Acessibilidade / Reportar erro

O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor

The control of nature and the origins of the dichotomy between fact and value

Resumos

Meu objetivo será refletir sobre uma distinção que é fundamental para a origem de um aspecto central das práticas científicas atuais. Essas práticas, que costumamos chamar de práticas da ciência moderna, representam o desenvolvimento, a complexificação e a especialização (estas últimas já previstas por Bacon na utopia Nova Atlântida) de uma prática, de um modo particular de tratar das questões naturais, que surgiu e se consolidou nos séculos XVI e XVII. A articulação dessa prática depende da distinção entre fato e valor, elaborada na primeira metade do século XVII nos trabalhos de Francis Bacon, Galileu Galilei, René Descartes e Blaise Pascal. Como mostrarei, a distinção entre fato e valor está na raiz da concepção moderna de domínio (controle) da natureza, concepção que acabou sendo tomada, no desenvolvimento posterior, como um valor central que direciona o conhecimento científico e o desenvolvimento técnico/tecnológico.

Dicotomia fato; Controle da natureza; Ciência moderna; Francis Bacon; Galileu Galilei; René Descartes; Blaise Pascal; David Hume


My objective is to reflect on a distinction that is fundamental to the origin of a central aspect of current scientific practices. These practices, those which we are accustomed to call the practices of modern science, represent the development, and (as foreseen by Bacon in the New Atlantis) the complexification and specialization of a practice, a particular way of dealing with questions about nature, which arose and was consolidated in the 16th and 17th centuries. The articulation of this practice depended on the distinction between fact and value, which emerged in the first half of the 17th century in the works of Francis Bacon, Galileo Galilei, René Descartes and Blaise Pascal. I will show that the distinction between fact and value underlies the modern conception of the domination (control) of nature, a conception that, following subsequent developments, has ended up being taken to be a central value that orients scientific knowledge and technical/technological development.

Fact; Control of nature; Modern science; Francis Bacon; Galileo Galilei; René Descartes; Blaise Pascal; vid Hume


ARTIGOS

O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor

The control of nature and the origins of the dichotomy between fact and value

Pablo Rubén Mariconda

Professor Titular de Filosofia da Ciência do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: ariconda@usp.br

RESUMO

Meu objetivo será refletir sobre uma distinção que é fundamental para a origem de um aspecto central das práticas científicas atuais. Essas práticas, que costumamos chamar de práticas da ciência moderna, representam o desenvolvimento, a complexificação e a especialização (estas últimas já previstas por Bacon na utopia Nova Atlântida) de uma prática, de um modo particular de tratar das questões naturais, que surgiu e se consolidou nos séculos XVI e XVII. A articulação dessa prática depende da distinção entre fato e valor, elaborada na primeira metade do século XVII nos trabalhos de Francis Bacon, Galileu Galilei, René Descartes e Blaise Pascal. Como mostrarei, a distinção entre fato e valor está na raiz da concepção moderna de domínio (controle) da natureza, concepção que acabou sendo tomada, no desenvolvimento posterior, como um valor central que direciona o conhecimento científico e o desenvolvimento técnico/tecnológico.

Palavras-chave: Dicotomia fato/valor. Controle da natureza. Ciência moderna. Francis Bacon. Galileu Galilei. René Descartes. Blaise Pascal. David Hume.

ABSTRACT

My objective is to reflect on a distinction that is fundamental to the origin of a central aspect of current scientific practices. These practices, those which we are accustomed to call the practices of modern science, represent the development, and (as foreseen by Bacon in the New Atlantis) the complexification and specialization of a practice, a particular way of dealing with questions about nature, which arose and was consolidated in the 16th and 17th centuries. The articulation of this practice depended on the distinction between fact and value, which emerged in the first half of the 17th century in the works of Francis Bacon, Galileo Galilei, René Descartes and Blaise Pascal. I will show that the distinction between fact and value underlies the modern conception of the domination (control) of nature, a conception that, following subsequent developments, has ended up being taken to be a central value that orients scientific knowledge and technical/technological development.

Keywords: Fact/value dichotomy. Control of nature. Modern science. Francis Bacon. Galileo Galilei. René Descartes. Blaise Pascal. David Hume.

INTRODUÇÃO

A elaboração da dicotomia entre fato e valor (entre "é" e "deve ser"; ou ainda, como será usual em nossos dias, entre objetivo e subjetivo) acompanha o avanço e a afirmação do individualismo epistemológico e o abandono gradativo do princípio de autoridade, seja da ortodoxia teológica tridentina, seja da filosofia natural aristotélica. Do ponto de vista histórico, é em torno da dicotomia entre fato e valor que se constituiu o próprio campo da ciência natural no interior da ampla modificação que conduziu ao nascimento da ciência moderna, no arco temporal que vai, para o caso da ciência, de Copérnico a Newton e, para o caso da filosofia, de Bacon a Hume.

No desenvolvimento posterior, com a consolidação da ciência e o êxito da civilização ocidental em empreender a conquista da natureza (no domínio dos fatos) e com a crise do autoritarismo (no domínio dos valores) tornou-se contemporaneamente dominante a tendência de dar-lhes fundamento totalmente subjetivo. Os valores passam então a ser entendidos como expressões dos gostos, das preferências, fundamentando-se, em última instância, naquilo que David Hume chama de impressões sensíveis (emoções, sentimentos), para referir-se "às nossas percepções mais fortes, tais como nossas sensações, afetos e sentimentos" (Hume, 2000, p. 493; Thu, Livro III, Advertência). Os valores ligam-se, assim, estreitamente às emoções e sentimentos. Essa caracterização da esfera dos valores será também dominante, na década de 30 do século passado, com os positivistas lógicos, para os quais os enunciados éticos (bem e mal) e estéticos (belo e feio) não possuem significado cognitivo, não expressam propriamente conhecimento; possuem apenas significado emotivo, sendo antes expressões das emoções e sentimentos causados no indivíduo pelos eventos que acontecem a sua volta (cf. Stevenson, 1959; Putnam, 2002). Em suma, as questões acerca de valores são questões subjetivas e podem ser consideradas como meras questões de preferências individuais. Como veremos a seguir, essa "desqualificação" da esfera do valor faz parte da estratégia do cientificismo de afirmação da universalidade da razão instrumental com o objetivo de ocultar o caráter valorativo da idéia fundamental que orienta a tecnociência atual: o controle (domínio) da natureza.

A exposição que faço a seguir está organizada em torno de cinco idéias distintivas, historicamente importantes que servem para caracterizar o significado da dicotomia entre fato e valor e o papel por ela representado, apresentando cada uma dessas idéias em seu contexto clássico de surgimento. A análise comparativa e contextual dessas cinco idéias permitirá apreender o desenvolvimento histórico da dicotomia entre fato e valor e seu vínculo com a idéia de controle da natureza.

1 PRIMEIRA IDÉIA: SUFICIÊNCIA E IMPARCIALIDADE DO MÉTODO NATURAL

A primeira idéia diz respeito àquela característica que, por assim dizer, define a diferença fundamental entre fato e valor, garantindo a autonomia da esfera dos fatos com relação à esfera dos valores. Um fato pode ser determinado como verdadeiro ou falso por um método autônomo suficiente, método que se assenta fundamentalmente naquilo que é dado aos humanos pela própria natureza (ou que é inerente a sua própria natureza humana) e que constitui a sua razão natural, ou seja, os sentidos, o intelecto e a linguagem (a capacidade linguística de comunicação). Por outro lado, o valor depende da autoridade religiosa ou civil, a qual produz juízos sobre o valor religioso, moral, legal etc. das ações em contextos (situações) dependentes de interpretação e de testemunho das autoridades. Por exemplo, no caso da concepção católica contra-reformista promovida pelo Concílio de Trento (século XVI), a interpretação dos textos sagrados deve estar de acordo com a autoridade dos Santos Padres e dos teólogos escolásticos. Por força do recurso à autoridade e à tradição, o domínio dos valores está profundamente enraizado na faculdade da memória. É também na memória e obviamente no desenvolvimento de hábitos, de capacidades, que se assentou o sistema de transmissão do conhecimento criado pela Igreja a partir do século xii com a fundação de universidades por toda a Europa.1 1 Para uma discussão sobre o lugar central do princípio de autoridade nos currículos universitários dos séculos XVI e XVII e as dificuldades enfrentadas pela ciência moderna de tipo galileano para entrar no sistema de transmissão do conhecimento patrocinado pela Igreja, cf. Mariconda, 2000, p. 85-90; p. 101-9.

