...] ao ligamento maior do útero [...] [e, portanto,] não podia dirigir-se por sobre o ovário para receber essa vesícula e transportá-la em seguida para dentro do útero (Littre, 1701, p. 111-3).

O feto preformado foi observado em uma das três vesículas que Littre identificou no ovário esquerdo da mulher:

Eu observei ainda no mesmo ovário uma terceira vesícula [...] [que] além de um líquido claro e mucilaginoso, continha um feto [...] preso à parte interior das membranas da vesícula por um cordão [...]. Eu distingui muito sensivelmente a cabeça desse feto e na cabeça uma pequena abertura no lugar da boca, uma pequena protuberância no lugar do nariz e uma pequena linha em cada lado da raiz do nariz. Estas duas linhas eram aparentemente as aberturas das pálpebras [...]. Eu percebi ainda em cada lado da base do tronco uma protuberância que era arredondada [...] [e] lateralmente, na porção superior do mesmo tronco, uma protuberância também arredondada [...]. Essas pequenas protuberâncias eram verdadeiramente as extremidades superiores e inferiores desse feto (Littre, 1701, p. 114).

O sistema da geração do homem pelos ovos é hoje muito comumente recebido. Além de várias razões particulares que o estabelecem, a anatomia geral o favorece e é uma prova bem forte para aqueles que conhecem a maneira de agir da natureza. Todas as plantas vêm de ovos, pois os grãos são para a física verdadeiros ovos aos quais a língua deu um outro nome; todos os animais ovíparos devem constantemente seu nascimento aos ovos, que as fêmeas colocaram fora delas e é muito provável que os vivíparos diferem dos ovíparos apenas por suas fêmeas chocarem e fazerem eclodir seus ovos dentro delas mesmas. Todas as plantas e a maior parte dos animais possuem o mesmo princípio de geração; a outra parte dos animais, e a menor, teria um princípio à parte?

Entretanto, como é preciso não dar levianamente regras à natureza, e como, até que haja uma evidência incontestável, sempre se tem o direito de duvidar e de examinar, o Sr. Mery ainda não está completamente persuadido do sistema dos ovos e nele encontra dificuldades consideráveis que não lhe parecem que se as tenha eliminado até o presente (Fontenelle, 1743 [1701], p. 38-9).

As observações de Mery, "feitas sobre o corpo de uma mulher que parece ter tido filhos", são apresentadas no artigo como contra-provas às suposições de Littre e dos ovistas em geral de que as "vesículas" encontradas nos ovários são verdadeiros ovos e que as cicatrizes encontradas nos ovários são evidências da saída desses ovos:

O ovário esquerdo estava absolutamente sem ovos, mesmo estando com o tamanho ordinário e em bom estado. O direito continha apenas três células, mas vazias e revestidas cada qual por uma membrana que parecia absolutamente inseparável de sua substância.

Suas células não possuíam qualquer comunicação com o exterior. Não se percebia em sua membrana particular [do ovário] qualquer abertura, fenda ou traço de um ovo que dele saiu; e, entretanto, se reconhecia, por outras evidências, que a mulher não era estéril.

É verdade que a membrana comum e exterior de cada ovário estava entrecortada por um grande número de pequenas fendas, mas esse mesmo grande número serve ao Sr. Mery contra o sistema dos ovos, pois, se cada pequena fenda fora produzida pela saída de um ovo, esta mulher seria de uma fecundidade inaudita e, por conseguinte, estes tipos de cicatrizes deveriam ter alguma outra causa.

O Sr. Meri encontrou ainda no indivíduo que dissecou uma prova de que se foi muito apressado ao tomar por ovos as vesículas dos ovários. Havia na espessura do orifício interno do útero, vesículas muito parecidas, preenchidas por um líquido que tinha toda a aparência de ser seminal; e essas vesículas, às quais não se pode atribuir a fonte da geração, teriam, entretanto, essa honra se elas simplesmente estivessem situadas em um lugar um pouco mais favorável ao sistema (Fontenelle, 1743 [1701], p. 39-40).

A seguir, Fontenelle expõe e comenta as observações de Littre que apresentamos na nota anterior. Ao apresentar o embrião preformado supostamente observado no ovário esquerdo, Fontenelle faz a seguinte observação:

Se os filósofos mais indiferentes a todos os partidos e os mais zelosos pela verdade não estiveram às vezes sujeitos, nas observações delicadas, a ver aquilo que eles acreditam ser verdadeiro, o sistema dos ovos está fora de contestação (Fontenelle, 1743 [1701], p. 42).

Mery estava entre os autores que se opunham ao ovismo na Academia de Ciências e sua disputa com Littre continuou em outros trabalhos, além dos aqui citados (cf. Roger, 1993, p. 280-3).

Cinco dias após o coito, eu notei seis vesículas vazias nos testículos de uma outra coelha [...] O mesmo número de ovos foi encontrado em diversos lugares do útero sem estarem presos, pois, soprando-os, fazia-os mudar facilmente de lugar (Graaf, 1991, p. 36).

Doze dias após o coito, eu encontrei em uma outra coelha sete vesículas vazias em um testículo, cinco no outro e o mesmo tanto de células nos cornos do útero, muito maiores e mais arredondadas que as precedentes (Graaf, 1991, p. 38).

Quatorze dias após o coito, eu notei que o útero de uma outra coelha tinha essas células muito maiores e com vasos em um número maior e mais dilatados; reconheci também que, à medida que as células crescem, aproximam-se umas das outras e diminuem os espaços entre elas [...]. Ela tinha em seus testículos onze pequenas vesículas brancas e outras ainda menores, pouco diferentes da substância dos testículos; aparentemente, como já dissemos, as vesículas dos ovos não se apagam inteiramente nos testículos, mas deixam nele alguns pontos, o que faz com que quanto mais as coelhas gestaram, mais elas tenham os testículos grandes e brancos e, a partir daí, podemos conhecer se elas tiveram várias gestações. Após haver examinado o ovário, passei ao útero [...]. Ele tinha em sua cavidade onze filhotes (Graaf, 1991, p. 39-40).

[...] ainda que Stenon seja o primeiro autor da descoberta desses pretensos ovos, Graaf quis atribuir-se [a descoberta] e Swammerdam também a discutiu, também com aspereza: ele pretendeu que Van-Horn também havia reconhecido esses ovos antes de Graaf; é verdade que se pode censurar este último por haver assegurado positivamente várias coisas que a experiência desmentiu e por ter pretendido que se podia determinar o número de fetos contidos no útero através do número de cicatrizes ou folículos vazios do ovário, o que não é verdadeiro, como se pode ver pelas experiências de Verheyen, tom. ii, ch. iii, edit. de Bruxelas, 1710, pelas do Sr. Mery, Hist. De l'Acad., 1701, e mesmo por algumas das próprias experiências de Graaf nas quais, como assinalamos, ele encontrou menos ovos no útero do que cicatrizes sobre os ovários (Buffon, 1853 [1749], p. 42).

A obra citada no texto é a edição de 1710 da Anatomia corporis humani de Verheyen, editada pela primeira vez em Louvain, em 1693. As observações de Mery citadas por Buffon são as mesmas a que Maupertuis se referiu anteriormente nesse mesmo capítulo e que apresentamos na nota 19.

A veia que é primeiramente vista no humor cristalino, que está dentro do âmnio, tem sua origem a partir do punctus saliens e sua natureza e função é aquela dos vasos umbilicais. Crescendo amplamente por graus, ela é vista como estando prolongada em outras ramificações que estão dispersas por toda a coliqüescência [colliquament]. A partir disto, o mais evidente é que, desde muito cedo, a nutrição é adquirida apenas da coliqüescência na qual o feto nada. Mostrei o já pulsante ponto em um útero dissecado à sua sereníssima Majestade, o Rei. Ele era tão pequeno que, sem o auxílio dos raios do Sol brilhando obliquamente, ele não teria percebido seus movimentos tremulantes (Harvey, 1981 [1651], p. 96).

A primeira referência de Harvey no De generatione a este punctum saliens (ponto saliente ou latejante, que Maupertuis chama de point vivant, ou seja, ponto vivo) aparece em suas observações sobre o desenvolvimento da galinha:

Se se inspeciona então o ovo no quarto dia, uma grande metamorfose e uma maravilhosa alteração já terá acontecido e ela torna-se mais manifesta aproximadamente de hora em hora ao longo do dia. Nesse período, o feto no ovo passa da vida de uma planta para a de um animal. Em seguida, já o limbo ou a borda da coliqüescência começa a ficar púrpura e está contornado por uma minúscula linha de sangue; e próximo de seu centro salta um ponto sanguinolento pulsante que ainda é tão extraordinariamente pequeno que em sua diástole ele brilha como uma chispa de fogo e imediatamente após sua sístole ele escapa completamente à vista e desaparece. Quão tênues são os primeiros rudimentos de criatura viva que o poder formativo da Natureza molda a partir destas origens ocultas! [...] no início do quarto dia ele [o punctum saliens] está mais aparente e pelo fim desse dia torna-se muito claro ver que, como Aristóteles diz, 'o ponto sanguinolento pulsante já move-se como um animal no líquido transparente', ao qual eu chamo coliqüescência (Harvey, 1981 [1651], p. 96).

Mas, dado que não há sinais manifestos de concepção antes do útero começar a relaxar e do líquido albuminoso ou dos fios delgados (como as teias da aranha), que são o primeiro rudimento do futuro ovo ou concepto, começar a aparecer, e visto que a substância do útero que foi preparada para a concepção é tão semelhante à constituição do cérebro, por que não podemos justamente supor que a função de cada um deles é também semelhante, e que o que a imaginação e o apetite são para o cérebro, a mesma coisa, ou ao menos algo análogo a ele, é estimulado no útero pelo coito e, a partir disso, ocorre a geração ou procriação do ovo? (Harvey, 1981 [1651], p. 445).

É uma classe de animais bem estranhos [...] eles passam uma parte considerável de sua vida, vários meses seguidos, e aqueles nos quais eles mais crescem, aplicados contra caules ou ramos de ervas, arbustos e árvores, sem oferecer qualquer movimento sensível [...]. Na própria época em que ele se tornou capaz de se multiplicar, na época em que ele está ocupado em colocar milhares de ovos, ele se parece apenas com uma galha, apenas com uma excrescência semelhante àquelas das árvores [...] que têm sua origem na picada de insetos e nas quais os insetos crescem (Réaumur, 1738, p.1-2).