Essa idéia de que podemos chegar ao conhecimento da verdade ou falsidade acerca dos acontecimentos naturais por meio de um método autônomo suficiente encontra-se claramente presente, por exemplo, em Francis Bacon, seja no reiterado ataque à teologia, o qual visa destituí-la de sua venerável autoridade, seja, de modo ainda mais característico, na teoria dos ídolos desenvolvida no Livro I do Novum organum (cf. Bacon, 1973a). Os ídolos de Bacon podem ser vistos como condicionantes (epistêmicos e sociais) do processo de obtenção do conhecimento e, para ele, circunscrevê-los de modo a eliminar seus efeitos distorsivos envolve uma meticulosa eliminação das esferas do valor do âmbito da ciência. Os ídolos estão organizados em quatro níveis: (1) os ídolos da tribo são os condicionantes universais decorrentes da "própria natureza humana"; eles são fatores que condicionam universalmente a obtenção de conhecimento, envolvendo as fraquezas da própria constituição cognitiva humana, do intelecto e da sensibilidade; como seus efeitos distorsivos são impeditivos para o estabelecimento da ciência, devem ser afastados. (2) Os ídolos da caverna são os condicionantes sociais que operam em nível individual, tal como a educação e os hábitos adquiridos pelo convívio social, que causam distorções e que devem, assim, ser abandonados; (3) nos ídolos do foro, temos os condicionantes linguísticos, necessários para a enunciação do conhecimento, mas que podem causar distorções e que devem ser neutralizados e, finalmente, (4) os ídolos do teatro são os condicionantes teóricos (filosóficos e teológicos), fontes de distorção, que devem ser eliminados. Em todo esse processo de purgar a ciência dos ídolos, Bacon investe deliberadamente contra a autoridade, já a partir do "Prefácio do Autor" de modo a

eliminar, com serenidade e paciência, os hábitos pervertidos, já profundamente arraigados na mente. Aí então, tendo começado o pleno domínio de si mesmo, querendo, procure fazer uso de seu próprio juízo (Bacon, 1973a, p. 15, grifo meu).

Em suma, o ataque de Bacon à tradição e à autoridade se dá por meio de uma crítica ao habitus (às hexis aristotélicas),2 2 Para entender a centralidade atribuída por Aristóteles aos hábitos e disposições no processo de aquisição e transmissão do conhecimento, é suficiente lembrar que a ciência (assim como a virtude) é tomada por ele como pertencendo ao gênero dos hábitos (1991, 8, 8b28-35); no caso da ciência, um hábito intelectual que se insere no processo de passagem da potencialidade à atualidade, da coisa a conhecer até a coisa conhecida. O hábito é, na verdade, uma disposição corporal durável adquirida por repetição, por treinamento. Trata-se de uma concepção plástica do intelecto, segundo a qual ele se amolda, adapta-se, às coisas a conhecer. Esse tipo de adaptação do intelecto é visada pelo ensino e serve de base para uma concepção pedagógica que utiliza a repetição como forma de ativar a memória e produzir a retenção do conhecimento; ideal pedagógico que se encontra claramente presente nos Elementos de Euclides. aos hábitos, que se assentam na própria constituição natural humana e que são desenvolvidos pela educação e gerados pelo convívio social. Somente depois desses hábitos terem sido refreados a mente está pronta, segundo Bacon, para dedicar-se ao conhecimento dos fatos.

Em Descartes, encontramos uma estratégia inteiramente diversa, mas que continua tendo como resultado a separação entre fato e valor e, novamente, uma consideração negativa da esfera do valor. Apesar de evitar, como se sabe, envolver-se em debates e controvérsias com as autoridades teológicas e com a Igreja – o que distingue totalmente sua atuação da de Galileu –, Descartes move um poderoso ataque ao próprio fundamento da posição valorativa ao investir contra a memória e o habitus (cf. Descartes, 1985, p. 11; AT, 10, p. 359) A recusa em conceder qualquer relevância cognitiva ao "fundamento hermenêutico" dos valores (isto é, o recurso ao comentário e à interpretação dos autores, das autoridades) atinge, assim, o próprio cerne do sistema tradicional de transmissão do conhecimento mantido pela Igreja nas universidades, que se assentava fundamentalmente na autoridade e na memória. Expressão máxima do individualismo metodológico, a crítica cartesiana da memória é também a negação da história e o aniquilamento da tradição. Por exemplo, na Regra III, que exclui, em seu próprio enunciado, como sem importância "o que os outros pensaram" e na qual se diz claramente que

não nos tornaremos filósofos se, tendo lido todos os raciocínios de Platão e Aristóteles, não pudermos formar um juízo sólido sobre quanto nos é proposto. Com efeito, daríamos a impressão de termos aprendido não ciências, mas histórias (Descartes, 1985, p. 19; AT, 10, p. 367).

A provisoriedade da moral de Descartes, tal como apresentada na Terceira Parte do Discurso do método (AT, 6, p. 22-31) pode ser vista como reflexo de sua aceitação da existência da dicotomia entre fato e valor e, também, como uma expressão clara de que a modernidade, ao afirmar a autonomia da esfera dos fatos por meio da constituição das ciências naturais, deixava a esfera do valor relegada a um segundo plano. Vale também dizer que a moral provisória de Descartes, em seu enquadramento individualista, tem entre suas conseqüências uma tolerância baseada na indiferença que possui uma irresistível tendência a tornar-se dominante.

Cabe um último comentário acerca do método. Por estar baseado na razão natural, o método não apenas é racional, e, portanto, apto a servir como propedêutica ao conhecimento, mas é também imparcial: permite chegar a juízos independentemente dos valores (prejuízos, predileções, gostos, vieses interpretativos) sustentados ou mantidos pelos protagonistas das decisões científicas. Em suma, o método da ciência natural moderna mostrou-se efetivamente capaz de alcançar conhecimento imparcial e objetivo acerca do mundo (a imparcialidade e a objetividade são conceitos metateóricos complementares), isto é, conhecimento acerca da ordem, da interação e da estrutura subjacentes aos acontecimentos naturais ou, resumidamente, ele permite o conhecimento objetivo dos fatos (cf. Mariconda & Lacey, 2001).

2 SEGUNA IDÉIA: DISTINÇÃO ENTRE DISCIPLINAS NATURAIS E MORAIS

O impacto da dicotomia entre fato e valor pode ser particularmente percebido no contexto da classificação e organização das disciplinas científicas, onde conduz a uma completa reestruturação dos currículos universitários tradicionais tendo em vista uma nova classificação que separa as disciplinas naturais, aquelas que se preocupam com o estabelecimento de fatos, das disciplinas morais, que são as que procedem por avaliação, dependem de interpretação e se estabelecem em vista de valores.

Neste aspecto, apesar da divergência de Bacon com relação a Galileu, Descartes e Pascal quanto à característica estritamente empírica ou matemática da investigação natural, é importante assinalar o claro predomínio, na primeira modernidade, da concepção das ciências naturais como sendo aquelas que aplicam a matemática ao conhecimento da natureza: a astronomia, a mecânica, a acústica (música), a óptica, a hidrostática etc. Essas disciplinas resultam, por força da suficiência do método científico, autônomas com relação às disciplinas morais: a teologia, a política e a história; disciplinas que estão reguladas pelos princípios da autoridade religiosa e civil, que não estavam separadas nos séculos XVI e XVII e, na verdade, a primeira modernidade corresponde ao lento constituir-se do Estado nacional laico, processo pelo qual se separou lentamente as duas autoridades, a religiosa e a civil. O desenvolvimento posterior, na segunda modernidade, conduziu à crise da autoridade na esfera política e social; o que permitiu o avanço de outras concepções do valores, tais como a interpretação pragmática (redução dos valores à utilidade), a subjetivista (redução dos valores a estados psicológicos) e a dos direitos individuais (redução dos valores aos direitos).

O lugar clássico de origem da idéia de separação entre as disciplinas naturais e as disciplinas morais encontra-se nos escritos de dois autores da primeira modernidade, particularmente, na correspondência de Galileu referente à polêmica teológico-cosmológica de 1613-1616 e no Prefácio do Tratado do vazio de Pascal.3 3 O uso da dicotomia entre as esferas dos fatos e dos valores pode ser discernido em um pequeno conjunto de cartas importantes que Galileu escreveu sobre a questão da liberdade da pesquisa científica frente ao princípio de autoridade, a saber, a carta de Galileu a Benedeto Castelli de 21 de dezembro de 1613; duas cartas a monsenhor Piero Dini de 16 de fevereiro e 23 de março de 1615 e, finalmente, a carta a senhora Cristina de Lorena, grã-duquesa de Toscana, de 1615 9 (cf. EN, 5, p. 261-425; Nascimento, 1988). Por outro lado, para as posições de Blaise Pascal, há dois documentos importantes: o Prefácio do Tratado do vazio e a 18a Provincial (cf. Pascal, 1998a; 1998b). Galileu e Pascal são os autores que mais claramente separam as disciplinas científicas (que visam o conhecimento da natureza) e as disciplinas morais (que, na visão de ambos, ainda fortemente limitada pela ortodoxia católica, visam a salvação). Assim, a distinção entre fato e valor está claramente suposta no pleito de autonomia da ciência matemática da natureza formulado por Galileu, por exemplo, na carta de 1613 a Benedetto Castelli; pleito segundo o qual as ciências naturais possuem um método baseado na experiência e na matemática que é suficiente para decidir acerca das questões naturais independentemente da autoridade teológica. Além disso, dado que, para Galileu, o método está baseado na razão natural (sentidos, intelecto e linguagem), que é a única que os seres humanos possuem, o conhecimento científico tem validade universal e deve ser tomado em conta pela teologia na elaboração de interpretações das passagens bíblicas que se referem a acontecimentos naturais (Galilei, 1932 [1613], p. 282). A dicotomia está, portanto, subjacente à defesa explícita que Galileu faz da autonomia da ciência com relação à esfera da autoridade teológica e filosófica (que mantinha a hierarquia dos valores dominantes na cultura barroca e contra-reformista) e, particularmente, na clara afirmação da universalidade da razão na confirmação dos fatos naturais e na tese conseqüente da superioridade do conhecimento científico sobre todo conhecimento de tipo moral.

Pascal, tal como Galileu, reconhece a existência de dois conjuntos de disciplinas autônomas: as disciplinas naturais e as disciplinas morais.

Para fazer essa importante distinção com atenção deve-se considerar que algumas [disciplinas] dependem somente da memória e são puramente históricas, não tendo outro objeto que saber o que os autores escreveram; outras dependem unicamente do raciocínio, e são inteiramente dogmáticas, tendo por objeto procurar descobrir as verdades escondidas (Pascal, 1998a, p. 452; grifos meus).

A seguir, Pascal põe a história, a geografia, a jurisprudência, as línguas e a teologia entre as disciplinas nas quais se procura somente saber o que os autores escreveram, reconhecendo que nessas disciplinas "é somente a autoridade que nos pode esclarecer. Mas onde essa autoridade tem a principal força é na teologia, porque esta é aqui inseparável da verdade [...] porque seus princípios estão além da natureza e da razão" (Pascal, 1988a, p. 453). Por outro lado, naqueles assuntos que "caem sob os sentidos ou sob o raciocínio, a autoridade é inútil; somente a razão pode conhecê-los"; e desse tipo são "a geometria, a aritmética, a música, a física, a medicina, a arquitetura" (Pascal, 1998a, p. 453).4 4 Galileu e Pascal coincidem também na consideração de que o método da ciência está composto por uma combinação peculiar de sentidos e raciocínio, uma mescla de experiência e matemática, na qual os fatos da experiência têm um papel muito especial no funcionamento autônomo do método, autônomo com relação à autoridade da teologia (cf. Galilei, 2003 [1640]; Mariconda, 2003).

Há, entretanto, em Pascal, diferentemente do que em Galileu (que propõe a universalidade do juízo científico, que deve ser considerado superior à mais autorizada ou ortodoxa das interpretações exegéticas da Bíblia), um reconhecimento positivo da autonomia das duas esferas, de modo que os valores não são tomados como secundários e as pretensões da ciência devem ser irremediavelmente atenuadas. Para Pascal, a razão promete mais do que pode cumprir.5 5 Para Guenancia, já há em Pascal um claro movimento de crítica à razão, de reconhecimento de seus limites (cf. Guenancia, 2005, p. 24-6). Isso produz uma notável diferença de perspectiva entre a posição de Galileu e a posição de Pascal concernente à natureza do conhecimento científico. Para Galileu, do mesmo modo que para Descartes, a ciência possui um caráter apodítico: as ciências naturais são necessárias e demonstrativas; elas podem conduzir à certeza, a verdades necessárias. Além disso, as ciências se assentam na universalidade da razão natural, de modo que os resultados científicos são garantidos pela existência de um procedimento (método) racional, ao qual todos os que estão de posse da razão natural têm acesso.6 6 Em Descartes, por exemplo, nas Regulae ad direccionem ingenii, Regra I, na qual a unidade da ciência é garantida pela unidade da razão natural (cf. AT, 10, p. 360; Descartes, 1985, p. 12), Regra IV, na qual se estabelece a prioridade do método, enquanto conjunto de "regras certas e fáceis" sobre o objeto da investigação ou a própria investigação (AT, 10, p. 372; Descartes, 1985, p. 24). O mesmo tema já aparecia de maneira bem mais opaca na carta de Galileu a Castelli (cf. Galilei, 1932[1613], p. 284). Para Pascal, dada a miserável finitude da razão natural individual e a falibilidade do conhecimento humano, características que todos nós compartilhamos universalmente, as ciências naturais, que são dependentes da cooperação entre os indivíduos, deverão continuar incessantemente o seu aperfeiçoamento. É porque a razão natural só pode manifestar-se em cada indivíduo que a ciência é um empreendimento que só pode ser realizado pela cooperação dos seres humanos. A ciência é, portanto, um empreendimento coletivo, pelo qual se universaliza a razão individual; de modo que o entendimento científico é hipotético – o conhecimento produzido pelos sentidos e pelo raciocínio só pode almejar a possibilidade e a probabilidade – e perfectível – continuará sempre sendo aperfeiçoado – (cf. Pascal, 1998a, p. 453-4). De outra parte, Pascal reconhece plenamente a autonomia da esfera dos valores, de modo que, para ele, fica cancelada, neste plano, a tese da universalidade da razão natural. Assim, na esfera dos valores, Pascal considera que a dependência das disciplinas históricas e humanas ao princípio de autoridade, por um lado, e a necessidade de interpretação dos relatos originais, por outro, fazem que essas disciplinas cheguem a uma compreensão que se aproxima da certeza. Para Galileu e Descartes, ao contrário, porque dependem de um jogo de interpretações e possuem caráter exegético (histórico), as disciplinas morais produzem um entendimento hipotético e, na verdade, muito incerto.