Quando eu observava uma mosca que estava em movimento sobre uma cochonilha, via que, ao invés de dirigir sua espécie de cauda ou aguilhão na direção de seu corpo, ela o inclinava para baixo, às vezes a ponto de mantê-lo perpendicular a seu ventre. Assim, este aguilhão estava dirigido de modo a poder ser impelido contra o corpo da cochonilha, como se a mosca quisesse picá-la. Mas isso ocorria para dar-lhe alguma picada fatal ou não era antes para introduzi-lo na parte que caracteriza o sexo da fêmea? Cinco a seis observações consecutivas não me permitiram ficar incerto sobre o que era preciso pensar. Eu vi cinco a seis moscas introduzirem seu aguilhão no corpo de cinco a seis cochonilhas diferentes; todas introduziram-no nesta fenda que está na parte posterior da cochonilha, nesta fenda que os pequenos insetos recém-nascidos bem sabem encontrar para sair por debaixo do corpo seco de sua mãe. Alguns mantiveram seu aguilhão introduzido nesta fenda durante mais de três a quatro minutos. Enfim, não observei nenhuma mosca desta espécie que tenha introduzido seu aguilhão no dorso ou em qualquer outro local da cochonilha. Pelo que podemos tomar uma parte que um inseto insere constantemente na fenda que está na parte posterior da fêmea? Não podemos portanto nos impedir de reconhecer nossas pequenas moscas como os machos das cochonilhas (Réaumur, 1738, p. 34).

É bom saber que os vermes luminosos são as fêmeas da espécie; os machos não são luminosos e possuem asas. Um dia, quando o Sr. Réaumur segurava uma fêmea em suas mãos, um macho veio ao seu encontro e eles se acasalaram. A luz da fêmea é um pequeno facho que guia o macho ao local onde ela está. Expressões poéticas que utilizamos na linguagem do amor seriam utilizadas literalmente por esses insetos (Fontenelle, 1753, [1723], p. 9).

Swammerdam foi a favor da opinião que pretende que o embrião esteja sempre encerrado no ovo da fêmea, mas que ele não pode aí crescer senão após ter sido vivificado pelo macho. Esse grande anatomista, que muito havia estudado a estrutura admirável das partes da geração, sabia que era pouco possível imaginar que uma porção, mesmo muito pequena, do líquido leitoso do macho pudesse ser levada até os ovos de uma fêmea de qualquer espécie de animal que fosse; de onde lhe parecia que se devesse concluir que os ovos poderiam ser fecundados apenas pelo vapor, apenas pelo espírito desse líquido (Réaumur, 1740, p. 498-500).

Este vapor ou espírito fecundante do sêmen masculino aparece em várias versões relacionadas à preexistência ovista, tal como a que Maupertuis apresentou no capítulo iii. De forma simplificada, pode-se dizer que elas têm em comum atribuir ao sêmen masculino o papel de ativar o processo de crescimento do germe preformado no ovo e, assim, não atribuem ao macho qualquer função gerativa direta do embrião.

nenhuma outra alma vegetativa, nem sensitiva, nem mesmo outro princípio de movimento e de vida além do seu sangue e de seus espíritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seu coração e que não é de outra natureza que todos os fogos que estão nos corpos inanimados (Descartes, 1963, p. 480).

A teoria embriológica de Descartes é, como a de Maupertuis, de base epigenética e fundada na teoria da dupla semente. Mas em Descartes a mistura das sementes masculina e feminina, pelo menos a dos animais, produz uma "mistura confusa" de partes materiais que não exibem qualquer organização inicial; não há, portanto, preformação de partes orgânicas, como na epigênese de Maupertuis:

Nada determino concernente à figura e ao arranjo das partículas da semente: basta-me dizer que a das plantas, sendo dura e sólida, pode ter suas partes arranjadas e situadas de certo modo, não podendo ser alterada sem torná-las inúteis; porém o mesmo não ocorre com a dos animais que, sendo muito fluida e ordinariamente produzida pela conjunção dos dois sexos, parece ser apenas uma confusa mistura de dois líquidos que, servindo como fermento um para o outro, se aquecem de modo que algumas de suas partículas, adquirindo a mesma agitação que tem o fogo, se dilatam e comprimem as demais e, mediante isso, pouco a pouco as dispõem do modo requerido para formar os membros (Descartes, 1986, p. 253).

Este assunto foi tratado na Academia apenas em relação à teoria da formação dos monstros e, como esta questão, sobre a qual se disputou, produziu muitos escritos por toda parte, entendemos que deles há uma certa quantidade de modo que o todo em conjunto possa ser mais facilmente visto de um só golpe.

Antes que se tivesse descoberto que todas as gerações se fazem pelos ovos, os físicos nada disseram sobre os monstros que pudesse pertencer à verdadeira física; eles os trataram apenas como erros e equívocos da natureza, que seria preciso de certa maneira perdoar e que não mereciam sua atenção ou mereciam apenas o horror.

Em seguida, sendo conhecido o sistema dos ovos, viu-se que a formação geral dos monstros duplos podia ser explicada por dois ovos que algum acidente teria unido ou confundido no útero de uma mulher e, com efeito, esta formação se oferece por si só aos olhos em um grande número de monstros, tais como as crianças unidas pela cabeça, ou pelas costas etc. e de resto bem separadas.

Mas acontece freqüentemente que esta formação não é tão sensível. Partes, sejam externas ou internas, irregularmente construídas, mal arranjadas entre si, deslocadas, sejam simples ou duplas etc., parecem não concordar com o sistema e grandes anatomistas, tais como os senhores du Verney e Winslow, não acreditaram aí poder aplicar todos os fatos que eles tinham sob os olhos; supuseram ovos originariamente monstruosos, cujo desenvolvimento tão regular quanto o dos demais proporcionaria isso que chamamos monstros e esses monstros seriam tanto da primeira intenção da natureza quanto os animais mais ordinários que nos comprazemos chamar de perfeitos.

Vimos sobre esta matéria os escritos do Sr. du Verney em 1706, do Sr. Lémery em 1724, do Sr. Winslow em 1733 e 1734, do Sr. Lémery em 1738. O Sr. Lémery sempre combateu e ainda combate aqui o sistema dos monstros tornados tais pela união ou confusão acidental de dois ovos contra o sistema dos ovos originalmente monstruosos (Mairan, 1742, p. 37-8).

Após a morte de Lémery, em 1743, apareceu um segundo artigo de revisão na Histoire da Academia, com o mesmo título, que atualiza a série de trabalhos publicados sobre a controvérsia:

Os monstros, tais como as crianças com duas cabeças, e, em geral, todos os fetos, seja do homem, seja dos animais, que diferem da espécie comum pela estrutura ou pelo número de suas partes internas ou externas, nascem de germes monstruosos, ou são eles apenas o efeito da desordem e da mistura fortuita de dois ou vários germes no seio da mãe? É esse o tema de uma questão que foi por muito tempo debatida na Academia entre o Sr. Winslow e o Sr. Lémery e da qual já fizemos menção na História de 1742 e no Elogio do Sr. Lémery. Acrescentamos que o Sr. Winslow, estando quase sempre satisfeito em expor os fatos sem tocar nas conseqüências, esperava pacientemente que o Sr. Lémery tudo dissesse, para responder-lhe e para nos oferecer seu verdadeiro pensamento sobre o assunto. Ele o faz atualmente com o desejo de a isso não mais retornar, seja devido à morte de seu ilustre antagonista, seja porque acredita que, após isso, a questão está suficientemente esclarecida [...]. Pode-se ver as Memórias [de Lémery] nos volumes de 1724 e 1738 e, enfim, no de 1740, onde há cinco delas, tudo o que nos restou sobre esta matéria [...]. As Memórias do Sr. Winslow [...] foram oferecidas em 1733, 1734, 1740 e 1742 (Mairan, 1743, p. 53-4).

Com exceção do artigo de 1742 de Winslow, são estas as Memórias que Maupertuis cita no texto. Mais adiante o leitor verá como Maupertuis dissolve essa controvérsia de mais de três décadas simplesmente abandonando a própria idéia da preexistência do germe no ovo. Nesse sentido, vale a pena citar, para este último artigo, a opinião de Mairan sobre o caráter científico da preexistência ovista que já declarara no artigo anterior.

Antes que se tivesse descoberto, ou que fosse aceito pela maioria dos físicos e dos anatomistas, que todas as gerações dos corpos organizados ocorrem por meio de ovos ou pelos germes que eles contêm em miniatura, não poderia ter ocorrido uma verdadeira disputa sobre a origem dos monstros, ou pelo menos seria difícil reconduzir a disputa para uma física inteligível (Mairan, 1743, p. 53).

Kepler, a quem, aliás, a astronomia deve tão grandes favores, achava razoável que, assim como o mar possui suas baleias e seus monstros, o ar possuía os seus. Esses monstros eram os cometas e ele explica como eles são engendrados do excremento do ar por uma faculdade animal. Alguns acreditaram que os cometas eram criados expressamente todas as vezes que fossem necessários para anunciar aos homens os desejos de Deus e que os anjos os conduziam. Eles acrescentam que esta explicação resolve todas as dificuldades que se possa levantar sobre esse assunto. Enfim, para que todos os absurdos sobre essa matéria fossem ditos, há quem tenha negado que os cometas existissem e quem os consideraram apenas como falsas aparências causadas pela reflexão ou refração da luz (Maupertuis, 1965b [1768], p. 213-4).