3 TERCEIRA IDÉIA: O MÉTODO DA CIÊNCIA E O PANO DE FUNDO TEOLÓGICO

O terceiro ponto de comparação entre fatos e valores vincula-se a uma clara diferença de método. O método da ciência natural está dirigido não só para o entendimento dos fenômenos naturais mas visa também o aumento do controle das condições naturais. O método das disciplinas morais, por sua vez, pode ser chamado de método hermenêutico, no sentido de que faz exegeses de textos e documentos, por meio da interpretação de testemunhos e de comentários, com vistas à produção de narrativas compreensivas.

O método da ciência natural, esse procedimento peculiar que seria a marca distintiva da ciência, foi objeto de intensa investigação desde que Bacon se dispôs a reformar a lógica de Aristóteles no Novum organum e que Descartes, no Discurso do método, proclamou a precedência do método com relação à investigação propriamente dita. A questão de se o método deve ser entendido como um conjunto de procedimentos heurísticos que visam a descoberta (a invenção) ou se não existe um tal método de descoberta e tudo o que podemos fazer é controlar a objetividade das teorias naturais por meio da experiência continua em aberto em nossos dias. Entretanto, para os propósitos deste artigo, pode-se dizer que o método da ciência natural, que nasce no século XVII, está composto por uma parte hipotética, responsável por uma "combinação feliz" de matemática e experiência, e por uma parte experimental, no sentido muito preciso de observação sistemática e intervenção controlada na natureza, que englobam obviamente os experimentos pendulares e de planos inclinados de Galileu, os experimentos pneumáticos de Boyle e os experimentos ópticos com prismas de Newton, para citar apenas alguns dos mais famosos. Não se pode desprezar a capacidade de intervenção (controle) proporcionada, desde o início, pela introdução na ciência do método experimental, por exemplo, pelos experimentos que acabamos de citar. Cada um deles permite em graus variados o controle de certas condições iniciais (causais) presentes em certos eventos naturais: controlar a velocidade de queda de um corpo no caso do plano inclinado de Galileu; controlar as condições de aumento e diminuição da pressão no caso da bomba de vácuo de Boyle; controlar a composição e decomposição dos feixes de luz branca no caso dos prismas de Newton.7 7 Existe um sentido bem preciso em que mesmo as observações celestes de Tycho Brahe, que envolviam a construção e operação de instrumentos de grande porte, como as observações telescópicas de Galileu Galilei ligam-se ao desenvolvimento de uma mentalidade experimental. Obviamente, observações telescópicas e o conhecimento delas derivado não permitem propriamente intervenção nas condições causais dos fenômenos observados; contudo, nesse caso, é ainda evidente que a "observação sistemática e controlada" dos céus sofre o impacto da introdução de instrumentos científicos produzidos por meio do interesse experimental e utilitário.

Com relação ao método das disciplinas morais, é importante levar em consideração um aspecto histórico-contextual importante. Essas disciplinas, assim como o conjunto das disciplinas que cabiam sob a designação de filosofia natural, estiveram até o século XVII submetidas a uma hierarquia que colocava a teologia como senhora das ciências, o que garantia a supremacia do juízo teológico sobre os juízos naturais. Contudo, internamente à religião, os conflitos confessionais do início do século XVI conduziram a Igreja de Roma, na segunda metade do século XVI, à definição de uma ortodoxia teológica e doutrinal no Concílio de Trento, que ratificava o princípio de autoridade na interpretação dos textos sagrados, a qual deve estar em acordo com a tradição dos relatos dos Santos Padres e com os comentários dos teólogos escolásticos (este último ponto foi o resultado claro da intensa participação dos jesuítas no concílio). A separação dicotômica entre fato e valor parece ser, assim, uma marca dos autores que atuam em países submetidos à confissão tridentina, ou seja, à ortodoxia católica da Contra-reforma, como Galileu, Descartes, Pascal ou que negam radical e peremptoriamente a superioridade do juízo teológico, como é o caso de Bacon. Por outro lado, o abandono, por parte dos reformados, do princípio de autoridade na interpretação dos textos sagrados, enquanto conseqüência da doutrina da salvação individual, teve dois efeitos. Em primeiro lugar, ao liberar o fiel de uma interpretação autorizada e pôr a responsabilidade da interpretação da Bíblia no indivíduo, a Reforma protestante introduzia o elemento da subjetividade (subjetivismo) na esfera dos valores, relativizando os padrões religiosos e morais. Em segundo lugar, a Reforma, em sua repercussão interna à esfera teológica, propiciou o desenvolvimento da teologia natural, como única possibilidade de teologia racional.

A partir da segunda metade do século XVII, a teologia natural sofre um avanço significativo. David Hume, por exemplo, no século XVIII, reconhece a "religião natural" como disciplina, pondo-a, na Introdução do Tratado da natureza humana, entre as ciências: "as ciências da matemática, filosofia da natureza e religião natural" (Hume, 2000, p. 21; Thu, Introd.). O avanço da teologia natural conduziu a um apagar das fronteiras entre fato e valor que haviam sido estabelecidas naquela parte do continente que seguia a confissão católica, tal como definida pelo Concílio tridentino, que obrigava a interpretação da Bíblia baseada no consenso dos Santos Padres e dos doutores da Igreja, vale dizer, neste último caso, à interpretação teológica escolástica. É característico do pensamento teológico reformado inglês – anglicanismo – e mesmo da reforma luterana uma tendência a misturar fato e valor, principalmente no favorecimento ao desenvolvimento da teologia natural. Com o avanço desta, vemos nos autores da segunda metade do século XVII, como Boyle, Locke, Newton e Leibniz, uma tendência a apagar as fronteiras entre as disciplinas naturais e as disciplinas morais (religião, política, direito etc), traçadas pelos autores da primeira metade do século XVII. Essa confusão particular entre fato e valor será desfeita por Hume ao evidenciar o que se costuma chamar de "princípio de Hume", a saber, a impossibilidade de deduzir normas e regras (valores) – a partir de "matters of facts" (fatos). Ou, dito de outro modo, não se podem extrair dos conhecimentos científicos sobre os fatos conclusões no domínio dos valores; ou ainda, fatos não implicam valores (Hume, 2000, p. 509; Thu, Livro III, Parte I, Seção I). É fácil ver que esse princípio acaba recolocando a distinção entre fato e valor, ao alertar para a diferença existente entre, de um lado, a descrição e, de outro, a norma, ou seja, a prescrição/o procedimento/a regra, que são diretivas para a ação. Cabe lembrar, ainda que de passagem, que este resultado está de acordo com a crítica humeana do conhecimento que retorna ao habitus, o qual, lembremos, havia sido criticado e abandonado por Bacon e Descartes, para pô-lo agora como fundamento epistemológico do conhecimento (da crença racional, posto que a ciência não parece ser, para Hume, mais do que crença racionalmente justificada).

4 QUARTA IDÉIA: AS DIFERENÇAS ENTRE DESCRIÇÃO E NORMA E A NEUTRALIDADE COGNITIVA

A quarta idéia relevante para apreender o papel desempenhado pela dicotomia entre fato e valor na circunscrição do domínio científico consiste em evidenciar o modo pelo qual Hume, ao introduzir a distinção entre descrição (ser) e norma (dever), reescreve a dicotomia separando agora o que podemos chamar de discurso científico sobre os fatos do discurso normativo sobre o método. Essa reescrição da distinção revela-se significativa porque possibilita a constituição da idéia de neutralidade cognitiva.8 8 A concepção de neutralidade cognitiva nasce em um contexto histórico bastante complexo, cuja consideração obrigaria a tratar do papel desempenhado pela dicotomia entre fato e valor e pela distinção entre as disciplinas científicas e morais na constituição de uma separação entre dois tipos de entendimento: o entendimento científico que visa a explicação/predição e o entendimento histórico que conduz a uma espécie de compreensão empática.

A distinção entre norma e descrição está ligada ao já mencionado princípio de Hume, que proíbe a inferência dedutiva de normas a partir de descrições fatuais. Para Hume, a distinção entre descrição e norma se impõe, toda vez que se trata de avaliar as ações humanas. No último parágrafo do Livro III, Parte I, Seção I, do Tratado da natureza humana, faz a seguinte observação endereçada ao leitor:

Não posso deixar de acrescentar a esses raciocínios uma observação que talvez se mostre de alguma importância. Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-la aos leitores; estou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão (Hume, 2000, p. 509).

E, com efeito, não poderia ter sido outra a conclusão de uma seção que se inicia com uma enunciação estrita da dicotomia entre fato e valor, formulada por Hume para as próprias faculdades humanas, como por exemplo:

Como a moral, portanto, tem uma influência sobre as ações e os afetos, segue-se que não pode ser derivada da razão, porque a razão sozinha [...] nunca poderia ter tal influência. A moral desperta paixões, e produz ou impede ações. A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse aspecto. As regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão (Hume, 2000, p. 497; Thu, Livro III, Parte I, Seção I).

Essa insistência em excluir a razão do domínio da moral, em declarar o caráter inerte da razão no que diz respeito à moral, é uma conseqüência da separação estrita entre o domínio dos fatos, regido pela razão, e o domínio do valor (da moral), regido pelas paixões, volições e ações. A dicotomia é explicitamente formulada no § 9:

A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade e a falsidade consistem no acordo e desacordo seja quanto à relação real de idéias, seja quanto à existência e aos fatos reais. Portanto, aquilo que não fôr suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão. Ora, é evidente que nossas paixões, volições e ações são incapazes de tal acordo ou desacordo, já que são fatos e realidades originais, completos em si mesmos, e que não implicam nenhuma referência a outras paixões, volições e ações. É impossível, portanto, declará-las verdadeiras ou falsas, contrárias ou conformes à razão (Hume, 2000, p. 498).

Isso basta para mostrar como Hume traça a fronteira entre fato e valor. Retornemos agora ao princípio de Hume para mostrar brevemente como a proibição de deduzir normas a partir de descrições serve de fundamento para a tese da neutralidade cognitiva, que constitui uma parte da tese da neutralidade, que opera na dimensão teórica da ciência. Com efeito, a tese geral que afirma que o conhecimento obtido por meio do método autônomo e imparcial, como é o método da ciência moderna, é neutro com relação aos valores (religiosos, éticos, morais, sociais) tem dois sentidos claros: primeiro, o sentido de que o próprio procedimento de obtenção do conhecimento é neutro, caso em que temos a neutralidade cognitiva, de modo que os valores não têm qualquer papel no processo de decisão pelo qual se aceitam as teorias científicas; as teorias são aceitas independentemente dos valores mantidos pelos atores científicos. O segundo sentido é o de que os resultados científicos podem ser usados por qualquer perspectiva valorativa, caso em que temos a neutralidade aplicada que diz respeito às implicações éticas e sociais dos produtos científicos. O princípio de Hume permite afirmar, no contexto da neutralidade cognitiva, que não se podem extrair de teorias científicas (que tratam dos fatos) conclusões no domínio dos valores (sociais, isto é, valores da moral, da religião, da justiça etc). Na verdade, o princípio de Hume tem enorme relevância para a discussão sobre o método, porque daquilo que os cientistas comumente fazem (ou da descrição de seu comportamento científico usual) não é possível extrair regras sobre como se deve fazer ciência. A metodologia científica (normativa) não pode ser derivada do conhecimento fatual histórico da atividade científica.

5 QUINTA IDÉIA: O ENTENDIMENTO CIENTÍFICO E AS ESTRATÉGIAS DESCONTEXTUALIZADAS

A quinta idéia consiste em apontar para o nascimento de um novo tipo de estratégia (reducionista e descontextualizada), compatível com o tipo de entendimento científico engendrado pela dicotomia entre fato e valor e pela distinção entre as disciplinas naturais e morais. O entendimento científico, tal como proposto pela ciência natural moderna, visa exemplarmente um entendimento de tipo explicativo/preditivo e que abra a possibilidade de controlar a natureza. A peculiar combinação entre o método experimental e o ideal de explicação serviu de base para o desenvolvimento da perspectiva objetivista na ciência, isto é, para a consolidação da idéia de que as ciências naturais produzem um conhecimento objetivo que revela o mundo tal qual ele é, isto é, revela as possibilidades de intervenção na natureza, permitindo o controle da natureza, o controle dos objetos naturais. Assim, a combinação peculiar matemática/experimento/explicação estará na base do mecanicismo reducionista claramente presente nos autores do século XVII, tais como Bacon, Galileu, Mersenne e Descartes, muito embora neles o tema do domínio da natureza fique muito mais como um desiderato do que um valor incorporado nas práticas científicas (cf. Mariconda & Lacey, 2001).9 9 O controle da natureza só se tornará um valor quando efetivado pelas práticas científicas do mecanicismo do século XIX, agora enraizado no sistema universitário europeu e favorecido pelo avanço do capitalismo industrial, que organiza o controle da natureza na prática da objetivação dos seres naturais, isto é, na redução dos seres naturais a objetos desprovidos de toda dimensão moral; o que possibilitou, em nossos dias, a produção de artefatos biológicos, de máquinas moleculares.

Para nosso propósito aqui basta apontar para o nascimento, particularmente em Descartes e Galileu, de um novo tipo de estratégia para o tratamento dos assuntos científicos. Segundo essa estratégia, os problemas, as questões, as dificuldades etc. devem ser enfrentadas isolando as condições de contorno dos fenômenos para analisá-los seguindo uma ordem que vai do mais simples ao mais complexo, como ensina Descartes nas quatro regras do método enunciadas no Discurso do método que, tomadas em conjunto, podem ser vistas como um procedimento (método) de algebrização que procura isolar as variáveis relevantes para então submetê-las a uma análise (cf. AT, 6, p. 18-9). O mesmo tipo de estratégia descontextualizadora também está presente em Galileu, por exemplo, no diálogo que se segue à prova geométrica da trajetória parabólica dos projéteis, onde é proposto que, para tratar cientificamente de questões físicas que envolvem variações acidentais de aspectos físicos (gravidade, velocidade, forma etc.), "[...] é necessário abstrair essas propriedades e, após ter encontrado e demonstrado as conclusões que prescindem das resistências, completá-las, no momento de aplicá-las concretamente, com aquelas limitações que a experiência nos ensina" (Galilei, 1933 [1638], p. 276).

Nunca é demais assinalar que esse tipo de estratégia reducionista, que trata descontextualizadamente dos fenômenos naturais, mostrou-se especialmente adequada para as aplicações técnico-científicas, quando, no século XIX, o controle da natureza deixa de ser um desiderato para ocupar o lugar de valor central da atividade científica que hierarquiza os valores (fins e objetivos) internos à ciência e determina a direção da ciência natural.

6 A CIÊNCIA MODERNA E O CONTROLE DA NATUREZA

Voltemo-nos, agora, para a idéia seiscentista de controle da natureza e para a concepção de ciência que lhe serve de fundo. É interessante notar que o tema do controle da natureza vem, em sua origem, acompanhado da idéia de "alívio da condição humana". Por exemplo, Descartes na Sexta Parte do Discurso do método, ao apresentar as razões que o levaram a revelar as regras do método e a publicar os ensaios (Dióptrica, Meteóros e Geometria), que são resultados da aplicação do método, coloca entre as mais importantes razões a das regras do método conduzirem

[...] a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza (AT, 6, p. 61-2).