Quando vertemos espírito de nitro sobre limalha de ferro, sabe-se que ocorre um efervescência violenta acompanhada de um calor tão forte que é quase impossível pôr a mão sobre o recipiente. Após a efervescência, o líquido torna-se vermelho e carregado devido ao ferro que foi dissolvido. Eu coloquei óleo de tártaro sobre essa dissolução de ferro [...] e pouco tempo depois formou-se nas paredes do recipiente vários ramos pequenos bem distintos que, elevando-se sempre do líquido sem fermentação aparente e aumentando continuamente, logo alcançaram o topo do recipiente, chegando mesmo a cair para fora em tão grande quantidade que eles cobriram sua superfície interna e externa. Poderíamos dar o nome de árvore de ferro ou de marte a essa espécie de vegetação química. Como me pareceu curiosa, eu repeti esta experiência um grande número de vezes, tanto aumentando quanto diminuindo a dose de óleo de tártaro, e sempre se formaram diferentes tipos de vegetações que, às vezes, se pareciam apenas com puros ramos; freqüentemente estes ramos estavam como que providos de folhas, acima, como que exibindo frutos ou flores e, abaixo, traziam ou filetes que imitavam perfeitamente a figura das raízes ou vasos realmente ocos que partiam do fundo do recipiente e se comunicavam com o topo, onde estava o grosso da vegetação (Lémery, 1706, p. 414-5).

A Árvore de Diana é produzida por uma reação semelhante, brevemente descrita por Maupertuis, que tem a prata como metal de base. Há ainda árvores de outros metais, como o ouro e o cobre. O químico Guillaume Homberg (1652-1715) publicou nas Mémoires, em 1710, um artigo que classifica e discute a natureza dessas árvores químicas. A opinião do químico sobre a analogia entre elas e as árvores "orgânicas" vai numa direção bem diferente daquela que vemos Maupertuis assumir. Após descrever a formação dos ramos de uma dessas árvores, Homberg diz o seguinte:

Esses ramos assemelham-se bastante a uma verdadeira vegetação quando observamos apenas a figura externa; mas quando consideramos que uma verdadeira planta é um corpo orgânico cujas partes servem para extrair o sumo da terra, para preparar esse sumo para a nutrição e o crescimento da planta e para produzir, enfim, sementes que também são pequenos corpos orgânicos, que se desenvolvem em novas plantas através da nutrição que absorvem; e quando, ao contrário, vemos em nossas vegetações artificiais que elas são apenas simples cristalizações ou reuniões de alguns pequenos pedaços de metal, que o acaso colocou um sobre os outros sem ordem e sem qualquer parte orgânica, a comparação que quisermos fazer entre elas e a verdadeira vegetação das plantas não poderá de forma alguma subsistir (Homberg, 1710, p. 428).

Uma avaliação anacrônica da interpretação poderia atribuir maior cientificidade à posição de Homberg comparativamente à de Maupertuis. Não obstante, sua recusa em reduzir o caráter orgânico da planta, sobretudo o da semente, a simples cristalizações artificiais sustenta a idéia de preformação não há ruptura do caráter orgânico da semente ou do germe em relação à planta ou ao animal adulto.

eu observei que, dentre as substâncias que possuem essa disposição de unir-se, encontrando-se duas unidas, algumas [substâncias] que delas se aproximam ou a elas misturam-se, unem-se a uma delas e expulsam a outra; e outras [substâncias] não se unem a nenhuma das duas e não as separam. Daí, pareceu-me que poderíamos concluir com razoável verossimilhança que aquelas que se unem a uma das duas tinham maior afinidade de união ou de disposição de unir-se a ela do que com aquela que se afastou devido à sua aproximação (Geoffroy, 1741 [1718], p. 19)

A partir dessas observações, Geoffroy deduz a proposição geral citada por Maupertuis e que lhe aparece, então, como uma "chave" para interpretar a seletividade das reuniões de substâncias que formarão os distintos corpos químicos. É quase natural sua aplicação à produção dos organismos: certos conjuntos de substâncias podem engendrar mecanicamente, segundo as leis das afinidades, corpos cristalinos complexos tais como a árvore de Diana e, talvez, corpos vivos ainda mais complexos. Geoffroy oferece ainda uma tabela de afinidades entre as principais substâncias utilizadas em química, "onde, num golpe de vista, podemos ver as diferentes afinidades que elas possuem entre si"; com essa tabela os químicos poderão encontrar "um método simples para descobrir o que ocorre em muitas das operações difíceis de desvendar e o que deve resultar da mistura de diferentes corpos mistos que eles realizam" (Geoffroy, 1741 [1718], p. 21). Temos aqui um projeto delineado para a elucidação da produção de corpos químicos e Maupertuis sugere que ele também possa ser aplicado para explicar a produção dos corpos vivos.

A parte mais estreita do Istmo da América é o que se chama propriamente Istmo do Darién, do nome, sem dúvida, do grande rio que limita sua costa setentrional ao leste [...]. Está quase toda encerrada entre os graus 8 e 10 de latitude setentrional [...]. Mas não saberia dizer precisamente até que extensão a oeste leva o nome de Istmo do Darién, se é até Honduras ou Nicarágua, ou se não é mais além do rio Chagres ou das cidades de Portobelo e Panamá (Wafer, 1960, p. 43).

Os nativos da região que Maupertuis designa como "Dariens" são, na verdade, conforme a descrição de Wafer, um pequeno subgrupo de indivíduos albinos que vivem junto dos demais darienitas, que possuem "a tez morena, cor de cobre amarelo ou alaranjada e os cabelos negros como azeviche". Apresentamos abaixo a descrição completa que Wafer oferece desse subgrupo albino:

Há naquele país certas pessoas que possuem uma tez muito particular. Não as vi semelhante em nenhuma outra parte, nem mesmo ouvi dizer que existam. Isto poderá parecer estranho, mas não há corsário que tenha estado no Istmo que não o possa confirmar, pelo menos no essencial, embora poucos tivessem ocasião de instruir-se nisso tão bem quanto eu.

Estes índios, de ambos os sexos, são muito brancos, mas seu número é tão pequeno, comparado com o dos outros, que talvez não haja um ou dois por trezentos dos de cor amarela. Além disso, sua brancura não é como a dos europeus, mesclada de encarnado, nem como a de nossas gentes pálidas: é mais precisamente cor de leite e se assemelha muito à de um cavalo branco. Sua cútis também se apresenta mais ou menos toda recoberta por uma espécie de véu esbranquiçado que faz ressaltar seu brilho, mas não tão espesso, sobretudo nas faces e na fronte, que impede distinguir bem a tez. Os homens teriam sem dúvida a barba branca e muito espessa se não tivessem o cuidado de raspá-la tão pronto começa a mostrar-se, operação que os velhos não realizam. As sobrancelhas também são de um branco-leite e do mesmo modo os cabelos, os quais têm sete ou oito polegadas de comprimento e são muito finos, bonitos e meio crespos.

Estes índios não são tão fortes como os demais, mas o mais surpreendente é que suas pálpebras são de figura oblonga, ou mais precisamente em forma de meia lua, com as pontas para baixo. Por este motivo, e porque vêem muito bem com a claridade da Lua, chamamo-los "olhos de Lua". Têm estes tão débeis que quase não vêem em pleno dia e se o Sol chega a feri-los, lacrimejam prontamente; assim, não lhes agrada sair de dia, a menos que o céu esteja coberto de nuvens.

Também são de constituição muito delicada com respeito aos demais e não gostam da caça nem dos exercícios penosos, para os quais não são próprios. Mas embora sejam muito lentos, entorpecidos e tranqüilos durante o dia, tão pronto aparece a Lua se mostram cheios de fogo e atividade: correm pelos lugares mais sombrios das selvas tão rapidamente como os outros índios o fazem de dia, com a diferença de que não são tão robustos nem tão vigorosos e saltam como corças.

Parece que os demais índios os depreciam e os olham como uma espécie de monstro. Não formam uma raça particular e distinta, pois acontece muitas vezes que um pai e uma mãe de cor de cobre amarelo têm um filho desta classe. Eu mesmo vi um que tinha apenas um ano completo. Poderia suspeitar-se que esses brancos descendem de algum pai europeu; porém, além dos europeus quase não irem por ali, e quando vão têm pouco comércio com as índias, esses brancos não diferem menos dos europeus em certos aspectos do que dos índios cor de cobre em outros. Por outro lado, a criança que nasce de um europeu e de uma índia é sempre mestiça, ou morena, como sabem todos os que estiveram nas Índias Ocidentais, onde há mestiços, mulatos etc. de muitos graus entre o branco, o negro e o índio, conforme a cor do pai e a da mãe [...].

Além disso, os filhos destes índios não são brancos como o pai ou a mãe, mas de cor cobre amarelada, como seus avós. O próprio Lacenta [chefe da tribo que conviveu com Wafer] disse-me isso e conjecturava que sua brancura [não a de Lacenta, que não era albino, mas a dos índios do subgrupo em questão] era devida à imaginação viva da mãe, que olhava a Lua na época da concepção. Deixo a outros o cuidado de examinar se é esta a verdadeira causa. Lacenta assegurou-me também que tais índios morriam muito jovens (Wafer, 1960, p. 82-4).

Comparando o relato anterior com o texto da Vênus física, percebe-se que Maupertuis não discute os problemas relacionados à herança da cor branca da pele humana apontados na obra, preferindo desenvolver um breve romance sobre a vida dos darienitas a partir das informações dadas por Wafer. Contudo podemos comparar o que Wafer diz sobre o desprezo conferido aos darienitas albinos pelos demais nativos e sobre a vida isolada que sua constituição física lhes exige com a teoria sobre o isolamento das raças humanas que Maupertuis apresenta no capítulo vii desta segunda parte da Vênus física. A formação deste subgrupo de darienitas albinos dentro da população com coloração normal poderia ser explicada pela mesma conjectura, baseada em uma forma de isolamento social, que Maupertuis desenvolve para explicar a origem dos negros, dos gigantes e dos anões.

O Sr. Helvetius comunicou à Academia o seguinte relato, que lhe fora enviado pelo Governador do Suriname, seu parente. Ele foi feito pelo Sr. de Treytorens, médico, testemunha ocular.