Trata-se efetivamente, na formulação cartesiana, de produzir uma ciência útil no sentido de que ela é tomada como o núcleo que possibilita o domínio da natureza, com o qual se pode almejar chegar "principalmente (...) à conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida" (AT, 6, p. 62). E Descartes vaticina que as grandes realizações do novo método serão feitas na medicina, onde

[...] poderíamos livrar-nos de uma infinidade de moléstias, quer do espírito, quer do corpo, e talvez mesmo do enfraquecimento da velhice, se tivéssemos bastante conhecimento de suas causas e de todos os remédios de que a Natureza nos dotou (AT, 6, p. 62).

As razões de Descartes, portanto, ligam-se à dominação, pois o fim visado é o da utilização da natureza em proveito da humanidade. O fim se configura, assim, evidentemente antropocêntrico e, por isso, valorativo. Devemos valorizar a ciência e o controle que ela proporciona porque isso permite a melhoria das condições de vida (de "conservação da saúde") da humanidade.

Entretanto, neste ponto, mais do que entender a retórica de justificação da valorização da ciência, o que nos interessa saber é como acontece o controle? Ou melhor, o que é que torna possível controlar a natureza? A condição fundamental para a existência do controle, na primeira modernidade, é a descoberta e o estabelecimento de leis da natureza, isto é, a descoberta e estabelecimento de regularidades de sucessão matematicamente expressáveis entre os fenômenos naturais. Com efeito, as disciplinas naturais foram conduzidas segundo um ideal de explicação/predição (que é ele mesmo valorativo) que favoreceu a procura e o estabelecimento de leis naturais. Essa idéia de que os eventos naturais estão regidos por leis das quais não se podem afastar está claramente presente em Galileu seja na carta a Castelli, seja na carta a Madame Cristina de Lorena10 10 A afirmação sobre a inexorabilidade das leis naturais na carta a Castelli – "(...) e sendo, todavia, a natureza inexorável, imutável e indiferente a que suas recônditas razões e modos de operar sejam acessíveis ou não ao entendimento dos homens, razão pela qual jamais transgride os termos das leis a ela impostas (...)" (EN, 5, p. 283; Nascimento, 1988, p. 19) – encontra-se repetida numa formulação ligeiramente modificada na carta a madame Cristina de Lorena – "(...) sendo a Natureza inexorável e imutável e jamais ultrapassando os limites das leis a ela impostas, como aquela que em nada se preocupa se suas recônditas razões e modos de operar estão ou não estão ao alcance da capacidade dos homens (...)" (EN, 5, p. 316-7; Nascimento, 1988, p. 49). e, faz, de modo claro, parte do programa de reforma da observação do copernicanismo, porque visa restituir a realidade que está por trás do conjunto de observações mediante a especificação das leis, da estrutura e da ordem subjacentes aos fenômenos observados. (Cf. Mariconda, 2000, p. 95-7; Mariconda & Vasconcelos, 2006, p. 53-74). As leis da natureza são entendidas como reveladoras de características objetivas e estruturais do mundo e como expressão dos vínculos causais efetivos entre os eventos naturais possíveis, de modo que abrem a possibilidade de intervenção humana por meio do controle sobre esses vínculos causais.

A ciência moderna se caracterizou desde o início por usar procedimentos metódicos imparciais, isto é, livres de preconceitos, de gostos, de considerações de natureza valorativa, para estabelecer os fatos objetivamente (cf. Mariconda & Lacey, 2001, p. 53-6). A imparcialidade do método assegura, de certo modo, a manutenção da objetividade científica e produz um tipo de conhecimento fatual acerca da natureza capaz de dar acesso a uma série de possibilidades materiais de intervenção sobre os fenômenos tomados como objetos de investigação científica. As possibilidades de intervenção são verificadas sob condições experimentais controladas, de modo que conta como resultado científico a confirmação experimental da possibilidade de controle de eventos naturais. Essa possibilidade de controle gera, por assim dizer, um problema técnico, na medida em que envolve a produção de um mecanismo ou dispositivo material por meio do qual o controle pode efetivar-se. Em geral, a partir do século XIX, quando se confirma experimentalmente (o que pode envolver a construção de protótipos) uma possibilidade de controle, ela é patenteada, de modo a assegurar o necessário sigilo de proteção industrial. Note-se, entretanto, que todo esse processo ocorre porque há um valor de base, que direciona toda a pesquisa científica – o controle da natureza –, que é o valor maximizado pelas práticas tecnocientíficas e em torno do qual se organiza a hierarquia dos valores envolvidos na atividade científica.

Um tal desenvolvimento das possibilidades de intervenção na natureza esteve, desde o início, associado a uma imagem de ciência que promove sua união com a técnica. A ciência de Galileu – a ciência moderna, representada pela física clássica – não separa mais episteme e techne, ciência e artes mecânicas, mas é uma ciência útil, no sentido não apenas de ter conseqüências práticas, isto é, de incluir um tratamento matemático de muitos problemas físicos de caráter prático, mas também de poder ser controlada, testada e avaliada do ponto de vista de sua verdade ou falsidade por essas conseqüências práticas. Ora, a essa nova concepção de ciência está ligada uma nova concepção da racionalidade cientítica, para a qual há uma estreita relação entre o trabalho científico e o trabalho técnico. Grande parte das transformações que se produziram na mentalidade científica, em particular, na física do século XVII, originou-se das sempre novas exigências e das questões cada vez mais precisas levantadas pelos técnicos. O que os técnicos procuram é saber com exatidão como se comportam certos fenômenos particulares, de modo que possamos saber como agir quando nos confrontamos com esses fenômenos. É por isso que, para os técnicos, como para Galileu, as discussões dos físicos aristotélicos cerca da terminologia e das causas dos fenômenos naturais e as especulações dos filósofos das universidades acerca da essência última da Natureza parecerão desprovidas de interesse e significação.

Essa aliança entre ciência e técnica, que tem em Galileu um de seus primeiros defensores, conduziu obviamente a uma caracterização inteiramente nova das próprias pesquisas científicas e de seus objetivos, a um novo estilo de sistematização e exposição. Na nova concepção de ciência, serão deixadas de lado as especulações desprovidas de relação com a experiência, abrindo espaço àquelas considerações teóricas (1) que podem conduzir a formulações de leis naturais, ao estabelecimento de previsões, à estipulação de regras práticas visando a ação e (2) que podem ser controladas pela experiência e pelas conseqüências práticas.11 11 Tal como no contexto da nota 7, também aqui o termo "controle" se aplica ao método científico e não à natureza; ou seja, é empregado no sentido de controlar pela experiência as hipóteses científicas. Entretanto, cabe notar que o controle experimental das hipóteses está na raiz da possibilidade de controle da natureza a tal ponto que esses dois tipos de controle podem ser facilmente confundidos. Isso significa que a ciência, ao enfrentar os problemas levantados pela técnica, não realiza apenas uma função prática, mas preenche também uma função teórica de justificação racional de certas práticas técnicas, de certos modos especializados de fazer. Dito de outro modo, as reflexões e os raciocínios práticos dos técnicos viriam, desse modo, a ser justificados pelas especulações teóricas da ciência natural nascente. Cada vez mais, a especulação científica se fundamentaria nas próprias atividades práticas, abrindo assim a possibilidade de que as teorias científicas fossem julgadas não só por seu valor teórico, mas também e principalmente pelo aporte que fornecem à solução de problemas práticos.

A introdução do método experimental nas práticas científicas favoreceu a consolidação dessa união entre ciência e técnica, pois gerou um ciclo entre a teoria, o instrumento (artefato) e o experimento; ciclo que permite um trânsito constante e de dupla mão entre a conceituação teórica, o intrumento ou aparato instrumental e a elaboração experimental. Esse ciclo, que foi claramente introduzido no decorrer do século XVII, e que está presente em Galileu, Boyle e Newton, revelou-se especialmente apropriado para promover a união entre a ciência e a técnica, união que permitiu a longo termo que a ciência permeasse todo o mundo no qual vivemos, transformando nossa civilização em técnico-científica.

CONCLUSÃO

Para concluir, desejo tecer dois breves comentários relativos a repercussões recentes das práticas inauguradas pela ciência do século XVII e organizadas, a partir do século XIX, sob o predomínio do valor de controle da natureza e em vista do progresso tecnológico.

O primeiro diz respeito ao caráter valorativo do controle da natureza e a tensão com o valor da emancipação humana. Com efeito, se tomarmos algum ramo da tecnociência atual, como a biotecnologia, constataremos a existência de uma série de resultados da biologia molecular e da genética, bem como o desenvolvimento de técnicas biotecnológicas – fecundação in vitro, transgenia, clonagem etc – que possuem implicações e repercussões no âmbito social, ambiental e ético. Neste último âmbito, em particular, há sérios questionamentos das novas tecnologias baseados na falta de eqüidade e distributividade dos benefícios e dos produtos tecnológicos, uma vez que entram na cadeia produtiva. Mas a eqüidade e a distributividade são, em geral, considerados valores éticos básicos para a emancipação humana. Na verdade, questões como essas devem ser tratadas na convergência entre a epistemologia e a ética, convergência que não é outra coisa que levar a sério a questão da responsabilidade social do cientista e, em nossa época, do tecnólogo. Para tanto, é preciso colocar em questão a tese da neutralidade da ciência, segundo a qual os resultados científicos (seja na concepção da pesquisa – na escolha da estratégia que a presidirá –, seja em sua aplicação tecnológica) são neutros com relação aos interesses e aos valores. Ela não pode ser aceita sem qualificações e restrições e deve ser considerada à luz de precauções epistemológicas e éticas. Dito de outro modo, não se sustenta a tese de que aquilo que é científico é ipso facto bom, independentemente dos interesses e valores que possam estar envolvidos, por exemplo, no financiamento que possibilitou a condução daquele tipo de pesquisa. Tampouco a tecnologia é neutra no sentido de beneficiar as comunidades humanas independentemente de suas perspectivas de valor ou de suas condições sociais. Ou, numa formulação de máxima generalidade, não é possível sustentar uma dicotomia entre fato e valor, uma separação estrita entre o domínio da determinação da verdade e o domínio dos negócios, da política e do direito, nos quais são constituídos os valores sociais. Os valores devem ser levados em conta para a constituição de práticas científicas ao mesmo tempo mais eficazes e mais justas, no âmbito das ações responsáveis.

O segundo comentário visa chamar a atenção para o efeito causado pelo predomínio do valor de controle da natureza, e a conseqüente aceleração do progresso científico-tecnológico, sobre as fronteiras entre o natural e o artificial (natureza/artefato), produzindo, em conseqüência, profundas alterações na concepção de natureza humana. O controle da natureza significou o controle dos objetos naturais a tal ponto que, no caso da nanotecnologia, fabrica os próprios objetos, inclusive entidades auto-replicáveis, a partir de sua própria montagem atômica ou, no caso da biotecnologia, produzse um novo ser vivo por modificação da estrutura genética. Muitos afirmam que os organismos vivos são, na verdade, máquinas biológicas (artefatos), químico-moleculares. Objetos como esses são de difícil classificação, pois são artefatos (não existiriam espontaneamente na natureza se não fossem produzidos segundo um plano externo – heterônomo), mas, uma vez construídos, podem ter uma vida autônoma, reproduzindose, nutrindo-se, isto é, tendo todas as características de um ser vivo autônomo. A essa dificuldade de saber o que é natureza, o que é artefato, associa-se outra: a da profunda modificação no próprio conceito de natureza humana. Foi a biologia evolucionista do final do século XIX que chegou ao resultado científico de que os humanos são uma espécie animal, naturalizando o homem, que acaba assim também sendo objetivado. Mas então também o ser humano é uma máquina biológica, um artefato físico-químico do qual a biologia pretende que em breve terá o plano genético. Não é surpreendente, portanto, que se tenha tornado usual a designação de pós-humano para esses seres projetados pela engenharia genética. De qualquer modo, as possibilidades de intervenção criadas pelo desenvolvimento da biotecnologia e da engenharia genética, que poderiam produzir modificações planejadas (engenheiradas) no ser humano, produz a necessidade de, no mínimo, repensar e reformular as questões éticas relativas ao livrearbítrio e à dignidade da condição humana. Versões parciais deste trabalho foram apresentadas em duas oportunidades. Na primeira, o texto serviu de aula de titulação, proferida em 4 de maio de 2006, no Concurso para Professor Titular de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Na segunda, foi apresentada, em 24 de maio de 2006, numa versão modificada no V Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, promovido pela AFHIC em Florianópolis, Santa Catarina. Agradeço a Hugh Lacey e Sylvia Gemignani Garcia pelas críticas e sugestões que auxiliaram a melhorar esta versão ora publicada.