Fazia, na época em que o relato foi escrito, 9 ou 10 meses que uma negra escrava, grande e bem feita, e que já havia tido alguns filhos, deu à luz a um que pareceu muito singular. Ele era grande, bem formado, muito branco, cor que sempre lhe persistiu. Toda sua fisionomia, todos os traços de seu rosto, eram de um negro, os lábios grossos e elevados, o nariz comprimido e chato. Além do mais, tinha, como os outros negros, lã na cabeça, mas uma lã tão branca quanto a neve. Apesar de exposto fortemente ao sol durante todo o tempo no local onde fica encerrado, não havia avermelhado, não mais do que a lã de sua cabeça. O branco de seus olhos era muito claro, o que não é raro, mas sua íris era de um vermelho bem vivo e cor de fogo, matizados apenas com alguns traços brancos puxando para o azul; a pupila que conhecemos apenas como negra, e que assim deve ser por ser um vazio, também era bem vermelha. Esta criança não queria abrir os olhos quando fazia sol vivo e violento, fora do qual ela os abria e enxergava em um local pouco iluminado. Tão logo queria fixar a vista sobre um objeto, sua íris e sua pupila assumiam um movimento extremamente rápido, como um rodopio em torno de seu centro, parecendo que a criança se colocara de um só golpe a buscar alguma coisa com os olhos com muita agitação. Ele tinha piã, doença comum nos negros, e ainda não havia perdido nada de sua boa aparência física. Seus dentes continuavam a crescer e já havia cinco deles. Ele parecia pouco inteligente e destinado a ser imbecil.

A grande questão é saber quem era seu pai. Não é um negro, ainda que a mãe o diga. É bem verdade que as crianças negras nascem brancas, com exceção de um pouco de negro nas partes genitais e na raiz das unhas, mas alguns dias após seu nascimento, elas mudam e tornam-se negras. Se eles são mulatos, filhos de um branco e de uma negra, tornam-se vermelhos. Reconhece-se por essas marcas as diferentes origens e elas não podem ser por muito tempo duvidosas. Quanto à criança sobre a qual falamos, ela ainda era perfeitamente branca aos 9 ou 10 meses.

Seu pai também não era um branco. De onde lhe teria vindo todos os traços negros tão notáveis, esta lã no lugar de cabelo? Ademais, a mãe já havia concebido um mulato e não escondera que ele tinha vindo de um branco; por que ela o teria escondido desta vez, tal como o fazia obstinadamente? Ainda é comum que os negros se sintam honrados por um comércio com os brancos e disso não deixam de se vangloriar.

Falou-se em algumas narrativas da África de certos povos brancos, ou, no mínimo, se existem em um número muito pequeno, de certos homens brancos que habitam os países dos negros. Notou-se particularmente que eles possuem a visão tão extremamente débil que mal podem suportar o dia e que eles saem apenas à noite de suas cavernas ou tocas. Os negros não os tratam como homens e os caçam como animais. Vê-se muito bem a semelhança que a criança da negra poderia ter com eles e, o que à primeira vista pareceria confirmar esta idéia, é que o relato do Suriname afirma expressamente que velhos negros trazidos da Costa da Guiné disseram ter visto nestas regiões crianças brancas em lugares onde os brancos nunca vão, mas que seus chefes logo os fazem perecer. Podemos bem imaginar que um branco da África teria encontrado a negra na África e que daí teria vindo a criança. Mas como ela o teria encontrado na América? Como ele teria aí chegado e não teria sido visto? É verdade que alguns dizem que há desses brancos na América. Há ainda muitos esclarecimentos a desejar sobre esse pai, que seria curioso conhecer (Fontenelle, 1734, p. 15-7).

Nos próximos capítulos o leitor encontrará a explicação de Maupertuis para a origem dos negros albinos e perceberá porque, por essa explicação, a recusa do autor do relato em aceitar que o pai da criança fosse um negro não faz sentido. A mãe da criança dizia a verdade.

Traduzido do original em francês por Maurício de Carvalho Ramos

  • 1
    A tradução das citações latinas feitas por Maupertuis estiveram a cargo de Adriano Machado Ribeiro, professor de letras clássicas, a quem agradecemos a colaboração prestada. "Extremum hunc, Arethusa, mihi concede laborem: punca meo Gallo, sed
    quae legat ipsa Lycoris, carmina sunt dicendi: neget quis carmina Gallo?" "Concede-me, Aretusa, este último trabalho: poucos versos, mas
    que os leia a própria Licóride, ao meu Galo serão ditos: quem negará versos a Galo?" (
    Bucólicas, 10; Virgílio, 1986, p. 71).
  • 2
    Segundo Tort (Maupertuis, 1980, p. 74, n. 1), Maupertuis possivelmente refere-se aqui a Fontenelle e seus amigos. De fato, Fontenelle revelara-se crítico importante de Maupertuis já na publicação da
    Figura dos astros, em 1732, opondo-se à sua adesão à física de Newton. Mas a querela com Fontenelle mais próxima de 1744, ano em que Maupertuis conhece a criança albina e publica seu primeiro estudo a respeito, ocorreu em 1743 por ocasião da eleição de Maupertuis para a Academia Francesa. Em suas
    Memórias, o Duque de Luynes apresenta, nas notas do dia 10 de junho desse ano, um resumo do acontecido:
  • 3
    Segundo Tort (Maupertuis, 1980, p. 74, n. 2), esse jovem doutor (onze anos mais novo que Maupertuis) era Julien Offray de la Mettrie (1709-1751). La Mettrie estudou em Caen, Paris e Reims, tendo feito um estágio em Leiden com Boerhaave. Publica em 1745 a
    Histoire naturelle de l'âme, condenada pelas autoridades parisienses em 1746 por suas idéias materialistas. Para evitar a prisão, La Mettrie exila-se na Holanda onde reencontra Boerhaave e inscreve-se, em 1747, como estudante na Faculdade de Medicina de Leiden. Em 1748 publica
    L'homme machine, que é igualmente condenado. La Mettrie procura, então, exílio em Berlim junto a Frederico II. É aceito e nomeado em julho desse ano para a Academia de Berlim, então presidida por Maupertuis. Como este último, La Mettrie nasceu em Saint-Malo, mas provavelmente encontraram-se pela primeira vez somente em Paris, para onde La Mettrie dirigira-se em 1742 (Beeson, 1992, p. 190-1); o auxílio com os textos latinos prestado a Maupertuis ocorrera então em 1744, por ocasião da composição da
    Dissertation physique, aproximadamente dois anos antes do exílio de La Mettrie na Holanda. Posteriormente, em Berlim, Maupertuis enfrentará problemas com as críticas que La Mettrie dirigirá a Haller.
  • 4
    Tort (Maupertuis, 1980, p. 74, n. 3) sugere que Maupertuis talvez se refira a Maurepas, que, além de ter apoiado sua eleição para a Academia Francesa, como vimos na nota 2, também apoiou a expedição à Lapônia realizada sob o comando de Maupertuis para obter as medições que provariam o achatamento polar da Terra. Maupertuis relata o interesse de Maurepas por essa expedição no discurso proferido na assembléia pública da Academia de Ciências de 13 de novembro de 1737:
  • 5
    Para ilustrar o maior interesse dos homens pelo futuro do que pelo passado de sua alma, Maupertuis contrapõe Radamante, juiz dos infernos a quem se deverá prestar conta após a morte, e Eufórbio, uma das encarnações de Pitágoras. É bem provável que Maupertuis tenha tomado de Diógenes Laércio (cf. 1988, p. 229-30) estas referências às vidas passadas de Pitágoras.
  • 6
    "
    Miseret atque etiam pudet aestimantem quàm sit frivola animalium superbissimi origo, cum plerisque abortus causa odor a lucernarum fiat extinctur" "
    Qualquer um apiedar-se-ia e envergonhar-se-ia ao considerar como é precária a origem do mais soberbo dos animais, já que muitas vezes o odor de uma lâmpada que acaba de se apagar provoca o aborto." (
    História Natural, vii, 7, 43; Plínio, 1989, p. 534-5).
  • 7
    Segundo a mitologia, os gregos exigiram que Agamenão, pai de Ifigênia, oferecesse sua filha em sacrifício à deusa Artemis para que a frota grega pudesse chegar a Tróia, já que a deusa a retera em Aulis. Mas a deusa apieda-se de Ifigênia e sacrifica uma corça em seu lugar. Além de evocar a idéia geral da utilização de animais como base comparativa para o estudo da geração humana, a referência a Ifigênia faz uma alusão direta aos estudos de Harvey sobre a geração, realizados a partir da dissecação de várias corças tomadas do parque de caça de Carlos i. Os capítulos VII a X da
    Vênus física falam dos trabalhos de Harvey e de sua importância para a teoria da geração de Maupertuis.
  • 8
    Especificamente a bainha ou estojo de uma espada e, de modo geral, significa envoltório ou envelope (cf. Gaffiot, 1934).
  • 9
    No original
    matrice. Este termo aparece no francês do século IX ao XV com o sentido de
    mãe e não há, no período, o termo
    utérus (Godefroy, 1938). Bloch e Wartburg informam que o termo aparece em 1265 e que desenvolve outros sentidos a partir do século XVII, como, em 1611, o de "molde para fundir moedas" (Bloch & Wartburg, 1989). O primeiro registro no francês de
    utérus é dado, no
    Grand Robert, para o século XVI, na obra de Ambroise Paré (1560) e relacionado ao latim
    uterus (Robert, 1985), mas no
    Dictionaire universel d'Antoine Furetière, de 1690, não aparece
    utérus e sim
    matrice como "a parte das fêmeas dos animais onde ocorre a concepção e a nutrição do feto ou dos filhotes até seu nascimento" (Furetière, 1978 [1690]). A partir de então, parece que
    matrice se torna, no francês do século XVIII, um termo bem mais universal que
    utérus. Ele aparece, por exemplo, em todo o capítulo 5 da
    História dos animais de Buffon, de 1749, que traz uma minuciosa exposição dos sistemas sobre a geração dos animais, e nas descrições de Lemery e Littre, renomados anatomistas da época que se dedicaram ao estudo do aparelho reprodutor feminino. No francês contemporâneo fixou-se o termo
    utérus e
    matrice aparece como termo "envelhecido", ou seja, "palavra, sentido ou expressão ainda compreensível em nossos dias, mas que não mais se emprega naturalmente na língua corrente falada" (Robert, 1994, p. XXIX). Tanto o
    Dicionário Houaiss (Houaiss & Villar, 2001) como o
    Novo Aurélio século XXI (Ferreira, 1999) oferecem o vocábulo
    útero para significar o órgão gerativo feminino. Porém, curiosamente, o
    Houaiss atribui como primeiro significado para
    matriz "órgão das fêmeas dos mamíferos, na cavidade pélvica, onde o embrião e posteriormente o feto se desenvolvem" e, como segundo emprego, o sentido geral de "lugar onde algo é gerado e/ou criado". Já no
    Aurélio o primeiro sentido de
    matriz é o geral, "lugar onde algo se gera", aparecendo o vocábulo como sinônimo de
    útero apenas para o 12
    o sentido.
  • 10
    Tenca ou tinca (
    Tinca sp) é um peixe de água doce da família dos Ciprinídeos que vive em rios da Europa. A estrutura que se assemelha ao focinho deste animal corresponde à cervix do útero com seu óstio externo. Há, no português de Portugal, o termo
    focinho de tenca para designar especificamente tal estrutura: "extremidade inferior do útero, que é perfurada e proeminente na vagina" (Costa e Melo, 1986).
  • 11
    Podemos identificar, de forma resumida, as afirmações de Maupertuis sobre a teoria da geração de Aristóteles nas seguintes passagens da obra citada:
  • 12
    Gabrielle Fallopio (1523-1562), anatomista italiano, foi aluno de Vesálio em Pádua e sucessor do anatomista Realdo Colombo (?-1559). Em sua única obra publicada, as
    Observationes anatomicae, de 1561, aparecem as descrições das trompas que receberam seu nome, além de outros importantes estudos da anatomia do aparelho reprodutor. Apesar de Maupertuis afirmar que as trompas servem de caminho para a condução dos ovos até o útero, Fallopio, segundo Roger, havia observado a distância de alguns centímetros que há entre o pavilhão da trompa em repouso e os ovários, concluindo assim que as trompas não podiam servir de canal para uma semente proveniente dos testículos femininos (Roger, 1993, p. 275).
  • 13
    Philippe Verheyen (1648-1710) nasceu em Verbrouck e ingressou no
    Collége de la Trinité, em Louvain, em 1672. Entrou para o clero, mas abandonou o trabalho eclesiástico devido à perda de uma das pernas. Dedicou-se então à medicina, tornando-se professor de anatomia na Universidade de Louvain a partir de 1689 e de cirurgia a partir de 1693. Tornou-se doutor em 1695 pela mesma Universidade que ganhou notoriedade graças a seus estudos. Maupertuis toma as observações do autor como evidência a favor da chegada do sêmen até o útero. Verheyen está entre os autores que adotaram a preformação ovista e que atribuíram ao sêmen o poder de vivificar o embrião preformado, tal como Maupertuis explicou anteriormente e, assim, a prova anatômica da entrada do sêmen no útero é fundamental para sustentar a teoria. Tal fato é igualmente ou talvez ainda mais importante para apoiar a teoria da geração pela mistura das duas sementes, que é a base da teoria de Maupertuis. A obra de Verheyen em que aparece a observação do útero da novilha não é citada, mas pode-se inferir que ela esteja no
    Supllementum anatomicum, sive anatomie corporis humani liber secundus. Observações e discussões teóricas sobre o sêmen masculino aparecem em algumas referências feitas à essa obra por Roger (1993, p. 287, 314, 320), tomadas de uma edição de 1712. Buffon faz ainda, no capítulo 5 da
    Histoire des animaux, uma citação abreviada do "
    sup. Anat. tom. ii" como contendo os resultados de análises químicas a que Verheyen submeteu o sêmen do touro para decompô-lo em seus componentes mais elementares (Buffon, 1853 [1749], p. 48).
  • 14
    Os animais que o texto aponta como capazes de confirmar a analogia entre vivíparos e ovíparos são as salamandras estudadas pelo próprio Maupertuis no início de sua carreira como naturalista. Os resultados desses estudos encontram-se em sua
    Mémoire de 1727, citada no texto,
    Observations et expériences sur une des espèces de salamandre:
  • 15
    Este capítulo apresenta as observações pioneiras que Hartsoeker e Leeuwenhoek fizeram dos espermatozóides e introduz a discussão da versão animalculista da teoria da preexistência do germe. O primeiro autor citado no texto, Nicolas Hartsoeker (1656-1725), foi um físico e fabricante de instrumentos científicos holandês. Além de fabricante, escreveu também numerosos ensaios sobre as características e as propriedades dos instrumentos ópticos. Realizou um notável trabalho de divulgação dos conhecimentos científicos de sua época, sendo forte opositor das idéias de Newton. Em 1678, conheceu Huygens a quem escreveu um conjunto de cartas relatando suas observações microscópicas dos animálculos do sêmen. Nesse mesmo ano, Hartsoeker acompanhou Huygens em sua viagem de regresso a Paris, onde foi introduzido pelo já célebre companheiro nos círculos científicos da cidade. Trabalhou em Paris de 1684 a 1696 como fabricante de instrumentos científicos, principalmente lentes, microscópios e lunetas seus instrumentos foram utilizados pelos jesuítas e no observatório de Paris. Retornando à Holanda em 1696, tornou-se instrutor de Pedro, o Grande, em física. Hartsoecker admitiu a preexistência e o embutimento dos germes nos animálculos do esperma em seu
    Essay de dioptrique, de 1694. Nessa obra aparece o famoso desenho de um espermatozóide contendo um homúnculo abraçando as pernas e com uma enorme cabeça na verdade trata-se do desenho do que poderia ser visto hipoteticamente, segundo Hartsoecker, caso a pele do animálculo fosse removida. Leeuwenhoek, citado mais adiante por Maupertuis, e Hartsoecker são os personagens principais da complexa história da descoberta dos espermatozóides e da teoria da preexistência animalculista, história que se articula ainda a uma grande quantidade de autores e teorias. Uma reconstrução detalhada de tal história encontra-se em Roger (1993, Cap. ii, especialmente p. 293-322) e um interessante relato de época da mesma, feita por um dos grandes opositores da teoria da preexistência, encontra-se no já citado capítulo 5 da
    Histoire des animaux de Buffon (1853 [1749], p. 47-51).
  • 16
    Anthony van Leeuwenhoek (1632-1723), microscopista e naturalista autodidata holandês, deixou uma coleção de trabalhos extraordinariamente variada sobre a estrutura microscópica de cristais, minerais, plantas e animais. Funcionário municipal em Delf, consagrava seus momentos de descanso às observações microscópicas realizadas com instrumentos de sua própria fabricação. Foi por intermédio de seu compatriota, Regnier de Graaf, que suas valiosas observações foram enviadas na forma de cartas, a partir de 1673, à
    Royal Society, da qual tornou-se membro em 1684. Seus escritos foram publicados nos
    Philosophical Transactions e mais tarde reunidos em quatro volumes sob o título
    Arcana Naturae ope et beneficio exquesitissimorum microscopiorum detecta (1695-1722). Em novembro de 1677 Leeuwenhoek enviou à
    Royal Society a célebre carta na qual expõe a descoberta dos animálculos espermáticos. Mais adiante, nesse mesmo capítulo, Maupertuis apresenta as observações do autor sobre tais estruturas. A título de exemplo, apresentamos abaixo alguns dos cálculos realizados por Leeuwenhoek do número de animálculos que caberiam em uma polegada cúbica:
  • 17
    O
    Grand Robert oferece como última acepção de
    feve, fava, "crisálida de bicho-da-seda" (Robert, 1985). O
    Aurélio indica que o vocábulo é usado como "designação comum a diversos objetos de configuração semelhante à da semente da fava" (Ferreira, 1999), mas não aparece, como no francês, a aplicação específica do termo à crisálida do bicho-da-seda.
  • 18