  • Adam, C. & Tannery, P. (Ed.). Oeuvres de Descartes Paris: Vrin, 1996. 11 v. (AT)
  • Aristóteles. Categories. In: Barnes, J. (Ed.). The complete works of Aristotle Princeton: Princeton University Press, 1991. v. 1, p. 3-24.
  • Ayer, A. J. (Ed.). Logical positivism New York: The Free Press, 1959.
  • Bacon, F. Novum organum ou verdadeiras indicaçőes acerca da interpretaçăo da natureza Traduçăo e notas J. A. R. de Andrade. Săo Paulo: Abril Cultural, 1973a. p. 7-237. (Coleçăo Os Pensadores, 13).
  • Bacon, F. Nova Atlântida Traduçăo e notas J. A. R. de Andrade. Săo Paulo: Abril Cultural, 1973b. p. 239-78. (Coleçăo Os Pensadores, 13).
  • Barnes, J. (Ed.). The complete works of Aristotle Princeton: Princeton University Press, 1991.
  • Descartes, R. Regras para a direçăo do espírito Porto: Ediçőes 70, 1985.
  • _____. Regulae ad directionem ingenii. In: Adam, C. & Tannery, P. (Ed.). Oeuvres de Descartes Paris: Vrin, 1996. v. 10, p. 349-488.
  • _____. Discours de la methode. In: Adam, C. & Tannery, P. (Ed.). Oeuvres de Descartes Paris: Vrin, 1996. v. 5, p. 1-78.
  • Favaro, A. (Ed.). Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei Firenze: Barbčra Editore, 1929-1933. 20 v. (EN)
  • Ferrari, J.; Ruffing, M.; Theis, R. & Vollet, M. (Ed.). Kant et la France Kant und Frankreich Hildesheim/Zürich/New York: G. O. Verlag, 2005.
  • Galilei, G. Lettera a Benedetto Castelli. In: Favaro, A. (Ed.). Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei Firenze: Barbčra Editore, 1932 [1613]. v. 5, p. 281-8.
  • _____. Lettera a Madama Cristina di Lorena. In: Favaro, A. (Ed.). Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei Firenze: Barbčra Editore, 1932 [1615]. v. 5, p. 309-48.
  • _____. Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno ŕ due nuove scienze. In: Favaro, A. (Ed.). Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei Firenze: Barbčra Editore, 1933 [1638]. v. 8.
  • _____. Carta de Galileu Galilei a Fortunio Liceti em Pádua. Scientiae Studia, 1, 1, p. 75-80, 2003 [1640].
  • Guenancia, P. Kant et Pascal: deux critiques de la raison. In: Ferrari, J.; Ruffing, M.; Theis, R. & Vollet, M. (Ed.). Kant et la France Kant und Frankreich Hildesheim/Zürich/New York: G. O. Verlag, 2005. p. 15-29.
  • Gueru, M. le (Ed.). Oeuvres complčtes de Pascal Paris: Gallimard, 1998. 2 v.
  • Hume, D. Tratado da natureza humana. Traduçăo D. Danowski. Săo Paulo: Editora Unesp/Imprensa Oficial, 2000.
  • Mariconda, P. R. O Diálogo de Galileu e a condenaçăo. Cadernos de História e Filosofia da Cięncia, série 3, 10, 1, p. 77-160, 2000.
  • _____. Lógica, experięncia e autoridade na carta de 15 de setembro de 1640 de Galileu a Liceti. Scientiae Studia, 1, 1, p. 63-73, 2003.
  • Mariconda, P. R. & Lacey, H. A águia e os estorninhos: Galileu e a autonomia da cięncia. Tempo Social, 13, 1, p. 49-65, 2001.
  • Mariconda, P. R. & Vasconcelos, J. Galileu e a nova física Săo Paulo: Odysseus, 2006.
  • Nascimento, C. A. R. do (Ed.). Cięncia e fé Săo Paulo: Nova Stella/Intituto Italiano di Cultura, 1988.
  • Pascal, B. Préface sur le Traité du vide. In: Gueru, M. le (Ed.). Oeuvres complčtes de Pascal Paris: Gallimard, 1998a. v. 1, p. 452-8.
  • _____. Dix-huitičme lettre (Les provinciales). In: Gueru, M. le (Ed.). Oeuvres complčtes de Pascal Paris: Gallimard, 1998b. v. 1, p. 797-815.
  • Putnam, H. The collapse of the fact/value dichotomy and other essays Cambridge/London: Harvard University Press, 2002.
  • Stevenson, C. L. The emotive meaning of ethical terms. In: Ayer, A. J. (Ed.). Logical positivism New York: The Free Press, 1959. p. 264-81.
  • 1
    Para uma discussão sobre o lugar central do princípio de autoridade nos currículos universitários dos séculos XVI e XVII e as dificuldades enfrentadas pela ciência moderna de tipo galileano para entrar no sistema de transmissão do conhecimento patrocinado pela Igreja, cf. Mariconda, 2000, p. 85-90; p. 101-9.
  • 2
    Para entender a centralidade atribuída por Aristóteles aos hábitos e disposições no processo de aquisição e transmissão do conhecimento, é suficiente lembrar que a ciência (assim como a virtude) é tomada por ele como pertencendo ao gênero dos hábitos (1991, 8, 8b28-35); no caso da ciência, um
    hábito intelectual que se insere no processo de passagem da potencialidade à atualidade, da coisa a conhecer até a coisa conhecida. O
    hábito é, na verdade, uma
    disposição corporal durável adquirida por repetição, por treinamento. Trata-se de uma concepção plástica do intelecto, segundo a qual ele se amolda, adapta-se, às coisas a conhecer. Esse tipo de adaptação do intelecto é visada pelo ensino e serve de base para uma concepção pedagógica que utiliza a repetição como forma de ativar a memória e produzir a retenção do conhecimento; ideal pedagógico que se encontra claramente presente nos
    Elementos de Euclides.
  • 3
    O uso da dicotomia entre as esferas dos fatos e dos valores pode ser discernido em um pequeno conjunto de cartas importantes que Galileu escreveu sobre a questão da liberdade da pesquisa científica frente ao princípio de autoridade, a saber, a carta de Galileu a Benedeto Castelli de 21 de dezembro de 1613; duas cartas a monsenhor Piero Dini de 16 de fevereiro e 23 de março de 1615 e, finalmente, a carta a senhora Cristina de Lorena, grã-duquesa de Toscana, de 1615 9 (cf. EN, 5, p. 261-425; Nascimento, 1988). Por outro lado, para as posições de Blaise Pascal, há dois documentos importantes: o Prefácio do
    Tratado do vazio e a
    18a Provincial (cf. Pascal, 1998a; 1998b).
  • 4
    Galileu e Pascal coincidem também na consideração de que o método da ciência está composto por uma combinação peculiar de sentidos e raciocínio, uma mescla de experiência e matemática, na qual os fatos da experiência têm um papel muito especial no funcionamento autônomo do método, autônomo com relação à autoridade da teologia (cf. Galilei, 2003 [1640]; Mariconda, 2003).
  • 5
    Para Guenancia, já há em Pascal um claro movimento de crítica à razão, de reconhecimento de seus limites (cf. Guenancia, 2005, p. 24-6).
  • 6
    Em Descartes, por exemplo, nas
    Regulae ad direccionem ingenii, Regra I, na qual a unidade da ciência é garantida pela unidade da razão natural (cf. AT, 10, p. 360; Descartes, 1985, p. 12), Regra IV, na qual se estabelece a prioridade do método, enquanto conjunto de "regras certas e fáceis" sobre o objeto da investigação ou a própria investigação (AT, 10, p. 372; Descartes, 1985, p. 24). O mesmo tema já aparecia de maneira bem mais opaca na carta de Galileu a Castelli (cf. Galilei, 1932[1613], p. 284).
  • 7
    Existe um sentido bem preciso em que mesmo as observações celestes de Tycho Brahe, que envolviam a construção e operação de instrumentos de grande porte, como as observações telescópicas de Galileu Galilei ligam-se ao desenvolvimento de uma mentalidade experimental. Obviamente, observações telescópicas e o conhecimento delas derivado não permitem propriamente intervenção nas condições causais dos fenômenos observados; contudo, nesse caso, é ainda evidente que a "observação sistemática e controlada" dos céus sofre o impacto da introdução de instrumentos científicos produzidos por meio do interesse experimental e utilitário.
  • 8
    A concepção de neutralidade cognitiva nasce em um contexto histórico bastante complexo, cuja consideração obrigaria a tratar do papel desempenhado pela dicotomia entre fato e valor e pela distinção entre as disciplinas científicas e morais na constituição de uma separação entre dois tipos de entendimento: o entendimento científico que visa a explicação/predição e o entendimento histórico que conduz a uma espécie de compreensão empática.
  • 9
    O controle da natureza só se tornará um valor quando efetivado pelas práticas científicas do mecanicismo do século XIX, agora enraizado no sistema universitário europeu e favorecido pelo avanço do capitalismo industrial, que organiza o controle da natureza na prática da objetivação dos seres naturais, isto é, na redução dos seres naturais a objetos desprovidos de toda dimensão moral; o que possibilitou, em nossos dias, a produção de artefatos biológicos, de máquinas moleculares.
  • 10
    A afirmação sobre a inexorabilidade das leis naturais na carta a Castelli – "(...) e sendo, todavia, a natureza inexorável, imutável e indiferente a que suas recônditas razões e modos de operar sejam acessíveis ou não ao entendimento dos homens, razão pela qual jamais transgride os termos das leis a ela impostas (...)" (EN, 5, p. 283; Nascimento, 1988, p. 19) – encontra-se repetida numa formulação ligeiramente modificada na carta a madame Cristina de Lorena – "(...) sendo a Natureza inexorável e imutável e jamais ultrapassando os limites das leis a ela impostas, como aquela que em nada se preocupa se suas recônditas razões e modos de operar estão ou não estão ao alcance da capacidade dos homens (...)" (EN, 5, p. 316-7; Nascimento, 1988, p. 49).
  • 11
    Tal como no contexto da nota 7, também aqui o termo "controle" se aplica ao método científico e não à natureza; ou seja, é empregado no sentido de
    controlar pela experiência as hipóteses científicas. Entretanto, cabe notar que o controle experimental das hipóteses está na raiz da possibilidade de controle da natureza a tal ponto que esses dois tipos de controle podem ser facilmente confundidos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2006
    Universidade de São Paulo, Departamento de Filosofia Rua Santa Rosa Júnior, 83/102, 05579-010 - São Paulo - SP Brasil, Tel./FAX: (11) 3726-4435 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@scientiaestudia.org.br