    O médico e anatomista Alexis Littre (1658-1725) está, junto de Jean Méry, citado mais adiante, entre os mais renomados cirurgiões franceses da virada do século XVII. Estudou em Montpellier e em Paris, licenciando-se em medicina em 1690 e doutorando-se no ano seguinte. Suas aulas de anatomia, ministradas em Paris por quinze anos, foram bastante procuradas. Em 1699, tornou-se membro da Academia de Ciências, publicadando em seus periódicos, entre 1700 e 1720, mais de trinta trabalhos. Apresentamos a seguir um resumo das observações de Littre às quais Maupertuis se refere no texto. Primeiramente sobre a cicatriz ovárica,
  • 19
    Jean Mery (1645-1722), nascido em Vatan (Berry), transferiu-se para Paris em 1663 e logo passou a praticar intenso estudo anatômico no hospital do Hôtel-Dieu, complementado pelo estudo de peças anatômicas em sua própria residência. Em 1681 foi nomeado cirurgião da rainha e, em 1685, cirurgião do Hôtel des Invalides, onde se tornaria primeiro cirurgião em 1700. A partir de então, dedicou-se exclusivamente às pesquisas anatômicas e aos trabalhos junto à Academia de Ciências. Estudou em particular o processo de nutrição fetal e a formação da hérnia, demonstrando que nela o peritônio não se rompe, mas forma o saco hernial. As observações de Mery a que Maupertuis se refere são comentadas e confrontadas com as de Littre no artigo escrito por Fontenelle para a
    Histoire de l'Académie Royale de 1701,
    Sur la génération de l'homme par des oeufs (Fontenelle foi responsável pela redação da
    Histoire até 1739). Citaremos primeiramente os dois parágrafos introdutórios do artigo que apresenta de forma clara e resumida a teoria ovista, tal como era aceita e entendida no início do século XVIII:
  • 20
    Dentre as estruturas observáveis no ovário de vivíparos que foram identificadas aos ovos estão as que atualmente são designadas como cistos ováricos, cavidades preenchidas por líquido que podem aparecer em grande quantidade e com volume variado. Opositores do ovismo, como Mery, descreviam tais estruturas como hidátides, vesículas preenchidas por líquido que, além de não possuírem o conteúdo e a estrutura de um verdadeiro ovo, podiam ser encontradas em outros órgãos como nas trompas, no útero e mesmo nos testículos masculinos.
  • 21
    Régnier de Graaf (1641-1673), médico e anatomista holandês, estudou em Leiden e na Universidade de Angers, onde obteve o título de doutor. Posteriormente, estabeleceu-se como médico prático em Delft como católico não pôde lecionar na universidade protestante de Leiden. Sua obra versa principalmente sobre anatomia e fisiologia, tendo obtido o doutorado com um estudo sobre a secreção pancreática introduziu a técnica de coletar amostra da secreção em cães por meio de uma cânula inserida no ducto pancreático. Mas são seus estudos sobre os sistemas reprodutores masculino e feminino que lhe proporcionaram maior notoriedade, sobretudo aqueles de anatomia e fisiologia comparada dos ovários de mamíferos e aves. A "descoberta" dos ovos dos mamíferos é frequentemente atribuída a Graff, mas os estudos a que a
    Vênus física se referem mostram o quão polêmica era a questão ainda no século XVIII (a solução final, com a descoberta dos óvulos no ovário, viria apenas no século XIX com os estudos de von Baer). O título completo da obra citada por Maupertuis é
    De mulierum organis generationi inservientibus tratactus novus, demonstrans tam homines et animalia caetera amnia, quae vivipara dicuntur, haud minus quam ovipara, ab ovo originem ducere. Publicada em 1672, ela contém as famosas dissecações de coelhas que Maupertuis apresenta sumariamente. Em seu programa de observações anatômicas, Graaf dissecou primeiramente "uma [coelha] que nunca estivera sob o macho. [...] [seus] testículos [...] encerravam uma grande quantidade de ovos bem límpidos e claros dos quais saía, após abertos, um líquido viscoso como a clara do ovo" (Graaf, 1991, p. 33). Em seguida, dissecou fêmeas a intervalos de tempo cada vez maiores após a cópula (meia hora, 6h , 24h, 27h , 48h, 52h e 72 h, de 4 até 10 dias, 12 dias e 14 dias). Um resumo das observações feitas nas coelhas dissecadas 5, 12 e 14 dias após a cópula podem ilustrar a descoberta de Graaf de que o número de "vestígios" causados pela saída dos ovos dos ovários é igual ao número de ovos (ou de embriões) presentes no útero:
  • 22
    Como aconteceu anteriormente no capítulo iii, Maupertuis não indica aqui a obra de Verheyen de onde obteve as informações citadas, mas ela também pode ser identificada no capítulo 5 da
    Histoire des animaux, na parte em que Buffon discute a mesma questão, a saber, o desacordo entre as observações de Graaf e de Verheyen:
  • 23
    Maupertuis passa a relatar as experiências de William Harvey (1578-1657). Após sua formação em filosofia em Cambridge, Harvey realizou uma série de viagens e chega a Pádua em 1597, onde se associou aos estudantes reunidos em torno de Fabrizio d'Acquapendente. Após quatro anos de estudo, doutorou-se em medicina e retornou à Inglaterra em 1602 para exercer a profissão em Londres. Foi eleito, em 1615, membro do
    Royal College of Physicians. Após vários sucessos na carreira, foi nomeado, em 1618, médico do rei Jaime i e, depois, em 1625, de Charles i, com quem Harvey estabeleceu uma forte e leal amizade. Durante a guerra civil, deixou Londres junto com o rei sua casa foi saqueada e suas coleções destruídas. Foi então nomeado professor em Oxford, mas a cidade também foi posteriormente capturada pelo exército parlamentar após a derrota de Charles i. Harvey retirou-se então para a vida privada até sua morte. Sua famosa obra sobre a circulação do sangue foi publicada em 1628, um pequeno livro com 72 páginas intitulado
    Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus. Os estudos sobre a geração dos animais, aqueles a que Maupertuis se refere, estão nas suas
    Exercitationes anatomicae de generatione animalium, publicadas apenas em 1651, quando o autor contava com 73 anos. De forte inspiração aristotélica, a obra estabelece o ovo como a unidade reprodutiva universal dos animais: todos os animais provém de um
    primordium oviforme que, no caso dos vivíparos, é um
    conceptus, identificado ao feto com suas membranas embrionárias. Os ovíparos produzem um ovo "típico" em seus ovários e nos vivíparos o ovo é produzido no útero da fêmea. Mas o que mais interessa a Maupertuis das pesquisas de Harvey é a explicação epigenética da geração, pois ele a utilizará, como ficará claro na seqüência do texto, tanto para apoiar sua própria teoria, baseada na mistura das duas sementes, quanto para combater a preexistência dos germes.
  • 24
    O termo é aplicado, por exemplo, na descrição anatômica dos órgãos reprodutores femininos das corças: "os dois cornos do útero juntamente com os testículos e todos os outros vasos do útero estão conectados às partes adjacentes" (Harvey, 1981 [1651], p. 343). Vimos este mesmo uso de
    testículo para designar a gônada feminina nas experiências de Graaf com as coelhas na nota 21.
  • 25
    A descrição de Harvey é a seguinte:
  • 26
    Intussuscepção designa o modo de crescimento dos organismos vivos, por transformação e assimilação de matéria "de dentro para fora", em contraste com
    justaposição, que é o crescimento por aposição de partes, "de fora para dentro", tal como se observa sobretudo nos cristais. Contudo, acreditamos que há uma importante diferença entre a interpretação de Maupertuis e a de Harvey acerca destes dois processos de crescimento. Certamente Harvey entende que o feto cresce pela justaposição de novas partes, e não pela intussuscepção de matéria em um embrião já formado. Mas estas novas partes que vão se justapondo são geradas
    in loco, ou seja, são produzidas no próprio sítio de formação do embrião. Bem ao contrário, para Maupertuis essas partes que se justapõem são novas em relação ao feto, mas elas já estão preformadas pelo processo de pangênese e, assim, não são formadas
    in loco.
  • 27
    Os estudos de Harvey sobre os vivíparos, realizados com as corças, estão nos Exercícios (
    Exercitationes) 63 a 70 do
    De generatione. A exposição resumida que Maupertuis faz desses estudos começa no Exercício 67, no qual Harvey descreve as primeiras alterações no útero das corças fecundadas, e vai até o Exercício 70, no qual as fases finais do desenvolvimento são descritas. Mas a formação da membrana que posteriormente envolverá o
    punctum saliens que Maupertuis comenta no texto está descrita no Exercício 69 e nada tem a ver com o citado Exercício 66,
    De cervarum & damarum coïtu (
    Sobre o coito das cervas e corças), que descreve o comportamento de cópula dessas animais.
  • 28
    Tais idéias encontram-se, por exemplo, na seguinte passagem:
  • 29
    O francês aplica os nomes populares "demoiselle" e "libellule" respectivamente para os odonatos que mantêm, em repouso, as asas paralelamente ou verticalmente ao dorso. Não pudemos identificar a razão para Maupertuis associar as "demoiselles" ao latim "perla". Parece que o termo latino, posteriormente utilizado para compor a nomenclatura científica de outra ordem de insetos, os plecópteros ou perlídeo (gênero
    Perla), foi anteriormente utilizado para designar os odonatos.
  • 30
    A partir daqui, Maupertuis passa a utilizar as
    Mémoires pour servir a l'histoire des insectes de Réaumur como fonte para suas próprias considerações acerca da biologia reprodutiva dos insetos. René Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757) formou-se em direito em Paris, mas abandonou a carreira jurídica para dedicar-se integralmente às ciências naturais. Sustentado por uma fortuna que recebeu como herança, pôde dedicar-se aos estudos de forma privada, o que não o impediu de ser recebido como membro da
    Académie des Sciences. Realizou estudos sobre a dilatação dos gases e sobre o calor específico, sendo conhecido pela invenção da escala termométrica dividida em 80 graus que leva seu nome. Suas pesquisas sobre o mundo vivo são também variadas e importantes. Estudou, entre outras coisas, o processo de secreção das conchas dos moluscos, a produção de eletricidade das raias, a ação dos sucos digestivos em vertebrados e o processo de regeneração nos crustáceos. Sua obra mais famosa é, entretanto, o monumental estudo em seis volumes sobre os insetos acima citado. Os animais tratados nesta parte do texto são, tal como Maupertuis os designa logo adiante, os
    gallinsectes. Trata-se de pequenos insetos homópteros da família Coccidae cujas fêmeas, em muitas das espécies, não possuem olhos, patas e asas e são recobertas por uma cera secretada ou uma escama em forma de concha. Muitas espécies são importantes pragas agrícolas. O nome popular mais comum em português para estes animais é
    cochonilha, termo que preferimos utilizar no lugar de "inseto-galha"; este último, que seria a tradução "ao pé da letra" do francês, poderia confundir-se com os "insetos de galha", termo aplicado para designar outros tipos de insetos (sobretudo vespas e moscas) que colocam seus ovos em tecidos vegetais, causando a produção de um intumescimento típico na planta chamado
    galha. Apresentamos abaixo uma síntese das informações sobre as cochonilhas a que Maupertuis se refere, presentes no volume 4 das
    Mémoires pour servir a l'histoire des insectes:
  • 31
    Maupertuis refere-se aqui ao artigo
    Sur la lumière des dails, que integra a
    Histoire de l'Académie Royale des Sciences para o ano de 1723. O artigo comenta um estudo de Réaumur, publicado nas
    Mémoires do mesmo ano, sobre a luminosidade produzida por moluscos denominados "dails", provavelmente
    Pholas dactylus, um bivalve marinho fosforescente que, no escuro, brilha com uma luz verde-azulada. Nesse contexto, é feita, no parágrafo final, uma breve referência aos vermes luminosos:
  • 32
    "Inde ferae, pecudes persultant pabula laeta et rapidos tranant amnis:
    ita capta lepore te sequitur cupide quo quamque inducere pergis" "Depois as feras, os rebanhos percorrem os alegres pastos e atravessam a nado os rápidos rios:
    assim tomada pelo encanto desejosamente cada uma segue aonde quer que a leves." (
    De rerum natura, i, 15; Lucrécio, 1982, p. 2).
  • 33
    O tomo 5 das
    Mémoires pour servir a l'histoire des insectes trata da reprodução das abelhas e nele Réaumur discute as idéias de Swammerdam sobre o assunto. Jam Swammerdam (1637-1680), começou seus estudos naturalistas em sua cidade natal, Amsterdã. Ingressou na Universidade de Leiden em 1661 e adquiriu fama por sua habilidade como dissecador. Após um período de estudos em Paris, volta a Leiden e gradua-se em 1667 com um estudo sobre a respiração. Além desta tese inaugural, Swammerdan publicou em vida um estudo sobre a anatomia e a vida dos insetos (1669), sobre a estrutura do útero (1672) e sobre o ciclo de vida das efemerópteras (1675). Após sua morte, o primeiro e o último destes estudos foram reunidos junto a um considerável corpo de material inédito para constituir a
    Biblia naturae, publicada em 1737, cujo título foi criado por seu editor, Boerhaave. É bem provável que a breve referência de Maupertuis a Swammerdam tenha sido feita a partir do texto de Réaumur, no qual aparece um confronto entre suas observações sobre a fecundação da abelha rainha, apresentadas resumidamente por Maupertuis, com a explicação de Swammerdam, que é consistente com a noção de preexistência do germe:
  • 34
    Na
    Table de matières que aparece no final da edição de 1745 da
    Vênus física há uma errata para esta nota: "p. 78, à nota: Heister,
    leia Lyster" (Maupertuis, 1745, p. 194) e, assim, a citação correta é "Lyster de cochleis". A correção é fundamental, pois sem ela é impossível recuperar a fonte da qual Maupertuis tomou as informações sobre o comportamento dos caracóis. Trata-se dos estudos sobre moluscos do médico e naturalista inglês Martin Lister (1638-1712). Doutorando-se em medicina em Oxford, em 1684, Lister mudou-se para Londres onde, a partir de 1697, atuou junto ao
    College of Physicians. Ocupou, de 1702 até sua morte, o cargo de segundo médico ordinário da rainha Ana. Como naturalista, Lister foi nomeado, em 1681, membro da
    Royal Society, da qual ocupou a presidência em 1685. Apresentou à sociedade grande quantidade de comunicações sobre história natural que foram publicadas em seus
    Proceedings. Lister publicou entre 1685 e 1692 um grande tratado sobre os moluscos, a
    Historia conchyliorum, dedicado aos moluscos terrestres, de água-doce e marinhos. Wilkins realizou um estudo em que procura identificar o provável método utilizado por Lister na produção dessa obra e, segundo o autor, "esse trabalho verdadeiramente monumental começou com um modesto volume [...] publicado pela primeira vez em 1685 sob o título
    de Cochleis, sob as custas do autor, para circular entre seus amigos" (Wilkins, 1957, p. 196). É este título,
    de cochleis, que aparece citado por Maupertuis. Mas é possível que, como aconteceu para outras obras referidas por Maupertuis, o título tenha sido abreviado e refere-se a alguma edição mais acessível da obra de Lister.
  • 35
    "nam fuerit quicumque loquax,
    is sanguine natam, is Venerem e rabido sentiet esse mari" "Pois todo aquele que for loquaz, este perceberá que
    Vênus nasceu com sangue e que ela é do mar que arrebenta." (
    Elegia i, 2, 39-40; Tíbulo, 1995, p. 200).
  • 36
    "nunc ab auspicio bono profecti
    mutuis animis amant amantur" (
    Poemas, 45, 19-20; Catulo, 1995, p. 54). Com bom auspício então eles partiram,/
    com mútuas almas amam-se um ao outro" (trad. de João Ângelo Oliva).
  • 37
    Os pulgões ou afídios (da família Aphidae) são insetos homópteros que incluem muitas espécies que se reproduzem por partenogênese, ou seja, o processo no qual o embrião se desenvolve a partir de um óvulo não fecundado. Leeuwenhoek foi o primeiro a observar, em 1695, o fenômeno nos pulgões. Posteriormente ele foi estudado principalmente por Charles Bonnet e Réaumur, além de outros naturalistas. A existência de animais que se reproduzem sem a necessidade de um macho foi utilizada, como era de se esperar, para sustentar empiricamente a preexistência ovista.
  • 38
    As experiências de Réaumur estão relatadas e discutidas na
    Décima-terceira memória. Adição à história dos pulgões apresentada no terceiro volume. (Réaumur, 1742, p. 523-68).
  • 39
    Abraham Trembley (1710-1784) estudou inicialmente matemática em Genebra, sua cidade natal, e posteriormente na Holanda e na Inglaterra. Foi preceptor dos filhos do conde de Bentinck em Sorvliet (Holanda) e depois trabalhou para o Conde de Richmond, com quem viajou pela Europa. Viveu por muitos anos na Holanda, mas retornou a Genebra em 1757, onde foi nomeado bibliotecário e membro do Conselho. Manteve contato com cientistas franceses da época, em especial com Réaumur; foi membro correspondente da Académie de Sciences. Sua reputação como naturalista decorre principalmente de sua monografia sobre os pólipos de água-doce. Nesta obra oferece uma descrição detalhada de certo número de "espécies de pólipos", incluindo entre elas a hidra (nome popular do cnidário hidrozoário de água-doce estudado por Trembley; o termo geral "pólipo" ficou posteriormente reservado para designar a forma séssil dos cnidários). Estudou o comportamento locomotor, alimentar e reprodutivo desses organismos e foi o primeiro a reconhecer com clareza o caráter animal dos mesmos. Também realizou experimentos sistemáticos sobre a regeneração das hidras, que constitui o fenômeno discutido por Maupertuis. Os estudos de Trembley sobre os pólipos foram publicados em 1744 na obra
    Mémoires pour servir à l'histoire d'un genre de polypes d'eau douce, à bras en forme de cornes, cuja tradução inglesa foi publicada no mesmo ano nas
    Philosophical Transactions of the Royal Society of London, tal como cita Maupertuis. Na série de experimentos realizados sobre a regeneração Trembley cortou as hidras em vários planos e acompanhou minuciosamente a restituição dos órgãos nas partes seccionadas (um resumo do programa experimental de Trembley, organizado em uma tabela útil para consulta, encontra-se em Lenhoff & Lenhoff (1991, p. 54-5). Contrariamente à partenogênese, a regeneração dos pólipos trazia grande dificuldade à aceitação dos germes preexistentes.
  • 40
    Maupertuis remete a teoria da geração de Descartes ao
    Tratado do homem e ao
    Da formação do feto. Porém, no primeiro texto, Descartes apresenta uma explicação do funcionamento de um homem completo, estando na segunda obra a explicação propriamente dita de como são geradas, segundo as leis do movimento e da fermentação, as diversas partes do corpo. De qualquer forma, o
    Tratado do homem enuncia a suficiência do mecanicismo para explicar a vida do homem no que depende exclusivamente da extensão corporal, não sendo necessário conceber, para tanto,
  • 41
    Os dois anatomistas envolvidos na controvérsia são Lémery e Winslow. Louis Lémery (1677-1743) nasceu em Paris e licenciou-se na Faculdade de Medicina dessa cidade em 1698. Foi médico do rei, membro da
    Académie des Sciences e professor de química no
    Jardin du Roy. Entre suas obras estão o
    Traité des aliments (1702), a
    Dissertation sur la nourriture des os (1704) e vários trabalhos publicados nas
    Mémoires da Academia de Ciências. Jacques-Bénigne Winslow (1669-1760) foi um dos mais brilhantes anatomistas do século XVIII. Nascido em Odense, Dinamarca, realizou seus estudou em Paris e doutorou-se em 1705. Tornou-se membro da Academia de Ciências e foi professor de anatomia no
    Jardin du Roy entre 1742 e 1758. O anfiteatro anatômico por ele criado foi inaugurado em 1745. Dentre suas várias contribuições para a anatomia humana destacam-se os três volumes da
    Exposition anatomique de la structure du corps humains (1732), cujas numerosas edições exerceram grande influência sobre a literatura anatômica do período. São particularmente importantes seus estudos sobre o sistema nervoso simpático. No artigo
    Sobre os monstros, redigido para a
    Histoire da Academia de Ciência de 1740 (publicada em 1742), Mairan apresenta uma revisão do debate travado pelos dois médicos ao qual Maupertuis se refere:
  • 42
    Thomas Bartholin (1616-1680), membro de uma ilustre família de anatomistas, nasceu em Copenhague e fez seus estudos em Leiden, Paris, Montpellier e Pádua. Após doutorar-se em 1645, retorna à sua cidade natal, onde torna-se professor de matemática (1647), de anatomia (1648) e decano do colégio dos médicos (1654). Deixou uma vastíssima obra em anatomia e medicina na qual se destacam, entre outras coisas, seus estudos sobre o sistema linfático, a circulação do sangue e a função hepática e pancreática. A obra do autor citada por Maupertuis,
    De cometa consilium medicum, eum monstrorum in Dania natorum historia, é de 1665. Em sua
    Carta sobre o cometa, Maupertuis apresenta uma série de idéias sobre os cometas que considera "estranhas", mas não cita as de Bartholin:
  • 43
    A árvore química cristalina que impressionou Maupertuis por sua semelhança com uma árvore orgânica é uma
    Árvore de Marte ou árvore de ferro, cuja produção está descrita na Memória
    Que les plantes contiennent réelement du fer, & que ce métal entre necessairement dans leur composition naturelle, de Louis Lémery, o mesmo que vimos envolvido na querela sobre os monstros:
  • 44
    "quis enim Aethiopas antequam cerneret credidit? aut
    quid non miraculo est cum primum in notitiam venit?" "Pois quem acreditou nos etíopes antes que os visse?
    O que não é admirável quando se tem notícia pela primeira vez?"
    (História Natural, vii, 1, 6; Plínio, 1989, p. 510).
  • 45
    Etienne-François Geoffroy (1672-1731) nasceu em Paris, foi primeiramente boticário e posteriormente praticou a medicina. Após estudar em Montpellier, acompanhou o marechal Tallard em sua embaixada em Londres em 1698 e, então, trabalhou na Holanda e na Itália. Regressando a Paris, tornou-se professor de química no Jardin du Roi, de farmácia e medicina no Collège de France e decano da Faculdade de Medicina. Seu nome ficou conhecido graças à sua noção de
    afinidade química, sobre a qual Maupertuis falará logo a seguir, e à sua
    tabela de diferentes afinidades observadas em química, apresentadas à
    Académie des Sciences em 1718 e 1720. Também tornou-se célebre seu
    Tratactus de materia medica, publicado postumamente em 1741.
  • 46
    A definição de afinidade que Maupertuis apresenta no texto aparece na Memória
    Table des différents rapports observés en Chimie entre différentes substances. Para Geoffroy, as afinidades possuem diferentes graus e leis particulares. Isso pode ser constatado, segundo o autor, pelo fato de que "entre várias matérias misturadas que têm alguma disposição de unir-se, percebe-se que uma dessas substâncias une-se sempre [e] constantemente com uma certa [substância] preferencialmente a todas [as outras]" (Geoffroy, 1741, p. 19). Há, pois, uma seletividade nas uniões segundo a natureza da substância em questão. As leis envolvidas são inferidas a partir da especificidade com que certos pares de substâncias mantêm-se unidas:
  • 47
    Trata-se do processo de
    caprificação, que consiste em colocar ramos da figueira-macho silvestre ou
    caprifigo sobre os ramos da figueira doméstica, que possuem apenas flores femininas, com o objetivo de que as vespas-do-figo (gênero
    Blastophaga) que vivem nos frutos (siconodos) da figueira-macho deles saiam e fecundem, com o pólen que trazem das flores masculinas, as flores femininas da planta cultivada que com isso se desenvolverão em figos (Quer, 1985, p. 158). O processo é utilizado desde a Antigüidade e é relatado pelo botânico Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708) em sua
    Relation d'un voyage au Levant, citada por Maupertuis, cuja redação foi concluída em 1707. Ao adotar a teoria da dupla semente, Maupertuis encontra dificuldade, tal como aconteceu com muitos dos autores da época, para explicar a função dos espermatozóides. Ao compará-los a "ministros subalternos" da natureza, aproxima-se da idéia de que os vermes espermáticos são parasitas ou comensais obrigatórios do sêmen masculino; tal como as "moscas" que fecundam o figo, os espermatozóides constituem uma espécie diferente daquela a que auxiliam na reprodução.
  • 48
    Os etíopes são descritos no livro 3 da
    História universal de Diodoro de Sicília (1737, p. 337 e ss).
  • 49
    Breve descrição dos etíopes que aparece na
    Astronomica, 4, 724 (Manilius, 1977, p. 280).
  • 50
    Hotentotes, povo habitante da África do Sul.
  • 51
    A obra citada, na qual Maupertuis obtém as informações que utiliza em sua própria descrição dos darienitas é
    A new voyage & description of the Isthmus of America, escrita pelo viajante e cirurgião inglês Lionel Wafer (1660?-1705?). A primeira edição da obra é de 1699, mas possivelmente Maupertuis tenha consultado alguma das edições publicadas no século XVIII. A localização da região denominada Darién dada pelo próprio Wafer é a seguinte:
  • 52
    Potosi, cidade boliviana famosa por sua produção de prata. Golconda, cidade indiana que ganhou fama pelos diamantes abundantes em sua proximidade e que eram nela lapidados; posteriormente, o nome da cidade tornou-se substantivo comum para "fonte de riquezas".
  • 53
    "Eudoxus in meridianis Indiae viris plantas esse cubitales, feminis adeo parvas ut Struthopodes appellentur" "Segundo Eudoxo, no sul da Índia os homens têm os pés do tamanho de um cubital [côvado], as mulheres tão pequenos que foram chamadas
    pés-de-avestruz." (
    História natural, vii, 2, 24; Plínio, 1989, p. 522).
  • 54
    Tal relato foi publicado na sessão
    Observações de física geral da
    Histoire de l'Académie:
  • 55
    Não é possível saber se o fenômeno aqui mencionado é um caso de vitiligo, caracterizado como despigmentação parcial da pele, ou se de albinismo, com despigmentação total. Maupertuis não menciona o primeiro fenômeno, mas, de qualquer forma, a opinião do Sr. du Mas é bem conveniente para a teoria de Maupertuis, como ele próprio reconhece, já que a causa patológica do fenômeno é interpretada como um acidente que se torna hereditário.
  • 56
    "
    vidi lecta diu et multo spectata labore degenerara tamen, ni vis humana quotannis maxima quaeque manu legeret" (Maupertuis citou incorretamente o livro 2 da obra). "Eu já vi, contudo, sementes selecionadas e verificadas com muito trabalho degenerar, se a força humana todo ano não recolhesse as maiores uma a uma com a mão." (
    Bucólicas, i, 197-199; Virgílio, 1986, p. 94).
  • 57
    "
    non omnis moriar multaque pars mei vitabit Libitinam: uesque ego postera crescam laude recens" "
    Não morrerei inteiro e grande parte de mim evitará Libitina [Morte]: continuamente nascerei renovado pela glória." (
    Odes, iii, 30, 9; Horácio, 1995, p. 278).
  • (i)
    Pitágoras relembrava dos diferentes estados pelos quais passara antes de ser Pitágoras. Havia sido primeiro Etálides, depois Eufórbio, ferido por Menelau no cerco de Tróia, Hermótimo, o pescador Pirro e, por fim, Pitágoras.
  • (i)
    Miseret atque etiam pudet aestimantem quàm sit frivola animalium superbissimi origo!
    C. Plin. Nat. hist. l. vii, c. 7.
  • (i)
    Aristot. de generat. animal. lib. ii. cap. iv.
  • (i)
    Verheyen.
  • (i)
    Mém. de l'Acad. des Scienc. an. 1727. p. 32.
  • (ii)

    Hartsoeker.
  • (i)
    Lewenhoek.
  • (ii)

    Wenhoek.
  • (a)
    Ano 1701.
  • (i)
    Regnerus de Graaf, de mulierium organis.
  • (i)
    Punctum saliens.
  • (i)
    Guillelm. Harvey,
    de cervarum & damarum coïtu. Exercit. lxvi.
  • (i)
    Libélula, perla
    em latim.
  • (ii)

    Hist. des insectes do Sr. de Réaumur, tomo iv.
  • (i)
    Hist. de l'Acad. des Scienc. an. 1723.
  • (ii)

    . . . . . Ita capta lepore,
    Illecebrisque tuis omnis natura animantum,
    Te sequitur cupid, quo quamque inducere pergis.
    Lucret. lib. i.
  • (iii)

    Hist. des insect. do Sr. de Réaumur, t. v. p. 504.
  • (i)
    Heister de cochleis.
  • (ii)

    . . . . . . . . Is sanguine natam
    Is Venerem, & rapido sentiat esse mari.
    Tibull. lib. i. Eleg. ii.
  • (i)
    Mutuis animis amant, amantur.
    Catull. Carm. xliii.
  • (ii)

    Hist. des insect. do Sr. de Réaumur, tom. vi.
  • (i)
    Philosoph. transact. No. 567. A obra aparecerá e nela o Sr. TREMBLEY oferece ao público todas suas descobertas sobre esses animais.
  • (i)
    L'Homme de DESCARTES, & la formation du foetus.
  • (i)
    Mém. de l'Acad. Royale des Sciences, années 1724, 1733, 1734, 1738 & 1740.
  • (ii)

    Th. Bartholini de Cometa consilium medicum, eum monstrorum in Dania natorum historia.
  • (i)
    Árvore de Diana.
  • (ii)

    Veja Mém. de l'Acad. Royale des Sciences de Paris, ann. 1706.
  • (iii)

    Quid non in miraculo est, cum primùm in notitiam venit?
    C. Plin. Nat. Hist. Lib. vii. Cap. i.
  • (i)
    Sr. Geoffroy.
  • (ii)

    Mém. de l'Acad. des Scienc. de Paris, ann. 1718.
  • (i)
    Esse esqueleto singular está em Berlim, na sala anatômica da Academia Real de Ciências e Belas Letras. Eis aqui a descrição que o Sr. Buddaeus, professor de anatomia, me enviou.
    Conforme vossas ordens, que recebi ontem, tenho a honra de muito humildemente vos comunicar que há efetivamente em nosso anfiteatro um esqueleto que possui uma vértebra a mais. Ele tem uma altura de seis pés e S. M. o falecido Rei aqui o enviou para guardá-lo dada sua raridade. Eu o examinei com cuidado e vê-se que a vértebra supranumerária deve estar situada entre as lombares. As vértebras do pescoço possuem suas marcas particulares, pelas quais são reconhecidas muito facilmente; assim, seguramente não pertence a elas, menos ainda àquelas do dorso, pois as costelas as caracterizam. A primeira vértebra lombar possui sua conformidade natural, em relação à sua união com a décima segunda do dorso; e a última das lombares possui sua figura ordinária para se aplicar ao osso sacro. Assim, é preciso buscar a vértebra supranumerária entre o restante das lombares, ou seja, entre a primeira e a última lombar.
  • (i)
    Veja a viagem do Lev. de Tournefort.
  • (i)
    Diodore de Sicile, liv. 3.
  • (ii)

    Aethiopes maculant orbem, tenebrisque figurant, Per fuscas hominum gentes.
    Manil. lib. IV vers. 723.
  • (iii)

    Os HOTENTOTES.
  • (i)
    Veja de Wafer, description de l'isthme de l'Amérique.
  • (a)
    O Grande Mongol faz-se pesar todos os anos e os pesos que se coloca na balança são diamantes e rubis. Ele acaba de ser destronado por Kouli-Can e reduzido a vassalo dos reis da Pérsia.
  • (i)
    Fréderic-Guillaume, rei da Prússia.
  • (ii)

    C. Plin. Natur. Hist. lib. 7. cap. 2.
  • (i)
    Ele foi levado a Paris em 1744.
  • (ii)

    Hist. de l'Acad. Royale des Sciences, 1734.
  • (iii)

    Ou antes da membrana reticular que é a parte da pele cuja pigmentação produz a cor dos negros.
  • (i)
    Vidi lecta diu, & multo spectata labore,
    Degenerare tamen, ni vis humana quotannis
    Maxima quaeque manu legeret.
    Virg. Georg. lib. 2.
  • (i)
    É isso que acontece todos os dias nas famílias. Uma criança que não se parece nem com seu pai nem com sua mãe parecerá com seu avô.
  • (i)
    Non omnis moriar; multaque pars meî
    Vitabit Libitinam.
    Q. Hor. Carm. lib. iii.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
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